Que me lembre, nunca me cruzei nem nunca falei com o João Tomaz Parreira. E, no entanto, sigo-lhe discretamente o rasto desde 1978, ano da morte de Jorge de Sena. Enquanto o “reino da estupidez” enxugava a lagrimeta ao canto do olho com o lenço da hipocrisia, ele dedicava-lhe um comovente texto – publicado, lembro-me bem, numa singela revista sindical – com o título de um dos seus livros: Peregrinatio Ad Loca Infecta.
Ironia do destino: desconhecendo que o João estava doente – soube hoje do seu desaparecimento físico e também que tinha sido operado, há pouco tempo, a um gânglio linfático – cruzei-me há dias com ele, não nas ruas de Aveiro, onde residia, mas no Facebook. Tinha licitado um livro que também me interessava muito: Os Futuristas Russos. Não me passou pela cabeça cobrir o lance, o que seria fácil, era só acrescentar mais cinquenta cêntimos à proposta dele. Além de conhecer a Maria Clotilde, sua extremosa esposa e minha colega de ofício na Segurança Social, em Aveiro, fui movido pelo sincero apreço intelectual que há muito nutro pelo João, a quem não desejava subtrair o prazer da leitura de uma obra que lhe interessava e que poderia acrescentar à valiosa biblioteca herdada de seu pai, o presbítero Parreira.
O leilão terminou no dia 15 de Outubro, às 21 horas. Cinco minutos antes, estava eu vigilante, com a página aberta. O raciocínio era o seguinte: se naqueles alvoroçados cinco minutos alguém cobrisse o lance do João sem que ele, inadvertidamente, se apercebesse, cá estava eu para, num derradeiro esforço, tentar resgatar o livro – Camões salva a nado Os Lusíadas… – e colocá-lo, de bom grado, à sua disposição, se o quisesse aceitar. Às vinte e uma horas em ponto só ele tinha licitado o livro, e foi com o coração a cintilar de alegria que confirmei não haver qualquer intruso de última hora a cortar-lhe o fio do sonho.
J. T. Parreira (assinatura literária de João Tomaz Parreira), nasceu em Lisboa, em 1947. “Bancário aposentado. Jornalista freelancer em semanários regionais e revistas mensais de índole cultural e religiosa, escreve sobre artes plásticas, literatura e teologia. Tem editados quatro livros de poesia: Este Rosto do Exílio (Aveiro, 1973); Pedra Debruçada no Céu (Lisboa, 1975); Pássaros Aprendendo para sempre e Outros Poemas (Lisboa, 1993); e Contagem de Estrelas (Lisboa, 1996). E um de prosa: O Quarto Evangelho – Aproximação ao Prólogo (Lisboa 1988). Participou em várias antologias desde os Anuários da Assírio & Alvim a Cadernos de Poesia Folhas & Letras do Grupo Poético de Aveiro, desde 1971 a 2004. No Rio de Janeiro, participou na Antologia da Nova Poesia Evangélica(1977). Proferiu conferências sobre as obras de Vergílio Ferreira, José Saramago e Fernando Pessoa, no âmbito da Aliança Evangélica Portuguesa, fazendo a ligação entre os aspectos religioso-filosóficos e literários daqueles autores. No Canal 2 da RTP, nos programas «Luz das Nações» e «Caminhos», foram-lhe dedicadas em exclusivo duas peças com duas entrevistas sobre a sua poesia evangélica e os seus livros, em 2002. Já em 2004, foi entrevistado para um daqueles programas, também no Canal 2, sobre o livro O Código da Vinci. Era um dos expoentes máximos da poesia evangélica na língua de Camões. Este poeta esteve na génese do manifesto «por uma nova poesia evangélica», que impulsionou a criação de uma nova linguagem da poesia de inspiração cristã».[1]
Às obras acima citadas, o poeta foi acrescentando outras em tempos mais recentes: Os Sapatos de Auschwitz (2008), Encomenda a Stravinsky, 2011, Esperar que a Voz seja Suave (2014) e também Todas as Chamas do Fogo, que o escritor e poeta aveirense João de Mancelos considera “um livro brilhante, na forma, no conteúdo, na riqueza metafórica e imagética, na atenção que presta ao mundo de hoje”.
Agora que as Parcas o levaram, não sei se o João transporta no bornal dos sonhos o livro que tinha licitado no passado dia 13, há apenas quatro dias. A esperança de o ler devia ser do tamanho da vontade de viver. É isso que transparece do que deixou escrito no seu mural, no dia 5 de Outubro: “Já com alta e em casa, aguardo confiadamente a mensagem que o gânglio analisado tem inscrita, creio em Deus que seja para o sentido da Vida”. Só que a vida – disse Miguel Torga – “não passa de um progressivo distanciamento de tudo e de todos, que a morte remata”.[2] Seja como for, o livro há-de ser lido. A espiritualidade que sempre o animou vai dar uma ajuda: para quem sempre viveu na crença, a morte não é morte, porque a eternidade passa a ser um lugar, mais do que uma circunstância. Quem como ele acredita em Deus, acredita numa realidade que o transcende. É nessa realidade que vai saborear Os Futuristas Russos.
Assino por baixo o que dele diz Amadeu Baptista, autor de Caudal de Relâmpagos: partiu um poeta discreto, um homem amável, um ser humano gentil e doce. Era, na verdade, tudo isso e não era preciso privar com ele para o perceber. Bastava lê-lo para intuir a sua cultura, a imaginação duma palavra que lavra e que acerta no alvo das suas constantes preocupações.
Nenhuma idade é boa para morrer. Ninguém devia morrer quando tem um livro para ler. Num tempo em que se arrasta por aí tanto exibicionismo sem qualidade, tinha que dar a conhecer, embora com frágeis palavras, a qualidade humana e poética do João Tomaz Parreira. Conhecer um pouco da sua vida pode acrescentar-nos mais vida, espiritualmente falando.
O rasgão da sua morte aí está para nos mostrar quanto tudo nesta vida é efémero. Fica a emoção e uma pergunta: e agora, querido amigo, que vai ser de nós sem a sua poesia e a sua discreta, mas luminosa grandeza?
Tanto que fica por dizer, nestes claustros onde habita, cada vez mais, um inteiro e pesado silêncio.
Li, certa vez, já há dezenas de anos, inscrita numa parede lida da linha do norte, uma frase anarquista que nunca esqueci: “O Silêncio do Mar é o Barulho do Sol”.
Foi esta a memória que me ocorreu aqui, a propósito da sensível grandeza do meu amigo João Parreira e da sua clara e genuína evocação pelo meu amigo Carlos Braga.
Que o mar de um continue a temperar a vida de todos e que o barulho de outro continue a mostrar caminho.
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Agradeço as tuas palavras, António Luis. A expressão que aqui nos deixas e que dizes ser de teor anarquista, é particularmente oportuna e carregada de sentido. Um abraço.
Aqui está mais uma vez exposta a faceta de humanismo e hombridade que que sempre nortearam a vida do meu amigo Carlos Braga .sua
Obrigado pelo texto sobre um autor que desconhecia. Tendo ainda um livro dele nas mãos (à procura de informações sobre o autor vim dar nesta página), vou ler alguns dos seus poemas.
Jorge, eu é que agradeço o eco e o afecto confiado das suas palavras.