Neste tempo de ananases, capaz de derreter os untos – como escrevia Eça de Queirós n’A Correspondência de Fradique Mendes – poucos terão dado conta da autorização do governo que permite novas iguarias no prato dos portugueses: duas espécies de grilos, uma de besouro, duas de larvas e duas de gafanhotos.
Habituado a ter a carteira no fio, comi, durante muitos anos, em cantinas. É esse saber de experiência feito que me permite discursar com manifesto à-vontade sobre a importância das teses de Lavoisier na gestão das cantinas portuguesas. Tomemos, como exemplo, o croquete (e quando digo tomemos, isso não significa que tenhamos, necessariamente, de o beber): o croquete não é um alimento qualquer (na verdade, chego a duvidar que seja um alimento). À luz dos ensinamentos de Lavoisier (“na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”), o croquete é neto afastado do bife. Se observarmos com mais rigor, verificamos que uma cantina que num dia serve bifes, serve invariavelmente nos dias seguintes hambúrgueres e almôndegas – formas intermédias entre o bife e o croquete, mas compostos mais ricos em carne do que este – e só depois os famigerados croquetes. Em matéria de cantinas fico-me por aqui, embora também pudesse dissertar (passe a imodéstia) sobre temas tão aliciantes como: 1 – “Alheira: alimento ou arma de guerra”; 2 – “Carnes frias: a influência do surrealismo nos acepipes variados”.
Perguntam os simpáticos leitores: a que se deve este arrazoado? Respondo: à necessidade de mostrar, à luz dos ensinamentos adquiridos numa longa frequência de cantinas (enquanto estudante, no serviço militar e na vida profissional), que não é fácil darem-me a volta à cabeça e convencer-me a manducar larvas e percevejos.
Como há mais vida para lá das cantinas, também conheci o sabor de iguarias que os portugueses de ordenados minguados e pensões que envergonham a democracia raramente cheiram no prato: a chanfana de chibo velho, assado na caçoila de barro preto, o ensopado de borrego, o leitão assado no espeto de pau de loureiro, o cabrito no forno de lenha aquecido com vides, a caldeirada de enguias (Fialho de Almeida aludia às “caldeiradas patrícias, inverosimilmente celestes, do Gamelas de Aveiro”) ou as enguias de escabeche, a lampreia à moda do Minho, a sapateira recheada, o caril de gambas, o bacalhau com batatas a murro e o polvo à lagareiro. Quem já teve a sorte de ser brindado com estas e outras honrarias que acariciam o palato e estimulam as papilas gustativas, dificilmente adere ao admirável mundo novo que se avizinha: o do triunfo generalizado da nova culinária à base duma gama variada de larvas e insectos.
Pode a gastronomia tradicional estar condenada a fazer parte de um passado morto, que paulatinamente se dilui nas brumas da memória, mas sem passado que nos ilumine o presente é uma sombra do que fomos e o futuro uma incerteza larvar de besouros, grilos, escorpiões e gafanhotos. Anuncia-se, pois, um tempo novo, em que as prateleiras dos supermercados nos vão seduzir com barras nutritivas de insectos, ou uns snacks de larvas, temperadas com sal e pimenta. Não é receita que me redima da agrura dos dias, me faça levitar ou me liberte das insónias.
Tenho de o confessar, correndo embora o risco de ser acusado do mais puro conservadorismo gastronómico e desconhecendo, até, se a hierarquia dos anjos e arcanjos aprova ou desdenha das minhas escolhas: prefiro, de longe, um simples arroz de miúdos, ao que de novo por aí se anuncia, convenientemente embrulhado no celofane garrido da sustentabilidade ambiental e das fontes nutricionais alternativas. Prefiro, repito, um singelo arroz de miúdos, mesmo que se trate da variante que um dia foi servida aos patuscos confrades de S. Gonçalo: uma espécie de arroz andante, adubado, em vez das miudezas, com uma grande e encantadora variedade de patas de galináceo, só possível em boutiques da especialidade. Patas grandes, patas pequenas, patas com dedos, patas sem dedos, dedos sem patas, dedos com unhas pintadas e envernizadas (Confraria de S. Gonçalo, “Aveirismos Gastronómicos”, p. 19).
Uns conformam-se com as regras sociais dominantes e com a comidinha tradicional, outros não. Uns são vegetarianos, outros comem carne, outros ainda larvas e insectos. O que penso e digo não tem qualquer valor normativo: o que menos desejo é interferir nos hábitos alimentares dos meus semelhantes. Como defendia o nutricionista Emílio Peres, todos temos direito à nossa indigestão. Empanturrem-se à vontade e, se não são capazes de distinguir um Barca Velha (uma garrafa por dia, nem sabem o bem que vos fazia) de um corriqueiro vinho dos mortos, de Boticas, sugiro que acompanhem o repasto com um soberbo vinho de cobra (parece que evita a queda do cabelo e da caspa e garante a virilidade). Para rebater, nada melhor que um saké de lagarto (clubismos à parte…). No final, refastelado na chaise longue da sua irreprimível gula insecticida, se duas horas depois de digerir uma grelhada mista de escorpiões e gafanhotos (polvilhada com farelo de larvas de mosca negra) e de emborcar três garrafas de vinho (isto é: depois de beber como sete bois com sede) se sentir a desfalecer, ficar nervoso, com asma, alergia ou reacções cutâneas, não ligue. Emborque outro saquê e logo verá que fica melhor.
Surgindo vem ao longe a nova pirâmide alimentar. Viva a diversidade. Abaixo o fascismo gastronómico e a monotonia dos cardápios. Se um franguinho caseiro, que se alimenta com minhocas do chão, é tão saboroso e nutritivo, por que razão não mastigar directamente as minhocas e poupar o franguinho? A propósito: já há cursos que ensinam a não ter nojo de comer larvas e insectos. Inscreva-se, mas depois não se admire se um dia destes der consigo a confessar, extasiado: que delícia, um bicho na salada!
Grandes estômagos! Bom proveito, à barriga e ao peito. E boas férias!
Acabo de ler o que aqui vem de escrita em ironia pura, tão cheio de nausea, que apetece ir à valeta!… Estou, como tu, em guerra aberta a esses modernismos gastronómicos, e prefiro, de longe, um bom arrozinho de miúdos. Nem que seja apenas de patas e pescoços. Bom, venho em atraso a esta tua “crónica” que bem me soube e deu conta do riso. Riso em libertação. Claro. O bom humor que ainda te chega!… Um grande abraço, Carlos Braga. No
José Barreto