Lobo Antunes: de novo a guerra, contra o silêncio


Lobo Antunes

Comprei há dias, indiferente ao que por aí se vai dizendo contra António Lobo Antunes, “Até que as Pedras se Tornem mais Leves que a Água”. E se há livros que têm o dom ou a arte de agarrar o leitor logo de início, ao saborear as primeiras palavras, este é um deles. Ora vejam:

“A minha mãe era prima direita deles, quer dizer prima direita do pai, não do filho preto que nunca foi seu filho embora o tratasse como filho e o preto o tratasse como pai, o primo da minha mãe trouxe-o da guerra em Angola (…) e lembro-me do meu padrasto me responder, quando lhe perguntei o motivo do primo haver regressado com uma criança se calhar mais feliz lá nos sertões onde a encontrou, que quase todos os soldados voltavam com recordações, uma máscara, um boneco de pau, uma orelha numa garrafa de álcool, um garoto, um braço a menos, silêncios a meio das conversas em que se afastavam para muito longe continuando ali e no longe dava-me ideia que quase se ouviam tiros e gritos (…) alguns acabaram no poço ou enforcados na trave do galinheiro a baloiçarem devagarinho (…) sou eu que tomo conta do jazigo do primo da minha mãe (…) e lá estão ambos, o pai branco e o filho preto (…) conforme ninguém se lembra já do que sucedeu há dez anos na altura da matança do porco, quando o filho preto assassinou o pai branco com a faca ainda cheia de sangue do animal, não outra faca, a mesma faca e a mesma faca pareceu-me para ele outra faca muito antiga, ia jurar que na sua cabeça outra faca muito antiga, o filho preto a gritar ao pai branco

– Lembra-se do que fez lembra-se do que fez?”

Certamente por também ter participado na guerra, em Moçambique, o trecho marcante desta prosa do mais fino quilate foi este: “quase todos os soldados voltavam com recordações, uma máscara, um boneco de pau, uma orelha numa garrafa de álcool, um garoto, um braço a menos”. Li isto e carreguei de imediato nos pedais da memória, recuei à primeira metade dos anos setenta, em busca de remotíssimas lembranças. Depois serenei e qualquer coisa cintilou dentro de mim, ao sentir-me reconfortado por ter trazido de Moçambique não um braço a menos, não um ignóbil troféu de caça conservado numa garrafa de álcool (havia quem se pavoneasse, nos anfiteatros de guerra, com um colar de orelhas ao pescoço…) mas apenas inofensivas máscaras e bonecos talhados em pau preto, comprados no mercado dominical de Nampula.

Nampula
Mercado do pau preto (Nampula, 1975)

Escreveu há dias Ana Cristina Leonardo que esta prosa de Lobo Antunes é “mais do que o muito que se alcança em tantos ensaios e panfletos sobre a guerra. A literatura tem essa vantagem: a de poder ir ao osso, sem rodeios conceptuais, sem escusas apaziguadoras”. Apetece acrescentar a estas palavras – apesar de sabermos que a literatura não salva o mundo, embora talvez possa ajudar a mudá-lo – a feliz metáfora de Kafka acerca do papel da escrita, que Lobo Antunes tão bem lapida neste seu último romance: “um machado que tem por função quebrar o gelo que há em nós”.

A escrita de António Lobo Antunes pode não nos dar paz, nem garantir conforto ou mesmo boa consciência, mas talvez seja por isso que ela e ele vão permanecer. Nesta obra, volta a mergulhar com mestria nas memórias e fantasmas da guerra colonial. Regressa a um tempo em que se ama e que é o mesmo em que se morre. Uma guerra que um dia Paul Valéry definiu ironicamente como “um massacre entre pessoas que não se conhecem, para proveito de pessoas que se conhecem, mas não se massacram”.

IMG_1499Uma guerra, a de África, que é ferida aberta e que às vezes ainda sangra e dói nos corações alvoroçados dos que por lá passaram, porque há verdades que se agarram, como lapas, aos trilhos sinuosos da memória. Apesar de todos os silêncios que se interpõem entre a geração que fez a guerra e a geração que nasceu depois dela. Uma geração que pouco ou nada sabe de gente com colares de orelhas a adornar o pescoço, de orelhas em garrafas de álcool, de soldadinhos que regressaram sem pernas ou sem braços, ou de outros que nunca mais voltaram do outro lado do mar.

Poesia da guerra colonial

A notícia vinha no Diário de Coimbra de 30 de Março de 2009. Há milhares de poemas dispersos, muitos deles de autores anónimos, alusivos à guerra colonial. O projecto, a cargo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, já tem nome: “Poesia da Guerra Colonial: uma ontologia do “eu” estilhaçado”. Estarão reunidos já cerca de 10 000 poemas. Tratando-se da construção de uma memória nacional, os investigadores referem que este tipo de poesia representou “um veículo importante para a mobilização e para a sensibilização”, aludindo também a uma “dimensão terapêutica da literatura de guerra, que permite afastar traumas e emoções que advêm do conflito”.

O que me leva a trazer aqui este tema é o facto de saber que não foram apenas só alguns nomes consagrados pelo cânone literário que derramaram em poesia as suas experiências de guerra. Na região da Bairrada há certamente gente que tendo passado pelos cenários da guerra de África expressou poeticamente os sentimentos que lhe iam na alma, perguntando-se muitas vezes, quando o perigo rondava: que estou eu a fazer aqui?

A partir dos anos 60 do século passado e até ao 25 de Abril de 1974, aos jovens com 20 anos deparava-se o dilema de ir para a guerra. As alternativas de lhe fugir – que venha o diabo e escolha… – eram a emigração clandestina, normalmente para França, “a salto”, como então se dizia, com recurso ao célebre “passaporte de coelho”; ou então optar pela pesca do bacalhau à linha, nos mares longínquos e gelados da Gronelândia e Terra Nova. Eram estes os cenários de sonho que se deparavam à juventude daquele tempo.

