Há terras que se orgulham dos seus largos. Gostam tanto deles que nem o rolo compressor do progresso se atreve a roubar-lhes o encanto primitivo. São relicários da memória que é preciso conservar a todo o custo.
Mas há outras terras em que esses lugares de afecto se transformam, de um momento para o outro, num corpo sem alma. Ora lhe esventram as raízes e encurtam o espaço, ora lhe derrubam os muros circundantes ou arrancam as árvores frondosas, subtraindo-nos a frescura da sua sombra. Quando tal acontece, varrem-se os lugares de memória, apagam-se alguns trilhos que davam sentido à nossa existência. É certo que existir é ir perdendo, mas isso dói.
Como no belo conto de Manuel da Fonseca, o largo é um espaço que remete para as recordações da infância, para a solidão ou o companheirismo. O largo já não é, seguramente, o centro do mundo, o lugar onde quase tudo acontecia. Mas de cada vez que lhe alteram a fisionomia – agora até tem rotunda como apêndice – mais se torna um vulgar e descaracterizado cruzamento de estradas, igual a tantos outros.
Ter um largo é raro privilégio. Ter dois ou três, como acontece na Palhaça, é já uma bênção. Um terra com largo tem outros horizontes, convida a parar, impele ao convívio, torna-se mais acolhedora para quem a visita.
É estranho, mas às vezes até parece que a Palhaça se envergonha dos seus largos: o de S. Pedro, o das escolas e o da feira do gado. É assim que gosto de lhes chamar. Todos são, para mim, lugares de remotíssimas lembranças, pois todos me recordam belos caudais da história antiga da nossa terra. Ao primeiro, que já foi murado, teve portões de ferro e barracões fixos, e onde os miúdos iam “achar” a seguir às feiras, resolveram crismá-lo, pomposamente, de Praça! Nem se deram conta que as praças são normalmente quadradas, ou nalguns casos rectangulares, e que o largo da feira… tem forma triangular! Como se tivessem vergonha de dizer, simplesmente… o largo.
Com a mudança da feira para a periferia, o largo foi ajardinado e adquiriu a dignidade de sala de visitas da freguesia. Apesar das alterações, houve o bom senso de deixar intactos o coreto e os três fontanários. Está bonito, com alguns registos antigos, caldeando tradição e inovação.
A seguir, foi a vez do largo das escolas sofrer alterações. Aqui, não é a rotunda que entristece: é o derrube dos muros e das árvores, coisa que talvez pudesse ser evitada. Acaso não teria sido possível continuar a estacionar no interior do recinto respeitando mais a sua individualidade? Assim, como agora se nos apresenta, é uma caricatura do que já foi.
Podem até achá-lo mais bonito e funcional, gostos não se discutem. Mas é como se lhe tivessem vestido um fato novo, no interior do qual existe um corpo sem a memória antiga das cores e dos cheiros, sem o registo das traquinices cúmplices dos tempos em que íamos à escola, amputado do espaço onde se desenrolaram feiras, festas, romarias e folguedos, onde se jogava à bola e ao pião e onde os menos afortunados, de pé descalço, esgalhavam os dedos nas raízes salientes das árvores ou se cortavam nos vidros partidos, ou nos cacos de louça da última feira. Enfim, um lugar despido das alegrias e cansaços dos que com ele se cruzavam diariamente, à frente do carro de bois – ou com os bois a caminhar sozinhos até às terras de pão e semeadura, enquanto os donos ficavam para trás, a emborcar o traçado ou o tinto carrascão na taberna da Ti Angelina, que era a minha avó.
Agora é a vez do antigo largo da feira do gado ser intervencionado. Algumas árvores já foram abatidas. Ao que parece, tinha de ser. Nada temos contra os melhoramentos em curso, bem pelo contrário. Uma coisa é tropeçar nas armadilhas do passado e deixar tudo como está, sem atender ao sinal dos tempos, atitude própria dos fundamentalistas da tradição, ao ponto de não se importarem com o regresso a um estilo de vida em que se vivia sem água canalizada, sem estradas alcatroadas ou sem telefone; outra, bem diferente, é banir o que a tradição tem de melhor, não incorporando isso – quando tal é possível – no novo espaço renovado.
Entendamo-nos: o mundo progride a velocidade estonteante. Isso obriga-nos a inovar, a ser originais na forma de resolver as coisas. O que se pede é que, sem prejuízo do futuro, se atenda à importância das representações (imagens) mentais que os cidadãos têm da sua terra. Não é fácil assistir ao quebrar dos últimos elos de ligação às origens. Nem assistir, mesmo em nome do progresso, à falta de respeito pelo passado que nos identifica, e ao qual devemos ser fiéis.
Costuma dizer Eduardo Lourenço que somos um povo em incessante despedida. É isso que sentimos quando se apagam vestígios que chegaram até nós, que de algum modo acalentaram a nossa existência e de repente têm morte anunciada, irreversível.