Na alvorada da criação da freguesia de Bustos (1910-1920)

Criação freguesia BustosA maneira como cada comunidade se filia no seu próprio passado, numa procura activa e constante de recordações, ajuda  a definir-lhe uma identidade própria e um sentimento de pertença que a distingue das demais. É certo que só podemos recordar partes do que já passou. Mas isso não deixa de ser essencial para dar futuros ao passado.

Às gerações actuais compete recuperar e se possível iluminar o que um dia aconteceu e foi digno de registo. E o que aconteceu em Bustos no ano de 1920 foi simplesmente isto: a separação definitiva da Mamarrosa em 18 de Fevereiro e logo a seguir, em 9 de Maio – menos de três meses depois – a nomeação da primeira Junta de Freguesia independente.

Aqueles que a Bustos legaram obra e lhe dedicaram o melhor do seu entusiasmo e saber bem  merecem ser evocados com dignidade. Este despretensioso trabalho, ao recuperar do passado ambientes e episódios que antecederam a criação da freguesia, é uma forma singela de homenagear e estar grato à memória desses homens e de manifestar apreço aos que hoje procuram ser fiéis ao sangue que lhes corre nas veias.

Como se chegou à criação da freguesia? Que horizontes determinavam a acção política concelhia? Qual o ambiente político, social e cultural que se respirava nessa altura? Que episódios marcantes merecem ser registados? Que intrigas se teciam entre as elites monárquicas e republicanas? Uma coisa parece certa: sem a implantação da República em 5 de Outubro de 1910 dificilmente Bustos se teria separado da Mamarrosa em 1920. As óbvias afinidades ideológicas entre os republicanos democráticos de ambas as localidades parecem ter desempenhado um papel decisivo em todo este processo.

Atente-se no seguinte: em 1908 o concelho de Oliveira do Bairro era um dos poucos – se não o único no distrito de Aveiro – onde não existia qualquer jornal.[1] Um traço bem revelador do subdesenvolvimento cultural do concelho, que obriga hoje os interessados em conhecer o seu passado a recorrer à consulta da imprensa regional de outros concelhos, nomeadamente de Aveiro, Ílhavo, Águeda e Anadia. É certo que em Outubro de 1908 inicia a sua publicação o jornal monárquico Ecos do Vouga, que viria a ser dirigido pelo padre Abel da Conceição e Silva, de Oiã. Mas começou por ter sede em Águeda e a redacção só mudaria para Oiã passados dois anos do início da sua publicação.[2]

O ambiente pouco amistoso que se viveu a seguir à implantação da República um pouco por todo o concelho de Oliveira do Bairro – e por maioria de razão entre as populações de Mamarrosa e Bustos – tem muito a ver com conflitos políticos que opuseram monárquicos e republicanos durante esse período conturbado da vida nacional. Às vezes todos contra os republicanos democráticos, após a cisão do Partido Republicano Português: não raras vezes republicanos conservadores ou moderados – oriundos do partido evolucionista de António José de Almeida e do partido unionista de Brito Camacho, ou até dos intransigentes de Machado Santos, se aliaram aos monárquicos constitucionais, a que se colavam estrategicamente os monárquicos integralistas a partir de 1914.

Essa guerra intestina de um contra todos deixaria marcas indeléveis nas relações que se estabeleciam entre as populações dos diferentes lugares e freguesias do concelho. O predomínio dos influentes locais do tempo da Monarquia durante a República dava azo a tensões permanentes e a episódios de baixa política doméstica,  pouco próprios dos paradigmas cívicos e democráticos que então se apregoavam.

Muitas destas desavenças já vinham do tempo da Monarquia. Aquando das eleições paroquiais que se realizaram em Novembro de 1908 na Mamarrosa, os seguidores de António Duarte Sereno, influente político local e proprietário da firma comercial J. D. Sereno & Filho – já então agraciado com o título de visconde de Bustos[3] – terão alcançado “grande vitória”. Segundo o jornal monárquico Vitalidade a vitória saldou-se numa vantagem de 122 votos.[4] Ali não concorreu qualquer lista republicana. Mas estalaram as quezílias com os “falsos amigos do sr. Conde de Águeda, que têm toda a cor politica”, os quais aproveitaram o ensejo para lembrar promessas não cumpridas ao povo da Quinta da Gala: uma estrada e uma fonte. Ao que parece as desavenças tinham a ver com o facto da lista apresentada pelo visconde ser integralmente constituída por pessoas de Bustos “em quem o povo da Mamarrosa não deposita confiança”. Por isso surgiu uma lista alternativa patrocinada pelo conde de Águeda, político por excelência que “visita ministérios como os operários visitam casas de pasto que à última hora resolveu não disputar a eleição.[5]

A atribuição do título de visconde a António Duarte Sereno estava longe de ser pacífica. O Jornal de Anadia declarava que o concelho de Oliveira do Bairro lhe devia “assinaláveis serviços” em matéria de melhoramentos materiais. Entendimento diferente tinha o correspondente de O Nauta: “Quais têm sido as contemplações com que se tem dignado brindar a freguesia onde reside? Quais têm sido os seus actos beneméritos ou patrióticos que lhe granjearam um título de nobreza?”.[6]

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António Duarte Sereno

Quando, enfim, a República triunfa e chega à província “por telegrama”, na expressão de João Chagas, o concelho de Oliveira do Bairro comporta-se como o resto do país onde a ruralidade era mais acentuada e as pessoas viviam curvadas ao peso da terra: ao indiferentismo de uns soma-se a expectativa benévola, a euforia e os festejos de outros. Na Mamarrosa o triunfo da República deixou “ébrios de alegria” os que viam nela a salvação de Portugal. As comissões paroquiais republicanas desta freguesia e do Troviscal, acompanhadas de grande número de pessoas, foram a Oliveira do Bairro hastear a bandeira republicana no edifício dos paços do concelho. Na sala das sessões discursaram Costa Ferreira, Abílio Nápoles e António Breda. Deram-se “vivas à República” ao som da Marselhesa, ao mesmo tempo que estalejavam foguetes e o povo se manifestava entusiasticamente.[7]

No então lugar de Bustos o ambiente era diferente: em 1910 os republicanos escasseavam e o “foco reaccionário e caciqueiro” continuava a exercer a sua influência, inculcando no espírito do povo “a nefasta noção de que a República é um mal” e “dizendo dos republicanos o que Mafoma não disse do toucinho”.[8] Talvez por isso a comissão paroquial da freguesia da Palhaça tenha dirigido uma petição ao ministro do Interior, a pedir a mudança da assembleia eleitoral com sede e lugar na capela de Bustos para a freguesia do Troviscal.[9] Invocavam-se, como razão para a mudança, a centralidade do Troviscal e o facto do lugar de Bustos não ser sequer freguesia.

