O cortejo dos Reis Magos de Sorães[1] tinha larga fama nas redondezas e aglutinava sempre uma espessa multidão que afluía de todos os pontos cardeais. Os caminhos da Gândara pejavam-se de forasteiros oriundos de todos os lugares: da Tocha, de Cadima, de Murtede, de Carromeu, vinha gente de todas as idades e condições, desde as velhas de mantilha embiocada, até às cachopas de lenços garridos de ramagens e de fedelhos de palmo e meio, ranhosos até à ponta do queixo e de calças fundilhadas no posterior. Também do lado do mar vinham os gafanhões e as gafanhoas, lépidos e bailarinos nos movimentos, a quem as lombas não metiam medo. Atascando-se nos caminhos barrentos, uns, atolando-se na duna, outros, toda a gente arranjava disponibilidades e fôlego para a caminhada. E, às vezes, não faltava, mesmo, a presença de um ou outro senhor folclorista com o seu binóculo científico assestado, quando não com sua câmara fotográfica a fixar imagens
Já coisa de um mês antes, se sentia latejar em todo o povo uma azáfama ofegante na preparação das alfaias, das indumentárias, dos cenários, e na realização dos ensaios do Auto, velho e ingénuo, que haveria de ser mastigado como núcleo de entremez.
Um talhava com umas tesouras velhas ferrugentas, coroas de rei, especiosas e profusas de bicos e recortes, num retalho de folha-de-flandres arrancado à sucata do picheleiro, ou recortava, em papelão grosso, a estrela que, depois de dourada, havia de servir de guia na caminhada para a gruta de Belém; uma rapariga costurava em cetineta vermelha ou numa colcha ramalhuda, fora de uso, mantos reais que haviam de vir a ser debruados e listados com galão de cangalheiro; um labrego pintava a purpurina de oiro os velhos arreios com que se haviam de ajaezar as montadas dos magos do Oriente
O fim do mundo na pacatez de Sorães!
Poliam-se as trompas, baças do pó de doze meses e enodoadas de azebre, punha-se pele nova no bombo, rebentado no ano passado pela maceta impulsionada por músculos robustecidos pelo estímulo do briol, apetrechavam-se os clarinetes com palhetas novas para lhes valorizar o timbre, encordoavam-se as violas e os bandolins onde as aranhas tinham instalado tear para fazer as suas teias – e os ensaios botavam pela noite fora.
O encenador corrigia aqui os defeitos da pronúncia de uma personagem, além procurava sincronizar uma fala com a mímica que havia de a sublinhar, ou tentava pôr de acordo uma emoção com um gesto. Exigente no encornanço dos papéis, ai daquele que se engasgasse no meio de uma frase, ou esfumasse uma deixa por indecisão ou má pronúncia. Caía o Carmo e a Trindade quando o actor se mostrava rude ou desatento! E, de jumento para baixo, todos os insultos do dicionário lhe serviam, afoitando-se, mesmo, a incursões na gíria local, quando precisava de termos mais expressivos para os fazer desabar sobre as cabeças, vergadas de respeito, dos actores improvisados e transplantados da rabiça do arado para um trono real de papelão, ou arrancados do chão humoso e estercado para subtis incumbências angélicas sobre nuvens de algodão em rama. Mesmo às figuras do Presépio, cuja missão era, apenas, estar ali sem botar fala, as recomendações de compostura e de acordo com a função eram rigorosas e categóricas. Este ano, então, a coisa havia de ser figurada a preceito – ou que raios partissem os brios da comissão – e o cortejo teria que resultar de arromba. Ponto era que o dia estivesse bonito e que um sol doirado viesse dar a sua colaboração a tanto suor gasto para lubrificar os rodízios do êxito. O cortejo dos Reis era o cartaz de Sorães!
O Evangelista, o Avelino e o Domingos é que, desta feita, iriam figurar de magos do Oriente. Eram três labrostes alentados como bois, sobretudo o Avelino, que ia fazer de Rei Preto. De Herodes fazia o Laúdo, que tinha uma espantosa cara de facínora, onde uns olhos ameaçadores e ensombrados por um torus mais grosso e pesado que o do sinantropus, fuzilavam como coriscos corroborados por umas córneas injectadas. Grande trabalho deu esta última personagem ao ensaiador para conseguir desbastá-la da sua natural cortiça de estupidez, como convinha ao poder histriónico de quem, apesar de tudo, figurava um rei. Como um rinoceronte, o Laúdo investia, cego, derramando, vociferante, o seu papel, indemne às directivas que procuravam frenar-lhe, um pouco, o impulso cafreal.
