Reorganização Administrativa Territorial Autárquica – III (do cumprimento da lei à resistência das populações)

É o progresso das ideias que traz as reformas, e não o progresso dos males públicos que as torna inevitáveis.

ALEXANDRE HERCULANO

Na reunião de esclarecimento que teve lugar no Troviscal disse o Senhor Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro ter a perceção de que “a lei é para cumprir e tudo o que se possa dizer é retórica”. E para legitimar a sua opinião acrescentou ter sido o próprio secretário de Estado a transmitir-lhe que “vai cumprir o que foi negociado com a Troika”.[1] Começo por discordar desta visão restritiva da democracia que se preocupa mais em cultivar a obediência do que em exercitar a liberdade. Além disso, tais palavras podem ser entendidas como uma forma de pressão sobre os órgãos do próprio partido que o elegeu, de condicionamento do debate político e de limitação do direito de opinião.

Felizmente que o secretário de Estado da Administração Local, num tom bem mais prudente de estímulo à cidadania e à participação, nos descansa um pouco quando contraria as palavras do Senhor Presidente da Câmara. São dele estas afirmações: “O exercício da política pressupõe anunciar, debater, ouvir, incorporar contributos e decidir”.[2] Em democracia a forma de consolidar a legitimidade das decisões passa por tornar público o conhecimento que se detém, evitando os truques, as manhas e os ardis que tantas vezes caraterizam os segredos do poder. Então tudo o que se possa dizer para lá do estrito cumprimento da lei é retórica, Senhor Presidente? Foi isso que andou a fazer a comissão permanente da Assembleia Municipal, a espalhar retórica pelas freguesias? É assim que classifica os muitos contributos dos munícipes sobre a reforma da administração local? Cumprir a lei e calar, sem debate, marginalizando a vontade dos cidadãos? É esta a forma como entende o exercício do poder democrático?

Mais do que submeterem-se ao império da lei os cidadãos exigem um estilo de política que os sirva e responda às suas preocupações, necessidades e anseios. A melhor reforma autárquica possível será aquela que assenta em motivos sociais e humanos e não exclusivamente em argumentos ou estandartes políticos, o que implica ouvir as populações e não apenas os aparelhos partidários. Os partidos não podem tender a usurpar o exclusivo da intervenção e do poder social. A genuína integração de todos os munícipes no espaço geográfico concelhio está associada não à imposição pura e dura da lei mas à construção de consensos, os quais se ligam a fenómenos como as tradições, os rituais e o próprio poder. Muitos desses costumes e tradições encerram uma sabedoria e desempenham funções latentes, não expressas, que escapam às evidências de senso comum. Não perscrutar este peso das tradições e dos rituais em nome do acatamento cego da lei significa abdicar de entender as coordenadas que assinalam a via da identidade das populações das freguesias do nosso concelho. Não ter isso em conta é enveredar por um caminho armadilhado, é não atender a estas palavras avisadas do legado intelectual de Edmund Burke: os povos que não olham para trás, para os seus antepassados, não serão capazes de olhar para a frente, para a posteridade.

A História ensina que se as leis fossem sempre cumpridas nunca haveria motins, revoltas ou revoluções. Nunca teria sido derrubada a Monarquia em Portugal e por isso não viveríamos hoje em República. Não teria caído o Estado Novo e talvez hoje não andássemos a saborear a liberdade. Com Locke aprendemos que quando as leis não são feitas para o bem do povo se torna legítimo o direito de resistência.  Vejamos então alguns exemplos concretos de reclamações populares contra as medidas intervencionistas dos governos centrais.

No tempo da Monarquia absoluta a interferência régia na vida municipal por parte dos corregedores e juízes de fora gerou resistências locais muito fortes. Já no constitucionalismo liberal monárquico, quando a pena reformadora de Mouzinho da Silveira, ministro de D. Pedro IV, produziu uma obra legislativa que é hoje considerada um importante marco jurídico e institucional da primeira metade do século XIX, os protestos não se fizeram esperar. Assim que foi publicado o célebre decreto n.º 23, de 16 de maio de 1832, considerado centralizador e portanto anti-municipal, logo as Câmaras fazem chegar às Cortes as suas exigências de alteração ou mesmo revogação do diploma legal. E foi precisamente a força dos protestos e o fogo cruzado das críticas que levaram a que o diploma viesse a sofrer uma alteração significativa em abril de 1935.

Na década de 90 do século XIX a grave crise financeira do país levou alguns políticos a equacionar uma nova vaga de anexação de concelhos, iniciada em 1836 com a reforma administrativa de Passos Manuel que extinguiu 475 dos 826 então existentes. O receio dos grupos de pressão locais e de perturbações sociais mais que previsíveis acabou por fazer gorar essa iniciativa. Embora não se exija que os nossos deputados e políticos concelhios saibam história das instituições, é bom que se tenham em conta os ensinamentos do passado. Os conflitos gerados pela reorganização do território na primeira metade do século XIX são o resultado inevitável duma centralização administrativa executada à revelia dos órgãos municipais, onde a imposição dos magistrados prevaleceu sobre a produção dos consensos.

Mas não é preciso recuar tanto no tempo para encontrar exemplos de resistência das populações a medidas que consideram atentar contra os seus direitos. Basta não ter memória curta e recordar o que se passou  há cerca de vinte anos com a tentativa de instalar unidades de incineração e aterros de resíduos tóxicos em Portugal.

Não cabe aqui discutir a bondade dessas medidas. Mas a propósito do cumprimento da lei, ou da imposição da vontade de quem governa, convém lembrar que as estações de incineração são hoje de tal modo contestadas e boicotadas pelos cidadãos que muitos países já não conseguem pôr a funcionar mais nenhuma. E quem não se lembra da enorme contestação popular que por essa altura varreu os concelhos de Oliveira do Bairro e Vagos? A tentativa de instalar um aterro de resíduos industriais no Cardal/Azurveira colocou as populações locais em pé de guerra com o ministério do Ambiente, deu lugar a reuniões em Lisboa e Aveiro e à criação de um grupo dinamizador do processo, alimentou revoltas e manifestações um pouco por todo o lado, gerou comunicados dos partidos políticos na imprensa e contrarrespostas de cidadãos, além de provocar fraturas entre militantes políticos de base e o poder central da mesma cor política.

