Fotografia e censura: Mapplethorpe, Serralves e a liberdade artística

 

Mapplethorpe

“Que ninguém se iluda. Os cobardes não têm acesso à Beleza”

Rui Chafes – Entre o Céu e a Terra

De tempos a tempos rebenta a polémica sobre a censura às obras de arte. A que agora alimenta as labaredas da discórdia foi ateada pela exposição do fotógrafo norte-americano Robert Mapplethorpe em Serralves, o que mostra que a representação do prazer ou do desejo (que continua a ser predominantemente um olhar masculino de homens sobre mulheres, embora cada vez mais também de homens sobre homens) incomoda muita gente.

É dos livros e também é isso que nos ensina a experiência da vida: a censura a qualquer tipo de arte costuma preceder outras formas insidiosas de censura. Basta lembrar o que se passou com aquilo a que o nazismo chamava “arte degenerada”: foram mandadas retirar dos museus as obras de artistas da vanguarda alemã dos anos 20 e 30 e os livros “degenerados” passaram a alimentar as grandes fogueiras da intolerância. O termo degenerado abarcava, entre outros, os domínios da pintura, da escultura e da música, que os nazis queriam ver expurgada da africanização musical e até da influência do jazz.

No Portugal de Salazar as coisas não se passaram de forma muito diferente. O pequeno ditador santacombadense costumava dizer coisas do género: “politicamente só existe o que o público sabe que existe”, ou “o jornal é o alimento espiritual do povo e por isso deve ser fiscalizado, como todos os alimentos”[1]. Assim se explica a extensão dos atropelos censórios durante a sua governação: da imprensa ao cinema, do teatro à música e à literatura, nenhum domínio da informação e da criação artística era descurado pelo Estado Novo.

Triste é verificar que o chamado mundo livre está a ser atravessado por uma perigosa deriva moralista e puritana, que a censura não anda apenas de braço dado com as ditaduras, mas também marca presença nos chás dançantes e artísticos das democracias. Vejamos alguns exemplos recentes:

Thérèse-Dreaming-1938 (Balthus)
Thérèse-Dreaming-1938 (Balthus)

1 – Nos Estados Unidos, milhares de nova-iorquinos assinaram uma petição para que o pintor francês Balthus fosse retirado de uma exposição permanente a decorrer no Met – Museu Metropolitano de Arte. Motivo: as pessoas não estariam preparadas para apreciar um quadro que retratava “uma rapariga em pose sugestiva e revelando roupa interior”. O Museu recusou a chantagem e manteve o quadro em exposição. Ao que parece, não veio daí mal nenhum ao mundo.

2 – No Brasil também houve polémica da grossa em 2017, quando foi encerrada de forma prematura uma exposição sobre arte queer brasileira. Esse seria o rastilho para outras tensões artísticas, nomeadamente quando foi inaugurada em Porto Alegre a exposição Histórias da Sexualidade. Aqui não houve manifestações contra a exposição, mas contra a censura às artes, no caso concreto contra o facto de a entrada na exposição ser proibida a menores de 18 anos. A controversa decisão do Museu foi vista como uma cedência à pressão pública, que via na exposição uma ameaça à “família brasileira”[2].

3 – Por cá, tivemos há uns anos a apreensão de alguns livros que reproduziam na capa o quadro A Origem do Mundo, de Courbet, datado de 1866. Aconteceu na cidade de Braga, a “idolátrica” e “episcopal”, como lhe chamou um dia Luiz Pacheco. A PSP encheu-se de brios, irrompeu feira do livro adentro e confiscou vários exemplares. O quadro mostra-nos um close up, o grande plano realista de um sexo feminino.  Em nome de valores diferentes que cada um pode reclamar em democracia, devemos aceitar que uns se choquem com imagens como esta e outros não. Mas uma coisa é estarmos dispostos a respeitar a opinião dos outros; outra, bem diferente, é alguém, em nome desses outros, suprimir ou censurar aquilo a que também nos achamos com direito de fruir esteticamente. Ora o quadro até está exposto em Paris, no museu d’Orsay. Aquilo que lá se afigura como normal e pode ser visto por toda a gente, é por cá entendido como sendo pornografia mais grosseira. Aos que assim pensam, apetece dizer que deixem em paz os que não pensam como eles, e que a grande virtude não consiste em suprimir as tentações, mas em saber resistir-lhes…