Segundo os republicanos, o lugar teria sido escolhido para sede da assembleia eleitoral “pela imoralíssima razão de ser feudo do visconde de seu nome”, que assim mais facilmente poderia levar a cabo “as burlas eleitorais do antigo regime”.[10] Apesar de tais contratempos, em Março de 1911 teve lugar um comício republicano em Bustos ao qual presidiu o prestigiado republicano Albano Coutinho,[11] abastado viticultor de Mogofores e primeiro governador civil de Aveiro após a proclamação da República. Entre outros oradores usaram da palavra André dos Reis, director de O Democrata, e Cunha e Costa. Aí se disse que a República era compatível com a religião e que esta só naquela pode encontrar a liberdade que necessita”.[12]

Não era fácil acabar com a influência dos antigos notáveis locais, até porque muitos deles se passaram de armas e bagagens para o campo republicano. Assim aconteceu com os seguidores do Conde de Águeda,[13] cuja influência era disputada nos últimos anos pelo dissidente Egas Moniz: derrubada a Monarquia, de imediato oferecem a “leal e desinteressada” adesão dos seus 125 elementos, a que acrescentam a promessa de 7 deputados pelo círculo.[14] Estava em marcha o “adesivismo”, fenómeno que serve para exprimir o processo de conversão de políticos e jornais monárquicos ao regime republicano, a abertura da República aos “amigos políticos” da Monarquia. Essas conversões, iniciadas logo em Outubro de 1910, engrossariam nos anos se­guintes e foram de tal monta que o novo regime acabou por não se erguer, como seria de esperar, a partir dos pilares construídos com o seu próprio pessoal polí­tico. O regime evoluía, não para uma revolução, mas  para uma República com ex-monárqui­cos.[15]

O aparelho de Estado não vai sofrer alte­rações de monta, contrariando-se os propósitos de alguns republicanos mais con­ceituados e esclarecidos. Entre eles conta-se João Chagas, quando afirmava: “A República […] deve ser toda de republicanos, de alto a baixo, desde os seus minis­tros até aos seus regedores. Toda a autoridade deste país deverá passar para as mãos deles, e enquanto assim não for não haverá República”.[16]

O problema é que na província os republicanos escasseavam. O reconhecimento de que eram efectivamente minoritários serviria de pretexto a Basílio Teles – um dos mais lúcidos apóstolos do ideal republicano que compreendeu, como poucos, os mecanismos inerentes à tomada de poder político – para justificar a necessidade de uma ditadura republicana provisória: «o nosso pessoal de competência especial reconhecida […] dificilmente chegará para os cargos a preencher com a abolição da realeza [que] precisamos absolutamente de confiar a mãos leais».[17]

O Partido Republicano Português não dispunha, na altura, de qualquer organização na maior parte dos concelhos do país.  Segundo O Ideal, Oliveira do Bairro não contaria, antes da implantação da República, com “meia dúzia de apóstolos do novo regime”[18]. Esta realidade mostra-nos que o 5 de Outubro não assinala a transição do poder para os republicanos na província: nalguns sítios apareceram mesmo franquistas e ultramonárquicos à frente dos municípios e freguesias. Pode assim dizer-se que ao manter intactas as estruturas do Estado, sem em­preender uma séria renovação do pessoal político e dando continuidade a procedi­mentos caros ao regime monárquico – clientelismo, restrições ao sufrágio, inexis­tência de medidas de relançamento económico – a República não começava da melhor maneira.

 

Sem nome 6
O Século Ilustrado, 27 Outubro 1911

E se é lícito acreditar na contemporização dos ex-monárquicos  com o novo poder, não é de excluir que muitos deles conspirassem na sombra para derrubar a República, ajudando a criar o clima de instabilidade permanente que ca­racterizou os 16 anos da sua vigência. Segundo João Chagas, dificilmente a revolu­ção seria capaz de conquistar os “adesivos” para a sua causa. E acrescentava: “Não se servem ideias que não se amam senão para as atraiçoar”.[19]

Em 30 de Setembro de 1911, pouco antes da passagem do comboio rápido com destino a Lisboa, foram levantadas as linhas entre o então apeadeiro de Oiã e Oliveira do Bairro. A ideia era fazê-lo descarrilar. Ao mesmo tempo procurava-se dinamitar à bomba a Ponte do Pano. Vários cidadãos foram presos, entre eles o padre Abel da Conceição e Silva (Oiã), Herculano da Silva e Manuel Francisco Ferreira (Bustos), António Caiado e Armando Simões Gapo (Mamarrosa) e António dos Santos Barroco (Sobreiro).[20] As movimentações monárquicas organizadas a partir do norte de Espanha eram secundadas dentro do país e tinham ramificações na região da Bairrada, nomeadamente nos concelhos de Águeda e Oliveira do Bairro. Encarcerados em Aveiro até 6 de Outubro, seguiram no comboio da noite para Lisboa com escolta de 60 praças do Batalhão de Voluntários da República.[21]

Em 5 de Outubro de 1911, tempo de comemorações do 1.º aniversário da República, uma coluna de monárquicos comandada por Paiva Couceiro a partir de Espanha entra pela fronteira transmontana. Acabará por ser contida em Vinhais. António Duarte Sereno –  visconde de Bustos e chefe progressista do concelho de Oliveira do Bairro – e o seu empregado Manuel Ala viriam a ser acusados de conspirar contra o novo regime e foram imediatamente detidos. Na cada do visconde teriam sido encontrados “documentos valiosos” para a história da conspiração.[22]

Idêntica sorte tiveram os padres Joaquim Ferreira Maneta, de Oliveira do Bairro, João Francisco Moreira, residente na Palhaça e a paroquiar Mamarrosa e Francisco Massadas, natural de Fermentelos e a paroquiar Nariz, este último acusado de frequentar reuniões conspirativas em casa do padre Abel da Conceição da Silva, de Oiã..[23] Algum tempo depois viriam a ser libertados por se ter provado serem falsas as denúncias que os indicavam como conspiradores. Mas Manuel Ala e o padre Maneta, após detenção em Aveiro, não se livraram de seguir até Lisboa, para serem acareados com alguns presos do forte de Peniche.