Poderá sempre argumentar-se que a Lei n.º 22/2012 foi aprovada por maioria. Mas convém recordar que o respeito pelos direitos da minoria é também, ao lado do critério maioritário, um dos elementos chave da essência da democracia contemporânea.  Uma assembleia popular encarregada de gerir os destinos da Grécia decidiu por voto democrático condenar à morte o mais importante filósofo do seu tempo. Condenar Sócrates a beber a cicuta foi uma decisão “democrática” se tivermos em conta o conceito de democracia que vigorava quatro séculos antes de Cristo. Mas não foi certamente uma decisão justa, humana ou pelo menos liberal à luz do conceito de democracia do nosso tempo, por ser incompatível com o ideal de cidadania universal herdado do Iluminismo. Foi uma decisão que se mostrou incapaz de compreender o outro e preferiu anular as divergências com ele, roubando a vida a um dos seus melhores cidadãos.

Neste momento ainda não sabemos se a dimensão das resistências à Lei n.º 22/2012 é uniforme em todo o País. Mas não é difícil perceber que a opinião geral dos munícipes de Oliveira do Bairro também é contrária à lei. Já todos viram que não se trata de um instrumento jurídico objetivo e rigoroso, no qual possam descortinar qualquer utilidade. Se a reorganização administrativa vier a ser executada à margem do sentir das populações, as labaredas do descontentamento podem irromper um pouco por todo o lado. A prudência aconselha a que não se recuse o diálogo com todos os que se dispõem a dialogar, pois a população do concelho não é propriamente um rebanho de basbaques.

Cá estaremos para ver como se comportam nos próximos capítulos desta novela os nossos políticos locais e concelhios. Veremos se são políticos a sério ou pequenos agentes de campanário para quem a fidelidade partidária se sobrepõe ao sentir das populações. Agora que tanto se fala em agregar freguesias para “dar escala”, será que cada época tem os políticos à escala que merece?…

O problema da reorganização do território deve ser resolvido. Como deve ser resolvido, eis a questão do momento. Quando a vontade popular se alicerça na força da razão, cabe a quem legisla estar atento e saber dar a resposta adequada, o mesmo é dizer melhorar uma lei que parece ter sido concebida à medida e por encomenda. Ignorar isso é não perceber que as populações começam a dar-se conta que não vencem todas as vezes que lutam, mas que seguramente perdem todas as vezes que deixam de lutar. Daí ao sobressalto cívico vai um passo muito curto.


 

[1] Jornal da Bairrada, 26.07.2012, pp. 6-7.

[2] Expresso, 28.07.2012, p. 32.

Reorganização Administrativa Territorial Autárquica – II (ou o muito que falta esclarecer…)

 
1. Quando se fala de extinção ou agregação de freguesias, com tudo o que isso implica de redução orçamental e de funcionários, é indisfarçável, à direita e à esquerda – mas sobretudo nos partidos do arco da governação – o mal-estar e uma evidente falta de consenso. É que esta reforma não deixará de ser acompanhada por uma recomposição do mapa político e por isso vai afetar todos os partidos. Cabe, pois, começar por perguntar: a quem interessa alterar a contabilidade político-partidária nas eleições locais? Por que é que nenhum governo, ao longo de mais de 150 anos, ousou reformar a administração local onde coexistem  municípios despovoados e freguesias maiores que municípios?
 
2. Convém, no debate em curso, não ter memória curta e relembrar algumas verdades elementares: o memorando de entendimento com a troika foi avalizado pelo PS, pelo PSD e pelo CDS. Mas dizer isto é apenas uma meia-verdade. É preciso acrescentar que a Lei n.º 22/2012 não foi votada favoravelmente pelo PS, PCP e Bloco de Esquerda e que uma das medidas acordadas com a troika foi a redução do número de municípios. Isto é: não apenas juntas de freguesia mas também câmaras municipais. Outra das medidas que constam do memorando aponta para a necessidade de reduzir em 15% os quadros dirigentes da administração local. Curioso foi ouvir na mesma altura o então secretário de estado da administração local – o socialista José Junqueiro – referir que seriam poucas as câmaras municipais extintas ou fundidas. Já nessa altura de governação socialista se apontava para a redução do número de executivos e assembleias de freguesia. Apontava-se para um número que rondava as 1500, praticamente um terço das existentes. E quanto à redução de dirigentes autárquicos logo sentenciou António Costa: “é um absurdo”. E Rui Rio afinou pelo mesmo diapasão: “ é uma imbecilidade técnica” (1).  Que dizer de tudo isto? Apenas uma coisa: que nenhum dos grandes partidos do arco da governação está vivamente interessado em reduzir executivos camarários.
 
3. Isto, apesar das evidências mostrarem que nos últimos anos a evolução dos recursos humanos das autarquias andou em contraciclo com a contenção nos serviços centrais do Estado. Enquanto estes, entre 2005 e 2009 (e a assimetria será, hoje, com toda a probabilidade, ainda maior) reduziram em 8% o número de funcionários, o pessoal das câmaras aumentou 5,6% no mesmo período (2). Nada melhor, para iluminar esta questão, do que recuperar algumas ideias expressas pelo Eng.º Fernando Silva num lúcido e corajoso texto publicado no Jornal da Bairrada, a que deu o título Os Municípios e as Finanças do País. Entre outras verdades que ferem como punhais, afirma: “Para municípios com população entre 10.000 e 50.000 habitantes, os seus executivos camarários são compostos por 7 membros e as respetivas assembleias municipais terão em média cerca de 40 membros (…). Os membros dos executivos com pelouros atribuídos são remunerados e, após dois mandatos a tempo inteiro, têm assegurada uma reforma. O tempo de permanência em funções é também contado a dobrar para efeitos de reforma. Assim, ao fim de 37 anos de democracia temos várias dezenas de milhar de ex-autarcas com direito a reforma, e somas exorbitantes são gastas nos seus vencimentos”(3). A esta e a outras verdadeiras pedradas no charco dos interesses instalados ninguém ousou dizer nada. Apenas se lhe referiu, de raspão mas em tom concordante, o diretor do Jornal da Bairrada na edição de 19.05.2011. Tudo o resto ficou alagado em silêncio, que o caladinho é o melhor…
 
4. Relembre-se que o chamado “pacote autárquico” não se restringe apenas à controversa agregação de freguesias. Inclui também a legislação eleitoral autárquica e a da própria gestão municipal. A fazer fé no que vai sendo anunciado, o principal partido do governo terá já ultimado a sua proposta de lei eleitoral. Mas precisa de a negociar com o parceiro de coligação e em fase ulterior com o principal partido da oposição. Fala-se mesmo numa verdadeira revolução no poder local. No essencial essa proposta de lei contempla o seguinte: executivos homogéneos escolhidos pelo presidente da câmara – isto é: sem vereadores da oposição – como forma de se garantir a governabilidade; controlo político a cargo da assembleia municipal, que fica com poderes reforçados, entre os quais o de poder chumbar a lista de vereadores apresentada pelo presidente; os presidentes de junta (deputados municipais por inerência) não vão poder votar a composição do executivo municipal nem moções de censura aprovadas pela assembleia municipal; finalmente, a proposta de lei eleitoral aponta para uma forte redução no número de vereadores e de deputados municipais (4).
 
