Da poesia (versão “prosa fatiada”)

Na revista Sábado escreveu Susana Lúcio, no dia 30 de Janeiro:

“Uma sobrevivente não uma vítima/ E viva para contar a história real”. Foi assim, com um poema, que Pamela Anderson anunciou a sua autobiografia”.

“Com um poema” – enfatizou a jornalista. Afinal, ser poeta não é assim tão difícil como parece. Não é preciso “ser mais alto” (pode ser gente de baixa estatura, desde que se coloque em bicos de pés) nem ter “asas de condor” (pode ser gente que voa baixinho, como as andorinhas em voo rasante à procura dos insectos de que se alimentam). Qualquer um, mesmo com asas de granito, pode ser poeta. Ou pelo menos poetastro, se não for capaz de sair dos andaimes da construção poética.

Essa ideia de Adorno, segundo a qual não é possível escrever poesia depois de Auschwitz, tem muito que se lhe diga. É como acreditar, por absurdo, que podemos proibir os pássaros de cantar. Continuar a escrever e a fazer poesia depois de Auschwitz talvez seja a melhor forma de derrotar a sobranceria do pensamento.

A poesia sobreviveu aos campos de extermínio, como tinha sobrevivido antes ao gás mostarda e aos morteiros da I Guerra Mundial. Se assim não fosse, não teríamos hoje uma poesia de experiência e testemunho da guerra em África, uma memória poética da guerra colonial. A poesia não descreve – longe disso – realidades cor-de-rosa envoltas em bons sentimentos (qualquer idiota é capaz de sentir, se lhe calcarmos um pé). A poesia não rasura a dor, antes lhe dá sentido. É para isso que nos remete esta belíssima definição de Paul Celan, para quem a poesia nos provoca com uma voz diferente: “A poesia é qualquer coisa que pode significar uma mudança na respiração”.

Ouçam o que eu vos digo: seguindo o exemplo de Pamela, hoje em dia só não é poeta quem não quer. Aliás, é comum ouvirmos dizer: “És um poeta!”. A mim já mo disseram algumas vezes, já me colaram esse impiedoso rótulo quando pressentem que ando desligado da realidade ou digo coisas – sobretudo no domínio da política – com as quais não concordam. Como “o poema ensina a cair”, querem derrubar-me com esse labéu de falta de sentido prático da vida.

Para ser poeta basta fazer como a Pamela, mesmo que aquilo que ela escreve seja destituído da mais elementar graciosidade poética. O certo é que estamos a falar de uma poesia que aos poucos vai tomando conta do mundo (sobretudo o das redes sociais), indiferente à pandemia e à invasão da Ucrânia, ao caos e à destruição. Embora o segredo seja a alma do negócio, hoje sinto-me alagado em generosidade e desvendo-vos o truque:

Eu a ler “prosa fatiada” (Almada Negreiros, “Prazeres da leitura”)

Pega-se num naco de prosa (não precisa de ser generoso), envolve-se numa dose q.b. de banalidade a puxar à lágrima furtiva e acrescentam-se uns salpicos de sentimentalismo bacoco. Deixa-se a marinar durante algum tempo. Depois, aquece-se tudo no lume brando da vulgaridade. Quando o molho desta mistela começa a engrossar, retira-se a prosa do lume. Deixa-se esfriar. A seguir, corta-se em fatias de versinhos de água doce e serve-se nos murais do Facebook.

Aqui fica um exemplo, entre tantos outros possíveis, deste acto criativo que consiste em fatiar prosa e transformá-la em versos capazes de agradar a gregos e a troianos:

Prosa minha, não publicada, com data de 03.02.2004:

Conflito

Os dias passam. Mas não passa a refrega moral entre o poder criativo e o dever paternal. Chegar a casa com o fogo criativo esgotado. Angústias, sarilhos existenciais. É este o meu fado.

Poesia minha (prosa fatiada):

Conflito

Os dias passam.

Mas não passa
a refrega moral
entre o poder criativo
e o dever paternal.

Chegar a casa
com o fogo criativo
esgotado.

Angústias
sarilhos existenciais.

É este o meu fado.

Agora digam lá se não estou ao nível da Pamela Anderson. Comparem apenas o fulgor poético. Nada de surfar ondas em marés vivas, muito menos de comparações abusivas entre curvas e contracurvas capazes de endireitar um segmento de recta.