O Evangelista lá deu um mago acetinado, mas de sabor incaracterístico como o capilé, e o Domingos, tem-te-não-caias, pelo menos obedecia às vozes de quem mandava e à batuta do maestro, enquanto o Avelino deu, por vocação, um Rei Preto “que só lhe faltava falar”, como dizia a Brízida. No dia aprazado lá estava tudo a postos! Debaixo do rei Baltazar, de cara enfarruscada como um tição, o cavalo, com mais lã do que um carneiro, parecia ter a coluna vertebral selada, vergado, como estava, sob o peso da outra alimária; e os dois restantes, muito comedidos, muito senhores do seu papel, enquanto seguravam as rédeas com a mão esquerda, iam cofiando com a dextra umas incríveis barbas, baças e penteadas, feitas de rabo de burro. Atrás seguiam três sendeiros a botar figura de camelos e ajoujados sob o peso das oferendas, as mais fantásticas, as mais inverosímeis, e destinadas a fazer as vezes da ânfora do incenso, do cofre do oiro e da urna da mirra. Finalmente, estendia-se ao longo da estrada esburacada e lamacenta da aldeia um cortejo interminável de pastorinhas e pastorinhos com seus tabuleiros e canastras, com suas gaiolas e condessas, ou tangendo carneiros brancos, afogados em lã, e tímidas cabrinhas de pêlo escorrido, não contando com uns caçadores, tão hirtos que pareciam engomados, levando pendentes das trelas patos e galináceos vivos que se espanejavam esbaforidos.
Fuzilavam no centro dos tabuleiros de madeira, forrados com papéis coloridos, garrafas cintilantes de vinho branco e de jeropiga, de cujos gargalos partiam para os cantos festões de bilharacos e figos passados enfiados em arames; rescendiam as galinhas assadas, tostadas e loiras, com suas epidermes de poros arrepiados, como que esfregadas com urtigas, e berravam em bandejas de latão bolos recobertos de açúcar com decorações quase mouriscas de confeitos multicolores; sussurrava o milho amarelo nos alqueires e alvejavam toalhas, engomadas e emolduradas de renda, debaixo de leitões assados no espeto e com as maxilas cerradas num trismo sardónico sobre laranjas gritantes de cor e de acidez.
E, à cabeça das garotas, como que a corroborar o especioso dos penteados, abóboras-meninas, bilobadas como cabaças e quase rubras no seu intenso alaranjado, ou taleigos imaculados de brancura a impar de farinha pelo laço do nagalho. Tudo aquilo que de mais bizarro se possa imaginar em matéria de oferendas era conduzido para o presépio do Menino por aquele cortejo guiado pela estrela, de papelão doirado, erguida, ao alto, na ponta de uma cana, por um anjinho adornado com umas descomunais asas, profusas de rémiges, muito mais zoológicas do que as de qualquer ganso petulante e fanfarrão.
O cortejo encaminhou-se para o Presépio, armado num desvão do adro, aconchegado sob a copa espessa e acolhedora de um cedro centenário… E, então, as régias personagens desmontaram, muito solenes, os servos descarregaram os burros, sucedâneos dos camelos, e os três Magos, dobrando os joelhos, e baixando até ao chão as coroas de lata, depuseram junto do estábulo, em vez da ânfora do incenso, o pipo grávido de vinho, em vez do cofre do oiro, o alqueire coagulado de milho doirado, e, em vez da urna da mirra, a carne de porco nacarada e enterrada em sal mais branco do que a neve pura.
O Menino Jesus, de barro, do tamanho de um menino verdadeiro, com seus olhos muito azuis e seu cabelo como estrigas, ficou estático e sereno nas palhinhas humildes, sob o bafo quente de um jumento e de uma vaca ao natural, enquanto, sobre o seu corpinho róseo, uma Virgem e um S. José de Sorães deixavam cair dos olhos, embevecidos, lágrimas de maná. Quem olhasse de longe julgaria ter na frente o presépio de um barrista do século XVIII, com suas figurinhas de argila, onde nem sequer faltava o desbotado e a patina da policromia que se soletrava, facilmente, nas indumentárias usadas, pela quinquagésima vez, nestes cortejos de Sorães.