Que tem a dizer a isto a população do concelho? E os principais agentes políticos? Será que os presidentes de junta não se vão transformar em meras figuras decorativas se não puderem, pelo menos, votar em matérias que diretamente lhes dizem respeito, nos assuntos específicos da sua freguesia?  Concordam com a diminuição do número de vereadores e com as moções de censura autárquica, à semelhança do que acontece com o governo? Aprovam o reforço do poder das assembleias municipais e a constituição de executivos monocolores? Não serão estes incompatíveis com a filosofia do sistema proporcional que consagra a representação das minorias? Não funcionarão como uma espécie de maioria absoluta que tende a perpetuar os equilíbrios políticos atingidos? Com a proporcionalidade afetada, o que vai acontecer aos partidos com menor expressão eleitoral no concelho? É legítimo anular-se, assim de uma penada, a correspondência entre a percentagem de votos e a percentagem de deputados de cada partido? Subscrevem os cidadãos do concelho que o Presidente da Câmara possa escolher o seu executivo de entre todos os eleitos – incluindo os da oposição – e nessa medida possa igualmente destituí-los durante o mandato caso entenda – no que isso tem de subjetivo – não estarem a desempenhar bem o seu papel?
 
5 Regressemos à agregação de freguesias para perguntar: as que se situam no perímetro urbano devem acabar, transitando as respetivas competências para o município? E quanto aos concelhos: não seria de agregar alguns para lhes dar escala? Fará sentido continuar a existir um concelho como o de S. João da Madeira? E que dizer da limitação dos mandatos dos autarcas? Continua a fazer sentido, caso passem a ser controlados pelas moções de censura? E os autarcas condenados em processo: permanecem em funções ou devem ser pura e simplesmente demitidos e impedidos de se candidatar a novos mandatos? E por que não suspender o mandato, até à conclusão do processo, aos autarcas constituídos arguidos ou até acusados, substituindo-os pelo candidato posicionado imediatamente a seguir na lista vencedora? É que agregar freguesias deixando tudo o resto na mesma é um pouco o vira-odisco-e-tocao-mesmo de que já estamos a ficar cansados. Não é uma verdadeira reforma, mas sim uma caricatura distorcida dela própria. Tantas perguntas. Quantas respostas? Tudo isto ficou por dizer nas sessões de esclarecimento. Culpa da assembleia municipal? Não certamente. Culpa de todos nós, que parecemos distraídos e abstraídos do que se passa à nossa volta. O silêncio, que muitas vezes é uma forma de poder, pode ser também uma forma de consentimento.
 
6. Estas são algumas das questões urgentes e inadiáveis a que urge dar resposta. Não tanto por se encontrarem na ordem do dia, mas precisamente porque às vezes o não estão. Não se veja neste texto um libelo acusatório contra os partidos políticos, porque quem preza a democracia sabe que esta não existe sem eles. Nem uma rejeição liminar da reorganização administrativa territorial autárquica. Quando muito, assume-se contra “esta” reorganização. Acontece que se multiplicam os sinais de enfado para com a falta de qualidade da nossa democracia. Há sinais evidentes de descrédito e desconfiança. Por isso se exigem respostas claras e assertivas para problemas complexos.
 
Ninguém desconhece que nas estruturas partidárias a contestação interna é por vezes vista como uma forma de traição, sobretudo quando tornada pública. Como sublinhou o Eng.º Fernando Silva no texto já citado, muitas vezes não há oposição interna “pois isso poderia ser razão suficiente para ser excluído das listas de candidatos (…). Poucos são aqueles que, na praça pública, realmente dizem o que lhes vai na alma e também não o fazem nos locais próprios por receio de retaliação sobre si, seus familiares ou empresas”. Elucidativo, por vir de quem vem, de quem sabe do que fala.
 
Também por isso se saúda, no debate que está a ser travado sobre a agregação de freguesias, a independência de espírito e até o desassombro de alguns conhecidos militantes políticos, nomeadamente dos mais próximos ideologicamente do atual governo. Em blogues, ou até nas reuniões de esclarecimento, sabem colocar os interesses da sua terra, ou das populações do concelho, acima dos particulares interesses do partido em que militam. Dizendo abertamente que a Lei n.º 22/2012 é má e foi gizada à revelia dos autarcas. Neles, há ponderação e respeito por direitos conflituantes. Batalham pela razão quando outros procuram excitar as emoções que transformam os cidadãos em súbditos. Para eles, um aceno de simpatia.
 
Voltarei ao tema, para (talvez) então concluir. Porque, a pretexto da mudança, o objetivo não pode ser abafar as vozes discordantes em nome do irrefragável cumprimento da lei. 


(1) Expresso, 07.05.2011, p. 4.
(2) Público, 08.05.2011, p. 3.
(3) Jornal da Bairrada, 05.05.2011, p. 2.
(4) Expresso, 21.07.2012.

Reorganização Administrativa Territorial Autárquica – I (Reflexões em torno da reunião na Palhaça)

 

1. Introdução

Em boa hora a Assembleia Municipal de Oliveira do Bairro tomou a iniciativa de promover sessões de esclarecimento nas seis freguesias do concelho. A iniciativa vale ouro e é digna de registo, se tivermos em conta o fosso cavado entre as elites políticas e o resto duma população que pouco cultiva o exercício da cidadania.

