Luiz Carlos Regala de Figueiredo nasceu em Espinho, a 11 de Agosto de 1905, no primeiro andar de uma casa da então Rua do Passeio Alegre, hoje Rua 62, com o n.º 30 de polícia. Era, diz-nos o poeta, “uma rua longa, estreita, coleante como uma cobra – propícia ao jeito e pessoais conveniências das construções urbanas, que cortava a Vila longitudinalmente: a única rua torta desta agreste Praia”.[1]
Foi precisamente nessa praia, quando um dia sentado na areia contemplava o mar – que bem cedo as musas o visitaram. Tinha nove anos quando escreveu o primeiro poema, deixando-nos mais tarde em verso essas impressões iniciais do seu lirismo magoado: Menino ainda, estranha voz inquieta /Rasgou em mim abismos e universos, /E, sem saber o que era ser poeta, /Encontrei-me a chorar… e a fazer versos!
Completou os “estudos gerais” no Liceu de Aveiro e entre 1926-1931, período que coincide com o desmoronamento da I República e com o início da Ditadura Militar que antecede o Estado Novo, Luiz Regala frequenta o Curso Jurídico na Universidade de Coimbra. Nos anos vinte do século passado, a influência que a Universidade teve na geração a que pertenceu Luiz Regala não seria muito diferente da que exerceu na geração de Eça de Queiroz. Seria idêntica a forma de “comprimir, escurecer as almas (…) uma madrasta amarga, carrancuda, rabugenta, de quem todo o espírito digno se desejava libertar, rapidamente, desde que lhe tivesse arrancado pela astúcia, pela empenhoca, pela sujeição à “sebenta”, esse grau que o Estado, seu cúmplice, tornava a chave das carreiras”.[2]A douta Academia, sempre pronta a catar o piolho metafísico nas dobras da ciência, era cada vez mais contestada pelas novas gerações.
O canudo não o entusiasmaria muito: apesar de, na altura, ser passaporte seguro para um emprego, chama-lhe “malograda e malfadada formatura”. Apesar dos dotes de oratória que os seus pares lhe reconhecem, não é o trabalho silencioso no escritório de advogado ou a barra dos tribunais que motivam o poeta. Chega a confessar a um amigo: “esta vida de processos enferruja-me a língua e embota-me, desgraçadamente, a sensibilidade (…). Não imaginas a repugnância que tenho pela engrenagem dos tribunais!… Se pudesse ver-me livre disto tudo (…). Asfixio, amigo, nesta irrespirável atmosfera de conveniências e de jogos malabares do espírito, os mais atrozes, os mais torturantes, os mais repelentes para quem teve, como eu (por que não dizê-lo) uma formação moral e cultural feita de honestidade, feita de honradez e, sobretudo, de autêntica e saudável clerezia.”[3] A burocracia e o cinzentismo da profissão chocavam abertamente com os códigos morais de quem colocava o ideal da beleza e do amor, e a sede de infinito, acima de todas as outras coisas terrenas.
Luiz Regala tem colaboração dispersa por várias publicações: O Vigilante; Voz Académica; O Primeiro de Janeiro; Seara Nova; O Diabo; Litoral e suplemento cultural Companha; Correio do Vouga e suplemento cultural Serão de Letras e Artes; revista Panorama; Diário de Notícias; Beira-Mar; Almanaque Desportivo do Distrito de Aveiro; Revista Trimestral da Secção de Filatelia e Numismática do Clube dos Galitos; O Jornal de Estarreja.
Apesar da consabida timidez, nunca deixou de emprestar o melhor do seu talento e da sua disponibilidade cívica às instituições e agremiações da cidade: aos Bombeiros, à Banda Amizade – da qual era sócio honorário – à Santa Casa da Misericórdia – onde foi Mesário – e ao Clube dos Galitos. A ele pertence a autoria do libreto da revista Molho de Escabeche, peça teatral que o grupo cénico deste prestigiado Clube apresentou com assinalável êxito em Lisboa (Coliseu dos Recreios, em Janeiro de 1941) e no Porto. O Clube dos Galitos concedeu-lhe, em 4 de Dezembro de 1961, o diploma de Sócio de Mérito do Grupo Cénico “pela exemplar dedicação clubista, alto espírito de benemerência e reais merecimentos artísticos, notavelmente afirmados há já 25 anos e agora de novo evidenciados através da excepcional colaboração prestada à revista “Ainda Canta o Galo”.
Em 1945 O Primeiro de Janeiro anuncia estar para breve a publicação do seu primeiro livro de poemas, cujo título era O Teu Livro. Há outros títulos, nunca publicados, que Luiz Regala ia anunciando: Pequenos Poemas Infinitos, Poemas Frustrados, Noite Imensa, Poemas Lusíadas, Rio Negro, Corpo Inteiro, Canto Renovado e Chão em Fogo. Em vida publicou apenas Cântico de Amor, corria o ano de 1960.
Em 1948 continuava a dedicar-se aos poemas, embora sem publicar. Tinha receio que a maior parte deles pudesse fazer mal aos homens. Coisas “amargas demais, embora revelem um sentido profundo de humanidade”. E anunciava ter em mãos 27 estrofes – tipo camoniano – de Chão em Fogo, poema que haveria de permanecer para sempre inacabado e onde pretende valorizar o Homem nas suas “Chagas, gangrenas, lepras, podridões…/ Cantadas só por mim, que sou cantor/ De tais terrenas, míseras canções…”[4]
Assinou os primeiros poemas na imprensa como Luís-Carlos. Mas um dia, ao familiarizar-se com a poesia brasileira, descobriu um poeta com o mesmo nome. O desconforto leva-o a procurar um pseudónimo para as suas criações poéticas, que fosse ao mesmo tempo libertador e encobridor. E assim nasceu, embora tardiamente, Pedro Zargo:
Pedro Zargo é o meu nome verdadeiro,
O do baptismo lírico das fontes
Na sagração das águas que se perdem
Na vertigem das pedras e dos montes.
A explicação para o pseudónimo é-nos dada numa entrevista a José de Melo, em 1959: “Pedro Zargo diz bem com a amargura brutal e dilacerante, a amargura ácida de parte da minha obra, sobretudo na última fase, nestes últimos dez anos. Gostei sempre do nome de Pedro; bem quereria que tivesse sido o do meu baptismo. Pedro é a pedra rude, mas viva, das construções milenárias que desafiam a eternidade do tempo. Sobre Pedro – a pedra – construiu Cristo a sua igreja”. Já quanto a Zargo, trata-se de uma evidente homenagem ao grande vate dos Lusíadas: “Camões é poeta, e foi zarolho (…). Zargo significa zarolho. Ficarei assim com alguma coisa do imortal poeta”[5]:
Ah, destino maldito!
Ah, fado amargo!
Ah, desdita! Ah, terrível vida minha!
Ah, Camões incarnado em Pedro Zargo.
Além do vocábulo “pedra”, há outros que no poeta são essenciais. É a eles que recorre, e é também com eles que procura restituir uma certa condição original para desbravar os caminhos do desnudamento e da raiz das coisas e que por isso integram o seu thesaurus poético: “lama”, “lodo”, “charco”, “estrume”, “esterco”, “grito” e “dor”, para citar apenas os mais expressivos. Elementos que participam da pira dos sentimentos em que o poeta se consome, mas que conduzem ao enriquecimento verbal do seu canto, porque lhe dominam os códigos e as subversões:
“Cantava porque o Canto era consigo
Desde a primeira lágrima no olhar!
Cantar era o seu Fado e o seu Castigo,
– Cantava por destino de cantar!”
Em Junho de 1965 abandona Aveiro e refugia-se na sua Toca. É um refúgio de meditação em que se alheia praticamente de tudo o que diz respeito à vida social e profissional. O poeta sensível que é Pedro Zargo vive agora enrodilhado em silêncio e couraçado dum mundo que o agride e o consome. Enquanto absorvia voluntariamente essas golfadas de solidão, confessava: “Este período de exílio tem sido demasiado fecundo para mim. Tem-me feito bem, apesar de todas as contrariedades inerentes. Passei a meditar com mais serenidade e profundeza sobre os vários problemas da vida e do homem, quiçá da vida do homem. Desci também ao fundo de meu poço, ao fundo de mim, com amor e com ódio – ódio fecundante e amor compreensivo e humano. Analisei-me talvez melhor, analisando os outros talvez também melhormente”.[6]
O soneto “Diz-me, Cidade Linda” é uma das várias homenagens que presta a Aveiro, misto de Mar e Frágua que transfigura num corpo gentil de mulher, cuja beleza não é mais do que a própria beleza feminina da Cidade, sua Amada, sua Menina e Moça. E “o líquido alvoroço, que agita a rede dos seus nervos”, é “a agitada água dos canais que percorrem e cortam em vários sentidos o próprio corpo da Cidade.”[7]
Pedro Zargo legou-nos um trabalho de relojoaria poética assinalável. Poeta de paixões e arrebatamentos, do desassossego interior, do sofrimento, da noite escura e da noite imensa, do conflito e das dimensões mais profundas da vida, da melancolia que sobrava das armadilhas do amor. Da exaltação e da angústia destilada em vários amores idealizados e sofridos. Também da hospitalidade e do acolhimento dos outros. Homem de fé e profundamente religioso, mas tocado e dilacerado pela incerteza que é própria dos homens de carne e osso, pois só os deuses se ofendem com a dúvida.
O momento de júbilo é aquele em que o poema acontece, porque de algum modo pacifica o que antes era caos interior e inquietação. Um ser profundamente lírico, que se comove com a paleta de cores variegadas da mãe-natureza, com um voo de ave, uma flor a desabrochar, um repuxo de água, com o marulhar das águas revoltas do mar ou quase paradas dum regato manso. Observador atento e sensível de tudo o que o rodeia, assentam-lhe bem estas palavras de Eugénio de Andrade: “Colhe todo o oiro do dia/ na haste mais alta da melancolia”.
Os anos foram passando e o grosso da obra continuava praticamente inédita. Até que um dia o poeta adoeceu e se fechou em casa: nunca mais procurou ninguém, poucos o terão visitado. Contava 80 anos de idade quando, a 4 de Abril de 1986, a morte o apartou do nosso convívio, perante a indiferença quase geral dos aveirenses seus contemporâneos. Cercada de silêncio, a memória de Pedro Zargo passou a estar ausente dos azimutes culturais da cidade salgada. É certo que Aveiro tem uma rua com o seu nome. E que algumas iniciativas procuraram honrar-lhe a memória, nomeadamente as que então foram promovidas pelo Teatro Independente de Aveiro. Mas nada disso impediu que com o arrastar dos anos uma hera de silêncio se enroscasse dolorosamente em torno do seu nome.
O apagamento da memória de um vulto desta grandeza na vida cultural aveirense não representa apenas um esquecimento aviltante. É também, para aqueles que o conheceram ou de perto privaram com o “amigo noctívago” – como de forma comovedora lhe chamou Vasco Branco no Roteiro Impopular de uma Cidade – uma faca de saudade atravessada na garganta.
Pedro Zargo nunca calou o seu Canto e sempre alimentou a esperança de que os amigos, um dia, fizessem incidir nele os holofotes da publicidade: “Nas tuas frágeis mãos deixo o meu Canto;/ É o meu grito de Amor!… que alguém o acoite!” Só uma pequena parte da sua obra poética é do conhecimento público. É imperioso trazer à luz do dia o muito que ainda permanece na sombra. Apreciar o essencial da sua obra poética será a melhor forma de o homenagear. Começa aí o verdadeiro reconhecimento que a cidade lhe deve.
Como pedia Amadeu de Sousa: /Que a foice atroz/ Não cale a voz/ Na sepultura. Ou, como dizia o próprio Pedro Zargo:
/Todo o mal seja esse!
E que a voz se não cale…
O que importa é que a carne, mesmo depois de morta,
proteste, acuse e fale.
Na verdade, se a finitude do corpo é uma certeza, o que se escreve permanece e ajuda a perpetuar um pensamento. É urgente recuperar o seu canto familiar, a magia que se desprende da osmose entre o poeta e a cidade que deveras amou.
Estamos em crer que a obra poética de Pedro Zargo, que laboriosamente construiu e lapidou e por isso ecoa inteira na força do seu grito – mas que por razões imponderáveis não foi possível dar a conhecer aos seus contemporâneos – se há-de converter, uma vez conhecida de todos, em obra intemporal, apreciada pelos leitores de hoje e de amanhã. Será ao nível dos novos leitores que a sua poesia, escrita ao longo de dezenas de anos, se pode reerguer, reanimar e reviver. Fazer isso é devolver ao poeta a parcela de eternidade a que tem direito e a que de algum modo todos os artistas aspiram.
É dos livros: na morte, como na vida, os poetas arranjam sempre maneira de se salvar.
* (Texto publicado em Folhas – Letras & Outros Ofícios. Revista do Grupo Poético de Aveiro, n.º 16, 2018, pp. 195-201).
Que me lembre, nunca me cruzei nem nunca falei com o João Tomaz Parreira. E, no entanto, sigo-lhe discretamente o rasto desde 1978, ano da morte de Jorge de Sena. Enquanto o “reino da estupidez” enxugava a lagrimeta ao canto do olho com o lenço da hipocrisia, ele dedicava-lhe um comovente texto – publicado, lembro-me bem, numa singela revista sindical – com o título de um dos seus livros: Peregrinatio Ad Loca Infecta.
Ironia do destino: desconhecendo que o João estava doente – soube hoje do seu desaparecimento físico e também que tinha sido operado, há pouco tempo, a um gânglio linfático – cruzei-me há dias com ele, não nas ruas de Aveiro, onde residia, mas no Facebook. Tinha licitado um livro que também me interessava muito: Os Futuristas Russos. Não me passou pela cabeça cobrir o lance, o que seria fácil, era só acrescentar mais cinquenta cêntimos à proposta dele. Além de conhecer a Maria Clotilde, sua extremosa esposa e minha colega de ofício na Segurança Social, em Aveiro, fui movido pelo sincero apreço intelectual que há muito nutro pelo João, a quem não desejava subtrair o prazer da leitura de uma obra que lhe interessava e que poderia acrescentar à valiosa biblioteca herdada de seu pai, o presbítero Parreira.
O leilão terminou no dia 15 de Outubro, às 21 horas. Cinco minutos antes, estava eu vigilante, com a página aberta. O raciocínio era o seguinte: se naqueles alvoroçados cinco minutos alguém cobrisse o lance do João sem que ele, inadvertidamente, se apercebesse, cá estava eu para, num derradeiro esforço, tentar resgatar o livro – Camões salva a nado Os Lusíadas… – e colocá-lo, de bom grado, à sua disposição, se o quisesse aceitar. Às vinte e uma horas em ponto só ele tinha licitado o livro, e foi com o coração a cintilar de alegria que confirmei não haver qualquer intruso de última hora a cortar-lhe o fio do sonho.
J. T. Parreira (assinatura literária de João Tomaz Parreira), nasceu em Lisboa, em 1947. “Bancário aposentado. Jornalista freelancer em semanários regionais e revistas mensais de índole cultural e religiosa, escreve sobre artes plásticas, literatura e teologia. Tem editados quatro livros de poesia: Este Rosto do Exílio (Aveiro, 1973); Pedra Debruçada no Céu (Lisboa, 1975); Pássaros Aprendendo para sempre e Outros Poemas (Lisboa, 1993); e Contagem de Estrelas (Lisboa, 1996). E um de prosa: O Quarto Evangelho – Aproximação ao Prólogo (Lisboa 1988). Participou em várias antologias desde os Anuários da Assírio & Alvim a Cadernos de Poesia Folhas & Letras do Grupo Poético de Aveiro, desde 1971 a 2004. No Rio de Janeiro, participou na Antologia da Nova Poesia Evangélica(1977). Proferiu conferências sobre as obras de Vergílio Ferreira, José Saramago e Fernando Pessoa, no âmbito da Aliança Evangélica Portuguesa, fazendo a ligação entre os aspectos religioso-filosóficos e literários daqueles autores. No Canal 2 da RTP, nos programas «Luz das Nações» e «Caminhos», foram-lhe dedicadas em exclusivo duas peças com duas entrevistas sobre a sua poesia evangélica e os seus livros, em 2002. Já em 2004, foi entrevistado para um daqueles programas, também no Canal 2, sobre o livro O Código da Vinci. Era um dos expoentes máximos da poesia evangélica na língua de Camões. Este poeta esteve na génese do manifesto «por uma nova poesia evangélica», que impulsionou a criação de uma nova linguagem da poesia de inspiração cristã».[1]
Às obras acima citadas, o poeta foi acrescentando outras em tempos mais recentes: Os Sapatos de Auschwitz (2008), Encomenda a Stravinsky, 2011, Esperar que a Voz seja Suave (2014) e também Todas as Chamas do Fogo, que o escritor e poeta aveirense João de Mancelos considera “um livro brilhante, na forma, no conteúdo, na riqueza metafórica e imagética, na atenção que presta ao mundo de hoje”.
Agora que as Parcas o levaram, não sei se o João transporta no bornal dos sonhos o livro que tinha licitado no passado dia 13, há apenas quatro dias. A esperança de o ler devia ser do tamanho da vontade de viver. É isso que transparece do que deixou escrito no seu mural, no dia 5 de Outubro: “Já com alta e em casa, aguardo confiadamente a mensagem que o gânglio analisado tem inscrita, creio em Deus que seja para o sentido da Vida”. Só que a vida – disse Miguel Torga – “não passa de um progressivo distanciamento de tudo e de todos, que a morte remata”.[2] Seja como for, o livro há-de ser lido. A espiritualidade que sempre o animou vai dar uma ajuda: para quem sempre viveu na crença, a morte não é morte, porque a eternidade passa a ser um lugar, mais do que uma circunstância. Quem como ele acredita em Deus, acredita numa realidade que o transcende. É nessa realidade que vai saborear Os Futuristas Russos.
Assino por baixo o que dele diz Amadeu Baptista, autor de Caudal de Relâmpagos: partiu um poeta discreto, um homem amável, um ser humano gentil e doce. Era, na verdade, tudo isso e não era preciso privar com ele para o perceber. Bastava lê-lo para intuir a sua cultura, a imaginação duma palavra que lavra e que acerta no alvo das suas constantes preocupações.
Nenhuma idade é boa para morrer. Ninguém devia morrer quando tem um livro para ler. Num tempo em que se arrasta por aí tanto exibicionismo sem qualidade, tinha que dar a conhecer, embora com frágeis palavras, a qualidade humana e poética do João Tomaz Parreira. Conhecer um pouco da sua vida pode acrescentar-nos mais vida, espiritualmente falando.
O rasgão da sua morte aí está para nos mostrar quanto tudo nesta vida é efémero. Fica a emoção e uma pergunta: e agora, querido amigo, que vai ser de nós sem a sua poesia e a sua discreta, mas luminosa grandeza?
Tanto que fica por dizer, nestes claustros onde habita, cada vez mais, um inteiro e pesado silêncio.
[1] Consulta: Projecto Vercial.
[2] Miguel Torga, Diário XII, Coimbra, 2.ª edição, p. 79.
A notícia que nunca gostaria de receber chegou rente ao final do ano, a 28 de Dezembro: o Idalécio tinha-nos deixado, quase sem avisar. Se a morte de um amigo é sempre uma mágoa, saibamos ao menos celebrar aquilo que connosco partilhou, para lá da inteira amizade: a obra literária, onde ressuma em cada página a Gândara que o viu nascer. O que resta é agarrarmo-nos às frágeis palavras. São elas a ressurreição possível de tudo quanto nos legou.
Idalécio Cação nasceu em 1933 em Lafrana, freguesia de Alhadas, concelho da Figueira da Foz. Descendente de gente de humilde, habituada ao trabalho árduo nas terras de pão, aos 21 anos passou a residir nos arredores de Aveiro, no pacato lugar da Póvoa do Paço, em Cacia. Desde novo se apaixonou pela literatura, inspirado, talvez, na pequena mas valiosa biblioteca do avô materno, carteiro de profissão. Nos anos 60 aparece ligado ao CETA – Círculo Experimental de Teatro de Aveiro.
São de 1961 as suas primícias literárias, com o livro de poemas Nas Fronteiras do Tédio. Dois anos depois, publica novo livro de poesia, As Evidências e o Prisma. Na recensão a esta obra, o então jovem Vasco Graça Moura mostra saber já distinguir a tarefa crítica da reverência provinciana: atribui ao autor “razoáveis qualidades” mas não deixa de dizer que o livro, de “inspiração acentuadamente neo-realista, não traz nada de novo ao panorama da actual poesia portuguesa”.[1] Embora abespinhado com a crítica, Idalécio Cação acabou por recebê-la com a elegância que sempre o caracterizou: “é nas críticas contrárias mas elucidativas que o poeta irrealizado que ainda sou se penitencia e tenta redimir dos seus pecados líricos”.[2]
Vinte e dois anos depois, numa entrevista concedida ao Jornal de Notícias, ao obter o segundo prémio no concurso de contos com “A outra margem do sonho”, o futuro grande escritor da Gândara assumiria essa sua menor inclinação para a poesia: “Na prosa estou muito mais à vontade, enquanto na poesia reina uma grande confusão. Há mais de uma centena de estilos diferentes. Na prosa consegue criar-se um estilo próprio, como eu já consegui criar o meu”.[3] Essa preferência pela prosa ficaria derramada em diversas publicações, sobretudo em páginas e suplementos literários de jornais como Diário Popular, Litoral, Libertação, Independência de Cantanhede, entre outros. Fundou e coordenou os suplementos literários Sal Gema, do Jornal do Oeste (Rio Maior) e Diálogo, do jornal Beira-Vouga (Albergaria-a-Velha). Manteve ligação estreita com a dinamização dos encontros da imprensa cultural durante o Estado Novo. Era sócio da Associação Portuguesa de Escritores, da extinta Associação de Jornalistas e Escritores da Bairrada (AJEB) e da Associação Cultural Sol XXI. Licenciado aos 44 anos em Filologia Românica, acabaria a leccionar na Universidade de Aveiro.
Se na poesia não conseguiu tomar grande altura, a prosa viria a reconhecê-lo como “mestre das letras gandaresas”. Publicou Raízes na Areia (1968), Os Sítios Nossos Conhecidos (1990), Daqui Ouve-se o Mar (1991), O Chão e a Voz (1998), Glossário de Termos Gandareses (2002), Memória de João Garcia Bacelar (2005), Crónicas Gandaresas (2006) e Do Alto Destas Ameias (2008).
Carrego nos pedais da memória, em busca de remotíssimas lembranças. Recordo o prazer de assistir, em 24 de Outubro de 1990, à apresentação de Os Sítios Nossos Conhecidos e de ouvir as palavras que o Dr. Joaquim Correia então proferiu:
“Para quem tem acompanhado o labor literário de Idalécio, não é novidade dizer que a terra é o grande tema das suas narrativas de ficção. A terra ou talvez, se o preferirmos, a aldeia. Mas a aldeia a partir da sua própria experiência de filho dos areais gandareses, onde, como ele confessou ainda recentemente numa entrevista, aprendeu a fazer todos os trabalhos que dizem respeito ao amanho da terra e do pão. A nossa literatura é particularmente rica na temática ruralista. Mas o que é de salientar desde já é que nenhum dos escritores portugueses que abordaram esta temática partiram da experiência singular a que as circunstâncias da vida submeteram Idalécio Cação. É importante reproduzir o que ele dizia nessa entrevista: “eu sei o que custa um bocado de pão, que o trabalhei em todas as suas fases; quando como um prato de arroz, não esqueço que também o ajudei a amanhar nos campos do Mondego, onde o meu pai era seareiro duma courela de doze alqueires de semeadura”.
Esta experiência espelha-se na sua obra e por isso também a autenticidade do seu ruralismo, se nada tem a ver com o ruralismo idílico da tradição pastoril ou mesmo do romantismo de Júlio Dinis ou de Trindade Coelho, também não se limita a ser o ruralismo realista de Aquilino ou Torga, nem mesmo o do neo-realismo ideologicamente programado de Alves Redol ou de Manuel da Fonseca, ou de Fernando Namora, ou de outros. Como escreveu Mário Sacramento, mesmo os neo-realistas mais preocupados com a sorte do povo explorado não foram capazes de o exprimir por dentro, limitando-se a ser a “voz que ouve”, na paradigmática expressão de Políbio Gomes dos Santos, voz sem dúvida condoída, mas sem a experiência verdadeiramente vivida que era necessária para o exprimir por dentro.
É curioso como Idalécio Cação, já em Raízes na Areia, embora utilizando em todos os contos a voz da terceira pessoa, raramente dá a impressão de distanciamento em relação à acção e às personagens, de tal modo se faz a narração empática do narrador com elas, de tal modo a linguagem do narrador, sem perder em fulgor literário (pelo contrário, ganhando-o), se identifica com a das personagens, não só em termos vocabulares, mas até em particularismos sintáticos e em entoações peculiares, sendo assim a sua voz, não a do narrador distanciado do seu objecto mas sim a do aedo, que é a voz do próprio mundo a que dá forma narrativa”.
