(depois de ver, no passado dia 10 de Janeiro, na RTP2, um filme belíssimo, que considero fazer parte dos filmes da minha vida)
Se há filmes – e o mesmo acontece com os livros – que têm o dom de nos agarrar logo de início, este é um deles, porque mergulha, com mestria, nas memórias e fantasmas da guerra. Um tempo em que se ama e que é o mesmo em que se morre. A guerra que um dia Paul Valéry definiu ironicamente como “um massacre entre pessoas que não se conhecem, para proveito de pessoas que se conhecem, mas não se massacram”.
Ozon conta-nos a história da frente para trás (que é também frente, a da batalha, onde descobrimos ter sido Adrien quem abateu Frantz, quando este apenas o olhava, desarmado, paralisado pelo medo, sem constituir qualquer ameaça). A mola do remorso que o impele a encontrar Anna, a noiva alemã de Frantz, e a visitar a campa onde este foi sepultado, revela-nos também uma verdadeira arqueologia do desconforto e do sofrimento psíquico. Um dia, porque o passado continuava a doer, rebentou o dique das emoções e ele contou-lhe a verdade.
A memória desse momento fatídico morde Adrien como um cão raivoso. E que dizer quando vemos Anna, mais tarde, a queimar no fogão de sala a carta que ele lhe manda – e na qual confessa aos pais de Frantz que foi ele que o matou – e a ler depois, aos sogros, o contrário daquilo que a carta dizia? Sim, às vezes mentir por amor é que é falar verdade. Às vezes, durante e depois do luto, é possível amar sem destilar vinganças, trocar o ódio pelo perdão e a compaixão.
Há uma espécie de monismo ideológico, de um pensamento mecanicista, previsível, segundo o qual uma guerra é sempre culpa do outro, do inimigo que não conhecemos, do que está no outro lado da barricada. Ozon procura (e consegue) subverter estes clichés: em qualquer guerra – e todas as guerras são absurdas, porque nelas só aparentemente há vencidos e vencedores – luta-se pelo mesmo em ambos os lados: pela vitória e pela sobrevivência, pela vontade de fragilizar ou eliminar o outro, para quem nós também somos “o outro” (vontade de poder, lhe chamou Nietzsche).
Este filme de Ozon parece apontar para outro tipo de pensamento: já não o mecânico, mas o fragmentário, aquele que podemos encontrar, em doses mais ou menos generosas, em autores portugueses como Rui Nunes, Herberto Helder (onde é possível identificar caos e contínuo) e, sobretudo, em Maria Gabriela Llansol. Há mudanças subtis, imperceptíveis, a germinar todos os dias, à margem da contabilidade fria e calculista da História e do poder: será aquilo a que Llansol chama “a restante vida”; ou talvez, porque as utopias estão sempre a acontecer, a “comunidade que vem” de que fala Agamben. E aqui, estamos a falar de outra coisa: de pequenas erupções, que acontecem no mais recôndito do nosso ser, filiadas no domínio da ética e já não no da política.
Um filme casto. Só quase no final, na derradeira despedida de Anna e Adrien junto ao comboio, há o esboço de um beijo sempre reprimido. De um sobressalto. Naquele momento, ambos desejam que o tempo pare, para se despojarem de todos os artifícios do fingimento, lavarem a alma e serem autênticos e talvez felizes. Desejam suspender o tempo, porque o tempo, enquanto corria, suprimia inexoravelmente o prazer de estarem juntos.
Bom dia.
Eu também vi o filme, aliás a rtp2 melhorou e muito não só em filmes como documentários. Abraço
Espero que tenha gostado do filme, que para mim é sublime, cheio de referências. E quanto à RTP2, tem razão: está bem melhor e a fazer aquilo que deve: prestar serviço público de qualidade. Abraço.
Também vi o filme e senti-o como tu.
Conseguiste transmitir de uma forma bela, que te é habitual, todo o sentimento e conhecimento que o filme desencadeou em ti.
Obrigada por mais este texto, Carlos!
Um beijo.
Fátima
Não é difícil gostarmos de um filme como este, mesmo quando não somos muito entendidos em cinema, como é o meu caso. Agradeço-te o comentário. Um beijo.