Dizem que amigos são os da infância. Que ao caminhar-se para a velhice escasseia o tu-cá-tu-lá das farras e cumplicidades. Entre os que tive e ainda conservo, há um com quem nunca mais falei: o Arrais (1). Morava em frente à Escola e trauteava canções a torto e a direito. Uma delas, muito curiosa, versava sobre pessoas da nossa terra e respectivas profissões. Está incompleta e não sei quem poderá ajudar a recuperá-la por inteiro. Começava assim:
O doutor é Presidente, (2)
Arquitecto, o Manuel Vicente, (3)
O Justino é carpinteiro,
O Mandato faz caixões, (4)
O Zé Feijão é barbeiro, (5)
Faz a barba a dois tostões.
O Camilo assa leitões, (6)
A Aida coze enguias, (7)
O Artur tira fotografias (…) (8)
O Arrais cantarolava uma outra, muito engraçada, de sátira social às sogras, de que retive apenas algumas passagens. Graças a um comentário de Cátia Santarém, fiquei a saber que se trata de “Jantar à média luz” e que era cantada por Horácio Reynaldo. Aqui fica a versão completa:
Certa noite à média luz,
P’ra um jantar fui convidado,
Em casa da minha sogra, (bis)
Era dia feriado…
Ela é muito minha amiga,
Fez tudo pra me agradar,
É por isso que hoje lembro, (bis)
Esse famoso jantar…
Comi canja de sardinha,
Duas papas de linhaça
Escabeche de beldroega
Regado a boa vinhaça
Bom suflé de gafanhoto
Com churrasco de azeitona
Empadas de piriquito
E rissóis de bela zona
Esparregado de carapau
Berbigão de cabidela
Cebolas à cafreal,
Com um rabo de vitela…
Fricassé de amendoim,
Com miolos de toupeira,
Uma lagosta a suar, (bis)
Com conhaque da Malveira…
Cachucho de salsipré
Depois cabrito estafado
Serrabulho de cebola,
maionese e linguado
Fritangada de pevides
Um melão com casca e tudo
Barriguinhas de ovos rijos
E pudim de cola tudo
Fumei depois um havano,
E já no fim do jantar,
Comi fruta para um ano,
Mas faltava terminar…
Bebi café de alcatrão,
Comi torta e fiquei torto,
E depois duma soneca,
Quando acordei estava morto!
Lembro-me de, na década de 1960, a PIDE – polícia política do Estado Novo – fazer das suas na Palhaça. Fechou tudo quanto era entrada e saída da aldeia e avançou para o Café Capri. Encontrou o que queria, a denúncia não era falsa. Para apanhar o tresmalhado do rebanho – que se disse, depois, ser de Salgueiro – partiu tudo o que encontrou pela frente. À saída, enquanto era arrastado e espancado pela polícia, com gente da terra a assistir, uns no largo e outros à janela das próprias casas, o detido gritava, a plenos pulmões: Ó povo da Palhaça! Acudam-me, que eu sou democrata e eles são da Pide! Ninguém acudiu, ninguém esboçou um gesto de revolta. Quando tudo passou, só se ouvia murmurar: era gente muito educada. Partiram vidros e cadeiras, mas perguntaram quanto era e pagaram tudo…
A Pide, que não brincava em serviço, incomodou também pessoas da Palhaça, que chegaram a estar detidas. Histórias por contar, a merecer que alguém apanhe o fio à meada. Não era preciso muito para se ser preso. Um dos detidos foi César Barreto, dono do café que funcionava onde está hoje o Ponto Final. Em Março de 1951, o Presidente da Junta responde a um pedido de esclarecimento do Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro: “sou a responder que de facto o Snr. César Augusto Barreto, desta freguesia, foi preso pela então PVDE, por hostilidades à Casa do Povo”(9). Esta detenção terá ocorrido até 1945 e nunca depois dessa data. Isto porque foi nesse ano que a PVDE [Polícia de Vigilância e Defesa do Estado] passou a chamar-se PIDE [Polícia Internacional de Defesa do Estado].