Mas nem tudo, naquele ano, se passou como estava escrito nas rúbricas do Auto…
Na verdade, na varanda do seu palácio de estafe, Laúdo, o façanhudo Herodes, de mãos atrás das costas, passeava, de um lado para o outro, exteriorizando uma sanha rábica, que transbordava para fora do texto e da ordenança da encenação. Os Magos não lhe traziam, como era da promessa, notícias daquele Menino que a sua tirania queria degolar para extinguir a chamazinha de justiça e liberdade que nascia para os escravos, para os pobres e para os tristes.
De vez em quando, numa agitação espasmódica, subia os três degraus do estrado para se sentar no seu trono de papelão, onde se chegavam reverentes dois servos, um com um cântaro de meio almude, outro com uma taça de lata numa bandeja, para refrescarem a secura do seu real amo. E tantas foram as vezes que a sede do Laúdo esgotou a taça, já tinta de roxo até ao pé, que os efeitos do vinho se começaram a produzir e a revelar. O semblante entrou de avinagrar-se-lhe e de endurecer, e a sua agitação a mostrar-se com evidência de mais para ser fingida. Amiúde, parava no meio do tablado e desembainhava palmo e meio de catana da sua baínha de lata. Depois, tornava a embainhá-la e carregava, ainda mais, o sobrolho em viseira, pronunciando palavras ininteligíveis. E, a certa altura, ouviu-se mesmo, com nitidez e contra a letra da peça, sair-lhe da boca avinhada uma frase que fazia dissonância:
– Do filho do meu pai nunca ninguém fez pouco; ou aqueles filhos duma cadela me trazem notícias do garoto, ou vou eu mesmo procurá-lo!…
O contra-regra interveio do lado para chamar o Laúdo ao papel, mas a resposta foi pronta:
– Deixar borrar as barbas, à frente do povo todo, é que eu não deixo, nem a fingir!
Houve risadas e dichotes na assistência. A comissão fervilhou de zelo e o próprio padre da freguesia disse qualquer coisa de xaroposo para neutralizar a fúria acética do Herodes que, apesar de tudo, continuou a remorder:
– Se queriam alguém para botar figura de bacoco, não me batessem à porta a mim; se esses reizotes de trampa não me trazem as prometidas notícias do fedelho, irei eu catá-lo, nem que seja aos quintos…
E, se bem o disse, melhor o fez. Perante o pasmo da multidão, o Laúdo deu um salto bestial abaixo do varandim, ergueu no ar a catana rebrilhante e correu, furioso, direito ao Presépio para degolar o Menino de barro.
Não foi possível encontrar razões para o deter: nem a tradição, nem o Auto, nem a autoridade do ensaiador, nem os apelos da comissão, nem as palavras mansas do padre, nem mesmo o testemunho dos Evangelhos!…
Só a força bruta de três labregos, de braços mais grossos do que gibóias, conseguiu salvar da fúria daquele Herodes de entremez o Menino-Jesus venerado pelo povo há uma carrada de anos.
Mas, esta surpresa, que veio embater contra a expectativa pacóvia da assistência, não ficou por aqui. Os filhos do Laúdo, vendo o pai agarrado por aqueles três brutamontes, foram levar-lhe o socorro que entenderam dever-lhe como filhos. Foi o rastilho para se envolver meio mundo à porrada – o que, trocado em miúdos, se traduziu num hematoma do tamanho de um ovo de galinha no coronal do rei Baltazar, em duas arquinhas partidas no rei Herodes e num beiço rachado no Anjinho da Estrela…
Por este preço logrou a Sagrada Família fugir para o Egipto, naquele Natal de Sorães…
António Frederico Vieira de Moura (1909-2002). Natural de Vagos. Licenciado em Medicina e em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra. Deputado eleito pelas listas do Partido Socialista na III e IV legislaturas. Colaborador de jornais e revistas, era um conferencista e comunicador brilhante. Dele disse Miguel Torga, amigo dilecto: “ser de eleição (…) pragmático e sonhador, ácido e sentimental, solitário e convivente com horas de formiga e horas de cigarra e sempre solidário e compassivo” (Litoral, 12.04.1979).
[1] Este conto tem a particularidade de se desenrolar no extinto concelho do Couto da Vila de Sorães (actual freguesia de Santa Catarina, do concelho de Vagos) que nas Memórias Paroquiais de 1758 incluía o lugar de Bustos, parte do Sobreiro e o lugar da Barreira. Esta narrativa de Frederico de Moura foi extraída do blogue de Ricardo Esteves “Crónicas Portuguesas”. O conto está incluído em Pulso Livre, obra editada pela família do autor, com textos inéditos e outros já publicados. Está também incluído em “Natal”, edição do Instituto Luso-Fármaco, 1967.