Mário Cesariny (1923-2006) – Surrealista, Pintor e Poeta

“Eu acho que se se é surrealista, não é porque se pinta uma ave, ou um porco de pernas para o ar. É-se surrealista porque se é surrealista”

Nascido em Lisboa a 9 de Agosto de 1923, Mário Cesariny frequentou a Academia de Amadores de Música, na altura orientada pelo maestro e compositor Fernando Lopes Graça. Seria na Escola de Artes Decorativas António Arroio que na década de 1940 se viria a cruzar com os que viriam a ser seus companheiros surrealistas. As primeiras intervenções do grupo de surrealistas portugueses acontecem nos anos 40. O ponto de encontro eram os cafés de Lisboa, com destaque para o Café Gelo.

O surrealismo português é um movimento tardio. Apenas em 1947 se dá uma aproximação mais formal com o movimento surrealista internacional, nascido no início dos anos 20 e que por essa altura já vivia uma segunda fase. É em 1947 que Cesariny conhece em Paris André Breton, o autor de conhecido Manifesto Surrealista e que viria a influenciar de forma decisiva a sua obra, sobretudo no que se refere à recusa do racionalismo e à valorização do inconsciente. Mas mais do que tributário dos surrealistas franceses, há quem sustente que a obra de Cesariny, até por o ter traduzido de forma particularmente inventiva, é sobretudo devedora do modernismo de Rimbaud. É assim que pensa António Carlos Cortez quando se refere à obra de Cesariny: “o espelho de um percurso de vida (…) ao longo do qual se perseguiu sempre mais a ‘liberdade livre’, honrando Rimbaud, que a liberdade artificial das sociedades ditas democráticas”.

Os surrealistas afrontaram a escolástica racionalista, dando aso a que os pensamentos mais obscuros pudessem estar reflectidos nas suas telas. Propunham-se libertar a imaginação, o que levou Mário Cesariny a escrever, em 1949: “Só a imaginação transforma. Só a imaginação transtorna”. Tratava-se de subverter a realidade através do desejo e do inconsciente. Uma corrente criadora que recusava impor uma doutrina estética. Artaud falava do surrealismo como “o escoicinhar do ser contra toda e qualquer coerção”, o mesmo é dizer, uma atitude de rebeldia contra tudo o que oprime a actividade humana. O surrealismo, se não promoveu uma verdadeira revolução – segundo Carlos de Oliveira não será lícito falar-se em revolução em poesia, mesmo que apenas no plano simbólico – teve pelo menos o mérito de rasgar clareiras e traçar novos rumos de descoberta e aventura para a poesia portuguesa.

É também em 1947 que se forma o Grupo Surrealista Português, no qual pontificavam, além de Cesariny, Alexandre O’Neill e António Pedro. Mário Cesariny viria a demarcar-se deste grupo inicial. Formaria outro – Os Surrealistas – a que se associam nomes como os de António Maria Lisboa, Mário-Henrique Leiria, Carlos Calvet e Pedro Oom. Nos anos de 1949 e 1950 têm lugar as primeiras exposições surrealistas, nas quais Cesariny dá a conhecer algumas das suas obras.

Houve querelas na formação dos grupos. Houve escândalos e dissidências, questiúnculas pessoais, grupos e grupinhos: o Grupo Surrealista de Lisboa deu lugar, um ano depois, ao Grupo Surrealista (que viria a extinguir-se em 1952, formado por dissidência do primeiro – do qual Cesariny havia sido expulso – e mais orientado para a poesia do que para a pintura). Também menos alinhado com o sacerdote-mor Breton e mais próximo dos dadaístas. Mas para lá destas dissidências, pelo menos duas coisas os uniam: a transversalidade das técnicas e o repúdio pela situação política que se vivia em Portugal. Para muitos acabou aqui (em 1952) o surrealismo português. Para outros, permanece e está vivo, porque como defendeu Cesariny, “aquilo a que se chamou Surrealismo existiu sempre”.

Há um esclarecedor episódio que espelha bem estas divergências entre surrealistas: aquando da exposição “O Surrealismo em Portugal”, patente no Museu do Chiado e que devia transitar para Madrid, Cruzeiro Seixas ameaçou retirar as suas obras. Porquê? Porque não aceitava estar representado em Espanha se o formato da exposição reproduzisse o do Museu do Chiado. Fazia finca-pé em manter a versão apresentada em Vila Nova de Famalicão, da qual tinham sido retirados três trabalhos de António Pedro e acrescentados os de outros pintores, onde se incluíam Paula Rego e Mário Botas. E parece que Cesariny também se recusou inicialmente a participar nessa exposição que incluía quadros da “fase fascista” de António Pedro, embora na carta enviada ao Museu do Chiado se tenha limitado a referir que as suas obras não podiam figurar na exposição, mas sem adiantar qualquer explicação para essa sua atitude, a qual, como a de Cruzeiro Seixas, pode radicar no facto de sentirem que ao grupo ao qual ambos pertenciam (os Surrealistas) estaria a ser dado um papel subalterno na exposição, ficando o palco principal para António Pedro e para o Grupo Surrealista de Lisboa.

