Primeiro levaram o Nicolau Santos e a economia ficou sem poesia. Importei-me – porque percebo tanto de economia como Jesus Cristo de finanças – mas não disse nada. Assim como os poemas atraem e iluminam outros poemas, a poesia que o Nicolau divulgava era o íman que me atraía para uma ou outra leitura do suplemento do Expresso.
Sem poesia, continuam por lá os evangelistas do mercado, a ruminar o hermetismo dos swaps, a aridez das acções e obrigações, as imparidades. A arengar sobre o fetiche da produtividade, as empresas de rating, o leasing, as golden share, a inflação e a deflacção e sei lá o que mais. Como escreveu Ana Cristina Leonardo numa das suas deliciosas crónicas ou textos de circunstância: fosse o mundo um sítio recomendável, um poeta valeria decerto mais que um alqueire de banqueiros.
Depois, levaram o cinema, que nos era servido na bandeja competente de Manuel S. Fonseca. Crónicas saborosas e recheadas de pormenores que nos escapam, trabalhos de bastidores, curiosidades no relacionamento entre actores e actrizes dentro e fora do plateau, e, não menos importante, a contaminação entre a sétima arte e outras artes de que é subsidiária: a pintura, a música e a fotografia. Voltei a não dizer nada.
Agora levaram a música que nos dava o Jorge Calado. A serva da palavra, no dizer de Monteverdi. Calado dava-nos ópera (uma derivação do teatro, através da música), música clássica, compositores. Foi-se a “tabela periódica” e, segundo li há pouco, também a “desarmonia das esferas”, de João Lisboa. E como se tudo isto (e isto não é tudo!) não bastasse, levaram nessa enxurrada a Ana Cristina Leonardo.
Desta vez quero dizer qualquer coisinha, trocar umas palavras sobre o assunto. A sensação que fica é que isto anda tudo ligado. Para lá da frontalidade que rejeita as meias-tintas, da irreverência e do desassombro que recusa os rodriguinhos e os paninhos quentes, do humor fino que habitualmente derramava nas crónicas do jornal, Ana Cristina Leonardo deu-me algumas preciosas indicações para calcorrear os trilhos sinuosos da literatura. Apenas dois exemplos, de que sou tributário: a descoberta do fascinante Albert Cossery, que me levou à compra de toda a obra (8 livros, mais um de conversas com o autor) após ler Mendigos e Altivos e Mandriões no Vale Fértil; e também a descoberta de um livro imperdível: As Meninas da Numídia, de Mohamed Leftah, uma narrativa sublime do ambiente sórdido dos bordéis e da vida desgraçada das mulheres que os animam e dos homens que os frequentam, prova provada que “os santos nem sempre desdenham de bordéis antes de subir ao altar” (S. Sanchez, Magazine Littéraire).
Não sei se a poesia que o Nicolau nos dava é celebração da vida, ou nos envolve em cumplicidade, ou ensina a cair, como dizia Eduardo Prado Coelho; não sei se a música que se desprendia das crónicas do Jorge Calado é a arte maior, pois, no que se refere às artes em geral, gosto de tudo o que nelas me toca e faz vibrar, como numa harpa eólica; não sei se o cinema, enquanto máquina de fabricar sonhos e dar imagem à palavra e à música, dá o que a vida tira, como pensa Manuel Fonseca; não sei se a literatura que Ana Cristina Leonardo nos oferece está sempre comprometida com a beleza, se nos ajuda a viajar sem sair do lugar, ou até se é capaz de salvar vidas.
Sei que o valor da poesia, da música, do cinema e da literatura não se medem pelo potencial económico que geram, nem devem ser rasuradas com o pretexto de uma remodelação gráfica, pois funcionam como um precioso antídoto contra o utilitarismo estreito, a barbárie do útil e do lucro desmedido. E sei, de fonte segura, que depois destas mudanças no Expresso me invade um sentimento de perda. Se a vida é metanoia – mudança de opinião, de atitude mental – não é menos certo que superar é destruir e conservar. E a identidade de um jornal não se reforça quando se deita fora, com o pretexto da renovação, a herança daqueles que deram o seu melhor para ajudar a construí-la.
É certo que o Expresso continua a dar-nos análise política, música, pintura livros e filmes, à mistura com gastronomia, vinhos, restaurantes, design e moda. Mas tudo aquilo parece navegar, de forma crescente, nas águas chilras do conformismo. Tudo cada vez mais certinho e alinhado no mesmo compasso. Numa palavra: a deslizar, num feixe de opiniões semana a semana mais convergentes, para o institucional (que, aliás, nunca deixou de ser a sua marca de referência). Há agora menos gente a remar contra a maré, a lançar pedradas no charco capazes de acordar os gansos do Capitólio mediático, a criar labaredas de desassossego. Há menos indignação e mais palavrinhas mansas; mais “pássaros empalhados” e menos golpe de asa. Sempre o Quase, do Mário Sá-Carneiro, a martelar-nos os ouvidos.
A grande razia parece ter-se abatido sobre a Revista: também Diogo Ramada Curto e João Mário Silva deixam de marcar presença. É a Revista que (ainda) me leva a comprar o jornal. Ainda por lá fica o Tolentino (cardeal), mas como já se foi o Nicolau, impossível termos o Nicolau Tolentino (o da poesia e das sátiras). E continua o Pedro Mexia. Embora a nossa necessidade de consolo seja impossível de satisfazer, alegremo-nos: o Mexia, felizmente, consegue ser muito mais que o pretérito imperfeito do verbo mexer.
Se, depois desta vassourada, a administração ou a direcção do jornal, numa tarde de pouca veia, nos levar também o Pedro Mexia, aí é garantido: não mexo mais no bolso e poupo 4 Euros todos os sábados. Já faltou mais…
Mais uma vez o meu primo e amigo Carlos Braga faz um escrutínio meticuloso da ceifa que tem sido feita no Jornal Expresso com uma análise rigorosa das características e particularidades de cada ceifado . Ora eu que sou um leitor religioso do Expresso chegando por vezes a acumular duas ou três edições por acabar de ler devido à minha falta de tempo acabando mais tarde por fazê-lo. Confesso que me fui apercebendo do “desaparecimento ” de alguns dos colunistas referidos mas a minha capacidade de análise dos pormenores fica intelectual fica longe da do meu primo e por isso sinceramente nunca cheguei a avaliar integralmente a dimensão da ceifa ….até agora que li e reli atentamente esta exposição . É pena que o Carlos não tenha enviado este artigo para a secção de cartas dos leitores do Expresso que ao ser publicada (?????) teria de certo bastante impacto .E deveria mesmo ser publicada pois a sua qualidade não fica absolutamente nada a baixo da de alguns colunistas habituais daquele jornal .
Meu caro primo: agradeço a leitura atenta do texto e a generosidade do comentário. Claro que é preciso dar o devido desconto à dilatada veia encomiástica das tuas palavras. Sei que elas transportam no bojo uma sinceridade genuína, mas também acredito que elas sejam um pouco o fruto daquilo a que costumo chamar de “cegueira da amizade”. Uma amizade inteira e indestrutível, de uma vida toda, de remotíssimas e gratas lembranças. Mais do que os elogios (sempre tão efémeros) é sobretudo isso que quero reter no écran já um pouco gasto da memória. Um abraço apertado, com o afecto e a amizade de sempre.