Após ler Os Sítios Nossos Conhecidos e Daqui Ouve-se o Mar também concluí estarmos em presença de um grande escritor da Gândara. Um homem de palavra e de palavras. Um homem ouro de lei, que sabia tudo sobre o amanho da terra, do semear e colher em tempo certo, do trato das videiras e da poda das árvores. Parafraseando Carlos de Oliveira em Pequenos Burgueses, apetece dizer, sem favor, que a obra de Idalécio Cação é “uma chuva de luz a encharcar a Gândara do céu à terra”.
(Texto publicado no Jornal da Bairrada, 05.01.2017, p. 18).
[1]Independência Literária [suplemento cultural de Independência de Águeda], n.º 23, Agosto, 1963.
Reconhecida a importância da imprensa cultural na formação do neo-realismo, este trabalho procura corresponder a dois objectivos essenciais: i) identificar a presença de escritores, autores ou simples colaboradores dos suplementos culturais Companha (do semanário aveirense Litoral) e Independência Literária (do semanário Independência de Águeda) que tenham dado expressão do neo-realismo, fazendo-lhe alusão ou divulgando-o nas referidas publicações. ii) relevar problemáticas com ele relacionadas, resultantes do confronto com as propostas estético-literárias de movimentos que o precederam – como é o caso da Presença – de outros que com ele se cruzam, como o Surrealismo e o Existencialismo, ou até da franca oposição – quanto à visão do mundo, à noção de função da arte e ao papel do artista na sociedade contemporânea – de alguns movimentos de vanguarda e contracultura que emergem e ensaiam novas perspectivas de criação durante a década de 60 do século passado, à revelia do social e às vezes da própria obra realizada, como acontece com o experimentalismo, o concretismo ou o novo romance.
Referindo-se às vanguardas, diz Natália Correia: “Toda a arte de vanguarda, quando aparece, sofre o baptismo de sangue neste campo de batalha onde implacavelmente se define a solidez de que é formada cada uma das linhas. Tudo o que é surpreendentemente novo soa, em contraste com os valores pré-existentes que denuncia, de forma dissonante”. Ao considerar que a diversidade de opiniões é a razão de ser de qualquer meio artístico, Natália Correia não concebe um ambiente artístico e literário “que não seja agitado por ondas de concorrência e de apaixonada controvérsia que provoquem a fermentação das potencialidades existentes”.[1]
Para alcançar tal desiderato devemos ter em conta os mal-entendidos gerados em torno destas correntes de opinião. Todas elas foram, a um tempo, “vítima e carrasco, simultaneamente, como se passa com todos os movimentos literários, hoje executor e amanhã executado, injusto no presente, injustiçado no futuro [já que há] na teoria do neo-realismo, como em todas as teorias de movimentos artísticos emergentes, uma defesa e apologia do que surge e um ataque ao que se pretende ultrapassar”.[2] Para tal reputação terão contribuído as mais variadas polémicas, com “muito de um desperdício que um pouco mais de serenidade e um pouco menos de ideologia teriam evitado”.[3]
Uma vez que o suplemento Companha se resume apenas a quatro exemplares, enquanto o suplemento Independência Literária editou trinta, a que devem acrescentar-se mais dois da segunda série, optou-se por proceder a uma análise mais exaustiva de alguns textos inseridos na primeira destas publicações.
2. Anos 60 em Portugal: relance político e cultural
Pareceu-nos pertinente dar breve nota do panorama político, social e cultural dos anos 60 do século XX português, o qual vai servir de pano de fundo para contextualizar a análise dos suplementos culturais Companha, que aparece em Setembro de 1959, e Independência Literária, cujo primeiro número vê a luz do dia em Outubro de 1961.
A nível político, no final dos anos 50 recrudesce a luta da oposição democrática. A mobilização popular em torno da candidatura de Humberto Delgado galvaniza o País. Se ganhasse, Salazar teria o destino traçado: “obviamente demito-o” – sentenciou o “general sem medo”. A recepção apoteótica que teve no Porto, cidade-símbolo de tantas lutas pela liberdade, significou um primeiro momento de viragem na arrancada democrática que viria a desaguar na revolução de Abril de 1974.
A década de 60 começa com um rude golpe para a credibilidade do regime e um renovado alento para as hostes oposicionistas: a grande evasão de presos políticos da aparentemente inexpugnável prisão-fortaleza de Peniche. Os anos seguintes seriam marcados pelas lutas académicas e associativas de 1962 (Lisboa) e 1969 (Coimbra), mostrando que os estudantes tinham perdido o medo e o respeito pelos mitos do regime. O aumento exponencial da emigração – sobretudo para França, mas também para a Venezuela, a que deve acrescentar-se a ida de muitos jovens para a pesca do bacalhau, como forma de fugirem à guerra – teve consequências inevitáveis a nível económico, social e das próprias mentalidades. O início e o agravamento da guerra colonial ajudavam a isolar uma ditadura que tinha escapado à democratização europeia do pós-guerra e à sua dinâmica descolonizadora. O ano de 1961 não dá descanso a Salazar: em Goa surgem problemas com a União Indiana; os movimentos rebeldes africanos encetam acções de guerrilha e manobram no campo diplomático. A reacção não se faz esperar: rapidamente e em força para as colónias. Assim se fez à guerra, com partida do cais de Alcântara, o primeiro contingente de tropas para Angola. Muitos não regressariam. Outros sim, só que alguns vinham diferentes.
O aparecimento de Independência Literária coincide, no plano político, com o crescente isolamento internacional de Portugal. Em Janeiro de 1961, primeiro ano da sua publicação, é assaltado e ocupado o paquete Santa Maria – rebaptizado de Santa Liberdade – com o intuito de despertar a atenção mundial para a situação política de opressão que se abatia sobre os portugueses. Em Fevereiro, militantes anticoloniais angolanos tomam de assalto o quartel da PSP e a delegação da Emissora Nacional. Na resposta, as forças repressivas da ditadura massacram milhares de angolanos dos musseques de Luanda. Em Março são chacinados colonos nas fazendas do Uíje e muitos outros batem em retirada. Com o alastrar das greves e movimentos insurrecionais, o Conselho de Segurança e a Assembleia Geral da ONU discutem a situação das colónias portuguesas. Em Abril dá-se o golpe de estado palaciano de Botelho Moniz, para tentar afastar Salazar, e são enviadas as primeiras tropas portuguesas para o norte de Angola, gesto que assinala o início da guerra colonial que vai perdurar até 1974. Em Agosto é atacado e invadido o enclave português do forte de S. João Baptista de Ajudá, na República de Daomé. Em Novembro Palma Inácio desvia um avião da TAP e lança sobre Lisboa panfletos anti-Estado Novo. Nesse mesmo mês a PIDE assassina o escultor e militante comunista José Dias Coelho.
A assinalar o clandestino e perigoso combate que as forças da oposição democrática travaram contra o Estado Novo, temos ainda a malograda tentativa de assalto ao quartel de Beja (1962), o assassínio de Humberto Delgado pela polícia política do regime (1965), a extinção, pelo governo de Salazar, da Sociedade Portuguesa de Escritores após a sua sede ter sido vandalizada pela PIDE e pela Legião Portuguesa (1965), o assalto à agência do Banco de Portugal da Figueira da Foz por uma brigada oposicionista chefiada por Palma Inácio (1967), bem como grandes manifestações de estudantes universitários junto à embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, em protesto contra a guerra do Vietname, pretexto indirecto para criticar a guerra colonial portuguesa (1969).[4] Entretanto, em 1968 Salazar tombava da cadeira. Metáfora dum país em queda, a semear esperanças nas hostes oposicionistas. Muitos acreditaram que o regime tinha os dias contados. Puro engano. Tombariam ainda muitos sonhos de redentoras alvoradas, durante seis penosos anos, até ser possível viver “o dia inicial, inteiro e limpo” eternizado em verso por Sophia.
2.1 Imprensa: tempos de estagnação e tempos de mudança
Antes da década de 60, as tentativas para publicar jornais literários ou não passavam disso mesmo ou definhavam rapidamente, por falta de leitores. Apesar disso, Mário Braga dá conta, em comunicação ao I Encontro dos Orientadores das Secções Culturais da Província, que decorreu na Figueira da Foz nos dias 28 e 29 de Setembro de 1963 e no qual esteve presente, em representação da revista Vértice, que na década de 1940-50 chegaram a publicar-se, simultaneamente e só em jornais de província, mais de quarenta páginas e suplementos culturais, tendo alguns deles desempenhado “um papel de muito relevo no breve surto de actividade intelectual que então animou o país”.[5]
Num país pequeno e com grande percentagem de analfabetos (49% em 1940 e 40,4% em 1950, o que colocava Portugal no “último lugar europeu”[6]) tornava-se difícil operar uma verdadeira reforma das mentalidades e atingir níveis mais elevados de desenvolvimento económico, social e cultural. Viviam-se tempos em que para muitos sectores populacionais carenciados era difícil suportar os custos da instrução, a que se deve acrescentar uma ténue predisposição para mandar os filhos à escola, fruto de uma cultura pouco valorizadora do sistema escolar formal. Em tal contexto, não era fácil encontrar colaboradores assíduos e suficientemente cultos para evitar palanfrórios sem sentido e apostar decisivamente na cultura. Mas é também nesses espaços geográficos mais afastados dos centros urbanos que os suplementos culturais mais razão têm de existir. Valem, essencialmente, “não só pelo que representam de renovação em ambientes retrógrados ou desactualizados, mas também e principalmente por serem veículos de consciencialização cultural”.[7]
Assistia-se, na opinião de António Sérgio, a uma invasão dos periódicos pela “produção caudalosa de escrevinhadores que não pensam, mas que o público admira porque é inculto (…) já que o anti-intelectualismo é que está na moda, no barroco período que atravessa o Mundo”.[8] Afinando pelo mesmo diapasão, Maria Archer considera inviável, no Portugal dos anos 50, o aparecimento de um jornal de letras digno desse nome. E explica porquê: “O público desinteressou-se das nossas folhas desse género, porque as encontra desactualizadas e com sabor a chá de Tolentino. Letras amputadas do pensamento; artes espartilhadas num neoclassicismo oficial; ciências impedidas de discutir a sério religião, pedagogia, psicofisiologia, etc.; enfim, um jornal deste modo ordenado e dirigido torna-se um armazém de artigos e crónicas insossas”.[9] Reflexos de um País pouco habituado ao diálogo, em que a imprensa surgia como “actividade semeada de obstáculos, travões, arbitrariedades e pressões da mais variada espécie”, em que a república das letras se caracterizava pelas capelinhas do elogio mútuo, num ambiente em que “escasseiam os capazes de acção e sobejam os pregadores de rótulos, os críticos de café e as eternas vítimas de perseguições”.[10]
Já nos anos 60, no momento em que era anunciado o I Encontro dos Suplementos e Páginas Culturais da Imprensa Regional, alvitrou-se ser necessário criar uma organização, à escala nacional, capaz de assegurar uma boa e regular colaboração a distribuir pelos vários suplementos. Apesar dos seus directores não estarem obrigados a publicar tais trabalhos – houve mesmo quem visse nessa proposta de colaboração centralizada uma política de dirigismo cultural semelhante à do Estado Novo – reconhecia-se não haver qualquer inconveniente em que os mesmos artigos vissem a luz do dia em diferentes publicações, “pois a massa dos leitores é totalmente diferente de jornal para jornal”. Essa colaboração, centralizada, devia incluir o serviço de gravuras ou mesmo a realização de gráficos ou inquéritos para averiguar a audiência dessas páginas junto do público. O apelo era feito à Sociedade Portuguesa de Escritores, que deveria “recomeçar ou activar os trabalhos de um projecto que muito oportunamente encetou”.[11] A ideia de permutar colaborações ou transcrever – à semelhança do que já acontecia nos cineclubes – textos publicados noutros suplementos, agradava aos que sentiam na pele a falta de colaboração para os suplementos culturais de que eram responsáveis. António Augusto Menano confessa, por essa altura, o problema que o aflige: “estou sozinho. Aos amigos, que me vão enviando e obtendo colaborações, se deve o facto de ainda não ter morrido Hoje e Amanhã que, se não sai todas as semanas, à pobreza o deve”.[12]
Em 1964, no II Encontro das secções culturais dos jornais de província, que decorreu em Cascais nos dias 13 e 14 de Junho, Manuel Ferreira – então representante da Sociedade Portuguesa de Escritores – manifestou a ideia de que a cultura “não se pode fazer apenas em determinadas linhas ao nível superior, mas o seu trabalho terá que aproveitar todas as linhas de força da cultura nacional.[13] Pressente-se, nesta abordagem aos problemas da produção e difusão cultural, o aflorar dum tema sempre polémico: o que consiste em renunciar, ou não, “a um elitismo que perpetua a dimensão de classe: o olhar da superestrutura para a base, do intelectual para o povo”.[14] Curiosamente, em 1969 Mário Sacramento confidenciará no seu diário, após ter dirigido em Guimarães o V Encontro da Imprensa Cultural: “os homens que tudo julgam resolver puxando o topo para a base queriam que os escritores andassem a jogar o berlinde com eles pelos jornais da província”.[15]
Imersos nesta “atmosfera de descrença que parece respirar-se em toda a parte”[16], quem se abalançasse à publicação de um jornal de letras ou de um simples suplemento literário e artístico bem merecia ser “promovido a herói nacional”.[17] Para a maior parte dos jornais de província, existir – confessava Santos Simões, coordenador de “Letras e Artes”, do Notícias de Guimarães – “já constitui um acto de heroicidade”.[18] David Cristo e Arsénio Mota, respectivamente nos suplementos Companha e Independência Literária, acabariam por protagonizar esse heroísmo. Souberam erguer-se em haste de coragem a favor da divulgação cultural, apesar das dificuldades que tinham de enfrentar e contornar: a proverbial falta de colaboradores qualificados, o cepticismo e o desinteresse de muitas redacções dos jornais aos quais estavam subordinados os suplementos, as dificuldades económicas e também de natureza técnica e tipográfica, bem como os problemas com a censura. Muitas vezes, para o suplemento estar na rua a tempo e horas, “o coordenador tem a ingrata tarefa de o escrever pelo menos em 50%”.[19]
David Cristo e Arsénio Mota abalançaram-se de forma temerária nesta ingente tarefa, certamente depois de verificadas as condições mínimas de partida que pudessem garantir o sucesso das respectivas publicações. Ambos desejavam sentir o pulsar da vida literária e artística e incutir, sobretudo nos talentos das gerações mais jovens, o gosto pela cultura autêntica, dar a conhecer os seus trabalhos, os seus projectos ou os seus sonhos. Acrescente-se que Arsénio Mota era, à data, um jovem que acabava de roçar o batente dos trinta. O espírito de iniciativa e a natureza criadora de que já então dava mostras, fizeram dele “um orientador sério de um dos bons suplementos culturais que entre nós se publicam […]. Do seu trabalho em prol da Cultura diz melhor do que nós o faríamos o suplemento Independência Literária, que dirige, não como amador, mas com rara capacidade profissional”.[20] A função principal das secções culturais da província era, para si, a de uma “clivagem da mineral indiferença pela vida cultural do público leitor pelos órgãos da imprensa provinciana”.[21]
A nível cultural e mais especificamente no campo dos media, a partir da segunda metade da década de 50 assistimos a momentos de viragem, a sinais de mudança no jornalismo português. Há uma subtil e lenta renovação dos quadros, numa época em que os candidatos a jornalistas esbarravam com redacções fechadas e em que apenas a colaboração esporádica, ou os contactos privilegiados com gente da direcção ou da redacção podiam representar uma oportunidade de emprego. Eram tempos em que num mesmo edifício conviviam jornalistas, revisores, linotipistas e tipógrafos. Em que a rotina era pontuada “pelo ritual do envio diário das provas para a Censura, a espera pela sua devolução, a eventual ‘negociação’ entre o chefe de redacção e os censores, a integração dos cortes, se tivessem sido feitos, a substituição à última hora por outras peças, quando a matéria tinha sido demasiado adulterada”.[22] Esse processo de sujeição dos jornais à Censura gerava também mecanismos de autocensura: “O jornalista só escrevia o que achava susceptível de ‘passar’; as chefias, preocupadas com a feitura do jornal, só deixavam passar o que não tivesse hipótese de ficar retido (a atrasar o jornal) nos serviços de censura; a Direcção só permitia o que não levantasse problemas à saída do jornal e, por último, a prova seguia o caminho que a censura deliberasse”.[23]
Os sinais de viragem – não propriamente no domínio da censura – surgem em 1956 com as emissões experimentais da RTP, que decorrem entre 4 e 30 de Setembro para os frequentadores da Feira Popular, em Lisboa. As emissões regulares começam em Março de 1957 e, apesar de rigorosamente vigiadas, com elas a informação começa a identificar-se, cada vez mais, com a evolução tecnológica. Entretanto, nas redacções dos jornais generaliza-se o gravador portátil, assiste-se à introdução da máquina de escrever e ao telex, que na década de 50 não existiam ou tinham um uso bastante limitado. A composição social das redacções também se altera: aparecem mais jovens licenciados, ou com frequência universitária. Esse arejamento do jornalismo português vai também beneficiar com a entrada em cena de novos empresários, sensíveis aos ventos da modernização que sopram nos inícios da década de 60: é o caso de António Ruella Ramos no Diário de Lisboa e de Francisco Pinto Balsemão no Diário Popular.
É neste contexto de mudança que surge uma maior preocupação com a cultura e se rasgam clareiras para os suplementos culturais nos anos 50 e 60. Assim, no que à imprensa diz respeito, vamos assistir, para lá do aparecimento das revistas literárias e de suplementos de jornais diários, entre outros, “Vida Literária e Artística” (Diário de Lisboa), “Quinta-Feira à Tarde” (Diário Popular), “Cultura e Arte” (Comércio do Porto), “Das Artes e das Letras” (Primeiro de Janeiro), “Suplemento Literário”[24] (Jornal de Notícias), “Diálogo” (Diário Ilustrado, vespertino criado em 1956), à emergência de suplementos culturais distribuídos com os periódicos da então chamada imprensa regional da província. Esses suplementos acabaram por representar um “campo propício para o desabrochar de vocações críticas e contribuíram, de modo determinante, para a formação de muitos dos que se iam iniciando na vida literária”.[25]
Como é sabido, já no século XIX o jornalismo ajudara a minorar as dificuldades económicas de alguns escritores, ajudando outros a sair do anonimato. À custa de artigos e folhetins que faziam publicar na imprensa, muitos acabaram por obter recursos económicos e notoriedade numa altura em que não era fácil o contacto com os leitores e a edição de livros estava longe de sustentar quem os publicava. Alexandre Herculano editou uma História de cunho popular na revista O Panorama, que albergou também, em folhetins, Lendas e Narrativas. As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis, seriam publicadas inicialmente em folhetins no Jornal do Porto. Por essa altura, as actividades de jornalista e de escritor conviviam de forma pacífica na mente dos portugueses. Era o tempo em que Camilo escrevia na Gazeta Literária do Porto e Eça publicava, na Revista Ocidental, em 1875, a primeira versão de O Crime do Padre Amaro. Era o tempo de Júlio César Machado, em que o folhetim de imprensa ganhava pergaminhos de manifestação cultural de primeira grandeza. Ou o de António Pedro Lopes de Mendonça, que travou em 1853, nas páginas dos jornais O Português e A Revolução de Setembro, uma notável polémica com Alexandre Herculano sobre questões – simbolizadas na construção dos caminhos de ferro – tão candentes como a identidade nacional, o conceito de Pátria ou a descentralização do país.[26]
Nos anos 60 do século XX raras eram as localidades com algum desenvolvimento económico-social que não dispunham de um jornal regional. Cada um desses jornais procura ser porta-voz dos anseios do concelho ou da região em que se insere e um lídimo defensor dos seus interesses. Apesar de haver suplementos culturais sem a qualidade desejada, numa perspectiva literária e jornalística, cumpriam pelo menos a função de noticiar junto dos leitores as várias iniciativas do campo cultural, como realizações teatrais ou a edição de livros, além de servirem de iniciação aos mais novos. A sua crescente importância tinha a ver com a forma como (não) era tratada a cultura nos jornais noticiosos ou de opinião. Foi a “menorização da cultura no corpo principal dos jornais” que esteve na base da criação dos suplementos literários e culturais.[27] Tratava-se de ir ao encontro das preocupações quotidianas do seu público, num registo que a informação de larga audiência não pode fornecer. Isto num tempo em que não existia, tão vincada como hoje, a ameaça do audiovisual que tende a ocupar o espaço da informação imediata e directa. A imprensa tinha sabido resistir à rádio e à televisão, disputando com elas a complementaridade e não a concorrência.
Se o coração do jornal regional tem que bater pela região, não é menos verdade que um jornal não é só aquilo que quem o faz pretende que ele seja: é também aquilo que o público leitor, a dado momento, exige que ele lhe dê. Os suplementos da imprensa regional mostram a evolução e as novidades que vão surgindo no campo das letras e das artes em geral e suprem, também, uma lacuna: publicam a crítica de livros, quase sempre menosprezada nos jornais literários – e por maioria de razão em todos os outros – durante os anos 50. Mas, como reconhecia António Augusto Menano em 1963, num inquérito promovido por Independência Literária destinado a carrear informação para debate no anunciado e então designado I Encontro dos Orientadores das Secções Culturais da Província, estes jornais deviam cumprir uma tarefa bem diferente da que cumpre a maioria dos periódicos regionalistas. Em seu entender, à imprensa regional não bastava noticiar doenças, casamentos, anseios ou esperanças locais. Importante seria fornecer ao “leitor popular” uma formação cultural “indispensável para construir um público leitor directamente interessado em algo mais do que o futebol. Não cumpre esclarecidamente a sua função um jornal de província que ignora a cultura”.[28]
Não deixa de ser curiosa esta alusão ao futebol como factor de alienação popular. Uns meses antes, o escritor Manuel Ferreira vinha a terreiro com um texto significativamente intitulado “Vento ruim nas culturas regionais”, no qual se insurge contra a cada vez mais notória função alienante do futebol. Depois de se ter instalado nas pequenas colectivdades, tudo passou a ser diferente: “A sala de exposições e conferências tornou-se a sala dos dias grandes da vitória. A dependência da biblioteca em arrecadação de botas. O convívio, o diálogo, as palavras de sonho e de esperança […] deram lugar à discussão azeda, à crítica estéril e impiedosa dos desafios que se perderam […] o futebol passou nas associações modestas, mas tão úteis, como o vento impiedoso da desagregação”.[29]
Tal como o futebol, também o folclore cumpriria essa função de alienação popular. Fernando Lopes Graça considerava mesmo os ranchos folclóricos “meras contrafacções” da cultura popular genuína.[30] Assistia-se, no início dos anos 60, a uma “desbocada supervalorização de todas as manifestações folclóricas” como forma de manter o povo “alapado no seu primitivismo secular”.[31] Como é sabido, a etnografia (folclore) funcionou como legitimação política do nacionalismo do Estado Novo e da sua doutrina em geral. O texto inserido em Independência Literária procurava resistir a um modelo específico de cultura popular, imposto precisamente por aqueles que lhe devotavam um desprezo ostensivo e dessa forma acentuavam, ainda mais, a distância entre o povo e as elites.[32]
Em nome de um ambíguo conceito de arte e cultura popular, procedia-se à adulteração “dos motivos populares autênticos, pela sua estilização (ou esterilização?) até ao irreconhecível, que reclamando-se do folclore nacional, o corrompe e cristaliza em formas artificiais”.[33] Estas denúncias nos jornais de província aconteciam num tempo em que grande parte da imprensa – com poder e associada ao poder – ajudava ao culto da ignorância e a uma deplorável confusão de valores, conduzindo inevitavelmente “ao delírio do futebol, ao ópio do fado e a essas tristes exibições de mau gosto, incultura e boçalidade que são os programas radiopublicitários”.[34] Contra este estado de coisas vão opor-se os neo-realistas. Ao “etnografismo domesticado e propagandístico” do Estado Novo vão contrapor uma concepção de etnografismo que se insere “numa dinâmica cultural revolucionária”, assente num “enraizamento interligado com uma cultura universalista de emancipação do homem”.[35] Como por aqui se vê, a imprensa cultural funcionava como instrumento de resistência e espaço privilegiado de difusão de uma cultura popular autónoma, à revelia da que era propagandeada pelo poder constituído.