Outros nomes devem acrescentar-se ao de César Barreto. Aqui vos deixo, para memória futura, os de José Colchete (Areeiro), Fabiano (Albergue), Silvério Cura (Vila Nova) e Manuel Tomé (Roque). Foram todos presos ao mesmo tempo, e como se tratava de gente séria e honrada, a freguesia ficou envolta num manto de profunda tristeza. Era tempo de Páscoa, a anunciar promessas de videiras a abrir pequeninos olhos verdes e viçosos; era o tempo em que os soalhos das salas onde se beijava o Senhor se esfregavam à mão com sabão amarelo e onde havia sempre, sobre a mesa, um cesto com rendinha branca que servia para transportar as ofertas, às vezes uma simples maçã ou laranja com uma moeda de cinco tostões em cima, que se dizia ser para o sermão.
No salão da velha Casa do Povo, onde mais tarde havia bailes, vimos nascer a televisão a preto e branco. Lá, e no café do Sr. César Barreto – feito na cafeteira e com máquina a petróleo – moravam as duas únicas televisões que a Palhaça se orgulhava de ter. Os sábados à noite eram verdadeiros dias de festa. Que saudades do convívio semanal com o Rintintin e a Lassie, mas sobretudo do Bonanza: dos quatro heróis desta série de culto, o bom gigante dos murros demolidores, Hoss de seu nome, era o meu favorito. E havia ainda o Mascarilha, a cavalgar na pradaria com o fiel amigo índio, o Tonto. Às vezes, a seguir às barrigadas de western, sucediam-se as barrigadas de ameixas, pela calada da noite, no interior dos muros da Escola, que ficava ali mesmo ao lado.
Aqui fui crescendo, Palhaça, alimentando-me da tua seiva. Deste-me a conhecer um léxico próprio, que chamava “camoecas” às bebedeiras, “alveitar” ao veterinário caseiro, “apaijar” a aturar, “burra” à bicicleta”, “bernicoques” aos maneirismos, “choninha” aos sonsos, “corrilhas” às rugas da cara, “enjorcar” a inventar, “endrominar” a mentir, “moinante” ao que não quer trabalhar, “zangarilhar” ao que tremia ou oscilava para os lados, a puxar pela bicicleta. E outras coisas mais, como um “trancanaz” de broa (um grande pedaço), ou um prato cheio “ao caramulo”, por alusão à serra que te vigia e contempla a nascente.
Tudo mudou, Palhaça. Já ninguém acredita em ti se disseres que os sapos podem cegar uma pessoa, esguichando para os olhos a urina venenosa. Aliás, já não há sapos de boca cosida a anunciar feitiçarias. Vão rir-se de ti se disseres que os cabelos de mulher, mergulhados na água, se transformam em cobras. Já ninguém manda miúdos à farmácia comprar pó de Maio, electricidade em pó, ou “pòzinhos de alembradura”. Já ninguém acredita em ti, se disseres que é pecado apontar o dedo ao céu e que o Senhor ralha…
Já não há cântaros à cabeça nem bilhas de barro a encher ou a quebrar-se na fonte. Desapareceu o ranger da nora sob o peso dos alcatruzes. Ninguém convida os carteiros a matar a sede, ou para dois dedos de conversa, na frescura das adegas, em horas de calor de fornalha (escorropichavam-se sempre dois copos, pois era mau agoiro ficar-se manco). Mal se sente o cheiro que sobrava da fermentação rebelde do mosto, corre pouco o bagaço no alambique. Já não se prova o vinho novo, a onze de Novembro. “Pelo São Martinho, fura-se o vinho” – rezava o adágio popular, que tinha uma outra variante: “Pelo São Martinho, vai à adega e prova o vinho”. O provérbio era levado a preceito, num corrupio de adega em adega, já com as faces a denotar a exaltação do vinho novo. Assim se cumpriam os oito mandamentos da lei de Baco: “o primeiro bebe-se inteiro; o segundo até ao fundo; o terceiro como o primeiro e o quarto como o segundo; o quinto bebe-se todo; o sexto do mesmo modo; o sétimo bebe-se cheio e o oitavo duas vezes meio”.
