Pouca ou nenhuma vontade de sair a terreiro e rabiscar qualquer coisa, enquanto dura este pesadelo. Este rolo compressor da sensibilidade que é a enumeração fastidiosa do número de mortos, infectados e recuperados nas últimas 24 horas de cada dia. Só que a morte de quem gostamos muda tudo: a contabilidade macabra, feita de algarismos para representar seres humanos coisificados, cede o lugar à emoção e ao sentimento e abre caminho às veredas da escrita.
16 de Abril de 2020. Dia aziago, capaz de provocar a ira dos deuses. Apolo anda escondido, talvez embrulhado nas suas vestes de luto. Só Zeus dá sinal de vida, entretido a rasgar o ventre das nuvens, que despejam bátegas de água nas vidraças que me protegem. Pergunto a mim mesmo se a tristeza tem um rosto, sabendo de antemão que hoje está triste o rosto da literatura e dos que a têm por amiga. De uma assentada, perdemos Rubem Fonseca e Luis Sepúlveda.
Dizia Beckett que o dia da morte é como qualquer outro, só que mais curto. Hoje foi o dia mais curto das vidas de Rubem Fonseca e Luis Sepúlveda. Sim, estamos tristes porque a morte de quem gostamos é sempre um rombo no nosso passado. Apesar do rasto luminoso que são os livros que nos legaram, as imagens, as entrevistas, os recortes de imprensa, todas essas coisas parecem destroços quando desaparece o suporte material que as gerou, e por isso também em nós algo fenece.
Rubem Fonseca morreu nonagenário, mas ainda assim antes do tempo. Considerado por uns como um dos melhores escritores de língua portuguesa, quase todos os seus livros falam da violência, um dos lados negros do Brasil e de tantas outras sociedades. Outros, como Pedro Mexia, vêem nos seus contos ou histórias curtas um certo gosto pelo bizarro e o grotesco. Se do Prémio Camões 2003 – escritor recatado, que não dava entrevistas – não posso falar com um pingo de propriedade, por só ter lido Romance Negro e Outras Histórias (livro de contos onde não está presente o tal “brutalismo” derramado em obras anteriores) já o chileno Luis Sepúlveda me é bem mais familiar.
Mais novelista que romancista, as suas obras denunciam a violência política, os crimes ambientais e os cultores do pensamento único, sempre prontos a confundir a fé verdadeira com o fanatismo e o extermínio com o patriotismo. Destaco o livro por onde comecei: O Velho que Lia Romances de Amor, onde nos dá a ver a eterna luta que se trava entre os que respeitam a Natureza e os seus recursos e aqueles que os delapidam sem olhar a meios. A luta final entre António José Bolívar Proaño e a fera que acaba derrotada, pode ser vista como a metáfora perfeita da ruptura – alimentada pela cobiça – que dá cabo da harmonia entre o ser humano e a Natureza.
As preocupações ecológicas, o valor da amizade, da honestidade e da solidariedade aparecem também distribuídos de forma generosa em As Rosas de Atacama. O livro tem uma entrada sublime, com Sepúlveda apostado em resgatar das garras do esquecimento todos quantos merecem ser lembrados. Intuiu isso numa deslocação ao campo de concentração de Bergen Belsen, onde descobriu que alguém gravara na superfície de uma pedra, talvez com o auxílio de uma faca ou um prego, o mais lancinante dos apelos: “Eu estive aqui e ninguém contará a minha história” (p. 8).
Ainda neste belíssimo livro, como não recordar “Baleias do Mediterrâneo”? É um texto que fala de encontros com golfinhos despedaçados pelas hélices das embarcações desportivas, no qual o escritor desabafa: “Existem dois frutos do engenho humano que me aborrecem particularmente: a moto-serra e o motor fora de borda. Milhões de hélices remexem as águas do Mediterrâneo como se se tratasse de uma enorme batedora com que se prepara uma beberragem mortal” (p. 59).
E como não recordar, também, “O amor e a morte”, onde confronta (e conforta) os três filhos pequenos com o final anunciado de Zorbas, o gato protagonista de História de Uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar? Zorbas, o gato que dormia a seus pés enquanto escrevia, ia morrer. E Sepúlveda anota: “dependia de nós evitar-lhe uma morte atroz e dolorosa, porque o amor não consiste apenas em conseguir a felicidade do ser que amamos, mas também em evitar-lhe sofrimentos e preservar a sua dignidade” (p. 93).
Outros livros dignos de registo poderiam ser citados, como A Sombra do que Fomos, que alude aos sonhos derrubados e aos ideais desfeitos, a lembrar-nos que também as ilusões que construímos nos podem trair, mesmo quando lhes somos excessivamente fiéis. Mas creio que basta o que fica dito, em relação a histórias que nos deliciam e comovem. Infelizmente não haverá outras, contadas por este “mochileiro” que viajou pelos quatro cantos do planeta. Um vírus insidioso provocou o irremediável naufrágio de Sepúlveda.
Para quem tudo acaba quando o desaparecimento físico acontece, sobrevém um enorme vazio. Mais afortunados são os que receberam o dom que lhes permite associar a razão à esperança, os que acreditam, afinal, que a crisálida precisa de morrer para se transformar em borboleta.
Muito bom , Carlos 🙂 aquele abraço , sempre
Grato pela leitura, Alexandre. Abraço apertado.
Tanto lutou!!!! É triste… Saudade!Deixa-nos a sua obra.😪
O escritor Rúben Fonseca, não gosto da escrita dele.
Abraço
Diz bem, Arminda. Tanto lutou para tornar este mundo melhor. E era-nos (quase) familiar. Vivia aqui ao lado e costumava marcar presença no Corrente d’Escritas, certame literário que decorre anualmente na Póvoa do Varzim. Quanto a Rubem Fonseca, não posso dizer grande coisa. Li apenas um livro dele e não desgostei. Mas sei que aborda nos seus livros temas como a violência e o grotesco (uma espécie de estética do feio, se assim se pode dizer) e admito que essa sua faceta de romancista não agrade a toda a gente. Agradeço a leitura do texto e o comentário e desejo-lhe um bom fim de semana.