Presos
MONÁRQUICOS DETIDOS NO CONVENTO DAS CARMELITAS EM AVEIRO (1911).

No chão: Herculano da Silva, José Carneiro da Silva (seminarista), Manoel Ferreira, Manoel Loureiro, António Peixoto. Sentados: Manuel de Matos Ala. Dr. Joaquim Carvalho, Joaquim Aguiar, Padre Maneta, Padre Francisco Massadas. Em Pé: Prior de Sangalhos, Dr. José de Barros, Prior de Penela, Albano Matos Ala, Armando Gapo, Visconde de Bustos, Dr. Soares Pinto, Padre Campos, Dr. Valente (médico), António Pinto.

No dia 14 de Fevereiro de 1913 o lugar de Bustos aparece envolto em nova polémica. Desta vez houve conflitos por ocasião do arrolamento da Capela de S. Lourenço. Os problemas com os inventários das igrejas surgiram depois da implantação da República um pouco por todo o lado e Bustos não foi excepção. Era quase inevitável que assim acontecesse, se atendermos às relações existentes, durante a Monarquia, entre a Igreja e o Estado. Antes de 1910 os párocos eram invariavelmente os presidentes das juntas de paróquia e era dos bens das paróquias que saía o dinheiro necessário às despesas do culto. Detinham enorme poder simbólico por serem ministros da religião, mas também por exibirem conhecimentos culturais muito acima dos que tinham as populações rurais escassamente alfabetizadas.

Com a revolução republicana tudo isso mudou. As novas autoridades desconfiavam por regra da transparência das contas públicas. O Estado declarou-se dono e senhor de todo o património da Igreja, acontecendo muitas vezes que “bens particulares foram incluídos no rol dos bens públicos. Objectos adquiridos pelos párocos, com os seus próprios rendimentos, ou que lhes haviam sido ofertados, podiam ser confundidos com a propriedade da igreja”. Ao procederem ao inventário, as novas comissões das juntas de paróquia, de boa ou má-fé, “poderiam integrar esses objectos no património da freguesia”.[24] Ora no caso de Bustos isso tornava-se ainda mais problemático, pois os bens arrolados poderiam deixa o lugar e seguir para a Mamarrosa, onde funcionava a sede da Junta.

Aparentemente, nos incidentes da capela de S. Lourenço a população não se mostrou hostil ao novo regime: ouviram-se mesmo vivas à República e à liberdade, enquanto duas mulheres empunhavam bandeiras nacionais. É de crer que este comportamento encontre explicação “no desejo de evitar que fossem confundidas as lutas pelos direitos à posse da capela com questões políticas, que, para os contestatários, seriam secundárias.[25]

Uma versão menos amistosa do que se passou em Bustos é-nos dada pelo jornal Bairrada Livre. Tudo terá acontecido por causa da revisão do inventário dos objectos de culto da capela daquele lugar. Uma vez constituída a associação cultual,[26] tais objectos deviam passar para a sua protecção. Marcaram presença em Bustos o administrador do concelho, o regedor, a junta de paróquia da Mamarrosa e a direcção da associação cultual. À cautela, para o que desse e viesse, estava também presente  uma força do Regimento de Cavalaria 8, de Aveiro.

Acta constituição da cultual Mamarrosa
Acta da constituição da cultual da Mamarrosa (24.12.1911)

À chegada da autoridade administrativa começaram a ouvir-se foguetes que eram atirados do interior dos quintais, o que logo foi entendido como um aviso e sinal de alarme. O povo começou a juntar-se em grande número à entrada da povoação, com o evidente propósito de impedir a transferência dos objectos de culto da capela para a comissão cultual.

Assim que as autoridades concelhias se abeiraram da capela, que ficava próxima da casa do Visconde, “viram sair da loja deste muitas pessoas, talvez mais de cem, armadas com paus e foices e munidas de bandeiras republicanas que deitavam por terra, como que a querer impedir que as autoridade avançassem”. Era o povo de Bustos a procurar evitar que se levasse por diante o auto de entrega, gritando que não lhe levassem os santos e as cruzes, pois via nisso uma evidente usurpação. Não aceitava que alguém viesse, em seu nome, “salvar” o recheio da capela. Uma espécie de sermão que ninguém encomendara e que deve ser visto como episódio de uma guerra latente entre católicos conservadores e republicanos radicais.

Entretanto uma mulher, empunhando uma vara comprida, “dispunha-se a tocar a rebate uma sineta da capela, o que não lhe foi permitido”. Juntava-se cada vez mais povo, não só de Bustos mas de povoações circunvizinhas. De tal modo que para evitar tumultos o administrador do concelho resolveu mandar retirar a força do local, embora, por precaução, tenha requisitado outra mais numerosa. O Visconde, que entretanto fechara as portas do seu estabelecimento quando os tumultos aumentaram, colocou-se nas varandas do primeiro andar e daí continuou a incitar à resistência contra as autoridades. Quando estas retiraram, terá visto nisso uma prova de fraqueza. Saiu da varanda e foi colocar-se junto das grades do jardim, “acompanhado da esposa e criados, rindo-se muito e continuando a fazer sinais para que o povo continuasse a fazer arruaças atrás da força quando esta retirava”.[27]

A força retirou para o Sobreiro, onde acabariam também por comparecer o governador civil e os cidadãos Rui Cunha e Costa,[28] Elísio Feio e o pároco de Esgueira. Só foi possível proceder à revisão e entrega dos objectos de culto quando estas pessoas, acompanhadas agora pelas duas forças do Regimento de Cavalaria, chegaram à capela. Não houve incidentes mas o povo continuou a protestar. Segundo o correspondente do jornal, apenas porque tinha “uma compreensão errada das coisas”, o que o levava a opor-se a “um acto absolutamente legal”.

Como havia fundadas suspeitas de que o instigador do motim tinha sido o visconde de Bustos, não só pela preponderância que exercia “entre as classes ignorantes e fanáticas daquela região”, como pelo facto de ser da casa dele que saiu o grupo mais aguerrido, foi aquele titular preso e remetido para Aveiro”. Seria posto em liberdade poucos dias depois,[29] por se ter reconhecido que nenhuma participação tivera nos acontecimentos.[30]

O visconde e os republicanos de Bustos continuaram de candeias às avessas nos anos seguintes. Em Abril de 1920, O Farol da Liberdade, que se publicava na Quinta Nova e tinha como director Augusto Simões da Costa, acusa-o de faltar à palavra dada e não honrar um compromisso assumido com o povo da terra. António Duarte Sereno teria prometido “um relógio que a todos servisse de guia”, a colocar na torre sineira se os bustuenses conseguissem angariar fundos para a sua conclusão.

