Memória e louvor da editora Cotovia

Há pelo menos duas editoras que sempre associei a pássaros: A Minerva, que nos remete para a coruja, e a Cotovia. Mas os pássaros são imprevisíveis: uns regressam, como as andorinhas em seus voos rasantes. Outros desaparecem de vez, como aconteceu agora a esta prestigiada editora.

A coruja de Minerva está associada à sabedoria. O filósofo idealista Hegel, de quem Marx é tributário, escreveu que a coruja de Minerva só voa à noitinha. Queria com isto dizer que uma civilização só atinge a sabedoria quando se aproxima do crepúsculo. A sabedoria necessária para a salvar aparece, por assim dizer, tarde de mais. Mas a coruja de Minerva também pode ser vista, como acontecia no antigo folclore romano, como arauta da morte.

Harper Lee tem um livro com um título premonitório: Não Matem a Cotovia, que trata da desigualdade racial nos anos 30, no sul dos Estados Unidos, e pode funcionar aqui como metáfora do desigual tratamento entre editores e livreiros no preciso momento em que a Cotovia deixou de entoar o mavioso canto. Já voava baixinho desde Fevereiro, altura em que ficou amputada do seu espaço físico. À meia-noite de 30 de Novembro – o dia da morte de Fernando Pessoa – finou-se de vez. 

A cultura e as artes sofrem mais um rude golpe com o desaparecimento desta apreciada editora de autores clássicos, de livros de teatro, de poesia contemporânea e de outras preciosidades. Porque os livros continuam a ser um bem cultural insubstituível. A visão de uma utopia generosa foi apagada pelas cataratas da indiferença de quem poderia ter feito alguma coisa para a salvar. Nunca por nunca os dinossáurios que gerem a seu bel-prazer os grandes grupos editoriais estariam dispostos a franquear as portas do seu Parque Jurássico a editoras independentes como a Cotovia. Nas capelinhas do elogio mútuo – onde pontificam os que tiveram a sorte de não ser excluídos dessa coisa a um tempo ambígua e complexa que é o cânone literário, uma escolha de autores condenada a discussões intermináveis – prevalecem as afinidades políticas e as amizades pessoais.

Num país em que poucos compram, lêem ou oferecem livros e onde parece que se gasta mais dinheiro em cápsulas Nespresso do que em livros;  em que outros tantos tudo fazem para transformar a cultura em mercadoria e comércio; em que para muitos “as letras são tretas”, incapazes de perceberem “a utilidade do inútil”, pois só vêem útil no que gera lucro; em que ainda temos gente que frequentou a universidade a dizer que o familiar ou amigo que estuda “anda em românticas” (em vez de românicas) ou “anda em antigas” (numa alusão à literatura clássica), as corujas e cotovias da cultura tendem a desaparecer de vez do nosso convívio, ameaçadas pelos pesticidas da ignorância generalizada.

Vivemos cada vez mais imersos na era do vazio e no império do efémero de que fala Lipovetsky. Vivemos um tempo de suposta relação objectiva entre a felicidade e o consumo, de hedonismo generalizado, mas onde – estranho paradoxo – nunca foi tão grande como hoje a corrida às farmácias para comprar antidepressivos. Também sociedade do cansaço, do desaparecimento dos rituais e da expulsão do outro, como nos mostra o filósofo germano-coreano Byung-Chul Han. Um tempo em que quem manda nas televisões domésticas substitui, em generosos tempos de antena, escritores e poetas por cozinheiros, fazendo tábua-rasa dos ensinamentos de Natália Correia, que n’A defesa do poeta lembra aos subalimentados do sonho que a poesia é para comer.

Relembro que a Poetria, a primeira livraria de poesia do País, foi em tempos notificada do encerramento das Galerias Lumière, no Porto, onde se encontra instalada desde 2003. Cada vez mais editoras fecham portas. Cada vez menos livrarias, menos cinemas, menos espaços afectivos de pensamento, sociabilidade e convívio com a cultura. Sobre a cabeça dos pequenos e médios editores e livreiros rodopia, ameaçador, o cutelo da devastação iminente. Os ditos grandes editores asfixiam de forma insidiosa os mais pequenos, fazendo lembrar o Sermão de Santo António aos Peixes onde, no dizer do Padre António Vieira, um peixe grande se alimenta de muitos pequenos, quando o contrário é que estaria mais conforme com as leis da Natureza. 

É frágil o nosso ecossistema cultural, assente em pequenas tiragens. A paisagem literária e cultural encolhe e afunila a cada dia que passa. Até quando, esta apagada e vil tristeza? Agora, é tempo de os abutres rondarem os despojos da Cotovia. Foi isso que disse Fernanda Mira Barros, a gerente da editora: “os urubus dos espólios, desde Agosto (se não antes) que os avistamos”. Restam as edições cuidadas. Fica a sobriedade na textura das capas, a qualidade do grafismo, o bom gosto da escolha dos autores.

Resta-me o (fraco) consolo de continuar a ter a Cotovia aqui pelas estantes, em merecido repouso ou a saltitar de umas prateleiras para as outras.