Não vi a peça transmitida pela TVI, no passado sábado, a propósito da Raríssimas. Depois de tanto alarido nas redes sociais, decidi ver a reportagem. Falta-lhe o contraditório, é certo, mas o que vi e ouvi não é bonito. Dá voltas ao estômago. Cria um formigueiro de indignação. A simples ideia de alguém poder utilizar uma instituição social para se servir, em vez de servir os outros, provoca calafrios.
A Raríssimas – Associação Nacional de Doenças Mentais e Raras, é financiada por subsídios do Estado e donativos. Vieira da Silva, actual ministro que tutela as Instituições Particulares de Solidariedade Social, foi vice-presidente da assembleia geral da Raríssimas entre 2013 e 2015. Sónia Fertuzinhos, deputada e mulher de Vieira da Silva, foi acusada de viajar até à Noruega, paga pela Associação. Não negou a viagem, mas negou ter viajado a expensas da Raríssimas. Maria Cavaco Silva é madrinha da Raríssimas. O secretário de Estado da Saúde já foi consultor da associação e recebia 3 mil euros por mês. Dinheiro pago pelo Estado, através do Fundo de Socorro Social, que, diga-se, visa acorrer a situações de calamidade pública, ou apoiar as instituições em casos de dificuldades absolutamente excepcionais. Terá recebido, ao longo de quase dois anos, cerca de 63 000 euros.
Porquê tantos políticos, ex-políticos, administradores e outra gente tida como notável, a gravitar em torno de uma associação de doenças raras? Só vejo uma resposta: porque isso ajuda a puxar o brilho ao currículo profissional e porque estar ligado a instituições de solidariedade, bombeiros e associações recreativas e culturais, costuma funcionar como trampolim seguro para voos mais altos.
A presidente, que se confunde com a própria instituição, era a dona da quinta. O homem encarregado do armazém, que ganha por mês 1 300 euros (mais um subsídio de coordenação de 400 euros e ainda 1500 euros para deslocações em viatura própria) é o seu marido. Ao todo, 2673 euros. A Presidente acha pouco. Disse ter-lhe chegado às mãos um recibo “vergonhoso”. Assim mesmo. O “colaborador”, seu filho, ainda a estudar, aufere 1000 euros de vencimento-base, mais 200 euros de coordenação. Chama-lhe “o herdeiro da parada”, fala dele como futuro Presidente e acrescenta: “E sim, é os meus olhos e os meus ouvidos, como o pai dele é aqui”. Marido e filho funcionam, pois, como os antigos sátrapas, uma rede de espiões montada por Dario, rei da Pérsia. São os olhos e os ouvidos deste imperatriz de pechisbeque, atraída pelo falso brilho dos falsos ouropéis.
Uma solução dinástica, portanto, à revelia do normal funcionamento dos órgãos sociais. Uma presidente que exige que todos os colaboradores da recepção se levantem à sua passagem, porque o respeitinho é muito bonito. Se passasse vinte vezes, vinte vezes teriam os colaboradores de se levantar. Porque não, “não somos todos iguais” – diz ela, muito senhora do seu nariz. Pois não, não somos. Uns servem-se descaradamente do erário público. Outros não. E disse mais: “A partir de amanhã, o primeiro que passe por mim e não me cumprimente, como eu mereço, a seguir está no olho da rua, fica já a saber”. E mais ainda: “É pá, ninguém se lembre em comprar uma briga comigo”.
Ah, mulher valente e imortal em todo o seu esplendor, garbosa padeira de Aljubarrota do século XXI. Mulher que não se coibia de utilizar dinheiro do Estado para gastos pessoais e até para precaver o futuro. É o caso de um PPR (Plano Poupança Reforma) no montante de 816 euros por mês, feito em nome da presidente da Raríssimas, certamente para fazer jus ao lema segundo o qual “quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte”. As Actas eram redigidas antes das reuniões e acolhiam as decisões que a presidente da direcção previamente tomava. Eram assinadas pelos “senhores directores”, no final da reunião, presume-se que sem pestanejar. E também sem “bicos de papagaio”, pois só quem deles não padece dobra assim a cerviz à curvatura de interesses alheios. Eis o controlo total, eis o poder absoluto a corromper absolutamente.
Segundo a TVI, a madame Paula Brito da Costa recebia um salário base de 3 mil euros mensais, ao qual acresciam 1300 em ajudas de custo, 816,67 euros de um plano poupança-reforma e ainda 1500 euros em deslocações. A esta quantia, que já ultrapassa os 6500 euros, deve ainda ser acrescentado o aluguer de um carro de luxo com o valor mensal de 921,59 euros e compras pessoais que a presidente da Raríssimas faria com o cartão de crédito da associação. Cabe, então, perguntar: é necessário vestir roupas caríssimas para representar uma Associação? É preciso andar de BMW? Não se pode viajar e andar vestido com dignidade por muito menos? E o dinheiro transferido pelo Estado às IPSS é para essas coisas ou para aplicar em favor de quem dele realmente precisa? Os apoios atribuídos pela Segurança Social devem ser canalizados para o desenvolvimento das respostas sociais protocoladas e não para gastos pessoais da sua Presidente.
Tudo isto (e isto estará longe de ser tudo) é o quê? Que cumplicidades são estas, que assim garantem costas largas e um comportamento tão indecoroso? Como em cada ser normal há um doente que se ignora, talvez a psiquiatria nos pudesse ajudar a compreender o sentimento de impunidade de tão repelente personagem. Andam por ali tiques de psicopata à solta, disso não restam grandes dúvidas. Gente que a si própria se considera normal e nos considera a nós, que verberamos os seus actos, doidos varridos. E tanto que essa gente nos pode ensinar acerca do sucesso, como exemplarmente mostra Kevin Dutton em “O que Podemos Aprender com os Psicopatas”.
Ao abordar este momentoso assunto, Daniel Oliveira fala em “raríssimo escrutínio ao terceiro sector”. A questão não é bem essa. Escrutínios há. Inspectores é que haverá poucos. E legislação suficientemente punitiva para os prevaricadores, ainda menos. O problema não é tanto de escrutínio, mas de instrumentos de escrutínio credíveis, ao dispor de quem fiscaliza. A questão incontornável parece ser esta: fará sentido o Estado apoiar financeiramente as IPSS e não controlar, depois, a qualidade dos resultados, a forma mais ou menos criteriosa como o dinheiro é gasto?
Resta acrescentar o seguinte: como não soube voar baixinho, a presidente da Raríssimas acabou por se tornar vítima da conhecida ambição de Ícaro: tanto se aproximou do sol, que acabou por derreter as asas e estatelar-se ao comprido. Já não é a presidente. Já não vai cumprir o sonho de colocar o filho como presidente. E acabou por arrastar, na queda, o secretário de Estado da Saúde. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos, sem esquecer que a bota que nos oprime, seja ela de esquerda ou de direita, será sempre a bota que nos oprime.