O que aconteceu na Palhaça – e, segundo foi dito, em todas as outras freguesias do concelho – pode considerar-se uma verdadeira festa da democracia. Houve participação cívica, vontade de clarificar, debate intenso mas sem picardias ou ofensas gratuitas. Ninguém quis ter razão a qualquer preço. Mais do que convencer, houve disponibilidade aberta para cada um se deixar convencer e não para chamar o outro aos seus pontos de vista.  É isto que um verdadeiro diálogo tem de integrador. É assim que se ganha a confiança das populações numa matéria tão controversa e escaldante como esta. Não há entendimento mínimo onde não há confiança. E a confiança é o que a má-fé mais pretende roubar-nos.

Gratificante para as gentes da Palhaça foi ouvir dizer que esta reunião foi a que teve mais cidadãos a intervir. E aquela onde mais jovens deram o seu testemunho. Também aqui houve festa da democracia. A sua qualidade só pode melhorar com a participação dos mais novos. A eles cabe não permitir que a democracia fique esvaziada na sua componente de participação e intervenção popular nos assuntos públicos. Melhor que ninguém, os mais novos começam a perceber que não há vitórias sem luta nem luta sem empenhamento ou até algum sofrimento. Por isso não desarmam nem dão tréguas a quem governa, porque sabem que sem movimento não se gera a mudança.

2. O papel das freguesias

As freguesias sempre desempenharam em Portugal um papel de grande relevo. Ao prestarem às populações serviços públicos de proximidade, tornaram-se de há muito uma referência incontornável do poder local. São um património dos portugueses e não uma coutada de qualquer governo.

É nas eleições autárquicas que encontramos uma maior proximidade entre eleitores e eleitos. Nas pequenas freguesias até conhecemos os candidatos e, em muitos casos, mantemos com eles relações de amizade, proximidade e vizinhança. Quanto mais se enquadram em território do interior, mais pequenas, periféricas e distantes ficam da sedo do poder concelhio, tanto mais as populações dessas freguesias precisam de recorrer ao presidente de junta. Falamos de pessoas que muitas vezes apresentam níveis de instrução elementar, sem grande mobilidade geográfica e com um estatuto socioeconómico muito baixo, portanto com alguma dificuldade de integração social.

São sobretudo as pessoas idosas, as mais marcadas pelo passado e as de origem social mais modesta – de algum modo excluídas do crescimento económico e de outras dimensões do desenvolvimento – quem mais recorre e valoriza o papel do presidente de junta. Reconhecem-lhe ainda hoje uma importância idêntica, em termos de estatuto social, à que tinha um padre ou um professor nas sociedades predominantemente rurais que persistiam no início do século passado. O presidente da junta é, nestes casos concretos, “pau para toda a obra”: desbloqueia situações embaraçosas, estabelece contactos, ajuda a preencher documentos, enfim, funciona como elo de ligação entre os anseios das populações e os serviços de proximidade, encurta distâncias entre os centros de poder e as periferias. Por todo este esforço e dedicação recebem esses presidentes de junta uma contrapartida monetária que muitas vezes não chega para a gasolina que gastam nas andanças a resolver os problemas dos outros.

3. Efeitos da aplicação da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio

Através desta lei e sob o pretexto da reforma do poder local o governo definiu uma estratégia que assenta na extinção de freguesias e mantem inalterados os concelhos. Fê-lo “de régua e esquadro”, com base em critérios meramente quantitativos, sem obter consensos prévios, mandando às malvas a opinião dos autarcas. Quer cortar o mais possível e no prazo mais curto. Invoca, entre outros argumentos, o da diminuição das despesas. Nada de mais falacioso. Basta referir que o peso da despesa das freguesias no orçamento do estado é de 0,098%. Quanto se vai poupar, ninguém sabe. Veremos no futuro se os custos operacionais deste novo modelo de gestão autárquica diminuem ou não. E o pior de tudo isto é que uma genuína descentralização do poder raramente é compaginável com o declarado propósito governamental de controlo e consolidação das finanças públicas.

Não são, portanto, os critérios economicistas ou de base financeira que presidem ao reordenamento territorial. São critérios técnicos e administrativos – e, por que não dizê-lo? – de base política e vincadamente ideológicos. Ideológicos, sim, porque numa pura lógica de mercado se tende a valorizar tudo o que é média ou grande concentração urbana, por ser aí que confluem os fatores estratégicos de competitividade e decisão, sejam eles públicos ou privados. Ao invés, tudo o que é pequeno e singular tende a ser esquecido, desprezado ou rasgado do mapa. E assim se rasuram as freguesias de menor dimensão, precisamente aquelas que valorizam mais o património comum e as identidades socioculturais, numa luta constante contra o rolo compressor dum falso “progresso” que tudo esmaga e nivela à sua passagem, uma espécie de camartelo impiedoso que reduz a cacos as singularidades e a carga subjetiva e simbólica que esses pequenos agregados populacionais transportam. E conviria não esquecer que algumas dessas pequenas comunidades que a lei agora descarta entroncam as suas raízes nos primórdios da nacionalidade. São espaços onde habita gente “estranha” para um certo provincianismo bem-pensante que desvaloriza – quando não ridiculariza – quem gosta de preservar as suas tradições e a sua religiosidade, quem pauta, ou ainda o fez até há bem pouco tempo, os ritmos de trabalho e descanso pelos sinos da igreja, gente que nunca teve uns dias de férias e ainda confia na honra da palavra dada, sem precisar de passar os compromissos a papel e competente assinatura.

Enumera a Lei 22/2012, no artigo 2.º, alguns objetivos de reorganização administrativa, entre os quais se contam a coesão territorial, a melhoria e desenvolvimento dos serviços públicos de proximidade prestados pelas freguesias às populações e o alargamento das atribuições e competências das juntas de freguesia.

Como diz? Pode repetir? – apetece perguntar. Nenhuma destas miríficas vantagens foi confirmada por qualquer dos participantes no encontro da Palhaça (e, presume-se, nos encontros anteriores). Ninguém sabe que atribuições e competências vão ser cometidas às novas freguesias, para lá das que já existem. Como ninguém sabe dizer o que significam os 15% que vão beneficiar as freguesias criadas por agregação. Dará esse dinheiro para construir um fontanário? Talvez sim. Mas em que espaço físico da nova freguesia agregada vai ser construído?

