Contra o declínio da cultura clássica

Na estimulante entrevista que concedeu ao semanário Expresso, o filósofo alemão Peter Sloterdijk afirma:

“O meu pressuposto é que os seres humanos do futuro serão muito menos moldados pelas artes e pelas letras, como era habitual nos tempos da educação humanística, mas sobretudo pelos dispositivos do nosso novo meio ambiente digitalizado (…). A inclinação para a filosofia é — sempre foi — uma espécie de doença rara. E está ligada a uma alergia específica contra as explicações simples e as conversas repetitivas. A repetição é legítima, mas não pode substituir o esforço de pensar. No fundo, filosofa-se graças a uma condição alérgica contra tudo o que está automatizado — mental, emocional e politicamente. A proposição central e última (e primeira) da filosofia é: “Isto não pode ser assim tão simples.”

Jean-Léon Gérôme, “A Verdade saindo do poço”

E não pode ser assim tão simples porque o mundo e o pensamento são complexos. Ao pensamento repetitivo, previsível como o mecanismo da roda dentada, a filosofia deve contrapor, na busca incessante da verdade (Aletheia, entre os gregos) as aporias do debate de ideias, as categorias do pensamento, a fecundidade argumentativa, a substituição do agir mecânico pelo reflexivo. Neste tempo em que os poetas não passam de sonhadores desfasados das realidades terrenas e a filosofia é para muitos mera conversa fiada, tempo de utilitarismo, de modernidade cínica (Sloterdijk) ou de modernidade líquida (Bauman), de comportamentos fluidas que não convidam ao pensamento – o tempo da inteligência artificial, das notícias falsas e das mentiras transformadas em rotina no quotidiano – é reconfortante ler também A Utilidade do Inútil, do filósofo italiano e professor de literatura Nuccio Ordine:

“No universo do utilitarismo, um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais que um poema, uma chave de fenda mais que um quadro (…). Quem está certo de possuir a verdade já não precisa de procurá-la, já não sente necessidade de dialogar, de ouvir o outro, de confrontar-se de modo autêntico com a variedade do multíplice. Só quem ama a verdade é capaz de procurá-la continuamente. Por isso a dúvida não é inimiga da verdade, é o estímulo constante para a procurarmos (…). Sem a negação de uma verdade absoluta não pode haver espaço para a tolerância”.

Recusemos, então, o culto acéfalo do rentável e do performativo, a “verdade” de que só é útil o que produz lucro ou o que tem uma finalidade imediata. Há coisas que não dão lucro mas nos tornam melhores e podem ser de uma utilidade extrema. Coisas que contribuem para o nosso bem-estar e a nossa felicidade: ler e reflectir, embora tenha deixado de ser rentável para os coriféus do lucro a qualquer preço; um bom vinho, apreciado em boa companhia, não dá lucro; um passeio junto ao mar, com poentes de cortar a respiração, também não. Muito menos umas férias retemperadoras.

Onde há cultura humanista floresce a consciência crítica que tanto assusta os diferentes poderes. E a dignidade humana não tem uma relação directa com as contas bancárias mas sim com a ética. Neste tempo acelerado, de velocidade desenfreada, de correrias sem saber para onde nem para quê, é preciso salvar a Filosofia de quem tanto mal lhe quer, dos que a sentem como uma ameaça, ela que é um dos últimos redutos do pensamento livre, uma disciplina que nasceu para problematizar. É preciso dar um sentido à vida e a filosofia não deixa de ser isso mesmo: uma busca de sentido e, também, uma espécie de lubrificante no movimento da mecânica social.

Será este “o tempo dos assassinos” anunciado por Rimbaud nas suas Iluminações? Contra a desvalorização da cultura humanista (da filosofia, da música, da literatura, da história e das artes, entre outras), saibamos resistir aos egoísmos do presente e ao fetiche da produtividade pela produtividade. Contra a utilidade imediata e tudo o que é descartável, contra um certo relativismo que enfia tudo no mesmo saco da apreciação e contra este “inverno da consciência” (Ordine) voltemos a amar o inútil, o que não dá lucro. Como nos propõe Lygia Fagundes Telles neste excerto de “Ciranda de Pedra”:

“Ouça, Virgínia, é preciso amar o inútil.
Criar pombos sem pensar em comê-los,
plantar roseiras sem pensar em colher rosas,
escrever sem pensar em publicar,
fazer coisas assim sem esperar nada em troca.
A distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta,
mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas”.