O povo encheu-se de brios e a torre foi erguida na capela do lugar. A promessa do visconde, um relógio com mostrador, essa é que tardava a cumprir-se. Tudo indica que prometeu o relógio convencido que os republicanos de Bustos – sobretudo os mais radicais – nunca dariam dinheiro para a construção da torre. Se assim foi, enganou-se redondamente. E para fugir ao compromisso e ladear a impaciência da população, ia dizendo que relógio como o que prometera só havia na Suíça e que o problema era o transporte para Portugal. Alguém lhe recordou que poderia comprá-lo em Nelas. E não se livrou da troça dos seus conterrâneos, que chegaram a pintar na torre da capela um simulacro do prometido exemplar.[31]

Voltemos a 1913. Gabriel Duarte Martins, pároco da Mamarrosa, era tido pelos republicanos como “grande reaccionário” a quem todos os meios serviam para ferir a República. Quando, no dia 19 de Abril, um grupo de indivíduos, capitaneados por dois acólitos seus, assaltaram António Rodrigues Capucho – o tesoureiro da direcção da cultual – e lhe retiraram as chaves da igreja, as culpas foram endossadas por inteiro ao padre da freguesia. Havendo o perigo de no dia seguinte, que era domingo, ocorrerem graves tumultos, foi requisitada uma força de Cavalaria 8. Os receios eram fundados: a excitação chegou ao ponto de “serem disparados tiros de uma parte e doutra, uns contra as janelas do presidente da direcção da cultual, outros contra as da residência do pároco”.[32]

O padre Gabriel Martins e o padre João Francisco Moreira,[33] que também fora prior da Mamarrosa e a quem os republicanos chamavam, depreciativamente, o João das barracas,[34] viriam a ser castigados por desacato à Lei de Separação. Ambos foram proibidos de residir no concelho de Oliveira do Bairro durante o prazo de 6 meses.[35]

Para os republicanos o padre da Mamarrosa era considerado um elemento perigoso. A ele se ficava a dever a “grande excitação de ânimos” que trazia sobressaltados os habitantes da freguesia. A mãozinha do visconde de Bustos também não era esquecida em tempo de confrontações: “todas as vezes que se comete algum desacato não está na terra, tendo saído pouco antes e regressado pouco depois”.[36]

Em 14 de Dezembro de 1913, na mesma data em que Anadia presta homenagem popular ao conselheiro José Luciano de Castro, decorrem novas eleições paroquiais. Por essa altura as juntas de paróquia viam os seus poderes reforçados, considerando-se entre as atribuições mais importantes a possibilidade do referendo de que dependiam várias deliberações das câmaras municipais.

No concelho de Oliveira do Bairro a oposição monárquico-evolucionista supunha ter ganho a câmara e com natural regozijo resolveu queimar muitas dúzias de foguetes. Manifestações “tolas e provocantes” – retorquiam os republicanos democráticos – que acabariam por ver confirmada uma vereação constituída só por elementos da sua cor política.[37] Mas o triunfo da lista onde pontificavam, entre outros, Abílio de Oliveira Rocha e Jacinto Simões dos Louros seria efémero, já que em Abril de 1914, na sequência da contestação aos resultados eleitorais, tomava posse nova vereação dirigida por António Tavares de Araújo e Castro, em cumprimento de acórdão do Supremo Tribunal Administrativo.[38] O Supremo validara a eleição da “lista neutra” e o ressentimento dos derrotados era notório: acusaram o tribunal de parcialidade, já que “uma das partes conseguiu saber, algumas semanas antes de publicada a sua decisão, o sentido em que esta seria tomada”.[39]

Na Junta de Paróquia da Mamarrosa os democráticos ficaram em minoria. Apesar da eleição decorrer sem incidentes – para os prevenir, conservou-se a pequena distância da assembleia uma força de infantaria – acabou por ser protestada por alegadas irregularidades atribuídas à lista vencedora. Esta era acusada de incluir um indivíduo que já havia estado preso por conspirar contra a República e outro que exercera o cargo de tesoureiro na anterior junta monárquica, salientando-se “pelas suas tremendas irregularidades e acintosas perseguições aos republicanos”.[40]

O protesto não foi acolhido e a posse da nova vereação foi assinalada com rijos e provocatórios festejos, no dizer da imprensa republicana. Os talassas de Bustos e Mamarrosa vieram para a rua, “alguns de espingarda ao ombro, em provocantes manifestações”. Em Bustos tocou uma filarmónica e foram lançados pelo próprio Visconde “muitos aeróstatos azuis e brancos [simbolizando as cores da bandeira monárquica] contendo diatribes contra os republicanos”. A festança seria interrompida por volta da meia noite. Quando “o fogo de dinamite atroava os ares”, apareceu inesperadamente no local uma força de cavalaria 8 e logo os manifestantes se puseram em debandada, dando por findo o “talássico regabofe”. Ao que parece o governador civil tinha proibido as manifestações fora da sede do concelho, ordem essa desrespeitada pela “petulância dos monárquicos”.[41] Dizia-se que os foguetes de dinamite eram “velhacamente lançados” para as habitações dos democráticos e que à porta destes tinham sido depositados molhos de vimes para lhes atar a beiça.[42]

Em Oliveira do Bairro também houve incidentes. Os desacatos foram de tal ordem que a força armada teve de intervir, efectuando prisões e apreendendo armas. Na Mamarrosa, o abastado proprietário Manuel Gala foi importunado por elementos afectos à coligação monárquico-evolucionista: fizeram arruaças junto à casa, “provocando-o e hostilizando-o”, ao que parece pelo comezinho facto de ter aderido ao Partido Democrático.[43] A população era alvo dos “maiores vandalismos”, atribuídos a desavenças políticas, que incluíam destruição de telhados, corte de cepas e oliveiras e até roupa danificada que se encontrava a secar no coradouro.[44] Era grande o descontentamento no concelho, ao ponto da freguesia do Troviscal, fazendo eco duma velha aspiração, querer passar para o concelho de Anadia e a de Palhaça para o concelho de Aveiro, ao qual aliás já pertencera na segunda metade do século XIX.

