Salgueiro Maia, capitão de Abril — a homenagem tardia

Aconteceu quando Cavaco Silva era primeiro-ministro de Portugal. Havia um governo de maioria absoluta, que era autista e confundia autoridade com autoritarismo. Cavaco Silva desdenhava da imprensa, proclamava aos quatro ventos que não lia jornais, que nunca tinha dúvidas e que raramente se enganava. Em dia de greve geral, uma das maiores de que há memória na democracia portuguesa, atreveu-se a negar para as televisões o que era óbvio aos olhos de todos: que não tinha dado pela greve, pois logo pela manhã, ao sair de casa, tomara tranquilamente o pequeno-almoço na pastelaria do costume…

Salguero Maia

Costuma dizer-se que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente. Se não corrompe, pelo menos cega. E o pior cego não é o que não vê, mas o que não quer ver. Cavaco recusou-se a ver a greve geral, tal como Sócrates se recusou a ver a manifestação pública de cem mil professores. O desdém e o desprezo absoluto, como se os grevistas, num caso, e os professores, no outro, não existissem. A mesma vontade deliberada de os silenciar, de os reduzir ao nada, de domesticar as consciências. Só através do voto se aperceberam, um e outro, que afinal eles existem.

Em 1989, do alto da sua maioria absoluta, Cavaco Silva recusou uma pensão a Salgueiro Maia, talvez o mais puro e lídimo capitão de Abril. O escândalo tornou-se maior quando veio a público que essa recusa coincidiu com a atribuição, pelo seu executivo, de idêntica pensão a dois inspectores da extinta PIDE. Há gestos que dizem tudo: Cavaco Silva, que talvez nunca tivesse chegado a primeiro-ministro ou a Presidente da República se não existisse democracia em Portugal, ignorou o homem que saiu do ventre de uma chaimite, para erguer o corpo em haste de coragem e de megafone em punho anunciar Abril, exigindo a rendição de Marcelo Caetano no quartel do Carmo. E pareceu ignorar, também, que a PIDE negava a liberdade e a democracia, esquecendo as palavras avisadas de Hannah Arendt: todos os despotismos se apoiam na polícia secreta.

Ao contrário de tanta gente que a polícia política perseguiu e prendeu por cometer o crime de querer viver em liberdade, os torcionários tiveram rédea livre para viver num qualquer recanto perdido da democracia. Alguns foram mesmo agraciados com pensões pelo regime a que se opuseram ferozmente. Um dos dois a quem o executivo de Cavaco Silva não recusou a pensão por “serviços relevante prestados ao país” esteve entrincheirado na Rua António Maria Cardoso, a sede da polícia política, e terá estado envolvido nos disparos contra os manifestantes que causaram os primeiros mortos da revolução. Estranha dualidade de critérios…

Entretanto, porque partem cedo aqueles que os deuses amam, Salgueiro Maia viria a falecer em 3 de Abril de 1992. Choraram-no, então, os que nunca o mereceram. Os que sempre lhe recusaram promoções. Os que o arrumaram na prateleira da rotina militar. Os que consentiram e o condenaram ao desterro açoriano. Os que têm sempre à mão o lenço nacional para enxugar as lagrimetas de ocasião.

Cavaco Silva tenta agora reparar a gritante injustiça. Deposita hoje, 10 de Junho de 2009, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, uma coroa de flores junto à estátua do capitão de Abril. Mas o Presidente da República perdeu a oportunidade soberana de homenagear, no tempo certo, aquele que em vida sofreu a ingratidão de ver recusada a mesma pensão, pelo regime democrático que ajudou a construir, atribuída a dois algozes desse mesmo regime.

Conseguirá, com esse gesto, limpar a nódoa que ainda mancha o sudário de generosidade e coragem que envolve o capitão Salgueiro Maia? A democracia aprende-se, aperfeiçoa-se e exercita-se. Cavaco Silva, como toda a gente, terá evoluído, não será a mesma pessoa de há vinte anos, já reconhece que também se engana e que tem dúvidas.

Por mim, acredito que o seu gesto, embora tardio, é sincero. Não é fácil estar frente a frente com o passado, olhos nos olhos, quando não se tem a consciência tranquila. Saber assumir os erros só revela a grandeza do gesto. Por isso eu, que tanto me indignei com Cavaco Silva há vinte anos, estou disposto a perdoar-lhe. Escrevi este texto porque não esqueço. Porque sigo a divisa: perdoa, mas não esqueças.