Embora nos preocupe sobremaneira o que se passa no nosso concelho, a dimensão dos problemas que a aplicação desta lei coloca tem repercussões à escala nacional. Afeta as relações de poder e de prestação de serviços de proximidade em todo o território, com consequências ainda mais gravosas nas pequenas freguesias do interior e do mundo rural. Extingue freguesias nos territórios em vias de desertificação e onde as populações mais precisam delas e dos seus presidentes de junta. Ao proceder deste modo, deixa de salvaguardar os direitos e garantias de muitos cidadãos, especialmente dos que se encontram em situação de particular vulnerabilidade.  Ao promover a desertificação, em resultado do desaparecimento de alguns serviços essenciais, está a contribuir para um dos muitos fatores de perturbação da sociedade portuguesa contemporânea: o excesso de litoralização, com todo o seu cortejo de desempregados e multiplicação dos riscos e ameaças à coesão social.

A redefinição do território sempre foi matéria delicada e geradora de conflitos. As resistências locais ao reordenamento territorial não são de hoje. Se não deixa de ser legítimo que uma sociedade, no seu processo de evolução, procure redefinir o seu território, já não parece legítimo que o faça retirando importância a um corpo político – as juntas de freguesia – que por tradição sempre funcionou, a par dos municípios, como contraponto do poder central.

Não cabe nestas linhas tentar mostrar as razões pelas quais a verdadeira reforma – a dos municípios – fica por fazer. Mas se as juntas de freguesia, como afirmou o diretor do Jornal da Bairrada, já dependem hoje “mais das transferências de verba das câmaras e do governo central do que da vontade própria do seu presidente e fregueses” então porquê toda esta obstinação em as enfraquecer ainda mais, ao ponto de acabar com muitas delas?

Num tempo de recursos escassos a reorganização administrativa torna-se mais premente. Todos concordam que é preciso gastar menos, mas ninguém acaba com algumas empresas municipais de utilidade pública duvidosa e que se diz à boca cheia funcionarem como agências de emprego para os correligionários políticos que as promovem. Um estudo recente mostra que a grande maioria dos municípios portugueses não é sustentável. Falta-lhe escala para ter racionalidade económica. A solução apontada passa pela fusão de municípios. Então por que não se avança por aí? Malhas que o império (do poder municipal) tece…

Não é nas juntas de freguesia – pobres delas – que se multiplicam os cargos e as prebendas do costume. Não é nelas que se esbanjam dinheiros públicos em equipamentos desproporcionados e não raras vezes de gosto duvidoso. Também não é nas juntas de freguesia que encontramos alguns responsáveis políticos a contas com a justiça. E não foram os presidentes de junta, mas um presidente de câmara com responsabilidades acrescidas, por ser também presidente da Associação Nacional de Municípios, quem há anos atrás incitou outros autarcas a correr à pedrada os fiscais do ministério do Ambiente.

4. Da pronúncia da Assembleia Municipal

Segundo a Lei n.º 22/2012 cabe à Assembleia Municipal decidir quais as freguesias a agregar. Se o não fizer essa tarefa fica cometida a uma designada Unidade Técnica que funciona junto da Assembleia da República.  Não é fácil, há que reconhecer, encontrar critérios que apontem para uma solução justa.

Uma primeira questão que pode colocar-se reside em saber que solução serve melhor os interesses do concelho de Oliveira do Bairro: a pronúncia da Assembleia Municipal ou a da Unidade Técnica? No pressuposto de que só se gere bem aquilo que se conhece faz sentido que nos inclinemos para a Assembleia Municipal. Pensemos na Unidade Técnica a agregar, a partir de Lisboa, as freguesias de Bustos e Mamarrosa sem atender aos antecedentes históricos que determinaram a desanexação da primeira da freguesia-mãe em 1920. Bem sabemos que as relações entre as duas populações são cordiais e amistosas. Mas imaginemos essa agregação, ainda que por hipótese académica e que as instalações da futura junta de freguesia eram deslocalizadas de Bustos para a Mamarrosa. Não poderia tal decisão despertar alguns demónios porventura ainda adormecidos?

Mas pressionar a Assembleia Municipal a decidir exige que se pense previamente no seguinte: ao ser reconhecido, em todas as reuniões de esclarecimento, que estamos perante uma Lei de contornos muito discutíveis e ainda por cima cozinhada à revelia dos autarcas, ao assumir essa responsabilidade não está a Assembleia a legitimar uma Lei de que discorda frontalmente?

Não se duvida que na sua heterogeneidade a Assembleia Municipal trata todas as freguesias do concelho por igual. Obrigá-la a decidir as agregações é um pouco como obrigar um pai a decidir relativamente ao futuro dos seus filhos, sabendo de antemão que essa decisão vai certamente beneficiar uns e prejudicar os outros. Em suma, tal decisão – e decidir é desagradar – não deixa de configurar algum grau de violência. E perante isso apetece dizer: que fique com o odioso e arque com as responsabilidades e a ira das populações quem patrocinou estas medidas. Assim mesmo.

De nada vale elogiar o papel das freguesias e enaltecer as suas virtudes em prol do bem comum e ao mesmo tempo propor-lhes casamentos de conveniência de utilidade mais que duvidosa. Do que foi possível ouvir na reunião da Palhaça fica a ideia de que esta reforma dificilmente vai melhorar o serviço aos cidadãos ou a coesão das populações. Não é fácil assistir de ânimo leve à mais que provável extinção de freguesias que nos habituámos a ver recuperar, cuidar e manter vivas práticas culturais diferenciadoras. Com esta organização territorial muitas freguesias são discriminadas negativamente, ao verem desprezado o seu património material e imaterial.

Será ainda possível alterar ou revogar esta lei? Seja qual for a resposta, esperemos ao menos que o marketing político não prevaleça sobre a racionalidade das escolhas.

Injúrias parlamentares e duelos no campo da honra

Desavenças por motivos políticos, expressas em palavras consideradas ofensivas, dúvidas sobre a honorabilidade pessoal, eis os ingredientes da recente troca de mimos entre um deputado socialista e outro social-democrata. É só mais um rombo na credibilidade do Parlamento. O insulto na política perde-se na memória dos tempos. Mas o que verdadeiramente põe a democracia de rastos nem é o insulto inteligente; é a linguagem grosseira dos que se colocam em bicos de pés, procurando tapar, com a altura que não têm, a pequenez da estatura que sempre tiveram.