Ilustração
Ilustração de Stuart Carvalhais em O ZÉ, 09.05.1911

Era este o ambiente que pairava no ar e se generalizara por todo o concelho: cortavam-se os fios de telégrafo entre Oliveira do Bairro e a Palhaça; degolavam-se videiras e devastavam-se searas; praticavam-se crimes de fogo posto e nem um busto da República que encimava o pedestal do chafariz da Mamarrosa resistiu à senha persecutória dos que agiam pela calada da noite, mutilando as tenras árvores que o circundavam e que tinham sido plantadas pelas crianças da escola no dia da Festa Nacional da Árvore.[45]

Manuel dos Santos Pato falava em “estendal de misérias” perpetradas por “monarquetes estúpidos”, em crimes impunes e excessiva benevolência ou mesmo desleixo das autoridades. Acusava os “inimigos figadais” dos melhoramentos da Mamarrosa, que se melindravam com a festiva comemoração do 5 de Outubro, de terem assassinado a tiros de espingarda “o desventurado republicano Oliveira Ambrósio” e atentarem da forma mais covarde contra a vida dos democratas Augusto Simões dos Louros e João dos Santos Pato.[46]

Tais actos seriam obra dos monárquicos, acobertados ”à sombra da bandeira do partido evolucionista” e dos “maus padres que pululam neste concelho”.[47] O republicano Manuel dos Santos Pato diria mesmo que “estas selvajarias se não podem atribuir a autênticos e leais republicanos, quer sejam democráticos, evolucionistas, unionistas ou sem filiação partidária”, mas sim a “abjectas criaturas, não só inimigas figadais da República como do progresso e do sossego da freguesia da Mamarrosa”.[48]

Contra esta visão que atribuía tais malfeitorias em exclusivo aos monárquicos e tinha como únicos prejudicados os republicanos democráticos, insurgia-se o padre Gabriel Duarte Martins, com textos publicados no órgão evolucionista de Águeda [Povo de Águeda]. Alguma razão assistia ao pároco da Mamarrosa, como viria a reconhecer, com a dignidade e o aprumo cívico que o caracterizavam, Manuel dos Santos Pato, quando teve conhecimento dos tiros disparados contra as janelas da residência do padre Gabriel, da “carga de pau” aplicada pelos democráticos no cidadão Manuel Carriço, ou até da atitude desrespeitosa dos republicanos democráticos, quando a 5 de Outubro de 1913, no momento em que saía o préstito religioso, “desfraldaram a bandeira nacional soltando vivas à República e abaixos à Reacção”.[49] Aos anticlericais causava engulho o facto de ser posta na rua uma procissão precisamente no dia do aniversário da proclamação da República.

Resta acrescentar que após três anos de República, as eleições para as Câmaras Municipais e Juntas de Paróquia fecharam um ciclo em que se “normalizou” a situação irregular de todas as comissões paroquiais, municipais e distritais de nomeação revolucionária. A forma como estavam organizadas, sem consulta popular, não correspondia ao “espírito democrático das instituições republicanas”, assumindo características de corpos administrativos de “nomeação ditatorial”. E porquê só três anos depois se repôs o tal espírito democrático? Porque, para os republicanos, era necessário salvaguardar as instituições “das influências eleitorais dos caciques monárquicos”, uma vez que “apenas nos centros urbanos Portugal estava republicanizado”. Na província o número de analfabetos era “pavoroso”, grassava o indiferentismo político e muita gente associava a palavra República a anarquia e por isso lhe fazia viva oposição.[50]

Para 5 de Novembro de 1916, portanto em plena crise da guerra, estavam previstas novas eleições administrativas para câmaras e juntas de freguesia, que entretanto viriam a ser estrategicamente adiadas. Os republicanos falavam em “manejos monárquicos” e diziam que se tramava um movimento revolucionário para a data das eleições. Esse suposto movimento eclodiria a 13 Dezembro, liderado por Machado Santos com apoio das tropas de Tomar. Os monárquicos alegavam que o adiamento das eleições se devia ao receio que os republicanos tinham de as perder. A sensibilidade andava à flor da pele. A simples intenção dos monárquicos quererem disputar eleições administrativas no tempo da União Sagrada era, aos olhos dos republicanos, considerada uma verdadeira traição.[51]

Os republicanos invocavam a Lei de 1 de Junho de 1915, publicada logo após a queda do governo de Pimenta de Castro. A lei preceituava que, havendo acordo entre os partidos, não havia necessidade de eleições. Os opositores do Partido Democrático é que não estavam pelos ajustes: apesar de integrarem o governo da União Sagrada, os evolucionistas aliaram-se em muitos concelhos aos unionistas – que tinham ficado de fora – e aos monárquicos. Salvo raras excepções – diziam os democráticos – os unionistas e os evolucionistas, mancomunados com os monárquicos, não podiam ser considerados verdadeiros republicanos. Essa aliança espúria em vários concelhos tinha como principal objectivo “guerrear o Partido Republicano Português”.[52]

Alguns dos candidatos indigitados nessas listas eram vistos pelos democráticos como dos mais ferozes inimigos da República. Na Mamarrosa, por exemplo, eram badalados para vereadores os nomes de Armando Gapo e Manuel de Matos Ala. O primeiro era um “antigo galopim às ordens de António Sereno” que tinha estado preso como conspirador e desempenhara o cargo de regedor durante a ditadura pimentista; o segundo era conhecido caixeiro do ex-visconde de Bustos, também tinha sido preso e respondera no Tribunal marcial de Coimbra como “cúmplice no arrombamento da ponte do Pano, por meio de dinamite”. Era também o “consagrado autor do hino restauracionista”, cuja letra rematava do seguinte modo: “Assim que tivermos rei posto/saudaremos Paiva Couceiro”.[53]

Apesar de se encontrarem suspensas as garantias individuais e ter sido declarado o estado de sítio em 13 de Dezembro de 1916, na sequência da tentativa de golpe liderada por Machado Santos, os monárquicos da Mamarrosa, armados de varapaus e espingardas, eram acusados de, na noite de 1 para 2 de Janeiro de 1917, insultar os republicanos e soltar “avinhados vivas à monarquia”. O instigador-mor era mais uma vez Armando Simões Gapo, “ridículo galopim às ordens do chefe monárquico Sereno de Bustos”.[54] As eleições para as Câmaras Municipais e Juntas Gerais de Distrito só tiveram lugar a 4 de Novembro de 1917, um ano depois da data prevista.

