Acho este trecho de diálogo ficcionado, entre Fernando Pessoa e sua mãe, uma delícia. Pertence ao excelente romance de António Breda Carvalho, Morrer Na Outra Margem.
Ler isto fez-me recuar à adolescência, a um tempo em que estudava pouco. Ler por obrigação, eis a maçada. Bom mesmo era ler coisas que davam asas ao pensamento. Então lia à noite, num quarto colado ao de minha Mãe. Para a iludir, munia-me de um foco de iluminar, que colocava debaixo das mantas. Uma ginástica danada, segurar ao mesmo tempo no foco, no livro e nas mantas, de modo a poder ler, a respirar e não permitir que a luz se esgueirasse para o exterior. A Mãe adormecia. Eu desfalecia, braços cansados de tanto procurar aquele equilíbrio instável do foco, do livro e das mantas. Continuava a ler, agora com a luz do quarto ligada. Às tantas a Mãe acordava, apercebia-se da claridade, espreitava os ponteiros do relógio e dizia (quase) sempre a mesma coisa: – Parece impossível, Carlos! Já viste que horas são? Daqui a um bocado são horas de levantar, de apanhar a camioneta para Aveiro. Ou queres faltar às aulas?… Aí, desistia da leitura, apagava a luz e procurava engatar no sono. Mal podia imaginar, ignorando o que eram os heterónimos pessoanos, que ao contrário dele, não arrastava comigo tantas vidas interiores e tantas pessoas que tanto baralhavam a cabeça de sua mãe.
– Estás doente, filho?
– De quê, mãe?
– Sei lá, da cabeça. Escreves e pensas tanto, embora disfarces sem conseguir enganar-me.
– Se penso, então estou doente dos olhos.
– Não percebo o que queres dizer, filho. Como é isso possível? Pensar é estar doente dos olhos? Pensar como tu pensas é estar doente da cabeça, foi sempre assim. Deixa-te de doidices, ou de filosofias, se preferes, que ainda agora acordaste.
– O Alberto é que dizia que pensar é estar doente dos olhos.
– Qual Alberto?
– O Caeiro.
– É médico?
– Médico é o Ricardo Reis, mas este está no Brasil. O Alberto foi pastor.
– De almas? – Coloca a mão sobre a testa tépida do filho, desconfiada.
– De rebanhos.
– Rebanhos na cidade…. Estás mesmo doente dos olhos… ou dos pensamentos. – E condescendente, aconselha: – Acho que o melhor é ficares na cama. O teu mal é sono.
– Mãe, o meu mal é falta de dinheiro para realizar os meus sonhos literários.
– A literatura, meu filho, é que é a tua verdadeira doença.
(António Breda Carvalho, Morrer Na Outra Margem, pp.23-24).