Tempos houve, já depois da implantação da República, em que as ofensas davam lugar a duelos travados no espaço público e não ainda no Parlamento. Apesar de um decreto de 1911 substituir os duelos pelos tribunais de honra, os adversários políticos continuavam a ser desafiados para se bater em duelo. Recusar o desforço pelas armas equivalia a ser considerado covarde, a não querer defender a própria dignidade, a sofrer a excomunhão dos amigos. Correspondia, naquele tempo, a uma desqualificação social pura e simples.

Quando, enfim, o Parlamento passou a ser o “campo da honra”, as coisas não se tornaram mais edificantes. Entre muitos outros, ficou célebre um episódio que mostra bem a personalidade forte de Homem Cristo, o celebrado panfletário de O Povo de Aveiro, a quem Guerra Junqueiro chamava “um brutamontes com ideias”. Corriam os anos vinte. Um discurso duro e impiedoso que proferiu na Câmara dos Deputados contra Leonardo Coimbra – a quem chamava “o Imbra”, por ter perdido o apêndice… – transformou a sessão numa grande algazarra. O grupo de Leonardo, que tinha abandonado a sala quando Homem Cristo discursava, reentra aos poucos no hemiciclo e lança ao orador apartes provocadores. Quando resolvem avançar para a agressão física, dispostos a correr com o orador a pontapés, tendo à frente, ameaçador, o Abade de Penude, Homem Cristo meteu a mão ao bolso, sacou de uma pistola e afrontou corajosamente os adversários:

– O primeiro que avançar, estoiro-lhe os miolos! O Abade deu um salto para trás e todos os outros se detiveram. O orador continuou a falar, a acusar, cada vez mais brutal, cada vez mais cáustico (1).

Em tempos bem mais recentes, ficou célebre o “Breve Manifesto Anti-Portas em Português Suave”, uma catilinária política de Carlos Candal, antigo deputado socialista pelo círculo de Aveiro e homem de língua afiada, que há poucos dias aconselhou o seu partido a responder com “uns chutos” (leia-se: exclusão da lista de deputados) às tropelias sem freio do poeta Manuel Alegre. No Manifesto, Portas é alcunhado de “democrata precário”. Referindo-se a ele e ao “excursionista” Pacheco Pereira, os intrusos lisboetas que no ano de 1995 concorriam às legislativas pelo círculo de Aveiro, terminava assim o Manifesto: “Na noite do próximo dia 1 de Outubro, espero poder pendurar no meu cinto de caça política as tais duas aves de arribação – espécies exóticas lisboetas pouco apreciadas na região cinegética de Aveiro: um garnisé-cantante e um pavão-de-monco-caído” (2).

Enfim, o verbo até pode delirar, ou o adjectivo derrapar. Os portugueses, aliás, esfregam as mãos de contentes por uma boa polémica. Triste é quando o espírito polémico ultrapassa as tiradas do mais fino recorte literário e descamba para certas insânias, como cenas de tiros ou cabeças rachadas. Ou, pior do que isso, para a ofensa ou o palavrão gratuito, como aconteceu agora no Parlamento, onde o deputado laranja José Eduardo Martins resvalou para a indignidade ao lançar um insulto soez ao deputado rosa Afonso Candal.

Enfim, sempre que em política os adversários desprezam o debate de ideias, o que sobressai é a atávica impreparação dos contendores. Ceder à tentação do rótulo excessivo, ou da insinuação malévola sobre valores morais ou costumes, nunca foi a melhor via para ganhar o crédito dos eleitores.

Senhores deputados: não deixem que o insulto empurre ainda mais o nosso desprestigiado Parlamento para as ruas da amargura. O que se vos exige é apenas isto: um pouco mais de cordura. Pode ser?…


(1) Barradas de Carvalho, “Homem Cristo, o dragão de Aveiro”, in As Grandes Polémicas Portuguesas, Vitorino Nemésio (dir.), 2.º vol., Lisboa, Editorial Verbo, 1967, pp. 377-399.

(2) Litoral, n.º 1868, 15.09.1995.

Salgueiro Maia, capitão de Abril — a homenagem tardia

Aconteceu quando Cavaco Silva era primeiro-ministro de Portugal. Havia um governo de maioria absoluta, que era autista e confundia autoridade com autoritarismo. Cavaco Silva desdenhava da imprensa, proclamava aos quatro ventos que não lia jornais, que nunca tinha dúvidas e que raramente se enganava. Em dia de greve geral, uma das maiores de que há memória na democracia portuguesa, atreveu-se a negar para as televisões o que era óbvio aos olhos de todos: que não tinha dado pela greve, pois logo pela manhã, ao sair de casa, tomara tranquilamente o pequeno-almoço na pastelaria do costume…

Salguero Maia

Costuma dizer-se que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente. Se não corrompe, pelo menos cega. E o pior cego não é o que não vê, mas o que não quer ver. Cavaco recusou-se a ver a greve geral, tal como Sócrates se recusou a ver a manifestação pública de cem mil professores. O desdém e o desprezo absoluto, como se os grevistas, num caso, e os professores, no outro, não existissem. A mesma vontade deliberada de os silenciar, de os reduzir ao nada, de domesticar as consciências. Só através do voto se aperceberam, um e outro, que afinal eles existem.

Em 1989, do alto da sua maioria absoluta, Cavaco Silva recusou uma pensão a Salgueiro Maia, talvez o mais puro e lídimo capitão de Abril. O escândalo tornou-se maior quando veio a público que essa recusa coincidiu com a atribuição, pelo seu executivo, de idêntica pensão a dois inspectores da extinta PIDE. Há gestos que dizem tudo: Cavaco Silva, que talvez nunca tivesse chegado a primeiro-ministro ou a Presidente da República se não existisse democracia em Portugal, ignorou o homem que saiu do ventre de uma chaimite, para erguer o corpo em haste de coragem e de megafone em punho anunciar Abril, exigindo a rendição de Marcelo Caetano no quartel do Carmo. E pareceu ignorar, também, que a PIDE negava a liberdade e a democracia, esquecendo as palavras avisadas de Hannah Arendt: todos os despotismos se apoiam na polícia secreta.