Em Oliveira do Bairro ganharam os evolucionistas, ficando os democráticos em minoria. À margem deste ambiente toldado por conflitos permanentes e desunião generalizada, numa altura em que a fome bate à porta de muitos lares e a guerra rouba os braços que fazem falta à agricultura, enquanto as mães choravam a partida dos filhos para os campos de batalha havia quem trabalhasse com afinco na criação duma paróquia civil em Bustos.

Pode afirmar-se com a segurança que as fontes escritas conferem – neste caso a imprensa da época – que a questão da desanexação de Bustos da freguesia-mãe já era discutida em 1915. Prova-o uma “Carta da Mamarrosa” da autoria de Manuel dos Santos Pato, datada de 29 de Dezembro de 1915. Ao ter conhecimento que a Junta de Paróquia da Mamarrosa tinha referendado uma iniciativa da Câmara para que os impostos aumentassem 15% (votaram contra esse agravamento as Juntas democráticas de Oiã e do Troviscal e a favor as de Palhaça, Oliveira do Bairro e Mamarrosa) o futuro redactor e director do Alma Popular considerava tratar-se de uma verdadeira extorsão de dinheiro ao povo, que tão necessário era para prover as suas necessidades quotidianas.

A mesma Junta deliberara também contrair um empréstimo de cinco contos, destinado à construção de uma ou duas casas de escola em Bustos. Constava até, na altura, que parte dessa verba poderia vir a ser desviada para a construção de uma torre, pertença de um particular (seria o visconde de Bustos?) na qual estaria a ser utilizado trabalho braçal da Junta da Mamarrosa ou mesmo da Câmara.

A parte verdadeiramente curiosa desta notícia vem logo a seguir: a consumarem-se essas medidas, o povo teria de contribuir durante muitos anos com elevadíssimas quantias para pagamento dos juros e amortização da dívida contraída. Sustentava Manuel dos Santos Pato que a situação se agravaria se viesse a dar-se o caso de, “brevemente, ser criada uma paróquia civil em Bustos”, o que para ele seria fácil. O raciocínio era simples: logo que Bustos conseguisse a separação, quem teria de pagar os cinco contos e respectivos juros seria o ramo da Mamarrosa, unicamente. Não era por falta de amor à sua terra que Manuel dos Santos Pato parecia discordar da criação das casas da escola em Bustos: era por respeito ao povo da Mamarrosa, discordando que no futuro viesse a suportar sozinho todas as despesas. Por isso dizia estar-se perante “uma situação iníqua e vexatória”.[55]

O núcleo duro que trabalhava na desanexação era constituído por republicanos democráticos. Apesar da oposição declarada do Visconde, consideravam tratar-se de uma medida justa. Bustos era um lugar com importância suficiente para ter direito à independência. Entregaram para esse fim um abaixo assinado com muitas assinaturas ao deputado pelo círculo de Aveiro – Dr. Marques da Costa – que deveria apresentar com brevidade o projecto no Parlamento. Os republicanos da Mamarrosa, talvez por solidariedade política, não deixavam de aplaudir a iniciativa: “Pôr-se-ia assim um dique às antigas rixas pessoais e políticas tão frequentes entre os dois povos”.[56] Se tudo corresse de feição, Bustos teria a almejada autonomia e a Mamarrosa, embora freguesia pequena em território e de escassa população, ficaria com a certeza de que os seus rendimentos paroquiais jamais seriam desviados para outros fins por mãos menos escrupulosas.

Também se projectava para o lugar da Quinta Nova, em 1916, uma estação telégrafo-postal. A dinamização da iniciativa pertencia à comissão política do Partido Republicano Português, já que a Câmara e a Junta de Freguesia da Mamarrosa permaneciam “no mais condenável indiferentismo e letargia”.[57] Trabalhava-se em várias frentes para a dignificação e o progresso de Bustos. Tudo numa altura em que uma nova lei passava a designar por Juntas de Freguesia as corporações administrativas que até essa data se chamavam Juntas de Paróquia. Essa lei foi publicada no Diário do Governo de 23 de Junho de 1916 e contém grandes alterações aos códigos administrativos então em vigor.

Em 1917 o problema da separação continuava na ordem do dia. Anunciava-se para 26 de Agosto um referendo para desanexar da Mamarrosa o ramo de Bustos. Era uma aspiração “de há muitos anos” que ao povo da Mamarrosa “não desagrada”.[58] O resultado do referendo mostrou-se favorável à constituição da nova paróquia civil: “Não houve oposição, e na urna entraram 125 listas”[59].

CorrespondênciaÀ data em que o referendo teve lugar vigorava o Código Eleitoral de 1913 que restringia drasticamente o direito de voto. Excluía todas as mulheres, todos os analfabetos e ainda as forças militares e militarizadas. A taxa de analfabetismo rondava então os 70%, o que significa que em meios rurais como eram Mamarrosa e Bustos seria ainda mais elevada. Pode assim concluir-se que a população recenseável se quedaria por valores irrisórios, quando comparados com um verdadeiro sufrágio universal. Teria o resultado sido o mesmo se toda a população pudesse votar? Quando Bairrada Livre refere que no referendo não houve oposição o que é que isso significa? Que toda a gente estava de acordo com a desanexação, incluindo o Visconde e os seus inúmeros acólitos monárquicos? E as 125 listas (votos) que percentagem representam no total da freguesia da Mamarrosa? A resposta a estas questões pode ajudar a encontrar a chave explicativa para as dúvidas que ainda subsistem: entre o resultado do referendo e o memorável dia 18 de Fevereiro de 1920 medeiam mais dois anos e meio. Porquê? Tempo necessário para remover os muitos escolhos que se atravessaram no caminho? Se sim, que obstáculos intransponíveis eram esses?

