Desconsolo (soneto para João Ferrão)

LareiraA remexer em velhos papéis, encontrei um soneto que tem, seguramente, quinze anos. Era inverno e o recuperador de calor deitava fumo, sempre que o ligava. Falei com João Ferrão, proprietário da CHAMA & ARTE, empresa especializada em soluções de aquecimento. Pedi-lhe para vir com brevidade à Palhaça, nome patusco da terra em que resido. Disse que sim e que também, mas nunca mais deu sinal de vida.

Uns dias depois, no comboio a caminho de Coimbra, desabafei sobre o assunto. Para meu espanto, um dos amigos de viagem conhecia-o de ginjeira. Costumavam praticar BTT juntos e até tinham um site, o arfar.com

Ainda hoje não sei explicar porquê: ao regressar do trabalho, deu-me para dedicar um soneto ao tal João Ferrão. Depois, pedi ao amigo do BTT para lho entregar pessoalmente. Não sei se foi pelos empenhos desse meu amigo: o que sei é que se escangalhou a rir no dia em que o leu e que pedalou até minha casa, logo no dia seguinte.

Fiquei a meditar na utilidade da poesia e na força que se pode desprender de um poema, forma que encontrei para lhe mandar sinais de fumo e desagrado. E dei comigo a pensar: a poesia, mesmo quando sai da pena retorcida de um poetastro que ninguém conhece, pode muito bem ser aquilo que Lawrence Ferlinghetti dizia dela: uma arte insurgente, cabendo-nos decidir se um poema é uma pergunta ou uma declaração, uma meditação ou um protesto. Neste caso foi mesmo um protesto, embora sob a forma de harpejo lírico.

DESCONSOLO

João Ferrão é o seu nome verdadeiro,
Um ás a galgar as serras e os montes,
Amante da natureza lírica das fontes,
Com morada prós lados de Mamodeiro.

Com CHAMA & ARTE – assim governa a vida.
E aqui só posso mesmo achar graça:
Para quê tão rijo pedalar, tanta corrida,
Se não arfa a pedalar rumo à Palhaça?…

CHAMA, a gente chama…, mas ele não vem!
ARTE, se é que existe, só a da fuga!
Tudo se complica e ninguém se rala…

Chega o inverno, o vento, a chuva,
Eis a graça que tudo isto tem:
O fumo a inundar-me toda a sala!…