Abro uma excepção e reproduzo, parcialmente, um texto já aqui publicado em 29 de Outubro de 2017. O motivo por que o faço é simples: o tema dos velhos (primeiro transformados em idosos e, mais recentemente, em séniores) continua na ordem do dia e não pelas melhores razões: em tempos de pandemia, morre-se muito nos lares e há quem tudo faça para legitimar a continuidade do confinamento dos velhos, com o recurso estafado a argumentos sanitários (tomados de empréstimo aos cientistas) e à proclamada indisciplina dos maiores de 65 anos.
Querem exemplos? Bastam dois, de pessoas com responsabilidades acrescidas na política e na ciência. Ursula Von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, foi das primeiras a alertar para a necessidade dos velhos (muitos deles já privados da visita de familiares) terem de continuar confinados até se encontrar uma vacina, o que pode demorar pelo menos um ano. Em entrevista ao Expresso (edição de 18.04.2020), Maria Manuel Mota, reconhecida cientista portuguesa, fala-nos de um vírus “relativamente bonzinho”, porque praticamente não afecta crianças, adolescentes e jovens adultos, mas sobretudo grupos de risco, pessoas com mais de 70 anos ou portadoras de outras complicações de saúde. Daí – conclui – a necessidade de se adoptarem medidas colectivas para proteger estas pessoas, sem estagnar a vida daqueles de quem depende o futuro: os mais jovens, para quem é preciso arranjar maneira de continuarem a viver a sua vida.
Nestes discursos – o da política e o da cientista – parece alojar-se uma convicção que a roupagem linguística tenta escamotear: a de que o novo normal só é possível com o prolongado isolamento dos mais velhos, precisamente aqueles que, afinal, já pouco ou nada acrescentam à sacrossanta produção de bens materiais. Dá que pensar: como é que pessoas tão representativas da política e da ciência parecem não se dar conta dos arrasadores efeitos psicológicos que um confinamento prolongado é capaz de gerar? Não, não é apenas o contágio pelo vírus que pode acabar de vez com os mais velhos: há outros vírus não menos letais: o mergulho na depressão, a silicose do abandono, o roubo da alegria, a queda no poço sem fundo da solidão.
No livro O Político e o Cientista, Max Weber mostra-nos as semelhanças e as diferenças entre estas duas profissões e vocações distintas, aconselhando a que não se misturem nem invadam as respectivas esferas de competência. Apesar de nesta crise – que, sendo sanitária, continua a ser predominantemente política – já haver quem defenda o primado dos cientistas sobre os políticos, prefiro manter-me fiel ao pensamento de Weber nesta matéria e proclamar: a Deus o que é de Deus, a César o que é de César (a ciência, responsável pelo aumento da esperança média de vida, incute cada vez mais esperanças de eternidade e acaba por ser vista, aos olhos de muitos, como uma religião, uma deusa a quem muitos rendem cada vez mais culto). Difícil é optar entre ciência sem consciência ou política sem dimensão ética. Como dizia o filósofo Roger Garaudy em Apelo aos Vivos, sem dimensão transcendente a ciência converte-se em cientismo (superstição que separa a ciência da sabedoria) e sem dimensão ética a política transforma-se em tecnocracia. Entre as duas, venha o diabo e escolha.
Numa outra obra célebre, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, o sociólogo alemão sustenta que a crescente racionalização do mundo – elevada a princípio unificador e organizador da vida social – só pode conduzir a uma crescente ausência de liberdade (estamos a falar de uma antinomia: da liberdade negada pela racionalidade) e a uma “evaporação do espírito”. Esta evaporação do espírito de que falava Max Weber está a dificultar-me o simples acto de respirar (S.O.S., S.O.S., um ventilador!) sempre que alguém fala da necessidade de prolongar o confinamento dos velhos. Eis a descarada subalternização dos afectos, a fisionomia autoritária de um capitalismo tardio e sem ética. O que se pede é menos domínio da razão pela razão. Menos evaporação do espírito, essência sensível que é matéria, mas também a força espiritual que a move.