O aparecimento de páginas ou suplementos literários em jornais de província obedecia, em regra, aos seguintes objectivos: abrir as suas colunas não apenas à informação regional, mas também à formação cultural; estar aberto a todas as colaborações e não apenas a um feixe de opiniões convergentes em torno de um qualquer movimento literário ou artístico; finalmente, dar a vez e a voz aos jovens, no convencimento de que a verdadeira capacidade dos mais velhos consiste em saber dar lugar aos novos. O aparecimento de revistas ou jornais tem sempre a ver com o aparecimento de um grupo, tendência ou vanguarda; com a tentativa de promover a satisfação cultural do público ou, até, com a vontade de “criar um espaço de divulgação para os escritores inéditos ou esquecidos”.[36]
Era isso que sintetizava exemplarmente António Augusto Menano, quando começou a publicar-se, na Figueira da Foz, o suplemento literário do jornal Mar Alto: “Não compete às páginas dos jornais de província erguer gritos demagógicos, condenando, endeusando ou obnubilando conforme o bel-prazer de quem nelas colabora. Não cremos ser essa a nossa tarefa; antes, pelo contrário, trazer às nossas colunas o nome ou a colaboração de todos os que, consagrados ou desconhecidos, entendem que a cultura é a dimensão de um povo, e que a sinceridade, a temporalidade, o talento e, sobretudo, a honestidade são a recomendação da obra e do artista. Razão pela qual não somos um movimento e as nossas colunas estão abertas à colaboração de todos”.[37] Digamos que cumprir esse desiderato significava não se assumir como jornal de partido nem permitir que alguém tirasse partido do jornal. António Augusto Menano estava apostado num debate cultural que fosse ao encontro de um público necessariamente heterogéneo, o que pressupunha não ceder à tentação de deslizar para qualquer tipo de ortodoxias políticas, literárias ou estéticas e saber renunciar ao espírito de capelinha, às tribunas só para os amigos.
Importa também referir o importante papel de divulgação e difusão cultural desempenhado por jornais e revistas dos anos 60 como o Jornal de Letras e Artes ou OTempo e o Modo, na divulgação de novas vanguardas e propostas literárias. Aí podemos encontrar, sobretudo no jornal dirigido por Azevedo Soares (cuja publicação se iniciou em 1961), abundantes textos informativos e artigos críticos sobre o neo-realismo, o existencialismo, o formalismo, o estruturalismo ou o Nouveau Roman, moda romanesca oriunda de França que contribuiu para “informar as tendências de ‘ensimesmamento’ literário dos anos 60 e 70 em Portugal”.[38]
Também outros periódicos (como o Comércio do Funchal, onde pontificava Vicente Jorge Silva, o Jornal do Fundão, dirigido por António Paulouro, Flor do Tâmega, de Amarante e Notícias da Amadora), apelidados na década de 60 de “jornais provincianos”, prosseguiam um notável esforço de valorização das actividades literárias e artísticas em geral, mau grado as notórias dificuldades com que se debatiam.[39] O mesmo se diga, bem longe do continente, de publicações como A Voz de Moçambique, Notícias, de Lourenço Marques, um jornal de referência dessa época, fundado pelo capitão Simões Vaz, ou de outros sonhos jornalísticos mais ou menos fugazes, porque cercados pelo poder político ou económico, como A Voz de Moçambique (onde colaboravam Rui Knopfli e Eugénio Lisboa), a Voz Africana ou o diário Tribuna, que Ilídio Rocha ajudou a fundar.[40]
2.2 Imprensa e censura
Analisar a imprensa de uma época permite captar a dimensão ideológica e política da sociedade desse tempo. Há mesmo quem a considere “o indicador mais digno de fé e o mais negligenciado”.[41] A prova de que a historiografia de há muito reconhece o valor da imprensa periódica como fonte histórica está nas preocupações com que aconselha a sua preservação. É que “ao assumir feição memorialista no instante em que aparentemente morre, o jornal adquire a pátina documental que o torna tão digno de consideração como as demais fontes históricas”.[42]
A imprensa, enquanto arquivo do quotidiano, reflecte as tendências de uma época, permite estudar comparativamente a forma como certos factos são narrados em diferentes jornais, analisá-los enquanto órgãos de expressão de um partido político e, até, identificar a clientela dos seus leitores com determinadas famílias políticas.[43] Mas a sua leitura requer também preocupações especiais, como adverte Henri Berr, ao salientar que a imprensa periódica nos oferece “uma prodigiosa [mas também] uma perigosa documentação: espelho de múltiplas facetas em que a imagem da vida aparece singularmente confusa”.[44]
O papel activo da imprensa na vida social e política e no processo de formação da opinião pública, a sua função de porta-voz de grupos de interesses e de informação e orientação em momentos conturbados da vida nacional, são aspectos a não desprezar. Como referia Foucault, a história, o discurso – e, portanto, também o discurso jornalístico – é uma representação das relações de força e de poder de um tempo, de uma época. António Pedro Pita, ao debruçar-se sobre o neo-realismo, mostra que as páginas de literatura e arte dos jornais regionais, assim como das publicações de circulação nacional, permitem, a partir de 1933, “rastrear a ocorrência de teses fundamentais do materialismo histórico [já que] constituem, para a geração que desencadeou o neo-realismo, os meios de definição de uma estratégia sistemática”.[45]
É sobretudo em épocas de tensão e crise que governos e grupos de pressão sentem maior apetência pelo controlo da imprensa e demais publicações periódicas, aproveitando-se da sua função ideológica “de elo social no sentido do restabelecimento da ordem social pré-existente, ou no sentido da sua mudança”.[46] No Estado Novo existia uma orientação selectiva da censura. Como tal, não era preciso dissolver ou suprimir, por sistema, as publicações afectas à oposição. O facto de uma publicação não ser suspensa, ou suprimida, não permite concluir que tivesse adoptado uma atitude de colaboração com o salazarismo. Isto porque o regime “não proibiu ou dissolveu sistematicamente as publicações afectas à oposição. Estas sobreviveram ao longo dos anos trinta, isoladas ou reduzidas a um público intelectual e puderam até debater o significado social da arte ou o pacto germano-soviético”.[47] Eram coisas que aparentemente não criavam fissuras no regime.
Havia, porém, coisas que a imprensa não podia divulgar, como dizer, simplesmente, que os mendigos vagueavam pelas ruas. O regime tinha abolido teoricamente o conflito e por isso qualquer tentativa da sua exposição pública era logo cerceada. Aliás, dizia Salazar, “politicamente só existe o que o público sabe que existe”. E também dizia que “o jornal é o alimento espiritual do povo e deve ser fiscalizado como todos os alimentos”.[48] Era isso que propugnava um jornal do distrito de Aveiro, o Lutador,[49] que se dizia ao serviço da Pátria. Ao comentar o II Encontro da Imprensa Regional das Beiras, que decorreu na Figueira da Foz nos dias 20 e 21 de Junho de 1969, acaba por concluir que “a Censura tem merecimento quando os seus agentes reúnem uma formação moral e intelectual válida”.[50]
O Estado Novo garantia a sua propaganda nessa imprensa, ao obrigá-la a não recusar a inserção das célebres notas oficiosas enviadas pelo governo. E, como também estava instituída a censura à imprensa estrangeira entrada em Portugal que contivesse “matéria cuja divulgação não seria permitida em publicações portuguesas”, ficamos esclarecidos sobre o caudal de informação “plural” a que os leitores de periódicos portugueses tinham acesso. Os próprios livros passavam pelo crivo da censura. Embora formalmente isso só tenha acontecido em 1943, já antes se assistia ao confisco das obras e à sua retirada do mercado. A extensão destes atropelos é, porém, muito mais vasta. Da imprensa ao cinema, do teatro à música e à literatura, nenhum domínio da informação e da criação artística era descurado pelo Estado Novo. Salazar, aliás, mostrava conhecer bem as trincheiras onde se acantonavam os seus adversários políticos. Em 1938, numa alocução aos legionários, dizia abertamente onde está o “inimigo”: “está no ensino, está ainda na imprensa, está ainda no teatro, e no cinema”.[51]
Vale a pena relembrar que em Maio de 1965 se deu um dos maiores atentados à cultura e à liberdade: o encerramento da Sociedade Portuguesa de Escritores, cuja sede foi assaltada e destruída com o pretexto da atribuição do Grande Prémio de Novela a Luandino Vieira, à data no Tarrafal a cumprir 14 anos de prisão. Entretanto, a PIDE prendeu membros do júri que haviam atribuído o prémio, mesmo os que votaram contra ou não votaram: João Gaspar Simões, Augusto Abelaira, Fernanda Botelho, Manuel da Fonseca e Alexandre Pinheiro Torres. No rescaldo dos acontecimentos viria a ser suspenso o Jornal do Fundão. Um texto de Alexandre Pinheiro Torres provocou “a suspensão do jornal por seis meses, uma multa pesada e um regime especial de censura: o envio dos textos, das páginas de composição, títulos e ilustrações para a direcção da censura, em Lisboa, em vez de serem mandados, como era costume, para a delegação de Castelo Branco”.[52]
Entre o que pensava Salazar da imprensa e o que sobre a matéria estava consagrado na Constituição de 1933, que no seu artigo 8.º garantia “a liberdade de expressão do pensamento sob qualquer forma”, está bem patente o desencontro entre as práticas e as representações do regime fascista. Aliás, no próprio dia em que entrava em vigor a Constituição, entrava também em vigor a lei especial que regulava a “liberdade de expressão” (Decreto-Lei n.º 22469), que iria perdurar até 1972, estabelecendo a censura prévia à imprensa e a outras publicações, “sempre que em qualquer delas se versem assuntos de carácter político ou social”.[53] Não basta dizer que Salazar governou com uma Constituição. O que interessa é saber se a respeitava e fazia cumprir escrupulosamente, ou se, ao invés, a prática política transformava muito do seu articulado em letra morta. Como bem sabemos, o regime comportava-se, um pouco prosaicamente, ao estilo olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço. Este caminho juncado de escolhos e atentados à liberdade fica exemplarmente espelhado na resposta que Mário Sacramento dá quando lhe perguntam: qual a missão que entende que a Imprensa deve desempenhar? A resposta é particularmente lúcida e objectiva: “há que atender, primeiro, à que pode desempenhar. E, depois, à que os interesses que a financiam lhe circunscrevem”.[54]
É tendo em conta toda esta panóplia de constrangimentos que devemos analisar a história dos suplementos culturais da imprensa regional.
3. Suplemento Companha (semanário Litoral)
Foi em Setembro de 1959 que o semanário Litoral [55] começou a publicar o suplemento cultural Companha. Uns tantos amigos do jornal decidiram “elegê-lo para tronco de novos viços, irmanados na esperança de que o tronco, pelo “vergônteo vigor de seiva e pela altura que ambicionava atingisse robustez própria, alcançando culminâncias tais, que o velho suporte lhe ficasse quase inútil e distanciado na modéstia do seu inicial escopo”. Em nota de abertura, o director do suplemento afirmava não ignorar “as responsabilidades impostas pelo sentido da palavra Cultura” e prometia um suplemento “incondicionado a outras normas que não sejam as duma intransigente honestidade e as dum amplo arejamento mental”.[56]
Dedicado às Artes, Letras e Ciências, viria a ter uma duração efémera. Conhecem-se 4 números, publicados entre Setembro e Dezembro desse ano. Não foi possível identificar, em qualquer documento escrito, a razão para tão curta vida. Tudo aponta para divergências entre alguns colaboradores e a direcção do jornal quanto ao rumo a seguir. E também – hipótese mais plausível – por lhe ter, entretanto, escasseado o indispensável apoio publicitário.
Para lá da colaboração de figuras de proa da vida literária e artística nacional, o suplemento é assegurado por 19 personalidades identificadas com a região e a cultura aveirense.[57] São os orientadores e cooperadores de Companha. Alguns, como o escritor José Marmelo e Silva (1911-1991) e o ensaísta Mário Sacramento (1920-1969), eram já nomes com reconhecimento nacional à data da publicação do suplemento. O autor de Sedução (1937) e Adolescente Agrilhoado (1958) tinha, na altura, 48 anos. O médico aveirense tinha apenas 39, mas contava já com um lastro político e cultural pouco comum para a idade: a polícia política do regime prende-o aos 17 anos, ainda estudante liceal e director do jornal A Voz Académica.[58] Em 1943 edita o ensaio A criança nas relações com o adulto. Em 1945 publica Eça de Queirós – uma estética da ironia, obra em que consegue delimitar, “com grande finura e brilho, um conjunto de articulações inteligíveis que fazem da obra de Eça de Queirós um objecto particular e único, […] um penetrante e conseguido roteiro do espírito eciano”.[59] Em 1957 é a figura patriarcal da organização do I Congresso da Oposição Democrática em Aveiro. Em 1958 publica Fernando Pessoa, poeta da hora absurda. No próprio ano em que surge o suplemento Companha dá à estampa Teatro Anatómico e o primeiro volume dos Ensaios de Domingo (1959), ao mesmo tempo que colabora no suplemento literário d’O Comércio do Porto, acabando por interromper a actividade crítica no ano seguinte com a ida para Paris, onde vai especializar-se em gastroenterologia com uma bolsa atribuída pelo governo francês.
Entre os colaboradores locais, alguns eram ou viriam a tornar-se personalidades marcantes na vida cultural e artística da cidade salgada. Citem-se os nomes de David Cristo,[60] António Brásio,[61] António Cristo,[62] Carlos de Morais,[63] Costa e Melo[64], Eduardo Cerqueira[65], Frederico de Moura[66], Gaspar Albino[67], João Sarabando[68], João Artur Trindade Salgueiro, Joaquim Correia,[69] Jorge Mendes Leal, José Penicheiro,[70] José Pereira Tavares[71], Luiz Regala[72], Mário da Rocha,[73] Pinto da Costa e Vasco Branco[74].
Para lá destes nomes, Companha acolhe nas suas páginas os de outras personalidades, umas conotadas com o neo-realismo outras não. Entre as mais relevantes estão Eugénio de Andrade, Mário Braga, José Palla e Carmo, Jacinto do Prado Coelho, Luísa Dacosta, Mário Dionísio, Vergílio Ferreira, Lília da Fonseca, Natércia Freire, Vasco Granja, Joaquim Namorado, António Rebordão Navarro, Roberto Nobre, Alberto Pimenta, Artur Portela Filho, Ilídio Sardoeira, Alberto de Serpa, Taborda de Vasconcelos e Lobo Vilela.
Além de temas relacionados com personalidades da vida local (João Afonso de Aveiro, Jaime de Magalhães Lima[75], José Pereira Tavares) o suplemento insere outros relacionados com arte, poesia portuguesa e brasileira, recensões críticas, ciência, cinema, contos e crónicas, entrevistas, filosofia, tapeçaria e teatro. A inclusão no suplemento de assuntos ligados ao teatro ou ao cinema tinha toda a pertinência. No mesmo ano em que Companha vê a luz do dia, já tinha sido criado o CETA – Círculo Experimental de Teatro de Aveiro, no mês de Fevereiro. Curioso é notar que logo em 3 de Julho de 1959 o CETA tem pronto o primeiro espectáculo, composto pelas peças “O Urso”, de Anton Tcheckov, “O Dia Seguinte”, de Luiz Francisco Rebelo e um entreacto de poesia de Carlos de Morais. Acontece, porém, que a censura e a PIDE vão proibir a sua apresentação nessa data, apenas porque Mário Sacramento assinava um texto de apresentação. O espectáculo seria levado à cena no Teatro Aveirense, em 31 de Julho de 1959, depois de eliminado na totalidade o referido texto, entretanto substituído por um outro da autoria de David Cristo, director do Litoral e de Companha. O termo “Experimental” causava engulhos à censura (talvez por “cheirar” a novo, a vanguarda, a contracultura capaz de estilhaçar a paz podre reinante…), e por isso o CETA foi proibido de o utilizar.[76] Sobre teatro e grupos experimentais de amadores, o dramaturgo Costa Ferreira propunha a constituição de um Conselho Técnico de Teatro de Amadores capaz de esclarecer sobre o conteúdo e o valor estético das peças escolhidas. Isto, porque via no teatro de amadores dois perigos: “um deles é deixar os amadores entregues a um gosto desactualizado […]. Outro perigo é o de lhes impor um reportório cultivado que eles não compreendem nem sentem”.[77]
Quanto à inclusão, no suplemento, de conteúdos sobre cinema, ela justifica-se pelo facto de, à semelhança do que acontecia com o teatro, também existir em Aveiro um Cineclube, que teve a sua primeira exibição a 11 de Março de 1955, com Luzes da Cidade, de Charlie Chaplin. Por essa altura o trabalho dos cineclubes permite exercitar, dentro dos condicionalismos existentes, a liberdade de expressão. Havia debate, trocavam-se ideias, promoviam-se cursos de formação teórica e prática e procurava-se valorizar o cinema infantil. Não admira, por isso, que a imprensa cultural reserve à sétima arte um canto na sua paginação como forma de garantir o carácter informativo e formativo do público. Incapaz de promover por si só uma divulgação em larga escala, o cineclube “projecta-se através do jornal e amplia o seu raio de acção”. António Augusto Sales dá conta, em 1961, ao abordar a importância da imprensa regional na difusão da cultura cinematográfica, de secções de cinema em jornais como A Planície (Moura), Jornal do Fundão, Jornal do Ribatejo (Santarém), Badaladas (Torres Vedras), O Setubalense (Setúbal), O Almonda (Torres Novas), O Oliveirense (Oliveira de Azeméis), e O Alcoa (Alcobaça), entre outros. Quer o jornal quer o cinema saíam valorizados: o jornal, porque quebrava o marasmo e difundia uma actividade associativa local; o cinema, porque através da imprensa – às vezes tão minguada de assuntos com relevo cultural – encontrava acolhimento para um renovado sopro anímico das incipientes actividades cineclubistas e do próprio cinema enquanto expressão de uma verdadeira arte humana.[78]
O número inicial do suplemento insere o ensaio de Mário Sacramento “O testemunho de Dante”, texto datado de 1953 e publicado em Ensaios de Domingo. E contém uma entrevista a José Régio. À pergunta: É da opinião de que o Escritor deve cultivar a Arte pela Arte ou a Arte pela Vida? – o autor de Poemas de Deus e do Diabo responde: “Sempre tenho sustentado, creio que sempre sustentarei que a Arte é uma actividade que a si própria se basta. Acho que não precisa de desculpas. A sua verdadeira grande utilidade é elevar, enriquecer, ampliar, aprofundar o espírito do homem. Por isso mesmo não pode estar ao serviço seja do que for – antes de tudo se serve. E por isso mesmo, porque de tudo se serve, nunca pude admitir uma verdadeira Arte divorciada da Vida”. À questão: No Príncipe com orelhas de burro, quando diz que os poetas, os artistas em geral, não devem temer a sinceridade pois é-lhes disfarce bastante a roupagem inevitável da forma, considera que esta existe de “per si”, sem íntima conexão com o conteúdo? – Régio responde: “Não, não creio que na verdadeira criação artística a forma exista de “per si” ou sem íntima conexão com o conteúdo. Realizar uma obra de arte é, exactamente, dar forma […]. No meu entender, tanto mais satisfatória é uma realização artística quanto mais íntima for a já aludida conexão entre o que chamamos forma e o que chamamos conteúdo”. [79]
Mário Dionísio não desdenharia desta concepção de arte quando afirmava, em 1961, que “tudo em arte se consubstancia em realidade formal”.[80] A crítica de que aos homens da presença interessaria sobretudo a forma, dificilmente resiste a estas palavras a que Régio recorre para se defender desse tipo de acusação, após reconhecer que a individualidade do artista é essencial na obra de arte: “Quer isto dizer que as preocupações de ordem política, religiosa, patriótica, social, ética – hão-de, forçosamente, ser banidas da obra de arte? De modo nenhum. E quem dirá que tais preocupações são banidas da Obra dum Dostoievski ou dum Ibsen, dum Strindberg ou dum Pirandello, dum Gide ou dum Shaw, dum Claudel ou dum Gorki, dum Antero ou dum Tagore?”[81]
As respostas de Régio são coerentes com tudo o que já antes dissera e escrevera sobre o assunto. Num artigo programático que escreveu para o primeiro número da Presença, que surgiu em Coimbra no dia 10 de Março de 1927, e no qual interliga os conceitos de originalidade e sinceridade, anotava: “Em Arte, é vivo tudo o que é original. É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais íntima duma personalidade artística. A primeira condição de uma obra viva é, pois, ter uma personalidade e obedecer-lhe”. E mais adiante: “Pretendo aludir nestas linhas a dois vícios que inferiorizam grande parte da nossa literatura contemporânea […]. São eles: a falta de originalidade e a falta de sinceridade”.[82] Esta era, de facto, uma questão candente numa literatura que muitos consideram mais crítica que criadora: a preocupação com a sinceridade e a personalidade, assim como “a importância da realidade psíquica na ordenação teorética predominante no grupo, a imposição duma literatura arrancada às virtualidades pessoais do artista criador”.[83]
Merecem também destaque, neste primeiro número de Companha, as respostas de Jacinto do Prado Coelho e Mário Dionísio a um inquérito sobre a atribuição do prémio Camilo Castelo Branco a Léah, de José Rodrigues Miguéis; a poesia de Pedro Zargo (“Sou torturado desenho/ De vaga forma esboçada,/ Como aquele inútil nada/ Em que, indiferente me tenho!”) e de Joaquim Namorado (“Em tudo o que nega o homem e a vida/ reconhece a tua face verdadeira…/ e vendo o que és na pura imagem do que somos/ morre como um cão raivoso/ da própria peçonha”); o conto de Vergílio Ferreira “o fantasma”; o texto de João Sarabando sobre arte popular, intitulado “O Povo – mestre minimizado, mestre desconhecido” e ainda o artigo de Alberto Pimenta “O Teatro – arte, de intriga – escola de títeres e o anti-Teatro de Ionesco”.
Após esboçar uma breve resenha do teatro grego e medieval, Alberto Pimenta centra-se no teatro de Bertolt Brecht, no qual o espectador “já não vai aliar-se com o plano da intriga, mas tomar consciência da sua responsabilidade de homem perante os problemas-em-arte postos por um Teatro que de novo o transcende e o subjuga”. Estamos a falar de uma concepção de arte que “não contém a História e a sociedade, não contém o futuro, mas abre para ele [e assim destrói] a ideia da “obra” como objecto acabado”. A arte passa então a ser “limiar, abertura, plataforma, cujo destino é ser constantemente reapropriada por sujeitos históricos que a usam em lugar de serem (ab)usados por ela”. É, pois, esta concepção de arte que “fundamenta a insistência da teoria brechtiana no papel activo do leitor e do espectador”.[84]
Alberto Pimenta fala também de Ionesco e de um novo Teatro “desnudado e impiedoso por todos os lados” para, enfim, concluir: “Assim se realiza, afinal, por uma nova devoção, o Anti-Teatro, Teatro aparentemente negativo (e só aparentemente) e fase do eterno Teatro-Arte”.[85] Esta abordagem parece conter já aquilo que viria a caracterizar, na década de 60, as vanguardas sintonizadas com a anti-arte e a contracultura: “formas de recusa, simultaneamente, da cultura em sentido tradicional e da cultura massificada”.[86]
Para o autor de O Silêncio dos Poetas, esta arte “anti” (anti-romance, anti-teatro, anti-poema) está a priori ameaçada “tanto pelo pensamento idealista e conservador como pelo pensamento materialista”. Pelo primeiro, porque entende a arte moderna como “depauperação dos símbolos eternos e transcendentes e, desse modo, como sintoma de incurável decadência cultural”; pelo segundo, porque vê nela a “ruptura com a suposta função natural da arte, com a função didáctico-recreativa, e, assim, a ruptura com a ‘realidade produtiva’ da comunicação”.[87] Tanto o materialismo como o idealismo recusam esta arte ‘moderna’ por verem no seu cinismo e, até, na sua agressão ou crueldade, não formas de libertação mas de desmoronamento da ordem. Referindo-se às oposições fundamentais que separam o realismo de toda a arte de vanguarda – visão do mundo, noção da função da arte e do papel do artista na sociedade contemporânea – Mário Dionísio diria, em 1963: “Acho ingénuo, por exemplo, supor que o anti-teatro, o anti-romance ou a anti-pintura produzirão ou sequer pretenderão […] a ruína do teatro, do romance ou da pintura”, E acrescentava: “O grande primeiro problema literário e artístico do realismo destes dias refere-se, em minha opinião, precisamente, à contradição inevitável que consiste em ser ele, de raiz, anti-arte de vanguarda e em não ser possível no mundo de hoje (mundo de todos nós) criar qualquer arte autêntica e portanto, renovadora, que não passe por uma atitude de vanguarda”.[88]
O n.º 2 de Companha volta a inserir um texto de Mário Sacramento, “A última aventura de Júlio Verne. Fábulas sem classificação especial” e outro de Alberto Pimenta, “Tragédia e Comédia – conceitos e realizações”. Para lá disso, há uma crónica de Antunes da Silva, um ensaio de José Palla e Carmo (“Poesia – versus/versos”), poemas de Dinis de Ramos e Amândio Sereno (pseudónimo de Vasco Branco), dois inéditos de Jaime de Magalhães Lima, um texto de Ilídio Sardoeira sobre ciência, um conto de Frederico de Moura e recensões literárias, uma delas a Mar Santo, de Branquinho da Fonseca, que com Adolfo Rocha (Miguel Torga) e Edmundo de Bettencourt protagonizaram em 1930 uma primeira cisão do movimento da Presença, afastando-se da revista coimbrã três anos depois desta começar a publicar-se.