Ao contrário de tanta gente que a polícia política perseguiu e prendeu por cometer o crime de querer viver em liberdade, os torcionários tiveram rédea livre para viver num qualquer recanto perdido da democracia. Alguns foram mesmo agraciados com pensões pelo regime a que se opuseram ferozmente. Um dos dois a quem o executivo de Cavaco Silva não recusou a pensão por “serviços relevante prestados ao país” esteve entrincheirado na Rua António Maria Cardoso, a sede da polícia política, e terá estado envolvido nos disparos contra os manifestantes que causaram os primeiros mortos da revolução. Estranha dualidade de critérios…

Entretanto, porque partem cedo aqueles que os deuses amam, Salgueiro Maia viria a falecer em 3 de Abril de 1992. Choraram-no, então, os que nunca o mereceram. Os que sempre lhe recusaram promoções. Os que o arrumaram na prateleira da rotina militar. Os que consentiram e o condenaram ao desterro açoriano. Os que têm sempre à mão o lenço nacional para enxugar as lagrimetas de ocasião.

Cavaco Silva tenta agora reparar a gritante injustiça. Deposita hoje, 10 de Junho de 2009, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, uma coroa de flores junto à estátua do capitão de Abril. Mas o Presidente da República perdeu a oportunidade soberana de homenagear, no tempo certo, aquele que em vida sofreu a ingratidão de ver recusada a mesma pensão, pelo regime democrático que ajudou a construir, atribuída a dois algozes desse mesmo regime.

Conseguirá, com esse gesto, limpar a nódoa que ainda mancha o sudário de generosidade e coragem que envolve o capitão Salgueiro Maia? A democracia aprende-se, aperfeiçoa-se e exercita-se. Cavaco Silva, como toda a gente, terá evoluído, não será a mesma pessoa de há vinte anos, já reconhece que também se engana e que tem dúvidas.

Por mim, acredito que o seu gesto, embora tardio, é sincero. Não é fácil estar frente a frente com o passado, olhos nos olhos, quando não se tem a consciência tranquila. Saber assumir os erros só revela a grandeza do gesto. Por isso eu, que tanto me indignei com Cavaco Silva há vinte anos, estou disposto a perdoar-lhe. Escrevi este texto porque não esqueço. Porque sigo a divisa: perdoa, mas não esqueças.

Dez reflexões para um debate político

1. Ainda bem que o documento “O Nosso Presente e o Nosso Futuro: Algumas Questões Prementes” começa por fazer uma profissão de fé na existência dos partidos políticos – essenciais ao funcionamento da democracia representativa – o que significa que os seus subscritores contam também com eles para ultrapassar os graves problemas de funcionamento com que se debate a sociedade portuguesa contemporânea. É preciso saber resistir aos cantos de sereia dos que já começam a defender, em nome da segurança e da ordem, governos “fortes”. Gente que, como corolário da crítica aos partidos, parece apostar – embora não o diga expressamente – num velho e requentado fascínio por um tipo de legitimidade governativa que desvaloriza as “maiorias ignaras” de que falava Herculano e aposta nas competências técnicas e no mérito dos que supostamente possuem a moral necessária à morigeração da sociedade. Ora é preciso dizer que esse tipo de soluções, extraparlamentares e de pendor ditatorial, já experimentadas anteriormente em Portugal – veja-se o projecto cesarista de Oliveira Martins – está cada vez mais condenado ao fracasso e nunca foi capaz de ultrapassar os vícios dos mecanismos institucionais do parlamentarismo.

2. O documento agora apresentado é sem dúvida um sobressalto cívico importante. Tenho, porém, em relação aos seus resultados, o maior cepticismo. Explico porquê. Tudo passa, inevitavelmente, pelos partidos. Duvido que se consigam melhorar significativamente as coisas com “estes” partidos, caso não estejam dispostos a alterar as regras do seu funcionamento. Ao ler o documento, lembrei-me de um texto arrasador para o sistema político português, assinado por Clara Ferreira Alves no Expresso, em 2008. É um retrato impiedoso do país que somos. Após enumerar uma longa lista de casos graves que abalaram Portugal e que nunca foram resolvidos (desde o enigma da morte de Sá Carneiro ao caso Freeport, passando pelo processo Casa Pia, entre tantos outros) e que são o sintoma mais evidente dos compadrios políticos, do encobrimento e da corrupção a que os portugueses respondem com o habitual e displicente encolher de ombros que os caracteriza, a jornalista conclui: “Existe em Portugal uma camada subterrânea de segredos e injustiças, de protecção e lavagens, de corporações e famílias, de eminências e reputações, de dinheiros e negociação, que impede a escavação da verdade”.

3. Vou pois centrar-me na crise de legitimação do sistema político, e na manifesta inadequação dos partidos políticos aos novos problemas emergentes, por acreditar que as mudanças que o documento propõe passam muito pela superação da incapacidade que estes denotam em integrar e dar solução às exigências de transformação de uma sociedade mergulhada em clima de medo e desconfiança, profundamente assimétrica e desigual, onde, por isso mesmo, sem um resquício de igualdade digna desse nome, a liberdade é privilégio apenas de alguns. As manchas de pobreza e exclusão social são iniludíveis e constituem um poderosos desafio à coesão das sociedades actuais, obrigando-nos a questionar, de forma clara, os conceitos e as políticas de protecção social. O volume de bens e serviços gerados pelo modelo económico vigente acaba por criar obstáculos ao seu acesso por parte de um número considerável de cidadãos. Não significa isso a demonstração clara da muito desigual repartição da riqueza produzida? Não são até estes contrastes entre pólos de desenvolvimento e zonas de exclusão mais chocantes do que no passado? Que crédito nos merecem os actuais mecanismos de redistribuição de riqueza? Não serão o avesso dos propalados valores e princípios democráticos? Eis uma das perplexidades maiores do nosso tempo: os avanços científicos e tecnológicos geram, a par do crescimento da riqueza, uma mole imensa de deserdados e excluídos, gente privada do mais elementar exercício de cidadania.

4. A função política dos sistemas eleitorais não se esgota apenas na nomeação de representantes das populações: deve garantir, também, eficácia governativa. Convém então dizer que o drama da governabilidade não é exclusivamente português. Mesmo em países com tradições democráticas mais arreigadas, a imagem de marca dos partidos está longe de ser impecável. O caso da Itália é disso exemplo elucidativo. Não estaremos perante a inadequação de um determinado modelo partidário a uma sociedade complexa? Tudo está, portanto, em aberto. Como lucidamente avisa Eduardo Lourenço, a democracia não é, por si só, “uma máquina de felicidade política … e se precisássemos de símbolos para ela devíamos associá-la ao trabalho sem cessar recomeçado por Penélope”.