Em terra de vindimas e adegas só às vezes fartas, com tonéis a estalar prenhes de vinho e agricultores redondos de alegria, todos conheciam os Dez Mandamentos do Vinho, que no fundo se resumiam a dois: comer bem e beber melhor. A saber:
1.º – Amarás o vinho de Portugal, água não lhe deitarás para que não te faça mal;
2.º – Não jurarás pela folha da laranjeira, que é ofensa que fazes à sua prima parreira;
3.º – Guardarás pão e vinho na algibeira e com ele beberás quando te der na goteira;
4.º – Honrarás o odre de vinho, o chapéu lhe tirarás se o encontrares no caminho;
5.º – Não matarás, só se for cabra ou bode, a carne lhe comerás e da pele farás um odre;
6.º – Não entornarás, só se for bilha grossa, a boca lhe apararás para que verter se não possa;
7.º – Não furtarás, só se for para beber, porque, se te fores confessar, sempre te hão-de absolver;
8.º – Não levantarás odre deitado, antes te deitarás do outro lado;
9.º – Não desejarás beber por vasilha pequena, desta que bota a espuma fora e lhe fica a cor morena;
10.º – Não cobiçarás a salada do pepino: é muito fresca no verão e muito contrária ao vinho
Quase não se ouve o cuco, ou o canto vespertino e mavioso do rouxinol a trinar entre os salgueirais. Verdelhões, poupas e tentilhões, alvéolas, calhandras, toutinegras e ferreirinhas, quase tudo isso levou sumiço, a golpes de adubos químicos, pesticidas e herbicidas. Já não se destrava a língua aos gaios, que eram os nossos papagaios caseiros. Onde, a massa a levedar na gamela, com a cruz traçada para proteger do mau olhado? Onde, os teus cabanais para secar milhos e pastos? Quantos ainda restam, para nos proteger do sol a pique em tardes esbraseadas, ou para encontros furtivos, quando os simples arremedos de namoro eram rigorosamente vigiados? Tinha razão o Cesário (9), quando, montado na bicicleta, se cruzava com um cabanal situado ali para os lados do Bebe-e-Vai-te e costumava dizer: Ah!, se este cabanal falasse…
Não há duas maneiras de te amar, Palhaça, assim como não há duas maneiras de amar a liberdade. Quero-te mais aldeia do que vila – sim, que ganhaste, até agora, em ser vila? – quero-te mais vila que cidade. Não deites fora os ares plácidos e lavados que bordaram o teu rosto de menina. Se puderes, conserva campos de cultivo, o verde-amarelo e o verde-escuro de algumas vinhas e pinhais, umas tantas fontes e carreiros. Não deixes que as silvas cerquem a enxertia. Resiste às investidas galopantes do eucalipto. Evita que os teus cafés virem espaços onde se trocam letras e influências, esgrimem cifrões e taxas de juro. Renega a construção em altura, ao menos no teu largo primitivo. Não coqueteies com arquitectos ou engenheiros a perda do teu carácter: nada pode substituir a beleza de um céu de anil encaixilhado no teu coreto singelo, encimado pela sentinela cívica que é o nosso padroeiro.
Agora é tudo tão rápido, Palhaça. Foram-se os abraços e beijos das escarpeladelas, sempre que alguém, mais afortunado, encontrava uma espiga vermelha. Desapareceram os bailes da “mi-careme”, tolerados na terceira semana da Quaresma para aliviar os rigores e a abstinência que ela nos impunha. Deixo-te aqui, e agora, onde cresci e apesar de tudo fui feliz, mesmo sem ter conhecido a tua Banda Filarmónica – regida por Adelino Ferreira Pinhal – ou a tua Troupe Dramática; mesmo sem ter assistido a festividades em honra do apóstolo Santo André, já no estertor da Monarquia, com jantar de bacalhau com baratas às 4 da tarde e sobremesa de castanhas e nozes. O vinho, esse, era tirado do cântaro de 20 litros, servindo de copo a medida de 5 litros (3). Malhavam-lhe bem, os teus homens de antanho. As minhas festas são já as do Mártir S. Sebastião e de Nossa Senhora da Memória. Ajoelhei à passagem dos teus andores e integrei as tuas procissões. Lembro-me bem: numa delas – era dia de comunhão solene – fiz o percurso com as mãos em prece, mas ao chegar à zona dos cafés, apinhada de gente, deu-me a vergonha e coloquei-as atrás das costas. Sei que me perdoas esse vacilar duma fé que parecia indestrutível.