Ao que parece Jacinto dos Louros dava em 1918 a independência como um dado adquirido. Que indicações seguras lhe permitiam afirmar isso? Mau grado estas interrogações, o resultado do referendo deu a Bustos uma vantagem imediata: logo após o referendo os dois ramos passaram a ter tesoureiros autónomos e as sessões da Junta também passaram a realizar-se em Bustos.[60]

Em Janeiro de 1920 o jornal Gente Nova, órgão e porta-voz da Plêiade Bairradina, anuncia a criação da freguesia de Bustos e elogia os esforços empreendidos pelo deputado Dr. Costa Ferreira, de Oliveira do Bairro. A área da nova freguesia foi destacada da área da Mamarrosa, reconhecendo-se “a separação moral dos dois povos entre os quais parecia desde há muito haver uma acentuada rivalidade”.[61] A Lei n.º 942, de 18 de Fevereiro de 1920, consagrou legalmente a freguesia e a data passou a ser festejada como o “dia” de Bustos.

Criação da freguesia de Bustos

Para 9 de Maio de 1920 foram marcadas eleições para as novas Juntas de Freguesia de Bustos e da Mamarrosa. Uma semana antes do acto eleitoral já se dava como praticamente adquirido que não haveria oposição às listas apresentadas pelo Partido Republicano.[62] E assim viria a acontecer. Na Mamarrosa os monárquicos e seus aliados, entre os quais se incluíam republicanos conservadores, ainda tentaram entrar na contenda contra os democráticos mas acabariam por desistir à boca das urnas. Em Bustos não houve oposição aos candidatos apresentados pelo Partido Republicano. Ao concorrerem à Junta pessoas que tiveram um papel relevante na desanexação de Bustos da Mamarrosa, dificilmente o resultado poderia ser outro. A euforia da “independência” ainda transbordava de muitos corações e o povo não poderia dar o seu voto a outros que não os republicanos democráticos. Até porque sabia bem quem na sombra tinha manobrado para que a separação não se desse.

Eleições

Para a história fica a constituição dessa primeira Junta: Jacinto Simões dos Louros, Duarte Nunes Cipriano, Manuel Francisco Domingues Júnior, Manuel dos Santos Rosário e Manuel da Silva Novo (efectivos); Diamantino da Silva Tarrafo, Daniel Francisco Rei, Manuel Nunes Mota, Artur Baptista e Sebastião Granjeia Martins (substitutos).[63]

JuntaEstava escrita uma página de ouro da história de Bustos. Jacinto dos Louros e Manuel dos Santos Pato ganharam o direito a inscrever o seu nome na galeria dos notáveis da freguesia. Homens que são hoje ouro de lei para os seus conterrâneos, que deles receberam e beberam o exemplo do amor à terra e o apego à memória do berço.

(Texto inserido em Proclamação da República – de Lisboa a Oliveira do Bairro, Edição de Belino Costa, Lisboa, 2010, pp. 75-91, no âmbito das comemorações do centenário da I República Portuguesa).


 

[1] O Nauta, n.º 193, 16.07.1908. O seu director e proprietário era o ajudante de farmácia Procópio de Oliveira.

[2] Ecos do Vouga, n.º 104, 01.10.1910, p. 1.

[3] O Nauta, n.º 194, 23.07.1908, p 3. É a partir desta data que o jornal passa a publicar notícias da Bairrada, mas ocupando-se principalmente do concelho de Oliveira do Bairro, ode o seu director tinha amigos e se deslocava com frequência.

[4] Vitalidade, n.º 713, 12.12.1908, p. 3.  O jornal era dirigido por Acácio Vieira da Rosa (1871-1955), conhecido jornalista aveirense durante os últimos anos da Monarquia,  amigo íntimo de monárquicos como Jaime de Magalhães Lima e Luís de Magalhães.

[5] O Nauta, n.º 216, 07.01.1909.

[6] Idem, n.º 200, 03.09.1908.

[7] Idem, n.º 300, 13.10.1910.

[8] Idem, n.º 305, 03.11.1910.

[9] O Ideal, n.º 89, 19.11.1910, p. 3.

[10] O Democrata, 25.11.1910. Ver também O Nauta, n.º 307, 01.12.1910.

[11] Albano Coutinho nasceu em Lisboa em 5 de Dezembro de 1848. Iniciou-se no jornalismo aos 18 anos, escrevendo folhetins na Gazeta de Portugal. Em 1872 fez a sua profissão de fé política na República Portuguesa, que se publicava em Coimbra. Colaborou depois na Democracia. Foi um dos signatários do primeiro manifesto que precedeu a fundação do Centro de Lisboa (1876). Para mais dados biográficos ver Jornal da Bairrada, n.º 285, 07.04.1962).

[12] “Comício em Bustos”, O Ideal, n.º 105, 11.03.1911, p. 3.

[13] Manuel Homem de Melo da Câmara (1866-1953), 1.º conde de Águeda, formado em Direito, grande proprietário e jornalista. Foi governador civil de Aveiro (1906 e 1908-1910), sucedendo a seu pai Albano de Melo Ribeiro Pinto, e deputado progressista. No período republicano foi senador monárquico durante o sidonismo (1918) e Presidente da Câmara Municipal de Águeda (1923-1925). Ver Fernando  Moreira (Organização, Introdução e Notas), José Luciano de Castro. Correspondência Política (1858-1911), Lisboa, Quetzal Editores, 1998, p. 568, nota 25.

[14] Fernando Farelo Lopes, Poder Político e Caciquismo na 1.ª República Portuguesa, Lisboa, Editorial Estampa, 1993, pp. 43 e 45.

[15] Idem, p. 41.

[16] João Chagas, citado por Luís Vidigal, Cidadania, Caciquismo e Poder, Lisboa, Livros Horizonte, 1988, p. 63. Basílio Teles, seguindo o mesmo raciocínio, acrescentava que um regime republicano «só os genuínos republicanos são ca­pazes de defender, garantir e honrar; a interferência nele de monárquicos, de supostos con­versos ao novo credo, não faria mais do que inquiná-lo». Idem, ibidem.

[17] Basílio Teles, As Ditaduras. O Regime Revolucionário, Coimbra, Atlântida, 1975, p. 24.

[18] “Os falsos republicanos”, O Ideal, n.º 120, 23.06.1911, p. 3.

[19] João Chagas, Cartas Políticas, segundo Luís Vidigal, obra cit., p. 65.

[20] Campeão das Províncias, n.º 6129, 17.01.1912, p. 1; idem, n.º 6238, 19.02.1913, p. 1.