Cesariny seguiria o seu percurso individual de artista plástico, que inclui pinturas, colagens – através das quais recria a visão onírica do mundo através das vias abertas da imaginação criadora –  “soprografias” e “cadavres-exquis”, mas foi na pintura e na poesia que se destacou e atingiu maior projecção. Muitos dos seus trabalhos associam texto e imagem ou incluem palavras recortadas, num permanente recurso a formas experimentais.

É sabido que Cesariny preferia Pascoaes – seu hipotético mestre – a Pessoa, o poeta da heteronímia a quem parodiava e chamava “o Virgem Negra”. Di-lo abertamente numa entrevista ao suplemento Mil Folhas, do Público (19.01.2002): “O Pascoaes é o grande poeta, não tenho nada contra o Pessoa, mas para mim o Pascoaes é o velho da montanha, o mágico”.

Mais do que semelhanças, talvez possamos falar de uma tensão entre a heteronímia (arte do desdobramento) e o surrealismo (enquanto arte de montagem). O que Cesariny faz é muito mais do que subverter a imitação, esse princípio básico da estética clássica que se mostrou incapaz de resistir ao advento do Romantismo, que acabaria por o derrubar de forma inapelável. Fernando Cabral Martins, na contracapa do livro Mário Cesariny e o Virgem Negra, deixa exaradas estas palavras: “não é Pessoa que é atacado (nem as suas obras maiores, pois nunca o considerou medíocre ou desprezível), mas o mito que dele se criou e, sobretudo, certos persistentes lugares-comuns da sua leitura”. Talvez uma reacção de Cesariny ao boom pessoano dos anos 80 que desembocaria na conhecida rima “tanto Pessoa já enjoa”, ou uma resposta ao exercício sacralizante dos que por essa altura desenvolviam um aturado trabalho de decifração – depois de muito remexer na arca do poeta –  e de edição sistemática dessas supostas descobertas.

Vejamos este exemplo – que os mais incautos podem entender como plágio, intertextualidade, ou nem uma coisa nem outra. Cesariny, a pretexto do centenário de nascimento de Fernando Pessoa, subverte alguns dos seus textos recorrendo àquilo a que chama “chocalhar a metafísica fernandina tentando simplificá-la”. Comecemos pelo texto de Pessoa, inserido em Cancioneiro:

Não: não Digas Nada!
Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.

Agora o poema de Cesariny, inserido em O Virgem Negra:

Faz-me o favor
Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor — muito melhor!
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

Para melhor se compreender o humor e o sarcasmo ao serviço do surrealismo, sugiro aos interessados, entre outros possíveis exemplos de alteração radical do sentido original dos textos pessoanos,  a comparação entre o conhecido poema de Álvaro de Campos “Vem, Noite antiquíssima e idêntica” e  a reescrita em forma de paródia  do poema de Cesariny inserido em O Virgem Negra, “Vem, Vulva antiquíssima e idêntica”. Para António Carlos Cortez, trata-se da “destruição do poder simbólico de Fernando Pessoa enquanto ‘mestre’ ou fundador da modernidade poética” (Relâmpago, n.º 26, pp. 62-63).

Cesariny e João Perry no dia 25 Abril de 1974

Da vasta obra desta figura maior do surrealismo português – poeta, autor dramático, ficcionista, crítico, ensaísta, tradutor e artista plástico – destacamos Corpo Visível (1950), Poesia: Discursos sobre o Real Quotidiano (1952), Louvor e Simplificação a Álvaro de Campos (1953), Manual de Prestidigitação (1956), Pena Capital (1957), Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Postos à Circulação pelo Autor (1958) Nobilíssima Visão (1959), Planisfério e Outros Poemas(1961), Titânia e a Cidade Queimada (1965), Burlescas Teóricas e Sentimentais (1972), As mãos na água a cabeça no mar (1972), Primavera Autónoma das Estradas (1980) e O Virgem Negra. Fernando Pessoa Explicado às Criancinhas Naturais & Estrangeiras (1989).