4 – E para concluir estes exemplos, falemos de Espanha. Da Marina de Valência, onde se instalou recentemente a polémica por causa de uma exposição de esculturas metálicas da autoria de Antoni Miró. Para uns, trata-se simplesmente da recriação da história de etruscos e gregos, da exaltação do sexo divulgado em pranchas, de uma forma natural. Já outros tendem a ver nessa exposição uma invasão do erotismo ou até da pornografia no espaço público, por onde passa gente a pé ou de bicicleta, um lugar de lazer frequentado por todas as idades. Mais uma vez se extremam as opiniões sobre um trabalho que para uns tem dignidade para ser qualificado e visto como arte e para outros não é aceitável que esteja exposto no espaço público, onde as crianças, como é bom de ver, são o argumento que os aspirantes a censores esgrimem de forma recorrente. Ora isto levanta desde logo questões importantes: o estatuto de obra de arte retira-lhe, à partida, o eventual conteúdo pornográfico? Arte e pornografia são, ou não, coisas distintas? Esta obra pode ser vista por todos, sem reservas? Onde acaba o erotismo e começa a pornografia? Na cabeça de quem produz a obra (seja ela uma escultura, uma pintura, um livro, ou um filme), ou na cabeça da pessoa que a lê ou vê? Não assiste ao cidadão comum o direito de se sentir agredido por imagens como estas? E se outros apenas sentem nestas formas de expressão artística prazer e fruição estética, como proceder? Retirar ou manter as esculturas no espaço público?

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Antoni Miró (Escultura na Marina de Valência)

Regressemos a Serralves, a Mapplethorpe e a uma polémica que já motivou a demissão do director artístico João Ribas, depois da administração do Museu ter limitado a maiores de 18 anos uma parte da exposição e ter imposto que se retirassem algumas obras que considerou de conteúdo sexualmente explícito, como se uma imagem, depois de captada e fixada, pudesse ser definitivamente apagada, banida sem deixar rasto. Eis a prova provada de como às vezes a censura nos apresenta diferentes formas de condicionar o acesso às obras que considera incómodas: ora envereda pela restrição etária, ora procede à ocultação de conteúdos, ora cruza as duas decisões numa mesma exposição.

Sendo certo que a beleza depende sempre do juízo de quem observa – qualquer um de nós pode ver sublime onde outro só vê grotesco – é preciso denunciar os que não gostam que a obra de arte interrogue o mundo concreto em que vivemos. Ou os que, desavindos com a estética, tudo fazem para construir uma memória futura bacteriologicamente pura, rasurando a torto e a direito aquilo que não lhes agrado ou abala os alicerces do seu moralismo preconceituoso. Ao dar visibilidade ao corpo enquanto lugar matricial de transformação operada pela arte, ao homoerotismo, à cultura gay e a diferentes formas de transgressão sexual nas décadas de 70 e 80, Mapplethorpe teria sempre à perna os modernos inquisidores com complexos de Torquemada.

Para mal dos pecados dessa gente, há obras de arte que, ao contrário de outras, por nos vermos reflectidos nelas, resistem ao juízo moral e por isso se tornam intemporais. Se cabe ao futuro escolher a arte do nosso tempo, então relativamente à arte de Robert Mapplethorpe, porque interfere com o nosso presente, o futuro já lhe granjeou essa aura de perenidade, porque se trata de uma arte capaz de espelhar as nossas ambivalências e nos obriga a reflectir sobre conceitos, como os de beleza, pureza, ordem e caos. Porque, enfim, é uma arte que ultrapassa o efémero a que se opõe.

Tirésias, o profeta de Tebas que era cego, confessa no Rei-Édipo que o saber pode ser uma coisa terrível quando de nada serve a quem o detém. Assim penso dos que colocam objecções à leitura que a arte faz do seu tempo; dos que não entendem que os limites éticos da arte só podem ser definidos por cada artista; dos que, enfim, se estão nas tintas para tentar compreender como é que a arte, que aparentemente não tem qualquer utilidade, pode ser tão decisiva e essencial para as nossas vidas.


[1] Entrevista de António Ferro a Oliveira Salazar, in Palavras no Tempo (vol.1. Política), Edição Diário de Notícias/Imprensa-Nacional-Casa da Moeda, 1990, p. 59.

[2] Ípsilon [suplemento do Público], 05.01.2018.