[21] Idem, n.º 6101, 07.10.1911, p. 1. Além de padre Abel, entre os detidos contavam-se padres António Seabra da Mota e Manuel José Ferreira (Anadia); António Morais da Silva Gaio (Mealhada); José Augusto de Sousa Maia (Oliveira do Bairro); Maria Rosa de Jesus, Umbelina Rita de Jesus e o tipógrafo João da Silva Pereira (Oiã); António Rodrigues de Carvalho, Manuel Luís Pereira, Albino Nogueira, Fernando Ruela Cândido, padre Manuel Lourenço Júnior, Manuel Ferreira Rolo, Augusto Ribeiro,, sargento Manuel Ferreira Nogueira, Manuel Rodrigues Sereno, Alberto António Henriques, Dr. Joaquim Carvalho e Silva, Guilherme Ribeiro Guerra, Dr. Fernão Côrte-Real da Fonseca, padre Óscar de Aguiar, Manuel Henriques Rosado e António da Silva Brinco (Águeda). O destino dos detidos era o forte de Caxias, mas alguns transitaram posteriormente para o Limoeiro.

[22] Idem, n.º 6103, 14.10.1911, p. 1.

[23] O Ideal, n.º 136, 14.10.1911, p. 3; O Democrata, n.º 191, 13.10.1911, p. 4.

[24] Maria Lúcia de Brito Moura, A Guerra Religiosa na Primeira República, Lisboa, Editorial Notícias, 2004 [1.ª Edição], p. 295.

[25] Idem, p. 305.

[26]As associações cultuais eram “corporações laicas a quem incumbia a administração dos bens retirados à propriedade da Igreja, bem como da própria vida religiosa das paróquias, cabendo-lhes, por exemplo, regular os emolumentos ou benesses a oferecer aos eclesiásticos pelos fiéis, a nomeação de sacristães, gerir as Igrejas ou residências eclesiásticas, etc. Para cúmulo, vedava-se aos eclesiásticos a participação na administração e direcção das cultuais” (Manuel Braga da Cruz, As Origens da Democracia Cristã e o Salazarismo, Lisboa, Editorial Presença, 1980, p. 249, nota 15).

[27] “Carta de Oliveira do Bairro”, Bairrada Livre, n.º 207, 19.12.1914, p. 3.

[28] Rui da Cunha e Costa era solicitador encartado e tratava de assuntos forenses, comerciais e civis. Tinha escritório aberto na Rua de Manuel Firmino, n.º 5, em Aveiro.

[29] Bairrada Livre, n.º 112, 22.02.1913, p. 2.

[30] Campeão das Províncias, n.º 6238, 19.02.1913, p. 1.

[31] O Farol da Liberdade, n.º 7, Abril de 1920. Agradeço a Arsénio Mota a indicação desta notícia.

[32] “Os acontecimentos da Mamarrosa”, Bairrada Livre, n.º 121, 26.04.1913, p. 2.

[33] João Francisco Moreira foi pároco na Palhaça de 1894 a 1905. Ver José Martins Belinquete, “Alguns aspectos da vida religiosa da freguesia da Palhaça ao longo da sua história”, in Freguesia da Palhaça. Contribuição para a sua Monografia. Publicação do Centro Paroquial da Palhaça, 1977, p. 37. Em 1910 era prior da Mamarrosa. Esteve preso por suposto envolvimento nas incursões monárquicas que tentaram derrubar a República. Libertado em 1912, abandonou a Mamarrosa e veio de novo residir para a Palhaça.

[34] O Democrata, 23.12.1910.

[35] Bairrada Livre, n.º 157, 03.01.1914, p. 1.

[36] Bairrada Livre, n.º 128, 14.06.1913, p. 2.

[37] Bairrada Livre, n.º 158, 10.01.1914.

[38] Armor Pires Mota, Oliveira do Bairro. Em Busca da História Perdida, Edição da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, 1997, pp. 37-38.

[39] Bairrada Livre, n.º 196, 28.03.1914, p. 1.

[40] Idem, n. 155, 20.12.1913, p. 3.

[41] Idem, n.º 173, 25.04.1914, p. 3.

[42] Manuel dos Santos Pato, “Carta da Mamarrosa”, Bairrada Livre, n.º 189, 15.08.1914, p. 2.

[43] Idem, ibidem.

[44] Idem, n.º 172, 18.04.1914, p. 3.

[45] Gomes Júnior, “Cartas de Perto”, Bairrada Livre, n.º 175, 09.05.1914, p. 3; Manuel dos Santos Pato, “Carta da Mamarrosa”, Bairrada Livre, n.º 189, 15.08.1914, p. 2.

[46] “Carta da Mamarrosa”, Bairrada Livre, n.º 199, 24.10.1914, p. 3.

[47] Bairrada Livre, nº 176, 16.05.1914, p. 3.

[48] Manuel dos Santos Pato, “Uma carta”, Bairrada Livre, n.º 179, 06.05.1914, p. 2. Esta carta foi também endereçada à redacção do Povo de Águeda.

[49] Manuel dos Santos Pato, “Carta da Mamarrosa”, Bairrada Livre, n.º 189, 15.08.1914, p. 2.

[50] “Impressões políticas”, Bairrada Livre, n.º 156, 27.12.1913, p. 1.

[51] Bairrada Livre, n.º 303, 14.10.1916, p. 1.

[52] “A eleição de amanhã”, Bairrada Livre, n.º 306, 04.11.1916, p. 2.

[53] “Em Oliveira do Bairro”, idem, ibidem.

[54] “Monárquicos à solta”, idem, n.º 316, 13.01.1917, p. 2.

[55]  Manuel dos Santos Pato, “Carta da Mamarrosa. Verdades amargas” ( 29.11.1915), Bairrada Livre, n.º 261, 01.01.1916, pp. 1-2.

[56] Manuel dos Santos Pato, “Carta da Mamarrosa”, Bairrada Livre, n.º 278, 29.04.1916, p. 2.

[57] Manuel dos Santos Pato, “Carta da Mamarrosa”, Bairrada Livre, n.º 280, 13.05.1916, p. 3.

[58] Bairrada Livre, n.º 346, 11.08.1917, p. 3.

[59] Idem, 01.09.1917. Agradeço a Belino Costa a cedência desta notícia sobre o resultado do referendo.

[60] Agradeço a Belino Costa a disponibilização destas informações.

[61] Gente Nova, Ano I, n.º 34, 31.01.1920.

[62] Alma Popular, n.º 41, 01.05.1920.

[63] Idem, n.º 42, 15.09.1920. Em 1907 Jacinto dos Louros era o representante em Bustos das afamadas bicicletas marca “Swift” (O Nauta, n.º 148, 22.08.1907, p. 2).