No Manual de Prestidigitação, dado à estampa pela Contraponto quando Mário Cesariny dava os primeiros passos na sua surreal caminhada, podemos encontrar, entre outras, esta relíquia:

A Imaculada Concepção

Um pássaro
a pino sobre as rochas
um pássaro jamais visto
um pássaro só pássaro
um pequeno pássaro enorme
fascinante
gelado

Um pequeno pássaro vivo
sobre as coisas
como um lado do mar
brilhante impalpável
seguro
e apesar disso impossível
terrível
obsidiante

Foi quando me voltei
para dizer-te: ‘Repara!’
que ele passou

No poema que começa com os versos da antítese “Em todas as ruas te encontro/ em todas as ruas te perco”, inserido em Pena Capital (1982), somos transportados para o possível reencontro de dois amantes. O ser apaixonado tende a ver em tudo o que o rodeia o “objecto” da sua paixão. É tal o desejo de reencontro que o “vê” mesmo onde ele não existe. Sonhos que se desmoronam e a seguir se reconstroem. Podem ser ressonâncias de sombras, de corpos que se cruzam nas ruas, de muros e paredes que o ser apaixonado encontra no percurso, de aves a esvoaçar no horizonte. Ressonâncias que lhe chegam, também, da água que contempla ou bebe, ou até do ar que respira e dos aromas que esse ar transporta consigo: “bebo a água e sorvo o ar/ que te atravessou a cintura.”

No regresso à realidade – uma realidade por vezes mais estranha que a própria ficção – o apaixonado deixa de “ver” aquele que ama e talvez por isso o verso “em todas as ruas te perco”. É o amor que sente, mas já não vê; que persiste, mas já não (re) encontra. Talvez por isso Cesariny não gostasse do “real quotidiano”, explicando-se deste modo : “porque não presta. Porque é o que menos interessa. Eu sempre desejei ir além, ir para dentro. O que presta é o amor, a liberdade, a poesia”. A realidade, nestes versos de Cesariny, pode ser vista como a fatalidade de quem perde aquilo que um dia encontrou (e em que acabou por se perder). Perda dolorosa, na exacta medida em que só quem um dia ganhou sabe o que é perder. Sobre este “real quotidiano” escreveu Pedro Mexia: “ O Cesariny visionário é notabilíssimo, majestoso até, mas nada me entusiasma tanto quanto a sua “reabilitação do real quotidiano”, até pela noção de que aquilo que salva o quotidiano são os grandes encontros, os grandes acasos, os grandes deslumbramentos”. Cesariny tinha de facto essa invulgar capacidade de desconstruir o “real quotidiano”, que procurava reabilitar através da linguagem poética.

Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura

e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

Nos últimos anos de vida, o homem livre e luminoso que foi Cesariny já não escreve poesia e afasta-se da vida pública. Como dizia Torga, existir é ir perdendo. Neste caso, os amigos da aventura surrealista e os cafés que acolhiam essas tertúlias e funcionavam como espaços privilegiados de convivialidade. Cesariny sente-se tributário desses espaços em acelerada extinção onde se aspirava o cheiro forte do café torrado, quando escreve: “Voltei à esplanada mas tinha gente a mais. Procuro outro café, outra esplanada próxima: não consigo escrever” (in Titânia e a Cidade Queimada, D. Quixote, 1977).

Censura a “Um Auto Para Jerusalém”

O poeta da insurreição permanente contra as convenções morais ou estéticas da época – mais do que da escola ou do método surrealista – aceitaria mesmo assim, em 2005, o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores e também ser condecorado pelo Presidente da República com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. Homenagens justas e merecidas a quem, nos tempos de privação da liberdade, ergueu a voz em haste de coragem e foi capaz de recorrer a metáforas e a simbolismos para exprimir desalento pelo quotidiano sombrio do nacional-saudosismo que pautava e alagava a vida dos portugueses. Essa poética contra as convenções e  os servilismos rastejantes era a sua forma de exorcizar o medo, de transgredir e afrontar o sistema, ou não soubesse ele que na vida…

“Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!”

(excerto de “Pastelaria”, in Nobilíssima Visão)

Consultas:
Bernardo Pinto de Almeida, Mário Cesariny. Editorial Caminho, 2005.
Fernando Cabral Martins, Mário Cesariny e o Virgem Negra, Sistema Solar, 2016
Maria de Fátima Martinho, O Surrealismo em Portugal, IN-CM, 1987
Pedro Mexia, “O jovem centenário”, Expresso Revista, 07.07.2023)
Relâmpago (Revista de Poesia), n.º 26, evocativa de Mário Cesariny.
https://cesariny.blogs.sapo.pt