Depois de assinalar a “fraca intriga” desta novela, o autor da recensão não deixa de lhe acentuar os seus merecimentos: “Tudo nos aparece com naturalidade, com brilho, com equilíbrio. Os diálogos como que foram recolhidos daquele linguajar embebido de maresia […]. Em meu ver também a Presença esteve presente na realização desta obra. O mesmo sentido mórbido, o mesmo tom deprimente […], que na generalidade os presencistas beberam em Raul Brandão, se evola de quase todo o contexto. Porém, uma verdadeira compaixão pela humanidade que parece aproximar Branquinho da Fonseca do neo-realismo, se desprende de frases como esta: e a rede lá vem vindo, arrastada por aquelas negras filas de escravos, dobrados, chicoteados pela voz que dá esperança”.[89]
O suplemento n.º 3 de Companha inclui ensaios de Lobo Vilela (“Considerações gerais sobre factos”) e de José Palla e Carmo (continuação de “Poesia – versus/versos”, onde aborda a terceira fase da poética brasileira – a da geração de 45, dos “neo-modernistas”, dos concretistas e dos neo-concretistas, em que se teria verificado, segundo Alceu do Amoroso Lima, “o primado do verso sobre a poesia” e da “razão” sobre o “instinto”, fase esta que não teria produzido “entretanto nenhum grande poeta”. Há também um texto de Costa e Melo (“Jean Cocteau e a sinceridade na Arte”), apontamentos de Vasco Granja sobre o cinema japonês, poesias de António Rebordão Navarro, Eugénio de Andrade e Natércia Freire, um texto de Alberto Pimenta intitulado “Teatro e o problema das adaptações”, uma crítica de Jorge Mendes Leal ao romance de Joaquim Lagoeiro Mosca na Vidraça e o ensaio de Mário da Rocha “A crítica, uma segunda criação”, onde perpassa a polémica entre presencistas, neo-realistas e existencialistas.
Com este suplemento n.º 3 nasce a ideia de criar uma secção de convívio entre leitores e autores, em que os primeiros dirigem aos segundos “as dúvidas, sugestões, perplexidades, reparos, meditações […] que a leitura dos seus livros ou a audição ou contemplação das suas obras lhes despertem”. Aos autores caberia responder, se assim o entendessem. A ideia era recolher os resultados do “diálogo entre criação e fruição que toda a obra de arte ou de pensamento pressupõe”.[90]
O pontapé de saída foi dado por Mário Sacramento, que na qualidade de leitor dirige uma carta a Fernando Namora. O pretexto é o facto de ambos serem médicos, discípulos de Hipócrates, mas também amantes da literatura. Entre as várias questões suscitadas pelo autor dos Ensaios de Domingo está a da dificuldade que sente o escritor-médico em emancipar-se do exercício da clínica e a da sedução pela escola de humanismo que se acreditava ser imanente ao exercício da medicina; e está também a dos problemas que se colocam à conciliação entre duas actividades tão distintas; ou a dos que abandonam a medicina para se dedicarem – e se realizarem – em exclusivo à escrita, à política ou a outras artes.
A resposta de Namora aparece no número seguinte de Companha e mostra-nos que o autor de Deuses e Demónios da Medicina nunca dissociou o escritor do médico. Como diria o ensaísta aveirense, a propósito deste entrelaçamento das duas actividades: “A obra do primeiro vive da experiência do segundo e isso é (mais do que parece) uma originalidade e uma singularidade sua”.[91] Cada uma dessas facetas complementaria ou ajudaria a iluminar as demais.
O quarto e último número de Companha, apesar de impresso, não teve divulgação pública. Embora sem publicidade e desconhecendo-se as razões pelas quais não chegou a ser angariada, existe encadernado com os restantes exemplares. Luiz Regala, um dos colaboradores locais e cooperante do suplemento, que assinava a sua poesia com o pseudónimo de Pedro Zargo, desvenda, num cartão encontrado no espólio particular, remetido a José Manuel Tavares Abrantes – à data encadernador da Tipografia Lusitânia – quem guarda esse relicário da memória aveirense: “Caro José: A coleção desse suplemento de ‘O Litoral’, que dedicadamente conservas, e que, mercê dos teus méritos artísticos, tu próprio encadernaste, – aí fica para a posteridade dos Aveirenses, talvez um dia – quem sabe? – para fazer parte do espólio cultural da Biblioteca Municipal de Aveiro. A ti pertence – mais tarde – essa dádiva à nossa querida Cidade”.
Este derradeiro suplemento insere um texto (“As imagens têm voz”) onde Roberto Nobre se insurge contra os que pretendem reduzir o cinema, quando sonoro e dialogado, a mero teatro, e aborda as diferenças fundamentais entre uma e outra arte, considerando uma simplificação grosseira situar tais diferenças apenas no facto de qualquer delas ter ou não diálogos. Por essa altura, Beckett e Ionesco introduziam no teatro um “voluntário empobrecimento da linguagem (expressão e agente dum estado máximo de corrupção de uma classe de homens que apodrece tentando apodrecer o homem todo), a sua sátira implacável às possibilidades de comunicação”.[92]
Sublinhe-se que este teatro de Beckett e Ionesco irrompe no seio da sociedade industrial prestes a caminhar para a sociedade de consumo e é no interior das suas estruturas que se desenvolve. Como qualquer vanguarda, estabelece uma ruptura, “grita a sua revolta contra a perda de sentido das palavras”. Só que, não estando directamente integrado num determinado sistema de relações de produção, resta ao artista, “enquadrado na ordem burguesa e incapaz dela sair, a revolta violenta, antes de mais estética, depois (talvez) ética, mas nunca política”.[93] Este teatro de vanguarda, por falta de consciência política, não atinge verdadeiramente o cerne da classe dominante. Enquanto espectáculos de destruição, “nada destroem porque nunca atacam uma estrutura real, política, da sociedade. E é por isso que facilmente são integrados e recuperados”.[94] É assim que pensa Roland Barthes, quando afirma: “É provável que a vanguarda nunca tenha sido para o artista senão um meio de resolver uma contradição histórica precisa: a de uma burguesia desmascarada, que já não podia aspirar ao seu universalismo original senão sob a forma de um protesto violento dirigido contra si mesma: violência em primeiro lugar, estética, dirigida contra o filisteu, e depois, de uma maneira cada vez mais empenhada, violência ética, quando as próprias condutas da vida receberam o encargo de contestar a ordem burguesa (nos surrealistas, por exemplo); mas violência política, nunca […]. Tudo se passa como se houvesse um equilíbrio secreto e profundo entre as tropas da arte conformista e os seus fuzileiros audaciosos.”[95]
Para melhor colocar o problema, o autor recorre a René Clair, que afirmava, na altura do aparecimento dos fonofilmes, que o cinema “não deveria servir os diálogos, portanto o teatro, mas utilizar a dicção, a música, os ruídos para sublinhar, para completar a imagem do cinema como cinema”. Para Roberto Nobre o cinema “não é apenas um hábil aglutinador de todas as outras artes, plásticas e ficcionistas. Ele tem profundas características peculiares, uma filosofia de arte própria […] uma linguagem, um estilo, tão dúctil e subjectivo como o de uma bela prosa ao serviço do romancista [e] o facto do cinema ter passado a conter diálogos, mesmo quando belos diálogos, sóbrios, talentosos, não modificou a sua essência divergente da do teatro […] pois é no acto de encenar que eles se opõem”.[96] Dito de outro modo, sustentava, na esteira de Kandinsky, que “cada arte, aprofundando-se, fecha-se em si mesmo e separa-se”. A apropriação, pelo cinema, de terrenos que eram pertença da ficção literária ou mesmo das artes plásticas, não poderia causar qualquer estranheza. Para Mário Dionísio, também a literatura e as artes plásticas não deixaram de ‘roubar’ ao cinema. Todas as artes “roubam”. No caso da literatura, por exemplo, “o realismo de Courbet precedeu o de Flaubert”.[97]
Realce também uma entrevista com Mário Braga,[98] editor da Vértice entre 1946 e 1965 e considerado um renovador do conto moderno sob a égide do neo-realismo. Questionado, na qualidade de dirigente de uma revista de cultura como a Vértice, sobre a aceitação do público e sobretudo da juventude perante os grandes problemas do seu tempo, Mário Braga responde: “Só lendo as cartas de aplauso ou crítica diariamente recebidas, só apreciando a firmeza de centenas de leitores […] se pode verificar em que medida está viva no povo português a ânsia de se cultivar, de conviver ideologicamente. A par do interesse literário verificamos um constante desejo de esclarecimento, sobretudo pelo que respeita a problemas nacionais, daí que estejamos a prestar uma atenção especial à parte do Panorama da revista, a mais informativa e com carácter mais actual”.
Nova pergunta de Companha: que pensa da situação do neo-realismo português, durante a guerra, nos anos que se lhe seguiram e no momento presente? Mário Braga considera que, em parte, “foi esse mesmo espírito heróico e generoso, esse anseio justicialista que conduziu os mais jovens escritores da época de 40 para o realismo”. Mas o futuro autor de Entre duas Tiranias (1977) não deixaria de criticar os que, no interior dum movimento que procurava criar o homem total – aquele que, “liberto economicamente ou ciente dos caminhos dessa libertação, é ao mesmo tempo sujeito e objecto da realidade” – se afastaram de tais propósitos, aqui enunciados de modo tão esquemático. Para Mário Braga tais propósitos “foram muitas vezes perdidos de vista ou até ignorados por alguns cultores do neo-realismo português, os quais se cingiram a descrever o povo, sobretudo o rural, com simples olhos sentimentais, através de óculos tingidos ainda de naturalismo”. E reforçando esta crítica, acrescenta que “ mesmo os mais válidos representantes do movimento poucas vezes têm conseguido dar-nos outra coisa além do homem como objecto […] quebra esta que compromete a unidade a que se aspira”.[99] Mário Braga insurge-se contra certas formas de naturalismo que por essa altura (a entrevista é de 1959) se intitulam, de forma abusiva, realistas.
Inclui ainda este volumoso suplemento poesias de Pedro Zargo, Pinto da Costa, Amândio Sereno, Alberto Pimenta, Dinis de Ramos, Joaquim Namorado, Alberto de Serpa e Lília da Fonseca; um texto de José Palla e Carmo que analisa 3 poemas de William Carlos Williams, poeta norte-americano nascido em 1883 e que cultivou o experimentalismo ao longo da sua obra; um conto de Artur Portela Filho (“Rodolfo da Cantuária”); a já aludida “Carta a Mário Sacramento”, de Fernando Namora; breves alusões críticas a obras como Onde a Noite se Acaba, de José Rodrigues Miguéis, Tanta Gente Mariana, de Maria Judite de Carvalho, O Lugre, de Bernardo Santareno, Uma Fenda na Muralha, de Alves Redol, O Cais das Colunas, de Tomaz Ribas, ou Luís de Camões, de António José Saraiva; uma “Carta a Luís Francisco Rebello” assinada por [Armando] Pereira da Silva; um “Digesto de Notícias” sobre literatura, artes plásticas e cinema; a evocação de Raul Brandão por Taborda de Vasconcelos; um conto de Augusto Sereno (“Ilusões”); uma entrevista a José Pereira Tavares; uma crónica de Mário Pinho (“Concerto do Silêncio”) e um texto de Vasco Branco sobre ciência (“Do infinitamente pequeno ao infinitamente grande”), extraído do livro então no prelo Do Ignoto aos Satélites Artificiais, mas que seria publicado ainda em 1959, ano do suplemento.
Sem que pudesse prever, na altura, que este seria o seu derradeiro gemido cultural, Companha anunciava que doravante iria mostrar aos seus leitores reproduções das obras que, pelo seu valor intrínseco, representassem contribuições válidas para o desenvolvimento das correntes artísticas em Portugal. Uma intenção nobre, não tanto por se encontrar na ordem do dia, mas precisamente porque à época o não estava. O suplemento reproduziu, neste n.º 4, uma litografia de Rogério Ribeiro e um trabalho do artista Querubim Lapa.
4. Suplemento Independência Literária (semanário Independência de Águeda)
Antes mesmo do suplemento mensal Independência Literária ver a luz do dia, já se publicava uma Página Literária no Independência de Águeda,[100]assegurada por Arsénio Mota.[101]
O n.º 1 surge em Outubro de 1961. A partir do n.º 4, Manuel Ferreira é convidado para co-director. O autor do romance Hora Di Bai e reputado conhecedor da literatura cabo-verdiana tinha muitos e variados contactos com escritores de Lisboa, o que acalentava a esperança de trazer para o jornal gente com pergaminhos firmados na área da cultura. Apesar dessa inequívoca mais-valia, Arsénio Mota lamentava, um ano depois, as múltiplas obrigações profissionais que há meses impediam Manuel Ferreira de trabalhar a seu lado, não o desonerando, como inicialmente teria suposto, do trabalho árduo e paciente que era a construção dum suplemento cultural num contexto político, social e de economia fechada e nacionalista juncado de escolhos.[102]
O aparecimento de Independência Literária está ligado à necessidade de mais espaço gráfico e de uma mais nítida demarcação da cultura, que se entendia dever constituir um campo autónomo da Independência de Águeda. O suplemento vê a luz do dia em tempos “marcados violentamente por fundas preocupações sociais”. Tempos impróprios para o “exercício despreocupado de umas letras recreativas alheadas das preocupações gerais”, que requeriam “uma particular concepção de literatura (…) veículo válido de comunicação e de adesão à vida de toda a cidade, apesar das limitações do tempo presente”.[103] O mesmo é dizer, a recusa de uma literatura enquanto produção alienada da verdadeira vida, à qual deveria opor-se uma literatura indesligável da história política, económica e social em que era produzida, exigência doutrinária – e também política – associada ao movimento neo-realista.
As “limitações do tempo presente” a que se refere Arsénio Mota nesse texto inicial, não assinado, seriam, entre outras, as da censura que se abatia sobre as diferentes publicações de cariz político ou cultural. Jornalistas, pensadores, escritores, todos eram afectados pela censura prévia ou a censura a posteriori, perguntando muitas vezes a si próprios se os censores iriam permitir a publicação do que escreviam. Neste ano crítico de 1961, numa entrevista concedida ao jornal brasileiro O Globo, Salazar afirmava: “Mas, em rigor, não temos censura aqui. Os jornais circulam tal como são redigidos e impressos, sem alteração de uma linha. Existe uma Comissão de Censura que, todavia, nada tem que fazer”. O jornalista brasileiro observa: “Precaução dos jornais, Presidente. Eles já sabem o que podem e o que não podem divulgar”. A resposta do ditador é lapidar: “Exactamente. Era a tal conclusão que eu desejaria que chegasse o senhor. O Governo conseguiu disciplinar a Imprensa, torná-la um elemento construtivo e não uma força deletéria, demolidora”.[104]
Ao contrário do que sucede em Companha, Independência Literária não identifica os colaboradores permanentes ou cooperadores. É fácil descortinar, para lá da co-direcção assumida por Manuel Ferreira e Arsénio Mota – que também assinava textos, em prosa ou poesia, com os pseudónimos Julião Crepita e Esperança Meeiro – alguns colaboradores mais assíduos. Estão neste caso Armando Pereira da Silva[105] e José Cruz.[106] A estes juntavam-se outros já consagrados ou que despontavam na altura para o mundo das letras e das artes. Pelas páginas do suplemento desfilam nomes como Luís de Albicastro,[107] Alberto Fonseca, Vicente Campinas,[108] António de Carvalho e Branco, Eduardo Guerra Carneiro, Serafim Ferreira[109], António Augusto Menano[110], Nelson Figueiredo, Alexandre Cabral, Matilde Julieta Cabral, António Barahona da Fonseca, Jaime Monteiro, Garibaldino de Andrade[111], Ferreira Guedes, Jorge Mendes Leal, Pinto da Costa, Vasco Graça Moura, José Luís Costa Dias, J. Pereira Martins, António Gomes da Costa, Máximo Lisboa, Joaquim Correia, Mário Sacramento, Joaquim Acácio de Figueiredo, Cidália de Brito, Luís Veiga Leitão, Alfredo Margarido, Artur Portela Filho, Afonso Cautela, Costa Ferreira[112], Vítor de Castro, César Oliveira, António José Saraiva, João Martins Oliveira, Eduardo Teófilo,[113] Dinis de Ramos,[114] António Rebordão Navarro, Augusto Abelaira, Correia da Fonseca, Maria Rosa Colaço, João Apolinário,[115] João Gaspar Simões, Emílio Mendes Pires, Armando Baptista, Artur de Almeida, José Viale Moutinho, José Ferraz Diogo[116], Vasco Granja, Fernando Oliveira, Leonel Cosme[117], António Augusto Sales,[118] Lília da Fonseca, Orlando Neves, Idalécio Cação,[119] Santos Simões,[120] Mário Braga, Cordeiro de Melo,[121] Arnaldo Pereira, Fèlix Cucurull,[122] Francisco Lyon de Castro, Luís Francisco Rebello, António José Forte[123], Vasco da Costa Marques,[124] António Borga, Maria Teresa Horta e Egito Gonçalves.
Entre os principais temas do suplemento contam-se as entrevistas, a poesia, o conto, recensões e noticiário cultural, a transcrição de trechos de romances inéditos, o teatro, os grupos experimentais de amadores, o cinema ou a pintura. No plano estritamente literário, o suplemento insere textos ou alusões ao modernismo, ao neo-realismo, ao surrealismo, ao existencialismo, ao grupo da Poesia 61, ao nouveau roman e à poesia concreta. Esta diversidade temática vinha ao encontro dos propósitos que animavam Arsénio Mota e Manuel Ferreira: publicar um suplemento “aberto a todas as correntes estéticas dignas”, o que pressupunha nem sempre haver “completa identidade de pontos de vista entre os organizadores do suplemento e os autores”[125]. Era concedido grande relevo à rubrica “Livros-Novidades”. Na secção “Notas de Leitura” encontramos referências interpretativas às obras literárias das quais fossem remetidos ao suplemento dois exemplares. Há também um generoso acolhimento de Independência Literária às obras das Publicações Imbondeiro, a editora de Sá da Bandeira (Angola) onde pontificavam Garibaldino de Andrade e Leonel Cosme.
Independência Literária acolhe de forma entusiástica o I Encontro de Suplementos e Páginas Culturais da Imprensa Regional. Dá-lhe larga cobertura antes, durante e depois de o mesmo se realizar. Difundiu as ideias mais marcantes e promoveu um inquérito aos editores das páginas e suplementos da imprensa regional. Os principais temas do inquérito tinham a ver com o papel e a função dos suplementos culturais de província, com os obstáculos que se deparavam aos seus coordenadores, com a permuta de colaborações e a adopção de um sistema de empréstimos mútuos de fotogravuras e zincogravuras, com o impacto dos suplementos nas áreas geográficas onde circulam, de que apoios materiais dispunham – com a possibilidade das editoras mais importantes virem a oferecer, para crítica, dois exemplares das suas edições – e, finalmente, com as vantagens de uma permuta, o mais alargada possível, entre todos os suplementos. Independência Literária insere nas suas páginas algumas comunicações ao I Encontro, nomeadamente as de António Augusto Menano, António Augusto Sales, Cordeiro de Melo, José Viale Moutinho e Santos Simões, além das conclusões e do regulamento do prémio a conceder anualmente, nas modalidades de ensaio, teatro, romance, conto ou novela e poesia.
Para lá da análise dos problemas mais prementes com que se debatiam os responsáveis pela organização e publicação dos suplementos culturais, um Encontro podia significar ainda “uma magnífica jornada de convívio entre pessoas que possuem de comum uma idêntica e meritória tarefa de divulgação cultural”. Entre as questões a merecer discussão, anotava-se a necessidade de os suplementos culturais modificarem a sua fisionomia “quase exclusivamente literária”, com falta de artigos sobre temas científicos, técnicos, económicos e sociológicos, entre outros. E instalava-se a dúvida quanto à possibilidade da maioria dos leitores se interessar por temas como o nouveau roman ou o concretismo em poesia.[126]
O neo-realismo tem presença assegurada nas páginas de Independência Literária. Não há entrevista em que não surja a sacramental pergunta sobre o “momento actual” do neo-realismo português. Como seria de esperar num suplemento cultural da imprensa regional, tais alusões não afloram, sequer, o neo-realismo enquanto “problema” estético-ideológico ou enquanto “fenómeno cultural”, no sentido em que o entende Eduardo Lourenço. Em vez da teorização em torno das noções de forma e conteúdo, cuja dicotomia, no entender de António Guerreiro, serviu para a denúncia dos “formalismos” e dos “decadentismos” das experiências literárias modernistas; em vez dos problemas de conciliação entre a política e a arte – da autonomia da produção artística em relação ao social, no sentido em que a incapacidade para lidar com essa autonomia determina a centralidade do “conteúdo”[127] – ou da noção de arte como manifestação superestrutural, o que encontramos, isso sim, é a defesa e a valorização de uma literatura empenhada, capaz de se constituir como verdadeiro documento da sua época, atenta aos problemas sociais, ligada à vida e ao presente. Uma literatura que procura traduzir uma realidade pré-existente, apostada em produzir aquilo a que Roland Barthes chama um “efeito de real”.[128]
Logo no segundo número encontramos críticas ao culto da personalidade e ao vício do vedetismo que leva o escritor a pensar que está acima do comum dos mortais: “Os nossos intelectuais ainda não quiseram levantar as viseiras e tirar os antolhos que os fazem ver a direito o que lhes convém […]. O escritor-vedeta é esse intelectual poseur que sacrifica a sua autenticidade de homem à garridice do literato de elite”.[129] No n.º 4, um texto não assinado reflecte este ponto de vista quando reconhece existir, na imprensa cultural, “uma corrente de ‘doutores’ que só escrevem para ‘doutores’, empenhados em jogos de negaças que produzem a ilusão da inacessibilidade, em prosas bizantinas de argúcia e engenho capazes de não errar a descrição barroca dos fogos do céu”.[130] Eis o que parece ser uma crítica cerrada contra tudo o que obscurece em vez de clarificar, contra aquilo que os neo-realistas consideravam ser o fechamento hermético e elitista do modernismo e de certas vanguardas.
Manuel Ferreira é entrevistado no segundo número, quando não era ainda co-director do suplemento. Instado a pronunciar-se sobre a arte literária e a arte em geral no início dos anos 60, o autor de Morabeza começa por afirmar que “a Arte dos nossos dias intenta um caminho que incide, como nunca, na raiz dos problemas humanos actuais”. E reforça esse ponto de vista salientando que no caso das artes plásticas se assiste à “quebra de predominância que nos últimos anos escandalosamente vinha sendo conferida à arte abstracta”. Já no que à ficção diz respeito, Manuel Ferreira acalentava a esperança de que em breve passariam de moda as tendências de uma estética que, na Europa ocidental, desde o após guerra, “insiste e persiste em se nutrir de solidões, desesperos, angústias, náuseas, tédio, cepticismo, nojo, cansaço de tudo e de nada, parecendo o essencial de uma época, quando não são […], de nenhum modo, os grandes e fundamentais problemas que nos envolvem”. Quanto à possibilidade de existir, em 1961, uma literatura de resistência, respondeu existir, pelo menos, uma “literatura válida” que soube resistir a todas as “amputações extra-literariamente impostas”. Referindo-se à Nouvelle Vague, anotava: “Ali, porém, só cabem os que se perderam na vida”.[131]
Garibaldino de Andrade, questionado sobre o momento que o neo-realismo está a atravessar em 1962, responde: “Digam os seus detractores o que disserem – é um movimento triunfante e que não estagnou. Noutros sectores desenha-se o retorno ao drama individual, às longas congeminações áridas, à psicologia de sexto ano do liceu. Não vejo futuro nesse caminho”.[132] Também Máximo Lisboa encaixa neste feixe de opiniões convergentes, quando afirma: “Na recente conjuntura, que é de transição, a autêntica função intelectual […] é a literatura comprometida”.[133] Como se sabe, este optimismo de alguns neo-realistas colidia com o ponto de vista literário e artístico de autores que não se reviam no movimento.
