CARLOS BRAGA (1952 –         )

Calma! Ainda não é o que estavam a pensar. Isso seria, por agora, uma notícia manifestamente exagerada. Espero não vos ter deixado de coração alvoroçado, só porque ando, há praticamente um ano, afastado das massas (e, confesso, às vezes também dos hidratos…). A inspiração para o título deste texto foi pedida de empréstimo ao escritor Gonçalo M. Tavares. Transcrevo, do Jornal de Letras n.º 1356, de 21 de Setembro:

“Todos os vivos em parte são isto: uma data, para já, e um traço ali, no meio, que parece tremer como o solo que espera. Quando? Quando? A mão espera – a mão de quem, não sei – mas espera ansiosa, mas também paciente, para escrever à frente do meu nome, e do nome de todos os vivos, essa segunda data, esse segundo número. A natureza tem horror ao vazio e depois do traço da data de nascimento há um espaço enormemente vazio e natural.”

Por enquanto quero continuar a dizer, como o poeta: “estou vivo e escrevo sol”. Aqui ficam algumas razões (as menos íntimas) para este retiro prolongado e tão enrodilhado em silêncio, um silêncio que nem sequer pingou ou se derramou como os conhecidos relógios de Dali:

Não faz o meu estilo frequentar com assiduidade um espaço no qual pouco ou nada se debate e onde muito se insulta. Onde deambulam o narcisismo exibicionista (que apenas os vendedores de espelhos agradecem), os caçadores furtivos de opiniões divergentes e as falazes aparências. Escasseia a pachorra para os pregoeiros de trivialidades, para alguns textos virtuais, mas tão pouco virtuosos. Basta de digitalizar a saudade, em vez de a exercitar com os amigos em redor da mesa fraterna. Sem tempo para os moralistas descabelados, para os pelotões de execução da liberdade dos outros, para os que antecipam o cinzentismo das ideias ao grisalho dos cabelos.

Sinto fascínio pela diferença e aprecio o debate de ideias, porque o que nos enriquece é a parcela de verdade que também existe nos outros. Disse um dia Picasso: “se apenas houvesse uma única verdade, não poderiam pintar-se cem telas sobre o mesmo tema”. O problema é que há sempre quem não mereça a honra de uma boa polémica, quem não seja capaz de discutir ideias, sobretudo porque as não tem.

Quando tropeçamos com gente desta, tentar discutir ideias é como aceitar jogar xadrez com um pombo: ele pousa, derruba as peças (argumentos), agita as asas da falácia, caga no tabuleiro e levanta voo, a cantar vitória. A abertura mental para o diálogo tende a encurtar à medida que o ódio vai invadindo a caixa craniana E daí às provocações vai um passo muito curto, ou não fossem elas o biombo da ignorância. Como não pensamos todos da mesma maneira, o entendimento só é possível sem ódio e se formos capazes de exercitar a tolerância.

Fica aqui exarado: as polémicas estéreis, as baixas intrigas e a torpe calúnia – tão inúteis, mas tão portuguesas! – ficam para quem nelas se compraz. Nada de gastar cera com tão ruins defuntos, sobretudo os de perfis falsos, com os quais somos arrastados para os combates de lama em que tanto gostam de chafurdar. Quem desconhece um princípio básico de carpintaria, que consiste em saber usar o nível, só pode exibir como resultado o bilhete de identidade da sua própria incompetência.

Apesar de tudo isto (e isto não é tudo!) prometo voltar. Enquanto, é claro, o espaço vazio colocado à direita do traço que o separa da data de nascimento não for preenchido (quem me dera, quando tal acontecer, que o desenlace possa ser atribuído a uma muito improvável síncope de felicidade). Um regresso sem regularidades cronometradas. Os gritos de alma, as confissões ou opiniões sobre o que quer que seja, não têm de acontecer a horas certas nem em dias previamente assinalados no calendário.

Do que se trata, afinal, é de recusar a ideia de que a vida se espraia à nossa frente com a pontualidade cronometrada de um relógio de cuco. A nossa vida não é nada disso: tem intermitências, altos e baixos, picos de ansiedade, planícies de acalmia. Pode ser inesperada e incerta, contraditória. Ora navega em regatos mansos, ora irrompe, tumultuosa, em golfadas de paixão ou desespero.

Valorizar a lentidão parece ser cada vez mais condição de qualidade naquilo que produzimos. Pensar e reflectir são coisas que requerem um processo mental lento. Regressar à lentidão é recusar o estado doentio de hiperactividade do tempo presente, de uma velocidade a qualquer preço imposta pelas novas tecnologias. As coisas passam ao nosso lado sem as experienciarmos, sem as habitarmos. É tempo, pois, de iniciar o combate ao “demónio” da velocidade.

É assim que quero continuar por aqui. Sem pressas aturdidas. Sem submissão aos comités de vigilância dos bons costumes, recusando o aplauso das carpideiras do moralismo de vão de escada. Apenas a perfilar e a alinhavar palavras que não atraiçoem o pensamento. Palavras simples, mas honradas.

Boas Festas para os meus amigos.