Ir à guerra foi uma experiência traumática para muita gente. Ver morrer amigos despedaçados por uma mina, ou sentir-se só no meio do mato, de um momento para o outro, durante uma emboscada, com a vida no fio da navalha, são coisas que deixam sulcos fundos e imperecíveis na memória e na alma. Mas também não seria mais agradável, para um jovem de 20 anos , sair do lugre estacionado no meio do mar, meter-se sozinho num frágil dóri e rumar aos bancos de pesca, à força de remos ou vela. Afastar-se do barco principal e desaparecer na bruma do amanhecer, enfrentando mil perigos, cercado de nevoeiro cerrado, de frio e de mau tempo, sem recurso a previsões meteorológicas. À hora de voltar, com o pequeno barco carregado, quantos se perdiam e afundavam. Com a bruma cada vez mais cerrada, ecoavam os chamamentos, os assobios, as imprecações, na imensidão do oceano. Cansados da faina, os pescadores recolhiam ao apetecido lugre, onde outros trabalhos árduos os aguardavam: “a degola, destripação, abertura, limpeza e salga do pescado até altas horas da noite, para só depois se poder saborear o caldo quente do rancho e o merecido descanso na estreita enxerga do beliche” (1).

Na guerra em África, nem só os que desertavam eram considerados traidores. Traidores eram também, para o regime de Salazar, aqueles que se rendiam, na certeza de que continuar a lutar, em certos momentos, significava perecer. Aconteceu isso com os ex-prisioneiros da guerra da Índia. Regressados a Portugal, havia ordens para não lhes dar emprego. A ordem era “Morrer pela Pátria” e o governo de então preparava-se já para celebrar a glória póstuma dos soldados sacrificados, pois preferia heróis mortos a prisioneiros vivos. Muitas feridas de guerra continuam por sarar e a poesia vertida da pena de quem a viveu por dentro pode ser uma forma de catarse, de exorcizar fantasmas.

A poesia da guerra colonial, além de acrescentar mais documentos e massa informativa ao acervo já existente, pode dar-nos ângulos de análise até agora pouco conhecidos: a vida no mato a dois passos da morte, o absurdo, o baptismo-de-fogo em época de chuvas, o correio que tarda em chegar, embrulhado em saudade e palavras de conforto da família, da namorada, ou da “madrinha de guerra”, a fome e a sede, o medo frio dos soldados que partem como guerreiros e esperam regressar como heróis e entretanto acabam dizimados num planalto longínquo, a rezar para que alguém os resgate daquele inferno. Gente decepada pelas minas ou desorientada pelo terreno que não conhece. Homens que a guerra, de um momento para o outro, transformou em heróis ou cobardes, farrapos humanos ou criminosos.

Muita gente, na região da Bairrada, esteve na guerra de África. Alguns dos seus filhos acabaram tragados por ela. Quantos dos que sobreviveram e ainda pertencem ao mundo dos vivos não terão escrito algum relato, uma ou outra poesia, ou um diário de guerra? Assim de repente, afloram-me ao pensamento apenas dois autores bairradinos que expressaram os seus sentimentos sobre a guerra de uma forma poética: Carlos Luzio, de Bustos, falecido prematuramente em 2004, e Armor Pires Mota. Bom seria que os seus poemas de guerra chegassem ao conhecimento dos investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra que lideram este projecto, pois têm qualidade para estar representados nessa compilação, o que não deixaria de dignificar a Bairrada.

De Carlos Luzio, de quem os amigos publicaram em 2005 uma edição póstuma intitulada Pescador de Sonhos, transcrevo este poema em memória de um camarada caído: (2)

Uma mina fez crescer a minha revolta
ao ver-te morto ali mesmo a meu lado
Um bom amigo, mas outro pobre soldado
que é obrigado a ir e que não volta
O fumo era muito mas deu para ver a tua dor
O ar tinha o aroma ácido do trotil
embaciava o teu olhar sem vida a dizer adeus
O teu sangue a borbotar, sem nada poder fazer
E senti ódio, sim, ódio, raiva, rancor,
ao ver a tua mão trémula a acariciar o fusil
De que lado estavas tu, Deus
que deixaste que nos treinassem para morrer?

Também Armor Pires Mota nos dá a conhecer as emoções da guerra em Baga-Baga, livro de poemas editado em 1967, fruto da sua descida aos infernos em terras da Guiné. Aqui fica o poema SANGUE:

Carne retalhada de feridas em revolta
E nuvens de poeira.

Caminho (é vermelho o céu, é vermelho o chão)
onde a morte nos rouba, de armas na mão,
sorrateira,
como se fôssemos ladrões ou gentes
sem pátria nem bandeira.

Caminho que conheço, de sangue e raiva nos dentes,
do princípio ao fim
donde irromperão sempre bichos e serpentes…

Sinto medo. E, de arma na mão, fujo de mim.

Esta poesia ajuda-nos, para lá da crueza da guerra, a descobrir os sentimentos por detrás das armas e das boinas militares. Aguarda-se com expectativa a conclusão e divulgação deste projecto de compilação. Há já muita coisa em prosa sobre o assunto. De poesia há muito pouco, pois já se sabe que vende mal. Mas a poesia também pode ajudar – e de que maneira – a escrever a crónica de um adeus português em África.


(1) Boletim da ADERAV, n.º 13, Maio de 1985, p. 9.

(2) Bustos – do passado e do presente, 06.10.2004 (post de Óscar Santos).