Curioso é também o depoimento de Luís Veiga Leitão sobre o neo-realismo, conhecendo-se o contributo poético que prestou ao movimento: “Creio que o neo-realismo está a passar por uma fase crítica. Apesar de todos os ataques, porém, uma parte positiva ficará de toda a produção literária desse movimento”. Perguntava o autor de Biografia Pétrea: “poder-se-á condenar um neo-realista por falta de fidelidade à sua época ou por ausência de humanidade nas suas obras? Creio que não”. Ao abordar as tendências da poesia moderna portuguesa, fala de uma poesia que envereda pelo “tecnicismo puro, a poesia pela poesia […]. Tanto se combateu a retórica, o barroquismo verbal – e estamos de novo a cair no vício […]. O nosso grande mal é bebermos muita água canalizada de fora, desprezando as nossas próprias fontes”.[134] Também Luís de Sttau Monteiro se insurge contra os modelos literários ou artísticos importados do exterior, contra a provinciana necessidade de estarmos à la page: “Julgo que o nosso teatro só será de vanguarda quando estivermos mais preocupados em fazer teatro do que em fazer teatro de vanguarda”.[135]
No n.º 13, Independência Literária recupera um texto de António José Saraiva publicado em Outubro de 1955 na página “Cultura e Arte” do Comércio do Porto. Interrogando-se se o neo-realismo estaria em crise e a passar à História, avança com algumas considerações sobre o tema: “Para alguns a literatura neo-realista parece ser aquela que sacrifica a subtileza da psicologia individual e a sugestão poética, para se subordinar a fins utilitários”. Recusando o carácter panfletário do neo-realismo e o argumento de que sacrificaria a liberdade do escritor a interesses estranhos à sua arte, que sacrificaria “o indivíduo à classe, o carácter ao tipo social”, Saraiva entendia serem outras e bem diferentes as ideias-mestras do neo-realismo, que alinhava em três coordenadas: “A primeira refere-se ao ângulo visual, ao campo de observação do escritor. O neo-realismo considera o homem em todas as suas dimensões […]. Recusa-se a dividir os homens em partes isoladas, a separar a vida mental da vida biológica e social e, também, a separar os indivíduos do grupo humano”.[136]
Correia da Fonseca também reage contra um tipo de literatura que nada tem a ver com o quotidiano, excepto “a desatinada preocupação de lhe fugir. Melhor: de o suprimir – pelo desprezo, pela distorção, pelo esquartejamento”, como se fosse possível comparar a literatura superior a um “gélido cadáver esvaziado de sangue que os ficcionistas ditos de vanguarda fazem passear pelas capitais do Ocidente”.[137] É possível descortinar nestas palavras uma crítica à análise textual que procede como o cientista que isola o objecto para melhor aquilatar da matéria que o enforma. Por isso se fala em “esquartejar”, em “dissecar” o texto, o que nos leva às seguintes interrogações: será possível analisar a obra literária silenciando a voz humana que a comanda? Será possível esquecer que os textos falam e têm por detrás um criador que é humano? Não fica afectada a compreensão do texto literário quando lhe escapam as circunstâncias histórico-culturais em que é produzido?
Outros exemplos da abordagem neo-realista podiam ser transcritos das páginas de Independência Literária. Não o vamos fazer, julgando ter mostrado, à saciedade, tal evidência. Preferimos deixar claro que, apesar da tendência do suplemento e dos seus diretores para a apologia do neo-realismo, também as suas páginas se franquearam aos críticos do movimento. É o caso de Vasco Graça Moura, jovem colaborador de Independência Literária – contava então apenas 20 anos[138] – quando refere, ao comentar o romance Hora Di Bai, de Manuel Ferreira, que a literatura neo-realista, “postulando uma interpretação da tensão e interacção do binómio homem-mundo, tira os fundamentos do seu pragmatismo da própria ideologia em que se esteia […]. Não aceitamos este argumento, porque redunda, afinal, na transposição do plano artístico de um método para o plano filosófico de uma ideologia, ou seja, na escamoteação do problema”.[139]
Para concluir esta análise vamos referenciar, a partir de agora, alguns textos inseridos no suplemento que reflectem ou se assumem críticos de vanguardas ou propostas literárias em voga no início dos anos 60. Comecemos pelo Nouveau Roman, a que estão ligados nomes como os de Alain Robbe-Grillet, Michel Butor, Nathalie Sarraute, Robert Pinget ou Jean Ricardou. Numa crítica a esta tendência romanesca surgida em França na década de 50, Armando Pereira da Silva afirma: “Optar entre Aquilino e Robbe-Grillet assemelha-se a escolher entre a figura linear do Malhadinhas e a nebulosa sem nome nem forma, quantas vezes sem sentido, comum às construções de alguns dos coriféus das mais recentes experiências literárias”. À “decomposição em átomos” operada pelos escritores do novo romance, Pereira da Silva contrapõe “a construção físico-mental da varonil figura aquiliniana”. Sem negar qualidade técnica e teórica às novas experiências, considera mais útil “a composição do descomprometido autor português do que a decomposição ultra-abstracta dos singularmente comprometidos precursores ou seguidores da chamada école du regard”.[140]
Para compreender melhor as críticas a uma literatura que se apresentava, aos olhos de alguns neo-realistas, “caduca, para não dizer inútil [e] com a agravante de esconder – mal – no seu progressismo estilístico, o reacionarismo evidente de ideias e atitudes”[141] deve referir-se que o Nouveau Roman parte do postulado que a arte só se exprime a si mesma, constituindo o romance “a aventura duma escrita, mais do que a escrita duma aventura”. Dito de outro modo, tratava-se “de banir a natureza da obra, de exorcizar o real”.[142] Entrevistado em 1962 por Urbano Tavares Rodrigues, Michel Butor dirá que o escritor progressista deve tomar a sério os problemas da linguagem. Referindo-se aos ataques de que são alvo os escritores experiencialistas, o autor de La Modification prossegue: “Há quem, de palmatória em punho, queira retirar aos escritores progressistas o direito de serem de vanguarda. Pois bem: um escritor progressista tem precisamente de tomar a sério os problemas da linguagem e fazer experiências sobre a resistência da frase, como se fazem experiências sobre a resistência do metal. É assim que se descobrem nexos de forma e realidade que se julgavam dantes impossíveis”.[143] Curioso é notar que Armando Pereira da Silva, colaborador do suplemento e um neo-realista confesso, não deixa de reconhecer que aos neo-realistas “podem ser muito úteis as obras dos existencialistas e as experiências de carácter estilístico dos novos-romancistas franceses”.[144]
Apesar do novo romance francês se encontrar, no início dos anos 60, em tempo de refluxo e ter entrado já, por assim dizer, na história da literatura, por cá Artur Portela Filho, que é, com Alfredo Margarido, um dos seus introdutores em Portugal, vê nele “o rasgão que permitirá à literatura portuguesa libertar-se da disciplina neo-realista”. Sem deixar de reconhecer ao neo-realismo a importância que tem uma literatura de emergência, não deixa de o criticar de forma contundente: “O neo-realismo apoderou-se da maioria das posições-chave da vida literária portuguesa: editoras, páginas literárias, júris. Aí exerce uma vigorosa pressão e organiza uma hierarquia de valores. Aí se negam ou se diminuem cuidadosamente sólidas figuras literárias que escapam à sua disciplina. O destino do escritor português é o neo-realismo ou o anonimato”.[145]
Nesta entrevista ao Jornal Letras e Artes, Artur Portela Filho vai mais longe na análise à situação da literatura portuguesa entre os anos 40 e os anos 60 e na forma ostensiva como a desdenha. Acusa-a de localismo no plano das intenções, diz que alguns neo-realistas já afirmaram que o não são e que outros não sabem o que significa sê-lo, critica a inexistência da mais elementar autocrítica, considera não serem verdadeiramente neo-realistas os últimos romances de Namora (Domingo à Tarde), ou de Mário Braga (Corpo Ausente) e, neste rosário de críticas, considera a terceira geração – nome por ele atribuído à geração a que pertence – “mais literária e mais humana do que os de 40 (neo-realistas) e os de 50 (inicialmente ‘românticos da acção’ à Saint-Exupéry e à Malraux, com as amígdalas pinceladas por um existencialismo de bolsa de estudo, mas quase todos convertidos à ficção de emergência)”.[146]
A reacção firme a este gosto pelo escândalo, ao “aventureirismo modernista” tão aclamado por uns e tão antipático para outros, não se fez esperar. Sem deixar de reconhecer qualidades aos novíssimos escritores, José Carlos de Vasconcelos insurge-se contra os que “se desentranham numa espantosa verborreia”, contra a sua “febre incontida de triunfar por qualquer preço”, contra os que nutrem o desejo de “se mostrarem a par, actualizados com o que, afinal, não é novo, mas é moda”. Considerando Artur Portela Filho um dos mais talentosos entre esses “novíssimos”, acusa-o, a propósito da publicação de Código de Hamurabi, de “fuga aos mais elementares deveres do homem e do artista” num tempo em que nunca se falou tanto de “novíssima poesia”, “novo romance” ou “novíssimo teatro”, em que “se vende a mercadoria literária e se compra a celebridade” e em que “proliferam os elogios mútuos, as entrevistas sensacionais, até os casos de concubinato intelectual”.[147]
Arsénio Mota interroga-se, no suplemento que dirige, sobre as razões que levam ao aparecimento de uma “falange”, em 1962, de prosélitos do novo romance e do concretismo prático. E a propósito do grupo da terceira geração entende que ele se confunde com “os grupos de Poesia 61,[148]Poesia e Tempo,[149]Novíssimo Teatro, surrealismo de receituário e vários outros”. Com o novo romance – acrescenta – “o psicologismo regressa à nossa literatura de cara pintada com tintas moderníssimas. O que o novo romance e o concretismo trazem ao homem português […] é um mero divertissement, propenso ao culto pervertido da forma, fornecedor de elementos novos úteis à cartilha do psicólogo”. Sem negar validade a estas experiências literárias, nega-lhes a utilidade, no sentido em que “tudo quanto não for útil morre”.[150] Ana Hatherly dirá, anos mais tarde, precisamente o contrário, quando considera ser uma das características das correntes de vanguarda “não só a sua acção [renovadora] ao nível do texto mas também a sua vontade de interferência na vida, no real, pois não se consideram vida e arte desligadas”. Também Melo e Castro dirá que a literatura de vanguarda foi, entre nós, uma forma de provar não só “a resistência das palavras” mas também “a resistência pelas palavras”.[151]
Numa breve nota sobre poesia desde 1960, o então jovem escritor Serafim Ferreira anotava que “o desprezo total por determinados valores humanos em favor de uma reivindicação meramente formal no plano estético, não nos parece ser o caminho exacto para a realização poética dos cinco elementos de Poesia 61”.[152] Já quanto à poesia concreta, Alfredo Margarido lembrava que o concretismo brasileiro fazia a sua auto-crítica num momento em que, em Portugal, “alguns jovens poetas (e outros já nem sequer jovens) se empenham em exercícios concretistas”.[153]
É notório, nas páginas de Independência Literária, um olhar crítico dos neo-realistas – olhar ainda não distanciado – para com as experiências vanguardistas que emergem na sociedade portuguesa nas décadas de 50 e 60. Do novo romance à poesia experimental, passando pelo concretismo – que é um dos seus ramos – nada escapa ao bisturi afiado da sua análise Essa experimentação, sobretudo a que surge nas décadas de 50/60 e que decorria em paralelo à experimentação científica, “impessoalizando a obra põe em destaque o processo da sua execução, [e] é a característica fundamental de toda a arte de vanguarda”.[154]
Também o surrealismo, com a sua incompatibilidade radical com o estalinismo – pese embora poetas como Aragon e Éluard se lhe tenham rendido – que entre nós assumiu um carácter “tanto reivindicativo das liberdades de ser e de criar como de resistência antifascista”[155] é chamado às páginas de Independência Literária. Para o pintor Augusto Mota, o uso do termo “surrealismo” envolve a confusão de duas atitudes artísticas algo distintas, já que se encontra generalizado a “toda uma pintura de ambiência onírica, de construção fantástica, mesmo quando a realidade é epicizada e não meramente destruída, como pretendem os surrealistas de escola”. Logo a seguir, Augusto Mota estabelece uma distinção entre aquilo que considera ter sido o surrealismo de movimento – anarquista, e o surrealismo de tendência psicológica – anarquista-construtivista, podendo este último ser encontrado ao longo de toda a história da pintura “como definidor de uma materialidade baseada numa bem concreta experiência de vida” e também na “pintura popular dos quadros votivos e na fé redentora de todas as pinturas religiosas dos séculos passados”: Daí conclui que “se o termo se aplica a toda a pintura de ambiente fantástico, então sempre houve e haverá surrealismo”.[156] Essa continuidade do espírito surrealista está bem presente na pintora Paula Rego, quando afirma, no início dos anos 90: “O surrealismo nunca acaba. É-se sempre surrealista, mas não se fala disso”.[157]
Acerca do existencialismo literário pronuncia-se Leonel Cosme. Sem o considerar uma solução definitiva, e acreditando que poderia seguir outros rumos caso não tivesse ocorrido a morte prematura de Camus, via nele “um caminho seguro para a realização de um homem verdadeiramente livre entre os homens […] sem necessidade de submeter os seus destinos terrenos a deuses ou a demónios e sem ter, à falta de melhor, de aceitar um impasse, um absurdo ou uma náusea para os justificar de certa maneira”.[158] Descortina-se, nesta apreciação ao existencialismo, uma benevolência que as páginas de Independência Literária não albergam para outras correntes literárias ou artísticas. Talvez porque o existencialismo, em Portugal, teve como principal figura representativa Vergílio Ferreira, escritor que se tinha afirmado na primeira fase do neo-realismo. Como disse Mário Sacramento, “o existencialismo surge entre nós pela mão, não de um qualquer, mas de um neo-realista”.[159] Para muitos, o existencialismo, mais do que querer substituir-se ou ser alternativa ao neo-realismo, era visto como a sua continuidade ou desenvolvimento, incorporando alguns dos seus valores.
Ao desfolhar Independência Literária, encontramos ainda alusões à poesia cabo-verdiana numa entrevista de Manuel Ferreira a Teixeira de Sousa, médico associado aos alvores do neo-realismo português. Aí se fala de um grupo de Cabo Verde que surgiu em 1935 a partir do movimento literário Claridade e que inclui nomes como Manuel Lopes, Baltasar Lopes (“o que mais abissalmente atingiu a alma crioula em Chiquinho”), Gabriel Mariano, Arnaldo França, António Aurélio Gonçalves, Jaime de Figueiredo e Jorge Barbosa, isto para lá de referências a outros poetas – como Corsino Fortes e João Vário – agrupados não apenas em Claridade mas também em Certeza e Suplemento Cultural.[160]
Editados os trinta primeiros exemplares, Independência Literária deixa de se publicar com o semanário Independência de Águeda. A decisão não teve a ver com problemas de censura. Muito menos com a falta de apoio económico, já que o suplemento inseria publicidade variada, com destaque para a fábrica de bicicletas e motorizadas E. F. Sucena & Filhos, Lda., que chegou a patrocinar integralmente vários exemplares. A inclusão de anúncios ou o patrocínio de uma firma comercial ou industrial representavam, à época, o único suporte económico das páginas ou suplementos culturais. A importância deste patrocínio era reconhecida pelo director do suplemento em Setembro de 1962, ao informar que ele “vem há meses [desde Abril] permitindo a edição de 8 páginas por número e uma tiragem melhorada que já circula, por assim dizer, em todo o país”.[161] Entretanto, ao fim de oito meses o “alentador patrocínio” foi suspenso pela gerência da fábrica, pelo que o suplemento de Janeiro de 1963 já saiu a expensas do jornal Independência de Águeda.[162] Esse indispensável “amparo material” viria a ser retomado em Março de 1963, embora prorrogado apenas por mais quatro meses.
A única razão para esse afastamento, que levou Independência Literária a mostrar-se ao público como secção cultural do semanário Litoral, ficou a dever-se a “insanáveis deficiências de tipografia (privativa) daquele jornal aguedense, que comprometeram durante largos meses a periodicidade desta folha”.[163] Entre essas deficiências estariam as gralhas habituais na apreciação de livros – imputadas ao pouco qualificado quadro de pessoal da tipografia – e o comportamento do próprio tipógrafo, que um dia se atreveu a substituir um texto censurado por um poema da sua autoria, sem dar conhecimento prévio à direção do jornal. Numa nota aos leitores, inserida na secção “Ecos e comentários”, a direcção do suplemento dava pública manifestação do seu desagrado: “Estas páginas vêm saindo nos últimos meses inçadas de gralhas tipográficas. Elas são tão abundantes que desistimos de inserir em cada número uma paciente corrigenda […]. O caso desgosta-nos tanto que já estivemos à beira de suspender a publicação desta secção”.[164]
Uma das vantagens da mudança de Águeda para Aveiro residiria, também, na possibilidade de acrescentar aos seus fiéis leitores a camada dos que liam ou assinavam Litoral. Segundo o contrato de mútuo acordo celebrado e assinado em 21 de Outubro de 1964, entre David Cristo, director do semanário Litoral, e Arsénio Mota, organizador e director do suplemento Independência Literária, este seria publicado regularmente no Litoral, todos os meses, com a apresentação gráfica que o caracterizava: quatro páginas do jornal em composição que dá oito metades, sendo metade das páginas impressas a duas cores (cláusula 1).
Litoral encarregava-se de remeter a expensas suas só o suplemento ou o jornal inteiro a uma lista de aproximadamente 370 nomes de clientes da E. F. Sucena & Filhos, Lda., e de outras pessoas que constavam em documento separado (cláusula 4). O único responsável pelo conteúdo do suplemento era o seu organizador e director. Entre outras responsabilidades, tinha a tarefa de o orientar, escolher a colaboração e as gravuras e gizar a maqueta de cada número, que seria o mais possível respeitada pela tipografia. Tal significava que a única intervenção que o contrato reconhecia para o suplemento era a da censura e a de Arsénio Mota (cláusula 5). O director do Litoral admitia um máximo de 20% de composição cortada pela censura. No caso de tal limite ser excedido, Arsénio Mota indemnizaria o jornal pelo prejuízo extra (cláusula 6).[165] Por aqui se vê como Arsénio Mota arrostava com os perigos de uma iniciativa entusiasmante no plano cultural, mas que estava longe de ser comercialmente compensadora.
Com a publicação desta 2.ª série deixa também de assumir funções de co-direcção o escritor Manuel Ferreira. Terminada a sua prestimosa colaboração, o empreendimento fica de novo a cargo exclusivo de Arsénio Mota, à semelhança do que sucedera com os quatro primeiros suplementos da 1.ª série. Em Fevereiro de 1965 Independência Literária apresenta-se ao público como secção literária do semanário Litoral. Nesta nova fase da sua existência, pretende-se de continuidade e não de ruptura com o seu antecessor. Animava a ideia do seu director “participar nos movimentos intelectuais da vida mental portuguesa à luz dum conceito de cultura viva e actuante”. As páginas do suplemento continuavam abertas para “acolher o escritor consagrado ao lado de escritores jovens ou de simples principiantes”.[166] Algumas páginas culturais, como a do Jornal de Notícias e a do Notícias da Amadora, saudaram o reaparecimento e manifestaram o seu apreço e apoio, após oito meses de interregno.
Esta 2.ª série teve duração efémera, apesar de contar com o apoio económico do habitual patrocinador. O primeiro número data de Fevereiro de 1965 e inclui, entre outros textos, uma evocação de António Maria Lisboa por António José Forte e um conto de José Ferraz Diogo. Anuncia, também, o 3.º Encontro – o 2.º realizara-se em Cascais, em 13 e 14 de Junho de 1964 – previsto para o mês de Agosto, em Guimarães, sob a presidência de Ferreira de Castro.
O segundo número, relativo ao mês de Março de 1965, foi suspenso pela censura quando já estava a ser impresso (a preto) e lhe faltava apenas a cor (vermelha). Acabou assim de forma inglória, às garras da censura, o suplemento cultural Independência Literária. O semanário Independência de Águeda, que foi durante a publicação da 1.ª série o seu suporte material, deixaria de se publicar em 1969 com a morte de Celestino Neto, seu director, que o recebera em mãos por vontade expressa do conhecido médico, poeta e jornalista aguedense Eugénio Ribeiro.[167]
5. Conclusões
É impossível avaliar, retrospectivamente e de forma aproximada, o impacto e a verdadeira importância cultural destes suplementos da imprensa regional junto dos leitores. Santos Simões pressentia, nos anos sessenta, ao comentar a influência e a acção que tinham nos “meios provincianos”, que eles visavam mais “corresponder às solicitações de elites intelectualizadas e a grupos mais ou menos circunscritos de indivíduos, do que dialogar com o geralmente bisonho e desconfiado burguês e o povo ingénuo, que apenas lêem o jornalzinho da terra, e parecem querer agora despertar para as coisas da cultura”.[168]
Também António Augusto Sales diria, na mesma altura, que tais suplementos e páginas culturais eram essencialmente literários e que, por isso, “não têm correspondido às necessidades dos leitores da Imprensa Regional”. Para agradarem a um público diverso e heterogéneo, essas publicações deveriam enquadrar-se, na medida do possível, “num esquema de trabalho que represente as artes, as técnicas e as ciências”.[169] Por outro lado, havia suplementos culturais com uma óbvia orientação ideológica e estética, perceptível de forma mais evidente nas rubricas destinadas à crítica de livros. A preferência das obras recenseadas recaía, quase sempre, em autores considerados próximos da tendência dominante nessas publicações. Atitude compreensível, já que para moldar os espíritos sobravam publicações afectas ao Estado Novo.
Podemos entrever, nos pontos de vista destas duas figuras representativas dos suplementos da imprensa regional, a crítica a um jornalismo cultural orientado preferentemente para os detentores da cultura erudita e a necessidade de estabelecer pontes com um público mais alargado. Tais objecções não impedem que se reconheça a esses suplementos o relevante papel que desempenharam na reflexão em torno das tendências da arte e do pensamento do seu tempo e na tentativa de promoção cultural do povo português, apesar de todas as dificuldades e constrangimentos que se atravessaram no seu percurso. A seu modo, combateram a rotina, o vazio e o pessimismo. Exercitaram a militância cívica e a cidadania adulta.
No que aos suplementos Companha e Independência Literária diz respeito, louve-se o desejo expresso de participarem no debate cultural, o esforço realizado e tudo o que ele implicou de resistência a condições adversas. Sem abdicarem de princípios essenciais, ambos exercitaram a cultura com espírito de tolerância, franquearam as suas portas a diferentes experiências e renovados contributos, no entendimento de que a cultura deve ser confraternização e nunca um egoísmo. Ambos souberam ser ponto de confluência de variadas opções críticas. Através deles, apesar da modéstia dos meios ao dispor e do ambiente de descrença que parecia contaminar toda a sociedade, as populações mais afastadas dos grandes centros urbanos começaram a tomar conhecimento das novidades – sobretudo literárias – que se publicavam em Portugal e no estrangeiro, mas também de outras expressões da criatividade e do saber. Dizemos sobretudo literárias, porque nessa altura alguns suplementos davam escassa ou nenhuma informação sobre cinema, teatro, bailado e artes plásticas em geral.
O suplemento Companha oscilou entre as 26 páginas (n.º 1) e as 34 (n.º 4). Os suplementos 2 e 3 apresentavam 24. Há policromia nas suas páginas e desenhos de David Cristo, Cláudio Torres, Gaspar Albino (também responsável pela orientação gráfica), Maria Virgínia, Zé Penicheiro e VIC (Vasco Branco). Independência Literária oscila entre as 4 e as 8 páginas. Sem policromia, estas apresentam um grafismo mais modesto, visualmente menos atractivo, com ilustrações praticamente a cargo de duas pessoas: o pintor Augusto Mota[170] e António Caseiro, o primeiro com desenhos e linóleos e o segundo apenas com desenhos. Companha apresenta uma mais equilibrada distribuição entre os temas genuinamente literários e a abordagem artística ou relacionada com as artes plásticas. Talvez por vir a público na primeira metade da década de 60 – relembre-se que o suplemento Companha publicou apenas quatro números, entre Setembro e Dezembro de 1959 – Independência Literária, com um tempo de vida mais duradouro, concedeu maior e mais ampla informação aos movimentos de vanguarda e contracultura que nessa época se perfilaram contra o neo-realismo português.
Qualquer destes suplementos, com preocupações mais formativas que noticiosas, se insere na categoria de imprensa cultural, literária e artística, atentas as áreas de interesse que encontramos na sua consulta. Com especificidades próprias em matéria de recursos humanos, técnicos e materiais, não deixaram por isso, no final dos anos 50 e início da década de 60 do século XX português, de se assumir como marcos representativos de promoção e divulgação cultural junto das populações abrangidas pelas suas áreas geográficas de intervenção.
As restrições económicas que estrangularam o suplemento Companha, resultantes da dificuldade em angariar os apoios publicitários que eram a sua principal fonte de sustentação, bem como a censura que se abateu sobre o suplemento Independência Literária, puseram cobro ao renovado voo de arejamento com que estas duas publicações ousaram desafiar o estagnado ambiente cultural português do seu tempo.
