A notícia vinha no Diário de Coimbra de 30 de Março de 2009. Há milhares de poemas dispersos, muitos deles de autores anónimos, alusivos à guerra colonial. O projecto, a cargo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, já tem nome: “Poesia da Guerra Colonial: uma ontologia do “eu” estilhaçado”. Estarão reunidos já cerca de 10 000 poemas. Tratando-se da construção de uma memória nacional, os investigadores referem que este tipo de poesia representou “um veículo importante para a mobilização e para a sensibilização”, aludindo também a uma “dimensão terapêutica da literatura de guerra, que permite afastar traumas e emoções que advêm do conflito”.
O que me leva a trazer aqui este tema é o facto de saber que não foram apenas só alguns nomes consagrados pelo cânone literário que derramaram em poesia as suas experiências de guerra. Na região da Bairrada há certamente gente que tendo passado pelos cenários da guerra de África expressou poeticamente os sentimentos que lhe iam na alma, perguntando-se muitas vezes, quando o perigo rondava: que estou eu a fazer aqui?
A partir dos anos 60 do século passado e até ao 25 de Abril de 1974, aos jovens com 20 anos deparava-se o dilema de ir para a guerra. As alternativas de lhe fugir – que venha o diabo e escolha… – eram a emigração clandestina, normalmente para França, “a salto”, como então se dizia, com recurso ao célebre “passaporte de coelho”; ou então optar pela pesca do bacalhau à linha, nos mares longínquos e gelados da Gronelândia e Terra Nova. Eram estes os cenários de sonho que se deparavam à juventude daquele tempo.
Ir à guerra foi uma experiência traumática para muita gente. Ver morrer amigos despedaçados por uma mina, ou sentir-se só no meio do mato, de um momento para o outro, durante uma emboscada, com a vida no fio da navalha, são coisas que deixam sulcos fundos e imperecíveis na memória e na alma. Mas também não seria mais agradável, para um jovem de 20 anos , sair do lugre estacionado no meio do mar, meter-se sozinho num frágil dóri e rumar aos bancos de pesca, à força de remos ou vela. Afastar-se do barco principal e desaparecer na bruma do amanhecer, enfrentando mil perigos, cercado de nevoeiro cerrado, de frio e de mau tempo, sem recurso a previsões meteorológicas. À hora de voltar, com o pequeno barco carregado, quantos se perdiam e afundavam. Com a bruma cada vez mais cerrada, ecoavam os chamamentos, os assobios, as imprecações, na imensidão do oceano. Cansados da faina, os pescadores recolhiam ao apetecido lugre, onde outros trabalhos árduos os aguardavam: “a degola, destripação, abertura, limpeza e salga do pescado até altas horas da noite, para só depois se poder saborear o caldo quente do rancho e o merecido descanso na estreita enxerga do beliche” (1).
Na guerra em África, nem só os que desertavam eram considerados traidores. Traidores eram também, para o regime de Salazar, aqueles que se rendiam, na certeza de que continuar a lutar, em certos momentos, significava perecer. Aconteceu isso com os ex-prisioneiros da guerra da Índia. Regressados a Portugal, havia ordens para não lhes dar emprego. A ordem era “Morrer pela Pátria” e o governo de então preparava-se já para celebrar a glória póstuma dos soldados sacrificados, pois preferia heróis mortos a prisioneiros vivos. Muitas feridas de guerra continuam por sarar e a poesia vertida da pena de quem a viveu por dentro pode ser uma forma de catarse, de exorcizar fantasmas.
A poesia da guerra colonial, além de acrescentar mais documentos e massa informativa ao acervo já existente, pode dar-nos ângulos de análise até agora pouco conhecidos: a vida no mato a dois passos da morte, o absurdo, o baptismo-de-fogo em época de chuvas, o correio que tarda em chegar, embrulhado em saudade e palavras de conforto da família, da namorada, ou da “madrinha de guerra”, a fome e a sede, o medo frio dos soldados que partem como guerreiros e esperam regressar como heróis e entretanto acabam dizimados num planalto longínquo, a rezar para que alguém os resgate daquele inferno. Gente decepada pelas minas ou desorientada pelo terreno que não conhece. Homens que a guerra, de um momento para o outro, transformou em heróis ou cobardes, farrapos humanos ou criminosos.
Muita gente, na região da Bairrada, esteve na guerra de África. Alguns dos seus filhos acabaram tragados por ela. Quantos dos que sobreviveram e ainda pertencem ao mundo dos vivos não terão escrito algum relato, uma ou outra poesia, ou um diário de guerra? Assim de repente, afloram-me ao pensamento apenas dois autores bairradinos que expressaram os seus sentimentos sobre a guerra de uma forma poética: Carlos Luzio, de Bustos, falecido prematuramente em 2004, e Armor Pires Mota. Bom seria que os seus poemas de guerra chegassem ao conhecimento dos investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra que lideram este projecto, pois têm qualidade para estar representados nessa compilação, o que não deixaria de dignificar a Bairrada.
De Carlos Luzio, de quem os amigos publicaram em 2005 uma edição póstuma intitulada Pescador de Sonhos, transcrevo este poema em memória de um camarada caído: (2)
Uma mina fez crescer a minha revolta
ao ver-te morto ali mesmo a meu lado
Um bom amigo, mas outro pobre soldado
que é obrigado a ir e que não volta
O fumo era muito mas deu para ver a tua dor
O ar tinha o aroma ácido do trotil
embaciava o teu olhar sem vida a dizer adeus
O teu sangue a borbotar, sem nada poder fazer
E senti ódio, sim, ódio, raiva, rancor,
ao ver a tua mão trémula a acariciar o fusil
De que lado estavas tu, Deus
que deixaste que nos treinassem para morrer?
Também Armor Pires Mota nos dá a conhecer as emoções da guerra em Baga-Baga, livro de poemas editado em 1967, fruto da sua descida aos infernos em terras da Guiné. Aqui fica o poema SANGUE:
Carne retalhada de feridas em revolta
E nuvens de poeira.
Caminho (é vermelho o céu, é vermelho o chão)
onde a morte nos rouba, de armas na mão,
sorrateira,
como se fôssemos ladrões ou gentes
sem pátria nem bandeira.
Caminho que conheço, de sangue e raiva nos dentes,
do princípio ao fim
donde irromperão sempre bichos e serpentes…
Sinto medo. E, de arma na mão, fujo de mim.
Esta poesia ajuda-nos, para lá da crueza da guerra, a descobrir os sentimentos por detrás das armas e das boinas militares. Aguarda-se com expectativa a conclusão e divulgação deste projecto de compilação. Há já muita coisa em prosa sobre o assunto. De poesia há muito pouco, pois já se sabe que vende mal. Mas a poesia também pode ajudar – e de que maneira – a escrever a crónica de um adeus português em África.
(1) Boletim da ADERAV, n.º 13, Maio de 1985, p. 9.
(2) Bustos – do passado e do presente, 06.10.2004 (post de Óscar Santos).