Deixo-te agora (está a custar, sabes?). É preciso voltar a página. Talvez saudades do futuro. Talvez. Agora, pelo menos, já não morre ninguém à sacholada, por causa da mudança dos marcos, ou do desvio de um veio de água. Entre aquilo que de melhor e pior já foste, e o que de melhor e pior possas ainda vir a ser, mon coeur balance.
(1) António Martins Pereira Arrais, filho de Augusto e Rosa Arrais. Morava ao lado do edifício das antigas Escolas Primárias, na estrada que da Palhaça sai para Sosa.
(2) O Presidente de Junta era o médico Manuel Ferreira Rebolo, formado na Universidade de Coimbra em 1935.
(3) Manuel Ferreira Vicente Júnior construtor civil, que construiu o edifício das Escolas Primárias.
(4) Manuel Mandato. Apenas construía caixões pequenos, para os “anjinhos”.
(5) José do Nascimento Marques Moura.
(6) Camilo Jacinto, casado com Mabília Cerveira da Silva e pai de António da Silva Jacinto (Camilo), Joaquim Cerveira da Silva, Fernando, Raul e Mabília (Bila).
(7) Conhecida por Aida Feijoa. Vivia, à época, numa casa situada ao lado (para nascente) do actual café Ponto Final. Irmã de Joaquim (alfaiate e com casa de pasto aberta aos dias de feira) e José Feijão.
(8) Artur Lemos Silva, também conhecido por Artur Calcinhas. Chegou a integrar (era “caixa”, como então se dizia) a Banda da Mamarrosa.
(9) Ofício n.º 13/51, de 8 de Março de 1951, endereçado pelo Presidente de Junta de Freguesia da Palhaça ao Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro.
Boa tarde.
Essa música das sogras também faz parte do meu imaginário. E consegui descobrir o cantor. Horácio Reynaldo.
Fica aqui a letra completa e o link.
https://www.youtube.com/watch?v=WV3EJ-ekuOw
Certa noite à média luz,
P’ra um jantar fui convidado,
Em casa da minha sogra, (bis)
Era dia feriado…
Ela é muito minha amiga,
Fez tudo pra me agradar,
É por isso que hoje lembro, (bis)
Esse famoso jantar…
Comi canja de sardinha,
Duas papas de linhaça
Escabeche de beldroega
Regado a boa vinhaça
Bom suflé de gafanhoto
Com churrasco de azeitona
Empadas de piriquito
E rissóis de bela zona
Esparregado de carapau
Berbigão de cabidela
Cebolas à cafreal,
Com um rabo de vitela…
Fricassé de amendoim,
Com miolos de toupeira,
Uma lagosta a suar, (bis)
Com conhaque da Malveira…
Cachucho de salsipré
Depois cabrito estafado
Serrabulho de cebola,
maionese e linguado
Fritangada de pevides
Um melão com casca e tudo
Barriguinhas de ovos rijos
E pudim de cola tudo
Fumei depois um havano,
E já no fim do jantar,
Comi fruta para um ano,
Mas faltava terminar…
Bebi café de alcatrão,
Comi torta e fiquei torto,
E depois duma soneca,
Quando acordei estava morto!
Prezada Cátia:
Muito obrigado pelo seu contributo. Só hoje, 6 de Julho de 2024, tive conhecimento dele. Os comentários estavam a ser encaminhados para uma “fila de moderação” que obrigava a aprová-los manualmente antes de aparecerem publicamente. Só hoje me chamaram a atenção para isso.
Já alterei o texto, inserindo a versão completa que teve a gentileza de dar a conhecer. Grato por isso.
obrigada! pela ilha Terceira canta-se a quadra: ‘comi tortas fiquei torto, e depois de uma soneca, acordei estava morto’