(Texto publicado na Revista Nova Síntese – Textos e Contextos do Neo-Realismo, n. 9, Edições Colibri, 2014, pp. 137-191).
[1] Natália Correia, “Advertência às hierarquias sui generis”, Diálogo – Suplemento de Cultura, Letras e Arte do Diário Ilustrado, n.º 22, 18.06.1957, p. 24.
[2] Eugénio Lisboa, Poesia portuguesa: do “Orpheu” ao Neo-Realismo, Lisboa, Biblioteca Breve, 1980 (1.ª ed.), p. 91.
[4]Visão História, n.º 11, Fevereiro 2011, pp. 38-41.
[5]Independência Literária, n.º 26 Novembro, 1963, p. 2.
[6] António Nóvoa, “A educação nacional”, AAVV, Nova História de Portugal, p. 476, citado por Jorge Ramos do Ó, Os Anos de Ferro. O dispositivo cultural durante a “Política do Espírito” (1933-1949), Lisboa, Editorial Estampa, 1999, p. 135.
[7] Palavras de Santos Simões, coordenador de “Letras e Artes”, suplemento mensal do Notícias de Guimarães, ao I Encontro dos Orientadores das Secções Culturais da Província. Comunicação transcrita em Independência Literária, n.º 26, Novembro, 1963, p. 8.
[8]Ler. Jornal de Letras, Artes e Ciências, Ano 1, n.º 1, Abril 1952, pp. 1-2.
[14] Maria-Benedita Basto, “Do ouvido sensível ao havido que incomoda. A propósito das ‘Cinco notas sobre forma e conteúdo’ de Álvaro Cunhal e das outras notas que sobre o mesmo assunto escreveram Fredric Jameson e Raymon Williams”, in José Neves (coordenação), Álvaro Cunhal. Política, História e Estética, Lisboa, Edições Tinta-da-China, 2013, p. 168.
[16]Independência Literária, “Linha de Rumo”, n. º 1, 2.ª série, 12.02.1965, p. 2.
[17] António Maria Pereira, Ler. Jornal de Letras, Artes e Ciências, Ano 1, n.º 1, Abril, 1952, p. 1.
[18] Santos Simões, em resposta a um inquérito organizado por José Cruz. Ver Independência Literária, n.º 24, Setembro, 1963, p. 4.
[19] António Augusto Sales, Independência Literária, n.º 21, Junho, 1963, p. 4.
[20] José Cruz, “I Encontro dos Orientadores das Secções Culturais da Província”, Independência Literária, n.º 23, Agosto, 1963, p. 1.
[21] Arsénio Mota, em resposta ao inquérito lançado por José Cruz no próprio suplemento que dirigia. Idem, p. 4.
[22] Consulta electrónica em 23.02.2016 (correia-baptista-anos-60-periodo-viragem.pdf).
[23] Graça Franco, Censura à Imprensa (1820-1974), Imprensa-Nacional – Casa da Moeda, 1993, p. 137.
[24] Em 22 de Fevereiro de 1953 António Ramos de Almeida – figura representativa do movimento neo-realista – foi encarregado de coordenar e orientar esta página, que então se publicava de 15 em 15 dias, às quintas-feiras, e com a qual se propunha “colaborar no movimento de divulgação e compreensão da Literatura, mais amplamente de todas as Artes, no sentido de esclarecer as suas grandes massas leitoras acerca daqueles complexos problemas que surgem da análise dos fenómenos estéticos”. Ramos de Almeida dirigiu o “Suplemento Literário” durante 8 anos. Após a sua morte, em 24 de Março de 1961, a coordenação viria a ser assumida por Nuno Teixeira Neves. Pelo “Suplemento Literário” do Jornal de Notícias passaram, entre outros vultos das letras e das artes, nomes como José Régio, Nuno de Sampaio, Donatelo Grieco, Alexandre Babo, Carlos Relvas, José Fernandes Fafe, Gonçalves Lavrador, António Pedro, Vasco da Gama Fernandes, Pina de Morais, Vítor de Sá, Taborda de Vasconcelos, Agostinho da Silva, Ilse Losa, Jorge de Sena, Guedes de Amorim, Alves Redol, Joaquim Paço d’Arcos, Papiniano Carlos, Lima de Freitas, Luís Francisco Rebelo, Luís Veiga Leitão e Mário Sacramento. Ver: “Ramos de Almeida: um suplemento literário tornado lareira pública”, Jornal de Notícias, 25.05.1988 (n.º 5, A memória do centenário – caderno de homenagem aos colaboradores do jornal).
[25] Fernando J. B. Martinho, prefácio a António Ramos Rosa, Poesia, Liberdade Livre, Lisboa, Ulmeiro/Universidade, 1986, p. 15.
[26]A Europa e Nós: Uma Polémica de 1853. A. Herculano, contra A. P. Lopes de Mendonça (Maria Filomena Mónica, org. e prefácio), Lisboa, Instituto de Ciências Sociais/Quetzal Editores, 1996.
[27] José Carlos de Vasconcelos, “Os suplementos culturais”, Cultura Sul, 05.08.2010. Consulta electrónica em 15.02.2016 (https://issuu.com/postaldoalgarve/docs/24cultura.sul01/16).
[28]Independência Literária, n.º 19, Abril, 1963, p. 4.
[29] Manuel Ferreira, “Vento ruim nas culturas regionais”, Independência Literária, n.º 13, Outubro, 1962, p. 3.
[30] Entrevista de Carlos Loures a Fernando Lopes Graça, in “Labareda”, suplemento de O Templário, Janeiro de 1964. Carlos Loures nasceu em Lisboa, em 1937. Poeta, escritor e editor diplomado em Técnicas Editoriais pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Entre 1958 e 1960 foi um dos colaboradores da revista Pirâmide. Foi responsável, entre 1964 e 1966, pela secção de crítica de poesia do Jornal de Notícias. Tem colaboração dispersa por vários jornais e revistas, como Setentrião (Vila Real), suplementos culturais do Diário de Lisboa, Diário Popular e Jornal de Notícias, e páginas e suplementos de jornais de província como Jornal de Évora,A Planície (Moura), O Templário e o seu suplemento Labareda (Tomar), A Nossa Terra (Cascais). Publicou Arcano Solar (1962), Hiroxima (1967), No Centenário de Romain Rolland (1967), Antologia da Poesia Contemporânea de Trás-os-Montes e Alto Douro (1968), A Voz e o Sangue (1968), A Poesia Deve Ser Feita Por Todos (1970), O Ministério do Amor (teatro, 1970), Vietname (1970), Poemabril (1984), Talvez Um Grito (1985), O Cárcere e o Prado Luminoso (1990), Mão Incendiada (1995) e A Sinfonia da Morte (2007). Consulta electrónica efectuada em 01.03.2016 (http://www.portaldaliteratura.com/autores.php?autor=307). Em Dezembro de 2013 publicou, nas Edições Colibri, O atlas iluminado – manual de poemonáutica. As colectâneas de poesia Hiroxima, Vietname e Poemabril foram organizadas em conjunto com Manuel G. Simões, poeta e ensaísta, nascido em Jamprestes – Ferreira do Zêzere, em 1933. Foi, com Carlos Loures e Júlio Estudante, fundador da colecção e depois editora “Nova Realidade” (1966) e pertenceu à redacção da revista “Vértice” (1.ª Série), entre 1967 e 1969. Professor do Ensino Secundário (1969-1971), na extinta Escola Veiga Beirão, indo de seguida pata Itália, onde viveu de 1971 a 2003, primeiro como Leitor de Português nas Universidades de Bari e de Veneza, e, depois, Professor Associado na Universidade “Ca’ Foscari” de Veneza (1975-2001), tendo sido igualmente professor de língua e literatura portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade de Florença, entre 1986 e 1989. Foi um dos fundadores, em 1978, da revista “Rassegna Iberistica” (Veneza), a cuja redacção pertenceu até 2012. Autor de uma vasta obra poética e ensaística, e de várias traduções [Escritos Políticos, de Gramsci; Pasolini, Poeta (antologia); Primavera Hitleriana, de Eugenio Montale; e muitas outras, de italiano para português e de português para italiano (La Tela del Sogno, de Mário Cláudio, por ex.)], tendo sido toda a sua poesia publicada reunida em um volume, “O FLUIR DO TEMPO”, Edições Colibri, Lisboa, Novembro de 2015), e, no ensaio, a título de exemplo, Garcia Lorca e Manuel da Fonseca. Dois poetas em confronto (1.ª ed. Milano, 1979; 2.ª ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 2011); Auto da Índia, de Gil Vicente, apresentação crítica, fixação de texto, notas e sugestões para análise literária (Ed. Comunicação, Lisboa, 1991); Tempo com Espectador. Ensaios de Literatura Portuguesa (Ed. Colibri, Lisboa, 2011); Outras Margens. Ensaios de Literatura Brasileira, Angolana, Moçambicana e Caboverdiana, (Ed. Colibri, Lisboa, 2012).
[31] “A defesa do Folclore”, Independência Literária, n.º 1, Outubro, 1961, p. 2.
[32] Para uma análise mais aprofundada sobre a cultura e a arte popular no Estado Novo, ver: Daniel Melo, Salazarismo e Cultura Popular (1933-1958), Edição do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2001; Salwa El-Shawan Castelo-Branco, Jorge Freitas Branco (org.), Vozes do Povo. A Folclorização em Portugal, Oeiras, Celta Editora, 2003; Vera Marques Alves, Arte Popular e Nação no Estado Novo. A Política Folclorista do Secretariado de Propaganda Nacional. Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2013.
[33] A. Bandeira, “Arte popular e arte para o povo”, Vértice, n.º 75, Novembro, 1949, p. 287.
[34] “Apologia de um jornal de Artes, Letras e Ciências” [editorial]. Ler – Jornal de Letras, Artes e Ciências, Ano 2, n.º 19, Outubro, 1953, p. 2.
[35] Vítor Viçoso, A Narrativa no Movimento Neo-Realista. As Vozes Sociais e os Universos da Ficção, Lisboa, Edições Colibri, 2011, p. 43.
[36] Clara Rocha, Revistas Literárias do Século XX em Portugal, Imprensa-Nacional-Casa da Moeda, 1985, p. 33.
[37] “Um Suplemento Literário na Figueira da Foz”, Vida Literária e Artística, suplemento do Diário de Lisboa, n.º 413, 30.06.1966, p. 3.
[39] “Actividades Literárias na Imprensa da Província”, Vida Literária e Artística, Diário de Lisboa, n.º 448, 02.03.1967, p. 2.
[40] Ilídio Rocha, A Imprensa de Moçambique: História e catálogo (1854-1975), Lisboa, Livros do Brasil, 2000.
[41] Giovanni Sartori, Partidos e Sistemas Partidários, Rio de Janeiro/Brasília, Zahar Editores, Universidade de Brasília, 1982, p. 232, nota 8.
[42] Jacinto Baptista, Um jornal na Revolução. «O Mundo» de 5 de Outubro de 1910, Edições Seara Nova, 1966, p.11.
[43] Cf. Madeleine Grawitz, Méthodes des sciences sociales, Paris, Éditions Dalloz, 1993, pp. 511-512.
[44] Henri Berr, apud Jacinto Baptista, obra citada, p.13.
[45] António Pedro Pita, “Importância da imprensa periódica para o estudo do Neo-Realismo”, in A Imprensa Periódica na Génese do Movimento Neo-Realista (1933-1945). Edição do Museu do Neo-Realismo/Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 1996, p. 14.
[46] Maria Zara S. Pinto Coelho, A Implantação da República na Imprensa de Braga, Dissertação de Mestrado em Comunicação Social [dactilografada], Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1990, p. 4.
[47] António Costa Pinto, O Salazarismo e o Fascismo Europeu. Problemas de interpretação nas Ciências Sociais. Lisboa, Editorial Estampa, 1992, p. 129.
[48] Entrevista a António Ferro, in Palavras no Tempo, Volume 1. Política. Diário de Notícias/Imprensa-Nacional Casa da Moeda, 1990, p. 59. Ver também Norberto Lopes, Visado pela Censura, Lisboa, Editorial Aster, 1975, p. 38.
[49] Jornal afecto ao Estado Novo. Publicou-se entre Outubro de 1964 e 25 de Julho de 1975. Tinha como director, em 1969, Flausino Correia.
[50]Lutador, “II Encontro da Imprensa Regional das Beiras”, Ano V, n.º 240, p. 8.
[54] Entrevista de José dos Santos Marques a Mário Sacramento, in Diálogo – Suplemento de Cultura Letras e Artes do Diário Ilustrado, n.º 61, 22.04.1958, pp. 21-22.
[55] Semanário aveirense fundado por David Cristo, cujo primeiro número se publicou a 9 de Outubro de 1954. Nele colaboraram, ao longo dos anos, figuras de relevante dimensão cultural como Mário Sacramento, Agostinho da Silva, Amorim Girão, Egas Moniz, Ferreira de Castro, Hernâni Cidade, Barbosa de Magalhães, Joaquim de Carvalho, José Régio, Miguel Torga, José Marmelo e Silva e Fernando Namora, entre outros.
[56] David Cristo, “Ao zarpar…”, Companha, n.º 1, Suplemento do n.º 254 do Litoral, Setembro de 1959.
[57] Os 4 exemplares do suplemento Companha podem ser consultados em versão electrónica. Além de índices gerais por autores e por temas/assuntos, a consulta pode fazer-se página a página. Ver Henrique J. C. Oliveira, “Acerca de Companha”, disponível em http://www.prof2000.pt/users/avcultur/companha/Pg000100.htm. Consulta em 09.11.2015.
[59] Ana Nascimento Piedade, “Mário Sacramento: Eça e a estética da ironia”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 02.10.2002, p. 22.
[60] David da Silva Cristo (1913-1987). Fundador e director do semanário Litoral (9 de Outubro de 1954) e do suplemento Companha. Licenciado em Direito, professor na Escola Técnica, no Seminário e na Universidade de Aveiro. Esteve ligado a instituições e associações do distrito, como o Museu da Vista Alegre, Bombeiros Novos de Aveiro, Liga dos Bombeiros Portugueses, Galitos e Beira-Mar, entre outros. Eram-lhe reconhecidas qualidades artísticas na pintura, na fotografia e na escultura, além da faceta de colecionador das mais variadas obras de arte (ver depoimento de Gaspar Albino em Litoral, 26.11.1998, p. 13).
[61] António Brásio (1906-1985). Padre da Congregação do Espírito Santo, responsável da revista Portugal em África, activo colaborador das comemorações henriquinas, autor, entre outras obras, de Monumenta Missionária Africana (22 vol.), Spiritana Monumenta Historica (5 vol.) e História e Missiologia.
[62] António de Almeida Silva e Cristo (1904-1963). Advogado, orador, deputado e publicista. Director, nos primeiros anos de publicação, do jornal de inspiração católica Correio do Vouga, fundado em 16 de Novembro de 1930. Para lá de vários trabalhos jurídicos, deu ao prelo publicações de cariz local como: A Indústria e o Comércio do Sal (1943); Antónia Rodrigues – A Heroína de Mazagão (1948); Os Governos da Nação e as obras do Porto e Barra de Aveiro (1949); O poeta João Afonso de Aveiro (1956); Cancioneiro de Santa Joana Princesa (1956); Jesuítas Aveirenses (1959), entre outras. Colaborou em diversas revistas e jornais. Era irmão de David Cristo, director de Litoral (ver João Gonçalves Gaspar, Aveiro na História, Edição da Câmara Municipal de Aveiro, 1997, p. 300).
[63] Carlos de Morais (1887-1975). Natural de Serzedo, mas radicado desde muito novo em Espinho, cidade a que dedicou muitos dos seus poemas e escritos para teatro e que o considerava o “poeta da serenidade e do amor”. É autor de Rosas desfolhadas (versos, 1912-1913). Em 1987 a Câmara Municipal de Espinho publicou uma Antologia Poética que reúne a sua obra.
[64] Manuel da Costa e Melo (1913-2002). Advogado, colaborador da imprensa regional e nacional, político e escritor. Fundador do Partido Socialista, esteve ligado, em Aveiro, à organização dos Congressos da Oposição Democrática. Governador Civil de Aveiro entre 1976 e 1979, escreveu vários livros sobre a vida forense. Publicou Ecos do Mesmo Grito (1960), Memórias Cívicas e A Ria a Preto e Branco (1988), Longes da Freita, Pertos da Ria (1991), Gente de Toga e Beca (1994) e Antes e Depois de Abril e Ilhas do Mundo Vário (1999).
[65] Eduardo Ala Cerqueira (1909-1983). Investigador e divulgador de história local. Correspondente de O Século e de O Primeiro de Janeiro e delegado de O Diário de Notícias. Colaborador das revistas Arquivo do Distrito de Aveiro, Aveiro e o seu Distrito e Boletim da ADERAV, bem como da imprensa regional (Correio do Vouga, Litoral e Jornal de Aveiro). Foi Presidente da Junta Autónoma do Porto de Aveiro entre 1971 e 1977 e membro das Comissões Municipais de cultura e toponímia.
[66] António Frederico Vieira de Moura (1909-2002). Licenciado em Medicina e em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra. Deputado eleito pelas listas do Partido Socialista na III e IV legislaturas. Colaborador de jornais e revistas, era um conferencista e comunicador brilhante. Dele disse Miguel Torga, amigo dilecto: “ser de eleição (…) pragmático e sonhador, ácido e sentimental, solitário e convivente com horas de formiga e horas de cigarra e sempre solidário e compassivo” (Litoral, 12.04.1979). Publicou Ressonâncias (edição FEDRAVE, Aveiro, 1999) e Pulso Livre (obra póstuma editada pela família).
[67] Joaquim António Gaspar de Melo Albino nasceu em Aveiro, em 21 de Agosto de 1938. Dirigiu graficamente, durante vários anos, o semanário diocesano Correio do Vouga e o suplemento Companha. Tem colaboração – crónicas e crítica de arte – dispersa em jornais de âmbito nacional e regional, nomeadamente Correio do Vouga e Litoral. Fez várias exposições individuais de pintura e desenho e colaborou também em exposições colectivas. É membro fundador de Aveiro-Arte, de que também foi Presidente da Direcção. Foi diretor do pelouro cultural do Clube dos Galitos, fundador do CETA e colaborador da Rádio Moliceiro. Ilustrador de livros de poesia e de contos e organizador de capas e design gráfico para livros de diversa índole. Foi vereador da Câmara Municipal de Aveiro em dois mandatos, com funções no pelouro da Cultura.
[68] João Evangelista Vieira Sarabando (1909-1996). Jornalista e etnógrafo. Tem colaboração dispersa em jornais e revistas como O Primeiro de Janeiro, O Comércio do Porto, O Século, República, A Capital, Diário de Lisboa, O Diário, A Bola, Aveiro e o seu Distrito, Litoral, Independência de Águeda e Ideia Livre, entre outros. Publicou Almanaque Desportivo de Aveiro (1950, em colaboração com Costa e Melo e Virgílio Veiga), 16 de Maio de 1828 (1956, em co-autoria), Cancioneiro de Aveiro (1966), Mário Duarte (1966), Três Ignorados Medalhistas Aveirenses (1972), Marques Sardinha e Maria Barbuda ao Desafio (1982), Cagaréus e Ceboleiros. Aveiro – Usos e Costumes (1999, publicação póstuma) e Livro da Amizade. Lembrando Mário Sacramento (2009, em colaboração com Cecília Sacramento e Joaquim Correia). Para mais dados biográficos sobre João Sarabando, ver Boletim da ADERAV, n.º 15, Setembro 1986.
[69] Joaquim dos Santos Correia nasceu em 1940. Colaborou no Cineclube e integrou o grupo fundador do CETA (Círculo Experimental de Teatro de Aveiro). Colabora na imprensa periódica desde os 17 anos, nomeadamente no Litoral e no suplemento cultural Companha, bem como no suplemento literário juvenil Vae Victis. Tem colaboração dispersa por outras publicações periódicas como Libertação, Independência Literária (suplemento cultural de Independência de Águeda), Jornal da Bairrada, Diário de Lisboa, suplemento literário do Jornal de Notícias e revista Vértice. Tem artigos publicados no 2.º volume da Enciclopédia de Literatura Verbo, no Boletim da ADERAV e na Revista da Universidade de Aveiro (Letras,Folhas). Licenciado em Filologia Românica em 1977, pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, foi aí professor de Literatura Portuguesa, tendo exercido igualmente funções docentes na Universidade de Aveiro. Em paralelo com a actividade docente e de investigador universitário, foi sócio-fundador da AJEB (Associação de Jornalistas e Escritores da Bairrada), integrou a direcção da ADERAV (Associação de Defesa do Património Cultural e Natural da Região de Aveiro) e foi director do último suplemento literário de Litoral (Artes e Letras) que se publicou entre 1990 e 1992. Tem proferido várias palestras e conferências enquanto animador e divulgador da cultura portuguesa, quer sobre personalidades marcantes da vida nacional ou da região de Aveiro, quer ainda em sessões de lançamento de livros. Coordenou, com João Sarabando e Cecília Sacramento, a obra Livro de Amizade. Lembrando Mário Sacramento (Edições Húmus, 2009).
[70] José Penicheiro (1925-2014). Pintor, iniciou a carreira como caricaturista e ilustrador. Ao longo da vida ensaiou técnicas variadas como a decoração, o desenho animado, a gravura, painéis decorativos, aguarela, óleo e, finalmente, guache e acrílico. Fundou o Círculo de Artes Plásticas Aveiro-Arte. Tem colaboração dispersa em publicações e jornais de Lisboa e Porto, bem como em jornais regionais. Primeiro de Janeiro, A Bola, Os Ridículos, O Sempre Fixe ou A Bomba inseriram nas suas páginas cartoons humorísticos do pintor.
[71] José Pereira Tavares (1887-1983). Professor de Português, Latim e Grego. Reitor do Liceu de Aveiro. Fundador da revista LABOR, dedicada aos problemas do ensino liceal. Fundou também, em parceria com Francisco Ferreira Neves e António Gomes da Rocha Madail, a revista Arquivo do Distrito de Aveiro, que entre 1935 e 1976 desenvolveu uma actividade assinalável no conhecimento de Aveiro e da sua região. Deixou vasta colaboração em enciclopédias e revistas, nomeadamente a Revista de Filosofia Portuguesa (S. Paulo) e a História da Literatura Portuguesa, de Albino Forjaz de Sampaio.
[72] Luiz Carlos Regala de Figueiredo (1905-1986). Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, onde privou, entre outros, com Joaquim Namorado, que através dele diz ter tomado contacto com a Presença, revista do segundo modernismo. Exerceu advocacia em Aveiro. Tem colaboração dispersa por várias publicações, quase sempre em poesia, com o pseudónimo de Pedro Zargo: O Vigilante; Voz Académica; O Primeiro de Janeiro; Seara Nova; O Diabo; Litoral e suplemento cultural Companha; Correio do Vouga e suplemento cultural Serão de Letras e Artes; revista Panorama; Diário de Notícias;Beira-Mar; Almanaque Desportivo do Distrito de Aveiro; Revista Trimestral da Secção de Filatelia e Numismática do Clube dos Galitos; O Jornal de Estarreja. Grande parte da sua obra poética continua inédita, à espera de publicação, já que em vida apenas deu à estampa Cântico de Amor (1960). Entre os títulos que ia anunciando contam-se: O Teu Livro, Pequenos Poemas Infinitos, Poemas Frustrados, Noite Imensa, Poemas Lusíadas, Rio Negro, Corpo Inteiro, Canto Renovado e Chão em Fogo, longo poema em estrofes tipo camoniano, “o meu Canto ao Homem, ao Homem que todos nós somos, insaciável na sua Fome de Amor, de Justiça e de Paz” (Luiz Regala, O Meu Diário, inédito).
[73] Mário da Rocha Merendeiro (1931-2014). Professor do ensino secundário, ajudou a fundar o CETA (Círculo Experimental do Teatro de Aveiro) e a Secção de Artes Plásticas do Clube dos Galitos. Tem colaboração dispersa em várias publicações, como Litoral (onde dirigiu os suplementos Vae Victis e Diagonal), Correio do Vouga, O Ilhavense, Comércio do Porto e O Aveiro. Fundou o semanário Companha, órgão do movimento cooperativo, de que também foi director em 1979. Na qualidade de católico progressista, dialogou com Mário Sacramento, a quem passou a considerar “o meu maior amigo, o meu melhor leitor”. Publicou a colectânea de poemas Sinfonia Incompleta (1955), Frátria.Diálogo com os Católicos – ou talvez não (em co-autoria com Mário Sacramento), Tempo de Mudança (1978), A Falência do Cristianismo Burguês (1984) e Razões Secretas de uma Promoção (1985, depoimento).
