Dizia que andava no mundo para inquietar os outros. Inquietar, perturbar: eis uma das funções da arte. E comparava os escritores aos especialistas de hemodiálise: “tratamos aquilo que absorvemos”.
Corria o ano de 1971 quando Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno publicam Novas Cartas Portuguesas, um marco incontornável do discurso feminista em Portugal. Convém lembrar aos mais novos, aos desatentos – e aos mais velhos de memória curta – que por essa altura as mulheres não podiam votar. Não podiam ocupar lugares de chefia na Administração Pública. Sofriam entraves de toda a ordem para casar, se exercessem a profissão de enfermeiras, hospedeiras da TAP ou professoras primárias. Não podiam viajar sozinhas sem passar pela humilhação prévia de obter autorização escrita do marido, do pai ou do irmão mais velho. As Novas Cartas Portuguesas fizeram ranger de indignação os pilares do Estado Novo marcelista, que viu nelas um livro pornográfico e um atentado à moral e aos bons costumes. Proibido de circular, desapareceu das livrarias e foi destruído.
No início dos anos 70 a ditadura portuguesa não suportava que se escrevessem coisas como esta: “Três é o fim da virgindade, o começo da justa história do par” (Segunda Carta V); ou como esta: “de homem gostamos (e muito) mas jamais a esconsas e somente se não marialva (o que é difícil, convenhamos…) e afinal nos rimos”. (Terceira carta última). O processo das “Três Marias” rapidamente galgou fronteiras, transformou-se num caso do feminismo internacional e só não foi a julgamento porque, dois anos depois, aconteceu o 25 de Abril de 1974. Antes do livro vir a público, as “Três Marias” que os portugueses conheciam eram as garrafas de vinho branco que um certo marialvismo lusitano costumava pedir em voz alta, à mesa do café, no tom grosseiro que ainda hoje ressoa nos meus ouvidos: “Saia uma garrafa de seis tetas!”
Leio que algumas obras de Maria Velho da Costa não são de leitura fácil, porque é saudável a distância que as separa da literatura de mero entretenimento. Por isso reclamam, pelo menos, uma segunda leitura, para que possamos atingir a subtileza das camadas mais profundas da sua escrita. Convenhamos: também não é fácil ler outros escritores ou poetas consagrados. Basta citar, no terreno pátrio, Herberto Helder; e, no plano internacional, um Joyce. Talvez por isso os livros da escritora nunca tenham rompido um círculo demasiado restrito de leitores incondicionais.
Para lá das Novas Cartas Portuguesas apenas li, de Maria Velho da Costa, Lucialima. Pecador me confesso. Abro o livro ao acaso, porque sei que em qualquer página é possível tropeçar na riqueza dos recursos linguísticos que de forma tão pródiga colocou ao nosso dispor, e anoto, na página 294 (3.ª edição):
“Lima ri-se. Como as lendas da cobra preta que se aninha nas botas e nos esconsos das camaratas fechadas, a grande barata vermelha parece ser o ódio mor deste exército de homens criados a associar a pequena barata negra do Continente com a miséria e com o desleixo. Mesmo cansados, treinam-se a cravá-la no solo batido das tendas ou dos aquartelamentos, das tabancas de empréstimo, com um só golpe da lâmina da baioneta, enojados de as esmagar, tão enormes são. E não há um que se deite numa esteira de amores ou se alivie num feixe de folhas, sem primeiro indagar da presença desses corpos rígidos e sujeitos a correrias de pânico, para mais, horror maior, aladas”.
Romancista maior, a quem foi atribuído o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores – a mais alta distinção literária portuguesa – pela publicação de Irene ou o Contrato Social e o Prémio Camões pelo conjunto da sua obra, Maria Velho da Costa nunca teve, em vida, publicidade bastante que aparasse ou iluminasse o labor da sua escrita. O que teve, de sobejo, foi desamor e desconhecimento em relação ao tanto que nos deixou: Maina Mendes, Casas Pardas, Missa in Albis, Da Rosa Fixa, O Livro do Meio – a meias com Armando Silva Carvalho – e Myra, só para citar alguns títulos mais conhecidos.
Depois de Maria Isabel Barreno nos ter deixado em 2016, ficámos agora privados de outra voz insubmissa que marcou a luta das mulheres em Portugal contra o seu estatuto de menoridade. Acredito que na hora da partida Maria Velho da Costa terá levado, no bornal das memórias, mais afecto do que amargura pelo desamor em relação à sua obra. E terá sentido algum alívio também, pois costumava dizer: “espero que os meus amigos nunca morram todos antes de mim. A pior coisa que pode acontecer a alguém é sobreviver a todos de quem gosta”.
Um obrigado a ela e a todas as mulheres de coragem . Que descanse em paz🙏
Abraço, amigo Carlos
Sim, Arminda, um obrigado a todas as mulheres que ergueram a voz em haste de coragem para sacudir o conformismo reinante, sobretudo num tempo em que não era fácil assumir esses gestos de uma saudável rebeldia. Um abraço, com amizade.