Dito isto, dou por mim a concordar com quem várias vezes tenho estado em desacordo: Miguel Sousa Tavares. São dele estas palavras, retiradas da última crónica do Expresso, a propósito da utilização recorrente da palavra idoso: “Eu sei que faz parte do novo léxico politicamente correcto, (mas) alguém diz ‘o meu idoso’ em vez de ‘o meu velho’, quando se quer referir carinhosamente ao pai? Já imaginaram o que faríamos à literatura se aplicássemos a ditadura do idoso a alguns casos célebres: O Velho Que Lia Romances de Amor (…) passaria a ‘O Idoso Que Lia Romances de Amor’, O Velho e o Mar, de Hemingway, passaria a ‘O Idoso e o Mar’; Os Velhos Marinheiros, de Jorge Amado, seriam ‘Os Idosos Marinheiros’, e até o nosso ‘velho do Restelo’ acabaria transformado no idoso do Restelo”.
Feito este intróito, aqui fica a prometida transcrição parcial do texto que editei em Outubro de 2017 com o título “Vozes (cada vez mais) anoitecidas”, por entender que, infelizmente, não perdeu actualidade.
“Tudo se faz para suavizar a nossos olhos a velhice dos outros. Os idosos encerram um paradoxo: a sociedade que exibe a longevidade como valor supremo é a mesma que os trata como um fardo e um problema. Estamos cercados de idosos, mas quase não os vemos. Encaixotados em lares de gosto duvidoso, duram tempo demais e dão cabo do erário público. Deixou de fazer sentido a ideia segundo a qual por cada velho que morre é uma biblioteca que desaparece (…). O envelhecimento é visto como uma “perturbação” e não como uma oportunidade de utilizar recursos adquiridos ao longo da vida; os idosos representam um fardo, esquecendo-se o apoio que muitas vezes alguns deles ainda podem prestar à família e mesmo à sociedade.
(…) A pressa, a ligeireza e o desinteresse (que é desconsideração) pelos outros, são a imagem de marca do nosso tempo. Na sociedade em que o ter se substituiu ao ser, em que cada um já não vale pelo que é, mas por aquilo que ostenta, ou pela imagem muitas vezes falsa que retoca e de si dá aos outros, quem assim nos fala não é o ser humano dotado de afectos. É o homem-máquina, um corpo sem alma, um rolo compressor que tudo cilindra à sua passagem.
Dizia Cícero – orador romano que nasceu e viveu antes de Cristo – que a velhice todos a buscam alcançar, mas quando a alcançam, deploram-na. Para ser possível suportar mais facilmente o envelhecimento só parece existir um caminho: devolver a vez e a voz aos idosos”.
Mais uma vez fomos brindados pelo amigo Carlos Braga com um espectacular artigo sobre a velhice sobre a qual faz uma referência sociológica muito bem enquadrada .
Ao ler esta exposição veio-me à memória um livro de Miguel Torga ,Novos Contos da Montanha , mais precisamente o conto ” Alma Grande , o Abafador ” .Era muito salutar que os “menos velhos ” o lessem .E se o fizerem , alguns vão de certeza mudar algumas das suas concepções e atitudes sobre a velhice ……-porque estarão a pensar em si no futuro …..quando forem “velhos ” …….se lá chegarem …….claro .! Por isso se diz com toda a consistência que em relação aos mais novos , os velhos tem uma vantagem inquestionável que é o facto de já lá terem chegado ,enquanto os primeiros chegarão …ou não !!!!
“Na sociedade em que o Ter se substituiu ao Ser, em que cada um já não vale pelo que é, mas por aquilo que ostenta, ou pela imagem muitas vezes falsa que retoca e de si dá aos outros, quem assim nos fala não é o ser humano dotado de afectos. É o homem-máquina, um corpo sem alma, um rolo compressor que tudo cilindra à sua passagem.”
Assim é!
Sempre oportuno, obrigada!
Uma boa tarde, abraço amigo Carlos(assim o sinto, virtual, mas amigo)
O sentimento de amizade (mesmo que virtual) é recíproco, prezada Arminda. Obrigado pelo comentário e pela atenção que costuma dispensar àquilo que por aqui vou escrevendo. Abraço afectuoso e continuação de boa saúde, nestes dias difíceis que estamos a atravessar.
Leio. Leio do princípio ao fim. E do muito que disso me fica é saber que o Carlos Braga de hoje continua a ser aquele que conheci há muitos e muitos anos. Bem haja Carlos Braga. Um grande abraço amigo.
Obrigado amigo José Barreto. É também assim que te sinto, neste nosso reduto da amizade que começou a erguer-se há muitos anos, aí em Ilhavo. É sempre bom saber que não apagámos os registos antigos, sobretudo quando eles têm a ver com a amizade e a fraternidade. Um grande abraço.