[74] Vasco Augusto Pinho Ferreira Branco (1919-2014). Licenciado em Farmácia. Fundador do Cineclube de Aveiro. Co-fundador, na década de 70, do grupo Aveiro-Arte. Pintor, romancista, cineasta amador (ficção, documentário e animação), autor de painéis cerâmicos, animador cultural com uma carreira de méritos reconhecidos ao serviço da arte. Colaborou nas revistas Mundo Literário e Bandarra e em jornais regionais como Litoral e Libertação. Publicou Telhados de Vidro (1952), Flor Seca (1956), Gente ao Acaso (1957), Os Vagabundos Ilustrados (1959), Do Ignoto aos Satélites Artificiais (1959), As Regras do Jogo (1960), O Dóri Número Treze (1962), Iva e o Mar (1965), Roteiro Impopular de uma Cidade (1973), Os Generosos Delírios da Burguesia (1980, Grande Prémio de Ficção da Associação Portuguesa de Escritores), Palavras sem Voz (1985), Encontros imediatos sem qualquer grau (1993), A Cidade Salgada (1993) e Do Natal – Dez Histórias Impopulares (1994). Autor influenciado pelo neo-realismo, Vasco Branco, que usava o pseudónimo VIC para as artes plásticas e Amândio Sereno para alguma poesia, “foi, no campo das artes, o filho mais dotado que [Aveiro] criou até este momento” (Joaquim Correia, “Vasco Branco, a clareza natural”, in Vasco Branco. Vida Literária, edição da Câmara Municipal de Aveiro, 1999, p. 19.
[75] Jaime de Magalhães Lima (1859-1936). Irmão do republicano Sebastião de Magalhães Lima, viria a trilhar um percurso político diferente, já que tinha arreigadas convicções monárquicas. Em 1852 fundou, com Manuel Firmino de Almeida Maia, O Campeão do Vouga, primeiro jornal aveirense que em 1859 passou a intitular-se Campeão das Províncias. Em 1892 é eleito Presidente da Câmara de Aveiro e, no ano seguinte, deputado pelo Partido Regenerador. Em 1901 alinha com João Franco na cisão deste partido, passando a dirigir a estrutura local do novo Partido Regenerador-Liberal. Afasta-se da política em 1908, com a queda do Franquismo. À semelhança de Herculano, uma das suas referências intelectuais, refugia-se na Quinta de S. Francisco, nos arredores de Aveiro, optando, a partir daí, pelo contacto íntimo e permanente com a natureza, o que lhe valeu ficar conhecido como o “eremita de S. Francisco” (ver Manuel J. G. Carvalho, Nação, nacionalismo e democracia em Jaime de Magalhães Lima, Aveiro, edição do Centro de Formação José Pereira Tavares, 1998). Publicou, entre muitos outros artigos em jornais e revistas, as seguintes obras: Alberto Sampaio e o significado dos seus estudos na interpretação da história nacional na sua época; Alexandre Herculano; O amor das nossas coisas e alguns que bem o serviram: Ramalho, Camilo, Eça, Antero, Oliveira Martins, Manuel da Silva Gaio, Lopes Vieira e Correa de Oliveira; Apóstolos da Terra; Camilo e a renovação do sentimento nacional na sua época; Côro dos Coveiros; A democracia: estudo sobre o governo representativo; Entre Pastores e nas Serras; Estudos sobre a literatura contemporânea; A guerra: Depoimentos de hereges; José Estêvão; A língua portuguesa e os seus mistérios; Na paz do Senhor; Os povos do Baixo-Vouga; Reino da Saudade; Rogações de Eremita; Salmos do Prisioneiro; Via Redemptora e Vozes do meu lar.
[77] Entrevista de Armando Pereira da Silva a Costa Ferreira, Independência Literária, n.º 12, Setembro, 1962, p. 4.
[78] António Augusto Sales, “Cinema, Cineclubismo e Imprensa Regionalista”, Vértice, n.º 217, Outubro de 1961, pp. 636 a 638.
[79] Joaquim Correia, “Colóquio com José Régio” [Entrevista]. Companha, Artes – Letras – Ciências, Ano I, n.º 1, Suplemento do n.º 254 de Litoral, Setembro de 1959, pp. 3, 4 e 24.
[80] “O grande primeiro problema literário e artístico do realismo dos nossos dias” [entrevista a Mário Dionísio], in Jornal de Letras e Artes, Ano II, n.º 76, 1963, p. 6.
[81] José Régio, “Literatura livresca e literatura viva”, in Páginas de doutrina e crítica da “presença”, Porto, Brasília Editora, 1977, p. 46.
[83] Luís Forjaz Trigueiros, “Da Revista Presença ao Romance Existencial”, Jornal de Letras e Artes, Ano I, n.º 32, 1962, p. 12.
[84] António Sousa Ribeiro, recensão a Realismo, Materialismo, Utopia (Georg Lukács, Ernst Bloch, Hanns Eisler e Bertolt Brecht), in Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 6, Maio 1981, pp. 199-202.
[85] Alberto Pimenta, “O Teatro – arte, de intriga – escola de títeres e o anti-teatro de Ionesco”, Companha, Ano I, n.º 1, Suplemento do n.º 254 de Litoral, Setembro de 1959, pp. 17, 19 e 21.
[87] Alberto Pimenta, O Silêncio dos Poetas, Lisboa, Edições Cotovia Ld.ª, 2003, pp. 116-117.
[88] “O grande primeiro problema literário e artístico do realismo dos nossos dias”, entrevista citada [a Mário Dionísio], p. 13.
[89] Joaquim Correia, recensão a Mar Santo, de Branquinho da Fonseca. Companha, Ano I, n.º 2, Suplemento do n.º 261 de Litoral, Outubro de 1959, pp. 21-22).
[90] Mário Sacramento, “Cartas ao Autor”, Companha, Ano I, n.º 3, Suplemento do n.º 266 de Litoral, Novembro de 1959), p. 24.
[91] Mário Sacramento, Fernando Namora, Col. A Obra e o Homem, Lisboa, Arcádia, s/d [1967], p. 124.
[92] “O grande primeiro problema literário e artístico do realismo dos nossos dias”, entrevista citada [a Mário Dionísio], p. 13.
[93] José Alexandre, “Ionesco académico – ou as desventuras da vanguarda”, Comércio do Funchal, Ano XXXIII, II série, n.º 2051, 15.02.1970, p. 6.
[95] Roland Barthes, “Na vanguarda de que teatro?”, in Ensaios Críticos, Lisboa, Edições 70, 1977, pp. 109-110.
[96] Roberto Nobre, “As imagens têm voz”, Companha, Ano I, n.º 4, Suplemento do n.º 271 de Litoral, Dezembro de 1959.
[97] “O grande primeiro problema literário e artístico do realismo dos nossos dias”, entrevista citada [a Mário Dionísio], p. 6.
[98] Mário Augusto de Almeida Braga. Nasceu em Coimbra, em 1921, onde se licenciou em Ciências Histórico-Filosóficas. Escritor, tradutor e jornalista. Publicou, entre outras obras, Nevoeiro (1944), Caminhos sem Sol (1948), Serranos (1948), Quatro Reis (1957), Histórias de Vila (1958), O Cerco (1959) e, já depois da revolução de Abril de 1974, Entre duas Tiranias (1977), O Intruso (1980), Contos Escolhidos (1983), As Rosas e a Pedra (1995), Contos de Natal (1995), Espólio Intacto (1996) e Momentos Doutrinais (1997).
[99] “Entrevista com Mário Braga”, Companha, Ano I, n.º 4, Suplemento do n.º 271 de Litoral, Dezembro de 1959, pp. 5-6.
[100] O jornal Independência de Águeda nasceu em 2 de Janeiro de 1904. Foram seus fundadores Manuel Bento Saldanha Camossa – também seu primeiro diretor – Eugénio Ribeiro, António de Sousa Sucena, Francisco Caldeira e António Abrantes. A redacção e a administração estavam localizadas na Praça Velha (Largo do Município). Os primeiros números foram impressos na Tipografia Minerva, em Aveiro, mas a partir de 23 de Abril de 1904 já dispunha de tipografia própria. Até 1907 era um jornal monárquico identificado com o franquismo. A partir de Janeiro de 1908, sob a direcção de Eugénio Ribeiro, passou a jornal republicano. (Ver Deniz Ramos, “A fase franquista de Independência de Águeda”, in Suplemento do jornal Soberania do Povo, n.º 8399, de 06.01.2006, pp. 3 a 6).
[101] Arsénio Simões Mota nasceu em Bustos, freguesia do concelho de Oliveira do Bairro, distrito de Aveiro, em 25 de Abril de 1930. É sócio da Associação Portuguesa de Escritores, do Sindicato dos Jornalistas, do Centro de Formação de Jornalistas, da Associação de Jornalistas e Escritores da Bairrada (da qual foi fundador e o primeiro director), da Sociedade Portuguesa de Autores e da Sociedade da Língua Portuguesa, entre outras entidades. Autor multifacetado, tradutor e editor, tem, para lá da caudalosa produção jornalística (Gazeta do Sul, A Planície, Gazeta de Cantanhede, Independência de Águeda, Jornal da Bairrada, Região Bairradina, Litoral, Mar Alto, Jornal do Fundão, República, Jornal de Notícias), uma vasta obra publicada em diversos caminhos da escrita: na poesia, com o pseudónimo Arsénio de Bustos, O Canto Desconforme (1955), Hoje com Harmonia Dentro (1956) e A Voz Reencontrada (978); na crónica, Som de Origem (1985) O Museu no Sótão (1993) ou Letras sob Protesto (2001); no conto, O Vírus Entranhado (1999), na literatura para crianças, A Corte na Aldeia, O Segredo da Rocha, A Bandeira Escondida, O Mistério da Floresta Mágica, A Ilha das Bocas Abertas, entre outras; no ensaio, Inclinações Pontuais (2000), na narrativa, Quase Tudo Nada (2006); na vertente monográfica, trabalhos sobre a terra natal: Bustos. Elementos para a sua história, (1983), Bustos do Passado (2000), Recordações do Berço (2003), Historial de Bustos (2010); finalmente, no âmbito da promoção dos valores culturais da Bairrada, Estudos Regionais sobre a Bairrada (1993), Pela Bairrada (1998) e Figuras das Letras e Artes naBairrada (2001). Para uma análise mais aprofundada da vida, da obra literária e da bibliografia activa e passiva de Arsénio Mota, ver: Serafim Ferreira (coordenação), Arsénio Mota – 50 anos de escrita, Porto, Campo das Letras, 2005; Arsénio Mota- uma vida como obra, edição da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira/Museu do Neo-Realismo, 2014.
[104] Cândido de Azevedo, A Censura de Salazar e Marcelo Caetano, Lisboa, Editorial Caminho, SA, 1999, p. 341.
[105] Nasceu em Oliveira de Frades (concelho do distrito de Viseu), em 31.12.1940. Exerceu jornalismo em O Comércio do Porto, Diário de Lisboa, revista Alavanca, O Diário, Jornal de Queluz e Grande Amadora.
[106] Segundo Arsénio Mota, trata-se de José da Cruz Santos, editor portuense que nasceu em 1936. Dirigiu a Inova, uma das mais importantes editoras dos anos 70 que tinha na direcção literária Óscar Lopes e contava com o grafismo de Armando Alves. Trabalhou, também, na editora Portugália e prosseguiu a aventura editorial na Oiro do Dia, que desaparece no início dos anos 80. Prolonga as suas colecções na D. Quixote e na Campo das Letras. Em 1999 entra na ASA, a convite de Américo Areal, onde permanece 10 anos. Actualmente, trabalha na Modo de Ler.
[107] Pseudónimo de Luís Duarte Lima, natural de Castelo Branco, onde nasceu em 04.01.1926. À data da colaboração no suplemento tinha publicado Os Poemas de Setembro (1950), Poema de Amor (1951), Cidade em Fogo (1953), Regresso à terra (1953), Relances (1955), Ressurreição (ou As mãos e o Barro) – 1958 e Carrocel (1960).)
[108] António Vicente Campinas (1910-1998). Poeta e prosador algarvio, natural de Vila Nova de Cacela (Vila Real de Santo António), onde exerceu as profissões de tipógrafo e guarda-livros. Exilou-se em Paris e viu algumas das sua obras apreendidas pela PIDE, como é o caso de Fronteiriços (1952), Travessia (1953), A Ilha dos Sonhos Malditos? (1954), Raiz da Serenidade (1967) e Catarina (1967). Colaborador de vários jornais e fundador do Jornal do Cinema e, em 1935, do periódico Foz do Guadiana. Entre poesia, prosa e obras em colaboração com outros autores, tem mais de trinta livros publicados.
[109] Serafim Ferreira (1939-2015). Era, à data, director do jornal portuense de cultura Saturno. Escritor, tradutor, editor e crítico literário. Responsável literário da editora Ulmeiro e subdirector de programação do Círculo de Leitores. Tem artigos, crónicas e ensaios publicados em revistas e jornais como A Capital, Jornal do Fundão, Diário de Lisboa, Diário Popular, República, Jornal de Letras e Artes, A Página da Educação, Vida Mundial e Colóquio Letras. Publicou Noite de Libertação (1960), O Trompete (1962), Litoral do Espanto (1968), Álvaro (revisitado) de Campos (1985, Prémio Literário Joaquim Namorado), Cartas de Marear (1989, Prémio Literário Cidade da Amadora), Olhar de Editor (1993), Crónica de Damião (1997, Prémio Literário Miguel Torga), Cleonardo e o Príncipe (2003, Prémio Vergílio Ferreira), Raul de Carvalho – entre o Silêncio e a Solidão, António Fernando Ou o Ritual da Pintura, Cantata Em Dois Andamentos, O Poeta e a Pedra, Livro de Horas, Sombras e Lugares e Estranha Obsessão (2010), o seu último romance.
[110] António Augusto Menano nasceu em Coimbra, em 1937. Coordenou, nos anos 60, os suplementos literários “Hoje e Amanhã” e “Artes e Letras”, respectivamente dos jornais Notícias da Figueira da Foz e Mar Alto. Escritor, poeta e pintor. Vereador da Câmara Municipal da Figueira da Foz entre 1982 e 1988. Tem colaboração dispersa por jornais e revistas de Portugal, Angola, Moçambique, Macau, Espanha e Brasil. Colabora no jornal As Beiras. Está representado em 15 antologias. Recebeu os prémios nacionais de poesia Sebastião da Gama, Oliva Guerra e Fânzeres. Entre as obras publicadas contam-se Tempo de Voar (1961), Tempo Vivo (1963), Poemas da Taipa, Poemas do Oriente (1991), Poemas de Macau, Caleidoscópio (1996), Arco da Memória (1998), Poemas da Roxa Aurora (2009, edição portuguesa), Inominável Segredo, Transire (Ventos no Casaco), 2003, Qual o começo de tudo isto?,A Guardiã e Memória da Luz e Outros Poemas.
[111] Garibaldino de Andrade (1914-1970). Natural de Ponte de Sor. Estudou em Portalegre e concluiu o curso do Magistério Primário em Coimbra. Escritor, professor do ensino primário, jornalista, editor e livreiro. A partir de 1937 substitui o pai – Primo Pedro da Conceição Freire de Andrade – no jornal quinzenário A Mocidade, de Ponte de Sor, que se publicou entre 1926 e 1940, num total de 336 exemplares. Deixou o Alentejo para se radicar em Angola (Palanca, Huíla), em 1953. Em 1957 muda-se para Sá da Bandeira (hoje, Lubango) onde funda, com Leonel Cosme, as Publicações Imbondeiro, a primeira editora a praticar a lusofonia e que se viria a transformar na maior editora de Angola. Publicou, entre outras obras, Vila Branca (1944), O Sol e a Nuvem (1949), Sete Espigas Vazias (1955), O Homem e o Sardão (1960), Contos de África (1961) e Árvores no Caminho. Tem colaboração dispersa em jornais e revistas como Seara Nova, Pensamento, O Diabo, Vértice, A Província de Angola, Diário de Notícias, e OEstado de S. Paulo.
[112] António Joaquim da Costa Ferreira (1918-1997). Natural de Elvas. Licenciado em Direito (Ciências Histórico-Jurídicas) em 1943, acabou por fazer carreira no teatro, onde foi autor, actor, encenador e tradutor de textos dramáticos. As suas produções e representações dramáticas centram-se essencialmente na década de 50, altura em que estreou Por um Fio (1950), Trapo de Luxo (1952), Milagre da Rua (1952), Quando a Verdade Mente (1955), Atrás da Porta (1956), Comédia das Verdades e das Mentiras (1956), Um Dia de Vida (1958) e Um Homem Só (1959). Nos anos 60 viu duas obras proibidas pela censura: Os Desesperados e O Quarto. Só depois da Revolução de Abril publicaria o volume memorialístico Uma Casa com Janelas para Dentro. Veria ainda a sua peça Onde Está a Música? (edição da Escola Superior de Teatro e Cinema) estrear no Teatro da Malaposta, numa encenação de Rui Mendes, em 10 de Julho de 1992.
[113] Eduardo Teófilo (1923-1980). Escritor radicado em Angola. Publicou Alentejo não tem Sombra (1954), Vida ou Pecado (poesia, 1955), Estrelas da Noite Escura (1958), Tempestade (1960), O Regresso do Emigrante (1961), Quando o Dia Chegar (1962), Primeiro Livro de Horas (poesia, 1964), Cacimbo em Angola (1966), Contos Velhos (1971).
[114] Deniz Cruz de Ramos Padeiro. Natural de Covões, concelho de Cantanhede, onde nasceu em 13.07.1934. Colaborador da imprensa regional. Escritor e investigador de temas históricos. Co-fundador da ADERAV. Publicou O Mensageiro Assassinado (poesia, 1957), A Palavra Lavra, (poesia, 1974), Os Primeiros Senhores de Águeda, (1985), Águeda, Anos 20. Da Escola Primária Superior à Escola Comercial e Industrial (1989), Soberania Centenária (1989), Tavares da Silva e os Espumantes na Bairrada (1990), Subsídios para a História da Vinha na Bairrada (1991), Jornal Soberania do Povo, 1879-1994, 115 anos (1995), Escola Popular (1999), Do Teatro que Houve em Águeda (2001), O Sentimento da Terra. Poesia, 1953-1958 (2001), Auto da Visitação (romance, 2001), O Convento de Santo António de Serém (2005), Bombeiros de Águeda. Contributo para a sua história (2007), Orfeão de Águeda. Achegas para a sua história (2008), Da Monarquia à República: leituras em jornais de Águeda (2012), Peixes da Montanha (romance, 2014) e Da Fundação das Filarmónicas em Águeda (2014).
[115] João Apolinário Teixeira Pinto (1924-1988). Nasceu em Belas, Sintra. Poeta e jornalista português. Colaborou em diversas publicações periódicas de Portugal e do Brasil, país onde se exilou em 1963 por motivos políticos. Regressou a Portugal em 1975, após a Revolução de Abril. Foi co-fundador do Teatro Experimental do Porto. Publicou, entre outros trabalhos, Morse de Sangue (1955), O Guardador deAutomóveis (1956), A Arte de Dizer (teatro), Portugal – Revolução Modelo (1974), Apátridas (1975), AmorfazerAmor (1978), Poemas Cívicos, O Poeta Descalço, Eco Húmus Homem Lógico, e, entre 1980 e 1988 escreveu e deixou inéditos os Sonetos Impopulares Incompletos.
[116] José Ferraz Diogo nasceu em Coimbra, em 1936. Exerceu funções docentes como professor de Português e Francês. Fundou e dirigiu jornais em quatro das seis escolas onde lecionou. Escreve e encena peças de teatro, sobretudo de fantoches. Em 1968 funda e dirige o Cineclube de Abrantes, passando a publicar textos sobre cinema em revistas da especialidade. Em 1965 publica o livro de poesia A Palavra. Em 1974 edita 3 livros de teatro infantil. Em 1993 organiza e prefacia a 6.ª edição de Versos dum Cavador, do poeta popular Manuel Alves. Em 1997 organiza Manuel Rodrigues Lapa – Fotobiografia, no âmbito das comemorações do centenário do seu nascimento. Tem colaboração dispersa por vários jornais e revistas, que inclui poemas, contos e artigos de opinião. Redige textos para catálogos de exposições de artes plásticas.
[117] Nasceu em Guimarães, em 1934. Em 1950 partiu para Angola, onde, com Garibaldino de Andrade, desenvolveu uma notável acção cultural através das Publicações Imbondeiro. Trabalhou no Rádio Clube de Huíla e colaborou na fundação do seu Cineclube. Jornalista, cronista, contista, escritor e investigador, publicou Um Homem de Rua (1957, livro de estreia, aos 23 anos), Quando a Tormenta Passar, livro de contos galardoado com o prémio Fialho de Almeida, Graciano, A Dúvida (1961, prémio Camilo Castelo Branco), Revolta (1963), Ecce Homo (1973, livro de poemas), Cultura e Revolução em Angola (1978), Agostinho Neto, a Poesia e o Homem (1984), A Terra da Promissão (A Revolta – II, 1988), A Hora Final (A Revolta – III, 1992), Agostinho Neto e o Seu Tempo (2005), Crioulos e Brasileiros de Angola (2005), Muitas são as Áfricas (2006) e A Separação das Águas (2007). Regressou a Portugal em 1987, onde continuou a exercer a actividade jornalística na imprensa e na rádio. Em 1990 retira-se do jornalismo profissional e passa a dedicar-se à actividade literária em jornais e revistas da especialidade. Colaborador da Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, tem apresentado várias participações em congressos, seminários e colóquios.
[118] António Augusto Sales nasceu em 1936, em Torres Vedras. Coordenou a secção mensal “Suplemento” do jornal Badaladas, a partir de 17.06.1961, e esteve intimamente ligado ao Cineclube de Torres Vedras. Publicou Diário de Um Espectador de Cinema (1961), A Primeira Manhã (1964), Uma Longa e Estranha Pausa (1970), Barcelona, Cidade na Catalunha (1972), Requiem pelos Fiéis Defuntos (1976), Cartas da Revolução (1978), Corpo Enigmático (1993), Uma Mulher no Papel (1996), António Botto, Real e Imaginário (1997) e Os Guardadores do Tempo (2007).
[119] Idalécio da Silva Cação nasceu em 1933, na freguesia de Alhadas, concelho da Figueira da Foz. Esteve ligado, nos anos 60, ao Círculo Experimental de Teatro de Aveiro. Licenciado em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra, exerceu funções docentes nas Universidades do Minho e Aveiro. Tem colaboração dispersa por várias publicações periódicas da região de Aveiro, nomeadamente Litoral, Libertação, Independente de Cantanhede e outras. Fundou e coordenou os suplementos literários “Sal Gema”, do Jornal do Oeste (Rio Maior) e “Diálogo” do jornal Beira-Vouga (Albergaria-a-Velha). É sócio da Associação Portuguesa de Escritores, da Associação Cultural Sol XXI e da Associação de Jornalistas e Escritores da Bairrada. Ficcionista e poeta, publicou Nas Fronteiras do Tédio, (1961), As Evidências e o Prisma (1963), Raízes na Areia (1968), Os Sítios Nossos Conhecidos (1990), Daqui Ouve-se o Mar (1991), O Chão e a Voz (1998), Sobre a Gândara e a CasaGandaresa (1999), Glossário de Termos Gandareses (2002) e Crónicas Gandaresas (2006).
[120] Coordenador, à data do I Encontro, do suplemento mensal “Letras e Artes” do Notícias de Guimarães. Joaquim António dos Santos Simões (1923-2004) nasceu em Espinhal, concelho de Penela, distrito de Coimbra. Licenciado em Ciências Matemáticas e Engenharia Geográfica. Nos anos 40 do século XX foi director, encenador e actor do TEUC – Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra. Eleito Presidente da Associação Académica de Coimbra no ano lectivo 1950-1951. Em 1957 fixa residência em Guimarães, onde passa a exercer funções docentes no ensino público. É um dos fundadores do Cineclube de Guimarães e do Teatro de Ensaio Raúl Brandão e esteve ligado ao Círculo de Arte e Recreio. Em 1968 seria expulso do ensino por causa da sua militância contra o Estado Novo. Em 1990 é eleito Presidente da Sociedade Martins Sarmento, uma das mais importantes instituições culturais de Guimarães. Tem colaboração dispersa por várias publicações periódicas. Autor de vasta bibliografia, que vai da literatura para crianças ao conto e à poesia, do ensaio ao memorialismo e da história local à política, publicou, entre outras obras, Sete Anos de Luta contra o Fascismo – Academia de Coimbra 1944-1951 e Braga, Grito da Liberdade – História Possível de Meio Século de Resistência. A Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra recebeu, em 2016, parte do seu arquivo pessoal.
