A ceia de Natal em família é uma tradição secular, que principiou nos Judeus para solenizar os dias festivos e chegou aos nossos dias para festejar o nascimento de Jesus. Mas, enquanto no tempo dos Judeus se comia a carne do Cordeiro Pascal com pão ázimo e legumes, no nosso tempo a imolação do cordeiro assado no forno foi substituída pelo bacalhau pescado nas costas da Noruega ou nos Bancos da Terra Nova.
Esta ceia sempre foi uma refeição mais substancial que o normal quotidiano nas aldeias da nossa região. Há sempre nela aquele prato tradicional e indispensável do bacalhau cozido, cujas postas são escolhidas e cortadas ao longo da espinha dorsal dum alentado garnisé e que, bem demolhadas, constituem a delícia dos apreciadores do fiel amigo que tão raramente aparece, agora, são e escorreito nas mercearias do nosso apagado burgo.
Nas cidades, nas vilas e nas aldeias, sempre se festejou o Natal, com a ceia da véspera, em que a família se reúne em volta de uma fogueira acolhedora. Mas ao passo que nas cidades e vilas andam as criadas a servir os seus patrões, engalanadas em punhos de renda e alva crista bordada, nas aldeias, uma enorme travessa redonda, farta e recheada, é posta sobre a mesa da cozinha, de onde pais e filhos comem espetando o garfo nos alimentos que se encontram na linha recta da sua posição à mesa, sendo-lhes absolutamente proibido invadir a área ocupada por outrém, para não tercejarem lanças em posição diagonal que poderia produzir um conflito familiar de graves consequências, aleivosas para a paz santa da família que se ama em liberdade e respeito.
Conta-se com uma certa graça que numa dessas ceias de Natal, em casa de um dos mais abastados proprietários ali do nosso vizinho lugar do Cercal, se passou a cena seguinte: depois de todos estarem sentados à mesa aguardando o apetitoso bacalhau, as claras batatas arran-banner, as tenras couves da horta, cortadas momentos antes, foi colocada entre todos, ainda fumegante, uma rica travessa de postas de bacalhau com alguns centímetros de lombo.
Em frente do chefe de família ficou uma posta que luzia pelo seu tamanho e apetecia pela sua altura, em lascas sobrepostas, como as folhas de um livro que a gente anseia por abrir, na avidez da sua leitura. O filho mais velho do casal, que cursara oito anos de liceu, não tirava os olhos daquele naco apetício e, antes que a mãe distribuísse por todos os garfos para a luta, diz o Abel, em tom de mestre-escola:
– Ó pai, a terra é redonda! E acompanha os seus conhecimentos de cosmografia agarrando nos bordos da travessa e dando-lhe uma volta demonstrativa da configuração e movimentos do planeta em que habitamos, levando para o seu lado e colocando na sua frente a posta de bacalhau que “era de gritos”. Mas o pai, inteligente e rábula, embora menos versado que o filho nos estudos dos filósofos gregos que explicaram a forma e os movimentos da Terra, mas tendo compreendido até onde queria chegar a atitude do seu filho, responde-lhe:
– Deves ter razão, meu filho, a Terra é redonda, tanto anda como desanda! E leva para o seu lado, novamente, o naco de bacalhau que deslumbrava a assistência, ante a passividade inquieta dos outros filhos que aguardavam, ansiosos, o fim do debate metafísico! Tinham caído por terra as conclusões a que chegaram Anaxímenes e Pitágoras, pois o velho Roças tinha demonstrado ao filho que a Terra tanto anda como desanda, isto é, tanto anda para a frente como anda para trás!
E nós, em face dos tempos que vão correndo e no desejo de imprimir um caminho recto e seguro aos nossos ideais e uma unidade clara a todos os nossos actos, talvez acabemos por dar razão ao velho Roças, do Cercal.
(Texto de Miguel França Martins, publicado no Jornal da Bairrada, n.º 52, de 14.02.1953).