Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto

Sete dias, sete livros (7)

Sétimo dia, sétimo livro de um desafio lançado por Maria Pereira Alves: Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, Edições Afrodite, 1975.

Peregrinação1Quantos portugueses já leram a Peregrinação? Certamente muito poucos. Bastaria um inquérito para termos resultados pouco animadores. Por mim, confesso: também estaria no rol dos que ignoram esta obra de peripécias tão empolgantes, a que Aquilino Ribeiro chamou “formoso livro de aventuras, como não há segundo na língua portuguesa”, se não tivesse beneficiado da inteira amizade de quem um dia me despertou os sentidos e iluminou o caminho para tão fascinante aventura.

A vida e a obra de Fernão Mendes Pinto continuam envoltas em mistério. Uns dizem que nasceu em Montemor-o-Velho, filho de gente pobre. Outros adiantam que nasceu no seio de gente nobre e que era natural de Almada. Já quanto à Peregrinação, livro de viagens escrito na segunda metade de Quinhentos, há quem defenda que a versão que hoje conhecemos não é a original: depois de passar pelos filtros do Santo Ofício e do Ordinário (Igreja), viria a encalhar durante dez anos no Desembargo do Paço. A publicação seria finalmente aprovada em 1613, embora se desconheçam as alterações dos censores ao texto inicial.[1] Poucas dúvidas restam de que a obra foi “limada” ou “arranjada” antes de ser tornada pública.

Numa narrativa onde se entrelaçam o romanesco e o maravilhoso, o que não tem faltado por aí são as almas de S. Tomé deste mundo (ver para crer, pois claro!) a agitar a estafada expressão: “Fernão Mentes? Minto”. Ora é preciso dizer que se alguém mentiu foi a censura religiosa do século XVII, que não deixou de retocar, deturpar ou até mutilar a Peregrinação. As aventuras e desventuras de quem fugia da fome metropolitana, de quem era capaz de sulcar os mares e mais tarde narrar a verdade dos traficantes, dos fanáticos do catolicismo, os medos e a miséria, e as diferentes artimanhas de que os homens do povo se serviam para salvar a pele, não podiam agradar ao poder constituído no tempo da grande gesta dos descobrimentos.

Nas suas atribuladas viagens pelo Extremo-Oriente, onde vai negociar, arcabuzar, piratear e sorver os usos e costumes de povos tão diferentes – que mais tarde lhe vão servir de termo de comparação para a sátira social da sociedade portuguesa do seu tempo – Fernão Mendes Pinto foi “treze vezes cativo e dezassete vendido por mouros, chins e outras gentes”. Nessas andanças orientais, “conviveu com capitães e reis, príncipes e plebeus; foi escravo, soldado, negociante, embaixador, missionário – e a lista não fica ainda completa”.[2]

Rebecca CatzA Peregrinação é, a par de Os Lusíadas e da História Trágico-Marítima, uma das três obras literárias fundamentais para a compreensão dos traços dominantes da expansão portuguesa no mundo. Só que em Fernão Mendes Pinto a epopeia está ausente e, no seu lugar, foram colocadas as proezas e desventuras dos marinheiros portugueses, verdadeiros saltimbancos do destino. Foi esse pendor dos portugueses para a aventura e a traficância, para o contrabando e o roubo, que levou o rei da ilha dos Léquios a recusar receber os náufragos desembarcados na sua terra e a defini-los deste modo: “gente que, conhecendo muito de Deus, usa pouco da sua lei, tendo por costume roubar o alheio”.

O baptismo de fogo do nosso herói pícaro – que é um anti-herói, em tudo contrário ao herói dos romances de cavalaria – acontece numa viagem ao estreito de Meca: recebidos de forma hostil por um barco onde desejavam recolher informações sobre os turcos, mataram 64 dos 80 tripulantes. E como o capitão do barco abalroado se recusou a aderir ao cristianismo, foi atado de pés e mãos e lançado vivo ao mar. Procedimento em tudo semelhante ao que se passava em Portugal com os cristãos-novos – os falsos conversos – que não eram supliciados por afogamento, mas pelo fogo, o argumento dos inquisidores.

Para António José Saraiva, mais do que indagar se os factos geográficos ou etnográficos descritos na obra são verdadeiros ou imaginários, interessa conhecer a intenção da narrativa, “o que ela exprime sobre a posição pessoal do autor perante o mundo em que vivia”. Face a uma obra de arte, a alternativa não se coloca entre a verdade e a ficção, já que o artista recorre à ficção para explicar a verdade: “a ficção não é o oposto da verdade, mas o instrumento dela”. No caso desta obra, estamos perante “um esboço em que se acusa poderosamente o pensamento dominante”.[3]

Fernão Mendes PintoPodemos encontrar na sátira de Fernão Mendes Pinto dois planos diferenciados: um tem a ver com a narração das aventuras de que o autor é protagonista; o outro, com o facto de os juízos morais serem proferidos por interpostas pessoas. Em vez de criticar abertamente os valores e os conceitos de justiça da civilização ocidental, a estratégia narrativa consiste em valorizar – através de outras pessoas, já que na obra picaresca a enunciação dos juízos não cabe ao narrador – os valores da caridade, da justiça e da ordem que regem esse mundo exótico que a Peregrinação descreve. As civilizações orientais servem “de espelho ou de contraste”[4] com o que se passa em Portugal nos tempos da Inquisição. Apesar disso, Fernão Mendes Pinto não deixa de descrever preconceitos religiosos do oriente, como aquele em que um gentio não consente que três portugueses sejam sepultados, “dando por razão que ficaria a terra maldita e incapaz de criar coisa alguma, porquanto aqueles defuntos não iam lavados do muito porco que tinham comido, que era o mais grave e enorme pecado de quantos na vida se podiam imaginar”.[5]

Neste tempo que é o nosso, em que tanto se fala de “fatwa” e de fundamentalismo religioso, nada mais oportuno do que ler a Peregrinação, que é também um espelho do que somos e do que já fomos, quando partíamos para longes terras, a fim de dilatar a fé e o império, procurando impor a lei cristã pelo fio da espada sempre que a persuasão falhava. E falhava tantas vezes…


[1] Alexandra Carita, “Verdade ou Mentira”, Actual (revista do Expresso), 22.11.2014, pp. 24-25.

[2] Rebecca Catz, A sátira social de Fernão Mendes Pinto – análise crítica da Peregrinação, Lisboa, Prelo, 1978.

[3] António José Saraiva, “Fernão Mendes Pinto e o Romance Picaresco”, in Para a História da Cultura em Portugal(vol. II), Publicações Europa-América, 1972, p. 122.

[4] Idem, p. 128.

[5] Idem, ibidem.