O Vírus Entranhado — de Arsénio Mota

Vírus EntranhadoArsénio Mota acaba de juntar, à sua já extensa bibliografia (contos para crianças, crónicas e ensaios, poesia, novela, monografia) mais um livro, a que deu o título de Vírus Entranhado. E nunca, ao lê-lo, nos pareceu tão ajustada a epígrafe: primeiro estranha-se, depois entranha-se.

Tratando-se de um livro de contos, não é obra de leitura fácil, daquelas que habitualmente nos conduzem à evasão. O que sobra, no final, é a mais espessa inquietação, uma espécie de abalo sísmico interior que nos sacode da anestesia dos sentidos a que nos condenaram as modernas sociedades do consumo e da comunicação.

Atenção, pois. É preciso atender a uma linguagem toda ela carregada de sentidos, imagens e metáforas. Sem escapar – como adverte o autor – à complexa teia comunicacional onde os indivíduos, aprisionados, «se ensurdecem uns aos outros», não é possível atingir o nível mais profundo destes contos. Há que recusar uma leitura calmante dos textos, para assim atingirmos uma verdadeira gramática dos sentidos – e dos sentimentos – que esta obra nos oferece.

Então escavemos. Para lá da superfície lisa de cada texto, há que encontrar as camadas sucessivas de sentidos subjacentes, para assim se recuperar a estranheza e não a familiaridade do que é dito; para que o implícito dos textos se torne explícito e ao mesmo tempo objecto de descrição. Parece ser isso que o autor verdadeiramente nos propõe em “A explicação do buraco” (pp. 97-102), ao denunciar o mundo das aparências e da ostentação material, despido de qualquer beleza interior.

Nestes contos, o tema da comunicação (e dos seus efeitos perversos) está quase sempre (ou sempre?) presente. Comunicação com o outro, que tanto pode ser o interlocutor físico e humano como a realidade circundante, a paisagem, que também se quer ecologicamente humanizada. É isso que acontece com “Ponte franca”, porventura o texto literária e esteticamente mais conseguido. De forma às vezes imperceptível, os contos parecem estabelecer relação uns com os outros, liames de entendimento que desembocam num conjunto estruturado e coerente de significações. As divagações do autor só aparentemente não têm direcção ou objectivo. As palavras de cada texto transportam, no bojo, um evidente arsenal de intenções.

Arsénio Mota ficciona a realidade. Envolve-a em mistério, com incursões no mundo do fantástico, como acontece em “Morse de morte” (pp. 91-95). Através de múltiplos contrastes, desvenda, às vezes de forma um tanto pessimista e desencantada, as lixeiras e a podridão do nosso viver quotidiano, o estilhaçar dos afectos e identidades, dos ruídos ensurdecedores e dos silêncios que comprometem.

No primeiro conto, “O zumbido”, saltam as crostas da miséria do jornalismo, na figura dos que dobram a cerviz à curvatura de interesses arredios à profissão. Um grito de alerta contra as capelinhas instituídas, as prebendas do dia a dia e as várias sinecuras. Como que a lembrar-nos que o jornalista deve procurar a honra e recusar as honrarias, ser capaz de contornar as armadilhas da lisonja e da abdicação. Numa palavra: deve ser livre. E não são livres os que, em vez de fazer jornalismo autêntico, o usam como trampolim para atingir posições ilegítimas e por isso mesmo aviltantes.

Ao recusar a subversão dos valores sagrados do jornalismo, que as novas tecnologias vieram acentuar, há no jornalista-escritor Arsénio Mota uma espécie de desencanto idêntico ao que um dia acometeu Antero. Autor de inúmeras páginas de qualidade na imprensa do seu tempo, acabou por ser também o mais feroz crítico do jornalismo da época. Os jornalistas eram «bonzos, e não apóstolos», os editores «bárbaros» e a opinião pública um «monstro moderno» que se exprime através da imprensa, «sua boca». Também nesse tempo de mudança para o jornalismo – a fase industrial da imprensa, em que Eduardo Coelho faz do Diário de Notícias um jornal para todos – Antero denunciava que o jornal, para durar, seria necessariamente «o espelho lisonjeiro do público e não o seu severo mestre».

Em “Shopping Center” são ainda as palavras gastas, vazias de conteúdo, despidas de significado, que chamam a atenção do leitor. É notório, neste texto, o empobrecimento das relações interpessoais (sem dúvida as mais gratificantes) que acabam por sucumbir às mãos dos novos instrumentos de mediação. Urge, pois, reabilitar a palavra para tornar o futuro mais humano e solidário.

Em “O tesouro da arca” o que ressalta é a denúncia do brilho enganador dos falsos ouropéis. Um brilho que cega e pode ser fatal para quem navega nas águas do materialismo mais interesseiro. Um antiquário, outrora próspero mas por fim arruinado, transforma-se num desconhecido de si mesmo, embora ganhe consciência que a pobreza pode ser mais rica que a abundância, assim nos mostrando que muitas vezes é através do ouro que o homem começa a empobrecer.

“Toda a nudez” é também um conto lapidar, por nos remeter para a questão decisiva das tecnologias da informação no mundo actual: o seu potencial para a vigilância. Ao descrever as células individuais de paredes transparentes que aprisionam os indivíduos, dispostas em torno de um eixo central, Arsénio Mota alude objectivamente às modernas técnicas de vigilância baseadas no panóptico de Bentham e que Foucault desenvolve posteriormente em Vigiar e Punir. Este panóptico assenta numa estrutura de prisão ideal, dotada de uma torre central, onde é possível ver sem ser visto. Assim, o vigiado torna-se vigilante de si mesmo. A tecnologia moderna consistiria nisso mesmo: na capacidade que tem, enquanto dispositivo de visibilidade, de auto-punir, auto-vigiar, auto-censurar.

Por outro lado, a impossibilidade dos presos verem o vigilante representa o aspecto mais importante desta arquitectura: ela exerce um poder sobre os detidos, ao induzir neles um estado permanente de visibilidade. Em síntese, esta tecnologia reúne o poder, o saber e o controle dos corpos e dos espaços. É contra esta forma de disciplinar e normalizar os cidadãos que Arsénio Mota parece insurgir-se, numa recusa clara do “arquipélago carcereiro” de que fala Foucault. Um verdadeiro grito de alerta contra a possibilidade (cada vez mais real) de um controle totalitário dos cidadãos exercido pelas novas tecnologias da informação.

O big brother orwelliano é hoje uma realidade ameaçadora. Por isso, contra a expropriação crescente da individualidade é preciso atender aos avisos do próprio Orwell: «Não deixem que isso aconteça. Isso depende de vós». Arsénio Mota disse um dia: «Sejamos corajosamente do nosso tempo (…) não nos deixando imergir nele em completa abulia, antes discutindo alguns dos seus traços».

Em O Vírus Entranhado é possível detectar alguns dos traços marcantes do nosso tempo. O livro é fértil em descobertas, algumas naturalmente subjectivas e ao gosto da imaginação de cada leitor. Não deixe pois o leitor de as encontrar.

Verá que vale a pena.


(Texto publicado em Bairrada Cultural – Suplemento de Artes e Letras do Jornal da Bairrada/Soberania do Povo, 30.03.2000, p. 12).