[121] António Oliveira Cordeiro de Melo (1925-2008). Foi um dos fundadores, em 1961, de “Suplemento” (jornal Badaladas, de Torres Vedras), juntamente com António Augusto Sales e Ruy Moura Guedes, entre outros. Residia em Merceana, concelho de Alenquer. Professor do Ensino Primário, colaborou no Jornal de Alenquer, de que foi um dos fundadores. Co-autor da monografia O Concelho de Alenquer e do livro Contos Portugueses. Publicou diversos estudos sobre os usos e costumes, lendas e trabalhos agrícolas da região, entre os quais Merceana, sua lenda e projecção cultural na Estremadura e O Vinho nas Artes. Tinha o curso de Artes Decorativas do Instituto António Arroio, tendo-se destacado como artista plástico, na pintura e na marcenaria. Já depois de se ter aposentado do Ensino, viria a obter a licenciatura em História. Consulta electrónica em 19.02.2016 (http://lugaronde.blogspot.pt/2008_07_01_archive.html).
[122] Fèlix Cucurull (1919-1996). Escritor e político da Catalunha. Entre a sua vasta bibliografia publicou em português O Último Combate, O Deserto, O Silêncio e o Medo e Às 21.13.
[123] António José Forte (1931-1988). Natural de Póvoa de Santa Iria (Vila Franca de Xira) foi um poeta ligado ao movimento surrealista, que integrou o chamado Grupo do Café Gelo. Colaborou na revista Pirâmide e em jornais como A Rabeca, Notícias de Chaves, O Templário, Diário de Lisboa, A Batalha e Jornal de Letras, Artes e Ideias. A sua obra de estreia é 40 Noites de Insónia de Fogo de Dentes Numa Girândola Implacável e Outros Poemas (1958). Publicou Uma rosa na tromba de um elefante (poesia infanto-juvenil) e, em 1983, Uma faca nos dentes, obra que reúne a sua poesia.
[124] Vasco da Costa Marques (1928-2006). Poeta e militante antifascista, escreveu o hino “Caxias” (letra e música), uma canção de resistência dirigida aos presos políticos. Colaborou em jornais e revistas como Vértice, Seara Nova, Notícias do Bloqueio e Diálogo. Publicou Trânsito Proibido (1950), Poesia dos Dias Úteis (1956), O Mundo Possível (1961), Um Beco no Espaço (1970), Venham de Lá Esses Ossos (2002) e Algumas Trovas de Haver o Mar e um PostScriptum (2003).
[125]Independência Literária, n.º 7, Abril, 1962, p. 2.
[126] José Cruz, “Notas para um Encontro entre Suplementos”, Independência Literária, n.º 18, Março, 1963, p. 2.
[127] Manuel Deniz Silva, “Cinco notas sobre o pensamento estético de Álvaro Cunhal”, in Álvaro Cunhal. Política, História e Estética, (José Neves, coord.), Lisboa, Tinta da China, 2013, p. 177.
[128] Roland Barthes, “O efeito de real”, in O Rumor da Língua, Lisboa, Edições 70, pp. 131-136.
[129] “O culto da personalidade”, Independência Literária, n.º 2, Novembro, 1961, p. 1.
[130] “Margem Livre”, idem, n.º 4, Janeiro, 1962, p. 1.
[131] Entrevista a Manuel Ferreira, idem, pp. 1-2.
[132] Entrevista a Garibaldino de Andrade, idem, n.º 5, Fevereiro, 1962, p. 3.
[147] José Carlos de Vasconcelos, “A literatura dita nova e a juventude perante a literatura”, idem, pp. 1 e 14-15.
[148] Título de um volume colectivo de poesia, organizado em fascículos, onde se pode detectar “um manifesto interesse pela linguagem enquanto forma”, uma procura, no dizer de Carlos de Oliveira, do “micro-rigor da palavra”, além de uma vincada herança surrealista. Ver Clara Rocha, obra citada, p. 583.
[149] Antologia de poesia, organizada em 1962 por Mário Dias Ramos e Dórdio Guimarães, onde colaboravam A. Ramos Rosa, Fiama H. P. Brandão, Maria Teresa Horta, Teresa Rita, Olímpio Neves, João Apolinário e os próprios organizadores.
[151] Ana Hatherly, O espaço crítico – do simbolismo à vanguarda. Lisboa, Editorial Caminho, 1979, pp. 114 e 120.
[152] Serafim Ferreira, “Breve nota sobre Poesia desde 1960”, citado por A. Pereira da Silva, recensão a Tempo Vivo, de António Augusto Menano, Independência Literária, n.º 20, Maio, 1963, p. 5. Os cinco elementos de Poesia 61 eram Casimiro de Brito, Fiama Hasse Pais Brandão, Gastão Cruz, Luísa Neto Jorge e Maria Teresa Horta.
[153] Alfredo Margarido, “A poesia concreta faz auto-crítica”, idem, n.º 11, Agosto, 1962, p. 1.
[160] “Entrevista com Teixeira de Sousa”, Independência Literária, n.º 7, Abril, 1962, pp. 1 e 3. Ver também Manuel Ferreira, “A propósito de modernos poetas cabo-verdianos”, idem, n.º 4, Janeiro, 1962, pp. 1, 3 e 6.
[161] Arsénio Mota, “Um Ano”, idem, n.º 12, Setembro de 1962, p. 1.
[162] “Em torno de um patrocínio”, idem, n.º 16, Janeiro, 1963, p. 1.
[163] “Apresentação”. Independência Literária. Secção cultural do semanário Litoral, n.º 1, 2.ª série, 12.02.1965, p. 1.
[164] “Explicação aos leitores”, Independência Literária, n.º 28, Janeiro, 1964, p. 2.
[165] Agradeço a Arsénio Mota a informação sobre os problemas relacionados com a tipografia privativa do jornal, bem como a cedência do contrato que celebrou com o director de Litoral.
[166] “Apresentação”. Independência Literária. Secção cultural do semanário Litoral, n.º 1, 2.ª série, 12.02.1965, p. 1.
[167] Eugénio Ribeiro (1872-1962). Governador Civil de Aveiro durante a I República. Dirigiu desde 04.01.1908 o semanário republicano Independência de Águeda, fundado em 02.01.1904 por Manuel Bento Saldanha. Para outras notas biográficas sobre Eugénio Ribeiro, ver Arsénio Mota, Figuras das Letras e Artes na Bairrada, Porto, Campo das Letras, Setembro de 2001 (1.ª ed.), p. 138. Ver também, em suporte digital, Dicionário de Autores da Bairrada (2ª. ed., revista e aumentada).
[168] Santos Simões, na resposta ao inquérito organizado por José Cruz no suplemento Independência Literária, n.º 24, Setembro, 1963, p. 4.
[169] António Augusto Sales, idem, n.º 27, Dezembro, 1963, p. 7.
[170] Augusto Mota nasceu em Ortigosa, Leiria, em 1936. Na década de 60 colaborou activamente, com textos e ilustrações, no movimento cultural dos suplementos e páginas literárias da imprensa regional. Licenciado em Filologia Germânica, foi professor de Artes Visuais na Escola Industrial e Comercial de Leiria/Escola Secundária Domingos Sequeira, entre 1959 e 1996. Afirmou-se sobretudo no domínio das artes plásticas e visuais (desenho, pintura, mosaico, gravura e publicidade). Colabora, desde 1950, com o poeta alentejano António Simões, com ilustração de poemas seus. Autor de capas de livros (nomeadamente para a Livraria Martins, de Leiria) e de ilustrações para livros de poesia, além de maquetas e cenários para grupos de teatro. É autor de logótipos para várias empresas e associações da região de Leiria, bem como escritor e autor de textos para banda desenhada. Em 1959 publicou, em edição de autor, o caderno de prosa Quadriculado. Em Outubro de 2005 editou Sujeito Indeterminado, um “breviário de textos brevíssimos”. Tem no seu currículo um vasto número de exposições individuais e colectivas. Tem vindo a colaborar, com textos curtos, na revista Rodapé, da Biblioteca Municipal de Beja. Consulta electrónica em 26.02.2016 (http://romadevidro.blogspot.pt/2005/09/fotografia-de-augusto-mota-pensamento.html).
O cortejo dos Reis Magos de Sorães[1] tinha larga fama nas redondezas e aglutinava sempre uma espessa multidão que afluía de todos os pontos cardeais. Os caminhos da Gândara pejavam-se de forasteiros oriundos de todos os lugares: da Tocha, de Cadima, de Murtede, de Carromeu, vinha gente de todas as idades e condições, desde as velhas de mantilha embiocada, até às cachopas de lenços garridos de ramagens e de fedelhos de palmo e meio, ranhosos até à ponta do queixo e de calças fundilhadas no posterior. Também do lado do mar vinham os gafanhões e as gafanhoas, lépidos e bailarinos nos movimentos, a quem as lombas não metiam medo. Atascando-se nos caminhos barrentos, uns, atolando-se na duna, outros, toda a gente arranjava disponibilidades e fôlego para a caminhada. E, às vezes, não faltava, mesmo, a presença de um ou outro senhor folclorista com o seu binóculo científico assestado, quando não com sua câmara fotográfica a fixar imagens
Já coisa de um mês antes, se sentia latejar em todo o povo uma azáfama ofegante na preparação das alfaias, das indumentárias, dos cenários, e na realização dos ensaios do Auto, velho e ingénuo, que haveria de ser mastigado como núcleo de entremez.
Um talhava com umas tesouras velhas ferrugentas, coroas de rei, especiosas e profusas de bicos e recortes, num retalho de folha-de-flandres arrancado à sucata do picheleiro, ou recortava, em papelão grosso, a estrela que, depois de dourada, havia de servir de guia na caminhada para a gruta de Belém; uma rapariga costurava em cetineta vermelha ou numa colcha ramalhuda, fora de uso, mantos reais que haviam de vir a ser debruados e listados com galão de cangalheiro; um labrego pintava a purpurina de oiro os velhos arreios com que se haviam de ajaezar as montadas dos magos do Oriente
O fim do mundo na pacatez de Sorães!
Poliam-se as trompas, baças do pó de doze meses e enodoadas de azebre, punha-se pele nova no bombo, rebentado no ano passado pela maceta impulsionada por músculos robustecidos pelo estímulo do briol, apetrechavam-se os clarinetes com palhetas novas para lhes valorizar o timbre, encordoavam-se as violas e os bandolins onde as aranhas tinham instalado tear para fazer as suas teias – e os ensaios botavam pela noite fora.
O encenador corrigia aqui os defeitos da pronúncia de uma personagem, além procurava sincronizar uma fala com a mímica que havia de a sublinhar, ou tentava pôr de acordo uma emoção com um gesto. Exigente no encornanço dos papéis, ai daquele que se engasgasse no meio de uma frase, ou esfumasse uma deixa por indecisão ou má pronúncia. Caía o Carmo e a Trindade quando o actor se mostrava rude ou desatento! E, de jumento para baixo, todos os insultos do dicionário lhe serviam, afoitando-se, mesmo, a incursões na gíria local, quando precisava de termos mais expressivos para os fazer desabar sobre as cabeças, vergadas de respeito, dos actores improvisados e transplantados da rabiça do arado para um trono real de papelão, ou arrancados do chão humoso e estercado para subtis incumbências angélicas sobre nuvens de algodão em rama. Mesmo às figuras do Presépio, cuja missão era, apenas, estar ali sem botar fala, as recomendações de compostura e de acordo com a função eram rigorosas e categóricas. Este ano, então, a coisa havia de ser figurada a preceito – ou que raios partissem os brios da comissão – e o cortejo teria que resultar de arromba. Ponto era que o dia estivesse bonito e que um sol doirado viesse dar a sua colaboração a tanto suor gasto para lubrificar os rodízios do êxito. O cortejo dos Reis era o cartaz de Sorães!
O Evangelista, o Avelino e o Domingos é que, desta feita, iriam figurar de magos do Oriente. Eram três labrostes alentados como bois, sobretudo o Avelino, que ia fazer de Rei Preto. De Herodes fazia o Laúdo, que tinha uma espantosa cara de facínora, onde uns olhos ameaçadores e ensombrados por um torus mais grosso e pesado que o do sinantropus, fuzilavam como coriscos corroborados por umas córneas injectadas. Grande trabalho deu esta última personagem ao ensaiador para conseguir desbastá-la da sua natural cortiça de estupidez, como convinha ao poder histriónico de quem, apesar de tudo, figurava um rei. Como um rinoceronte, o Laúdo investia, cego, derramando, vociferante, o seu papel, indemne às directivas que procuravam frenar-lhe, um pouco, o impulso cafreal.
O Evangelista lá deu um mago acetinado, mas de sabor incaracterístico como o capilé, e o Domingos, tem-te-não-caias, pelo menos obedecia às vozes de quem mandava e à batuta do maestro, enquanto o Avelino deu, por vocação, um Rei Preto “que só lhe faltava falar”, como dizia a Brízida. No dia aprazado lá estava tudo a postos! Debaixo do rei Baltazar, de cara enfarruscada como um tição, o cavalo, com mais lã do que um carneiro, parecia ter a coluna vertebral selada, vergado, como estava, sob o peso da outra alimária; e os dois restantes, muito comedidos, muito senhores do seu papel, enquanto seguravam as rédeas com a mão esquerda, iam cofiando com a dextra umas incríveis barbas, baças e penteadas, feitas de rabo de burro. Atrás seguiam três sendeiros a botar figura de camelos e ajoujados sob o peso das oferendas, as mais fantásticas, as mais inverosímeis, e destinadas a fazer as vezes da ânfora do incenso, do cofre do oiro e da urna da mirra. Finalmente, estendia-se ao longo da estrada esburacada e lamacenta da aldeia um cortejo interminável de pastorinhas e pastorinhos com seus tabuleiros e canastras, com suas gaiolas e condessas, ou tangendo carneiros brancos, afogados em lã, e tímidas cabrinhas de pêlo escorrido, não contando com uns caçadores, tão hirtos que pareciam engomados, levando pendentes das trelas patos e galináceos vivos que se espanejavam esbaforidos.
Fuzilavam no centro dos tabuleiros de madeira, forrados com papéis coloridos, garrafas cintilantes de vinho branco e de jeropiga, de cujos gargalos partiam para os cantos festões de bilharacos e figos passados enfiados em arames; rescendiam as galinhas assadas, tostadas e loiras, com suas epidermes de poros arrepiados, como que esfregadas com urtigas, e berravam em bandejas de latão bolos recobertos de açúcar com decorações quase mouriscas de confeitos multicolores; sussurrava o milho amarelo nos alqueires e alvejavam toalhas, engomadas e emolduradas de renda, debaixo de leitões assados no espeto e com as maxilas cerradas num trismo sardónico sobre laranjas gritantes de cor e de acidez.
E, à cabeça das garotas, como que a corroborar o especioso dos penteados, abóboras-meninas, bilobadas como cabaças e quase rubras no seu intenso alaranjado, ou taleigos imaculados de brancura a impar de farinha pelo laço do nagalho. Tudo aquilo que de mais bizarro se possa imaginar em matéria de oferendas era conduzido para o presépio do Menino por aquele cortejo guiado pela estrela, de papelão doirado, erguida, ao alto, na ponta de uma cana, por um anjinho adornado com umas descomunais asas, profusas de rémiges, muito mais zoológicas do que as de qualquer ganso petulante e fanfarrão.
O cortejo encaminhou-se para o Presépio, armado num desvão do adro, aconchegado sob a copa espessa e acolhedora de um cedro centenário… E, então, as régias personagens desmontaram, muito solenes, os servos descarregaram os burros, sucedâneos dos camelos, e os três Magos, dobrando os joelhos, e baixando até ao chão as coroas de lata, depuseram junto do estábulo, em vez da ânfora do incenso, o pipo grávido de vinho, em vez do cofre do oiro, o alqueire coagulado de milho doirado, e, em vez da urna da mirra, a carne de porco nacarada e enterrada em sal mais branco do que a neve pura.
O Menino Jesus, de barro, do tamanho de um menino verdadeiro, com seus olhos muito azuis e seu cabelo como estrigas, ficou estático e sereno nas palhinhas humildes, sob o bafo quente de um jumento e de uma vaca ao natural, enquanto, sobre o seu corpinho róseo, uma Virgem e um S. José de Sorães deixavam cair dos olhos, embevecidos, lágrimas de maná. Quem olhasse de longe julgaria ter na frente o presépio de um barrista do século XVIII, com suas figurinhas de argila, onde nem sequer faltava o desbotado e a patina da policromia que se soletrava, facilmente, nas indumentárias usadas, pela quinquagésima vez, nestes cortejos de Sorães.
Mas nem tudo, naquele ano, se passou como estava escrito nas rúbricas do Auto…
Na verdade, na varanda do seu palácio de estafe, Laúdo, o façanhudo Herodes, de mãos atrás das costas, passeava, de um lado para o outro, exteriorizando uma sanha rábica, que transbordava para fora do texto e da ordenança da encenação. Os Magos não lhe traziam, como era da promessa, notícias daquele Menino que a sua tirania queria degolar para extinguir a chamazinha de justiça e liberdade que nascia para os escravos, para os pobres e para os tristes.
De vez em quando, numa agitação espasmódica, subia os três degraus do estrado para se sentar no seu trono de papelão, onde se chegavam reverentes dois servos, um com um cântaro de meio almude, outro com uma taça de lata numa bandeja, para refrescarem a secura do seu real amo. E tantas foram as vezes que a sede do Laúdo esgotou a taça, já tinta de roxo até ao pé, que os efeitos do vinho se começaram a produzir e a revelar. O semblante entrou de avinagrar-se-lhe e de endurecer, e a sua agitação a mostrar-se com evidência de mais para ser fingida. Amiúde, parava no meio do tablado e desembainhava palmo e meio de catana da sua baínha de lata. Depois, tornava a embainhá-la e carregava, ainda mais, o sobrolho em viseira, pronunciando palavras ininteligíveis. E, a certa altura, ouviu-se mesmo, com nitidez e contra a letra da peça, sair-lhe da boca avinhada uma frase que fazia dissonância:
– Do filho do meu pai nunca ninguém fez pouco; ou aqueles filhos duma cadela me trazem notícias do garoto, ou vou eu mesmo procurá-lo!…
O contra-regra interveio do lado para chamar o Laúdo ao papel, mas a resposta foi pronta:
– Deixar borrar as barbas, à frente do povo todo, é que eu não deixo, nem a fingir!
Houve risadas e dichotes na assistência. A comissão fervilhou de zelo e o próprio padre da freguesia disse qualquer coisa de xaroposo para neutralizar a fúria acética do Herodes que, apesar de tudo, continuou a remorder:
– Se queriam alguém para botar figura de bacoco, não me batessem à porta a mim; se esses reizotes de trampa não me trazem as prometidas notícias do fedelho, irei eu catá-lo, nem que seja aos quintos…
E, se bem o disse, melhor o fez. Perante o pasmo da multidão, o Laúdo deu um salto bestial abaixo do varandim, ergueu no ar a catana rebrilhante e correu, furioso, direito ao Presépio para degolar o Menino de barro.
Não foi possível encontrar razões para o deter: nem a tradição, nem o Auto, nem a autoridade do ensaiador, nem os apelos da comissão, nem as palavras mansas do padre, nem mesmo o testemunho dos Evangelhos!…
Só a força bruta de três labregos, de braços mais grossos do que gibóias, conseguiu salvar da fúria daquele Herodes de entremez o Menino-Jesus venerado pelo povo há uma carrada de anos.
Mas, esta surpresa, que veio embater contra a expectativa pacóvia da assistência, não ficou por aqui. Os filhos do Laúdo, vendo o pai agarrado por aqueles três brutamontes, foram levar-lhe o socorro que entenderam dever-lhe como filhos. Foi o rastilho para se envolver meio mundo à porrada – o que, trocado em miúdos, se traduziu num hematoma do tamanho de um ovo de galinha no coronal do rei Baltazar, em duas arquinhas partidas no rei Herodes e num beiço rachado no Anjinho da Estrela…
Por este preço logrou a Sagrada Família fugir para o Egipto, naquele Natal de Sorães…
António Frederico Vieira de Moura (1909-2002). Natural de Vagos. Licenciado em Medicina e em Ciências Histórico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra. Deputado eleito pelas listas do Partido Socialista na III e IV legislaturas. Colaborador de jornais e revistas, era um conferencista e comunicador brilhante. Dele disse Miguel Torga, amigo dilecto: “ser de eleição (…) pragmático e sonhador, ácido e sentimental, solitário e convivente com horas de formiga e horas de cigarra e sempre solidário e compassivo” (Litoral, 12.04.1979).
[1] Este conto tem a particularidade de se desenrolar no extinto concelho do Couto da Vila de Sorães (actual freguesia de Santa Catarina, do concelho de Vagos) que nas Memórias Paroquiais de 1758 incluía o lugar de Bustos, parte do Sobreiro e o lugar da Barreira. Esta narrativa de Frederico de Moura foi extraída do blogue de Ricardo Esteves “Crónicas Portuguesas”. O conto está incluído em Pulso Livre, obra editada pela família do autor, com textos inéditos e outros já publicados. Está também incluído em “Natal”, edição do Instituto Luso-Fármaco, 1967.
Suscitava, e há-de continuar a suscitar, discussão. O que é revelador da saliente personalidade do ilustre aveirense que agora desaparece. Um homem truculento e ao mesmo tempo afectuoso no trato, que fracturava, avesso a consensos moles. Frontal e irreverente.
É assim, sem biombos, que me apetece falar do histórico militante socialista Carlos Candal, embora saiba que o post mortem continua ser o estado mais propício ao aguçar das virtudes e do reconhecimento público e ao branquear dos defeitos da nossa humana condição.
Homem exímio a manusear o látego da ironia, flagelava e era flagelado por opositores ou declarados adversários políticos. Nos anos de brasa da revolução de Abril, o MRPP chamava-lhe o “trinca boquilhas”. E quando passou a fumar charutos, era acusado de andar sempre com o símbolo fálico a bailar-lhe na boca. Ele, por sua vez, retrucava da mesma maneira: quando Mário Soares colocou o socialismo na gaveta e promoveu alianças à direita, apelidou-o de “bailarina política”. Assim mesmo. Vicente Jorge Silva chamou-lhe “republicano bolorento” mas não ficou sem resposta: de imediato foi apodado de “revolucionário reciclado”. E há bem pouco tempo, quando Manuel Alegre começou a entoar um canto desconforme com a maioria política do momento, Candal não teve pejo em afirmar que ele estava é a precisar de “um chuto”.
Eis o desassombro, a braveza física e moral de um homem que nunca hesitou em noivar a liberdade, mesmo no tempo em que outros se compraziam em cortejar a ditadura. Em 1969 e 1973, Aveiro foi palco de dois congressos republicanos. Candal, candidato a deputado pela oposição, assumiu importante papel na organização do primeiro.
O seu “Breve Manifesto Anti-Portas em Português Suave”, um libelo acusatório salpicado de bairrismo contra os políticos de Lisboa que se aprestavam para tomar de assalto a sua cidade – gente que, como costumava dizer Mário Sacramento, só começou a comer ovos moles em idades muito avançadas… – causou alguma indignação e fez estremecer certas almas bem pensantes. A verdadeira pedrada no charco de uma campanha sensaborona e da política liofilizada. Numa reacção hipócrita, Guterres retirou-lhe a confiança política e alguns jornalistas tentaram crucificá-lo, não resistindo a insultar como coiotes o velho leão ferido. Torquato Sepúlveda, por exemplo, chamou-lhe “cowboy” de um “western spaghetti”. Mas Candal resistiu. Foi até Bruxelas e refez a carreira, sempre apostado em pôr um pouco mais de sal ou picante na política.
Falei com ele apenas duas vezes. Uma na própria residência em Aveiro, situada a meio da Av. Dr. Lourenço Peixinho. Tinha ido lá solicitar parte do espólio de Homem Cristo, que sua esposa, a Dra. Isabel Cerqueira, prima de Zeca Afonso, conservava. A outra foi em Oliveira de Azeméis, pouco tempo depois, e num encontro meramente fortuito. Meteu-se comigo, naquele tom mordaz e jocoso que o caracterizava, concedendo-me a liberdade de lhe dizer: o Sr. Dr. tem a curva da prosperidade um pouco mais saliente do que no dia em que o conheci. Ao que ele respondeu, com aquela peculiar voz cavernosa e sem pestanejar, fazendo jus a um certo marialvismo lusitano a que muitos o colavam: deixe lá, as primas gostam…
Mais do que um homem de partido, Candal gostava de tomar partido. Esteve praticamente sempre do lado contrário ao dos seus correlegionários que assumiam o poder. Por isso o seduzia tanto a advocacia, a guerra de palavras, a luta, a tensão permanente.
Sem tiques de vedetismo ou ambições carreiristas, o advogado de província finou-se um dia destes. Consta que mal recuperou do acidente que o acometeu, em plena campanha para as europeias, terá pedido um charuto.
Oxalá que do alto dos seus charutos nos continue a inquietar, com a mesma atitude desafiadora que sempre teve perante a vida.