Acordar ao som da fúria dos elementos. Água a cântaros, projectada contra as vidraças pelo soprar inclemente do vento. Acordar, logo a seguir, com a rádio a noticiar a morte de Stephen Hawking. Caramba, há formas bem mais razoáveis de despertar.
A seguir, o dilema: vontade de falar deste físico teórico britânico, deste cientista da cosmologia e da gravitação, sem nunca ter lido nenhuma das suas obras, apenas artigos de opinião em jornais e revistas. Sem nada perceber da “Teoria do Tudo”, do “paradoxo da perda de informação nos buracos negros”, de partículas subatómicas, de conceitos como o de “super-gravitação”, ou até de cordas superdensas.
Não é pelo conhecimento científico, que não consigo verdadeiramente avaliar, que admiro Stephan Hawking. É muito mais pela forma como soube lutar contra as adversidades que a vida lhe pregou e – arriscaria dizer – mesmo assim ser feliz. Somos demasiado humanos, precários, normais e previsíveis e por isso quase todos falamos agora dele, ou comentamos o que dele se vai escrevendo. Mas quantos dos que por aqui aparecem, o leram? E dos que o leram, quantos o compreenderam de verdade?
Eis a coragem e a persistência de uma vida: pouco depois de completar 21 anos, é-lhe diagnosticada uma esclerose lateral amiotrófica, doença incurável e degenerativa que lhe garantia pouco tempo de vida. Condenado a ficar, para sempre, imobilizado numa cadeira de rodas, privado de quase todos os movimentos, viria a sofrer mais tarde outro doloroso contratempo: submetido a uma traqueotomia, ficou impossibilitado de falar e passou a comunicar através de um sintetizador de voz electrónico.
Cinquenta anos depois de declarada a doença, e apesar das graves limitações físicas que teve de enfrentar, o cientista podia dizer: “estou muito satisfeito com a minha vida”. Uma vida cheia e plena de realizações: prémios importantes ao longo da carreira, professor em Cambridge, na cátedra ocupada por Isaac Newton; vários livros e artigos científicos publicados (Breve História do Tempo vendeu mais de dez milhões de exemplares), além de conferências para o público e para a comunidade académica. Para lá do sucesso na carreira científica, casou duas vezes e teve três filhos. Hawking disse ter realizado “a maioria das coisas que queria”. Apesar de acometido por doença tão grave, não desistiu de ser feliz. Viajou muito, amarrado à sua cadeira de rodas: sete viagens à ex-União Soviética; seis ao Japão, três à China e uma à Antártida, para lá de outras. Encontros com Presidentes de vários países e com dois Papas: (Paulo VI e Bento XVI). Viagens ao fundo do mar, de balão e num voo de avião em gravidade zero.[1]
Em 2014 Stephen Hawking declarou ao mundo ser ateu. “Não há Deus nenhum” – disse. Tanto bastou para que alguns crentes, misturando crenças legítimas com provas científicas não menos legítimas, começassem a depreciar a sua obra, sem se darem conta que alguém que não foi tocado pela fé pode, em simultâneo, reconhecer a importância e o alcance das religiões. Hawking acreditava que Deus não existe, mas curiosamente também acreditava na transcendência da salvação da Humanidade a partir da exploração espacial que abre caminho à colonização de outros planetas. Era essa a sua crença. Tão legítima como a dos que parecem ter ficado incomodados com esta sua confissão. Digamos que não sentia necessidade de recorrer a entidades sobrenaturais para compreender ou explicar as suas teorias científicas e a sua interpretação do mundo real. O que está para lá da quântica é espiritual e cada ser humano recorre ao livre arbítrio para acreditar ou não na existência de Deus enquanto transcendência e não enquanto imanência.
Stephen Hawking deixou-nos, sem aparentemente ter vivido o drama de Jean Barois, que partiu das crenças duma juventude religiosa e inquieta para a descrença, e desta, no final da vida, novamente para a crença em Deus, resumindo assim toda a angústia do pensamento moderno do seu tempo. Mais importante que uma possível conversão religiosa do cientista no fim da vida, é que parece ter partido feliz e em paz. Coisa extraordinária em alguém que passou pelas limitações físicas que se conhecem. Apetece falar de uma vida divinamente inspirada, esta que lhe foi dado viver, apesar de tudo, de uma forma plena.
Impossível não estabelecer comparações entre Stephen Hawking e Frida Kahlo. Ambos parecem guindar-se, uma vez desaparecidos fisicamente, ao estatuto de mito que suplanta as próprias obras. Frida fez da sua pintura memória e história, num tempo dolorosamente adverso. Hawking fez o mesmo com a sua obra académica e científica, num tempo também para ele dolorosamente cruel. Ela, amarrada à cama. Ele, à cadeira de rodas. Produtores de eleição a partir de corpos quase inertes e imóveis. Duas obras singulares, que completaram as suas vidas e assim se foram da lei da morte libertando…
[1] Virgílio Azevedo, “Um Homem Feliz”, Actual (Revista do Expresso), 19.07.2014, p. 25. Ver, também, Stephen Hawking, A Minha Breve História, Gradiva, 2014.