5. Aos partidos políticos cabe empenharem-se no combate à insuficiente democraticidade interna, a qual é inibidora da participação dos cidadãos; promover uma mais equilibrada representação de certos grupos sociais entre os seus membros; garantir uma profissionalização crescente do recrutamento do pessoal político, que até agora não tem passado de um meio expedito de fazer carreira entre as classes privilegiadas; evitar o predomínio dos interesses económicos, que acabam por sufocar todos os outros; centrar o seu esforço na diminuição dos antagonismos de classe e na criação generalizada de índices de conforto e bem-estar. Aquilo a que os partidos chamam “estabilidade democrática”, não passa de uma falácia enquanto as suas formas de agir continuarem a gerar o abandono, a falta de empenhamento e de representação activa de um significativo número de cidadãos. Como refere Eduardo Lourenço, “a opacidade reverteu para o interior de cada partido de massa e é tanto mais densa quanto mais de massa for”.

6. Por outro lado, conviria discutir, abertamente e com clareza, as vantagens e inconvenientes da actual definição das circunscrições eleitorais, ou a própria heterogeneidade dos círculos. Temos dois que, se não erro, elegem quase metade do Parlamento (Lisboa e Porto). Interessam-nos os círculos uninominais ou plurinominais, votar em listas ou em pessoas concretas? Em qual deles é possível assegurar melhor os interesses dos cidadãos e responsabilizar, de forma mais eficaz e transparente, os deputados que nos representam? Valorizamos um sistema parlamentar, semi-parlamentar ou presidencial? Damos preferência a um sistema maioritário (cujo paradigma é o modelo inglês) ou a um sistema representativo como o português? Queremos um sistema eleitoral que dependa mais do eleitorado ou dos partidos? Um sistema gerador de maiorias, que garanta eficácia governativa, embora algo injusto, porque não há tradução correcta de votos em mandatos, ou um sistema eleitoral mais respeitador das minorias, mas que reforça a partidocracia e gera a fragmentação? Qual o modelo que faz ressaltar mais a qualidade dos deputados e um maior controlo dos eleitores face aos eleitos? Que modelo garante um maior rejuvenescimento, substituição ou rotação dos deputados? Qual o que valoriza mais o voto dos indecisos?

7. Os sistemas de partidos reflectem aspectos fundamentais do processo democrático. Estão ligados à autonomia das instituições e à forma como elas permitem resolver o problema dos antagonismos políticos. Que preferimos: um multipartidarismo com partido dominante, o bipartidarismo puro, ou o partidarismo imperfeito? Ao proceder a um balanço dos problemas suscitados pelo multipartidarismo e pelo monopartidarismo, Maurice Duverger opina que o bipartidarismo suprime os conflitos secundários (todas as oposições passam a exprimir-se no quadro de um antagonismo fundamental) enquanto que o monopartidarismo aumenta os conflitos secundários e fracciona os grandes antagonismos. Tal constatação tem levado alguns legisladores a tentar limitar o número de partidos e a fazer caminhar o sistema político para o bipartidarismo. Diria que em Portugal essa tentação é crescente, alimentada pelo desejo de estabilidade política. A questão que tudo isto coloca é a de se saber se não será eticamente reprovável restringir o leque de partidos e obrigar os eleitores a votar apenas em dois deles, que acabariam por funcionar como motores de exclusão de uma boa parte do eleitorado que neles não se revê, pois há cada vez mais gente que não se identifica, ou sente representada, pelos dois grandes partidos que têm alternado no poder em Portugal. Até que ponto uma solução desta natureza não viola o princípio democrático? Num regime genuinamente democrático não deve a maioria permitir que a minoria se expresse na tomada de posições e não apenas de uma forma meramente consultiva? Eis algumas questões urgentes e inadiáveis a que conviria dar resposta, não tanto por se encontrarem na ordem do dia mas precisamente porque tantas vezes o não estão.

8. Assistimos hoje à emergência de novos problemas que alteraram profundamente a organização das sociedades. Basta citar as alterações demográficas e o aumento da esperança média de vida, a persistência do desemprego, o crescimento exponencial de gastos com a saúde, o flagelo a toxicodependência e da sida ou os problemas associados à criminalidade e à insegurança. Nunca como hoje o poder político foi obrigado a renunciar às rotinas da sua actuação clássica e a negociar ou estabelecer consensos com os novos grupos de pressão (ambientalistas, consumidores) ou organizações não governamentais com um campo de actuação ainda mais vasto. Enfrentamos, por assim dizer, uma mudança de paradigma. Sendo certo que não há democracia sem educação para a cidadania, não é menos verdade que o quadro político-partidário não esgota os anseios de uma cidadania solidária e interveniente. Os partidos já não correspondem, só por si, à complexidade das solicitações engendradas pelas sociedades actuais. Verdadeiras sociedades de risco e de ameaça à coesão social, nas quais o Estado se vê confrontado com novas exigências. Urge combater uma nova lógica de desenvolvimento económico que se dissociou do desenvolvimento social, que em vez de colocar a economia ao serviço do homem, colocou este ao serviço daquela. É preciso combater, sem tibiezas, uma política de liberalização do mercado e de maximização dos lucros, que se coloca friamente e sem alma à margem dos problemas sociais daí resultantes. Quanto mais for capaz de minimizar os riscos e garantir a segurança dos cidadão mais fiável será o Estado. É cada vez mais na resolução da aporia exclusão/inclusão que assenta a sua credibilidade e também a do sistema político de representação.

9. A comunhão ideológica parece estar a perder terreno. A expressão corrente e banalizada da intervenção política, abarcando os clichés, os preconceitos, os mitos e as crenças colectivas, os slogans e as vulgatas, não é já uma prerrogativa exclusiva duma casta de políticos profissionais que parece cada vez mais afastada do imenso mundo dos profanos. Seria bom que os políticos interiorizassem de vez o que deles disse há uns anos o filósofo José Gil: que não exercem quase poder nenhum, que dependem de mil forças estranhas, já não controlam nem mandam em quase nada e ninguém, restando-lhes apenas a imagem mediática. Outras entidades não partidárias, onde cabem os movimentos de cidadãos, estão a apropriar-se de forma crescente desses papéis. Num momento em que a crise de expectativas está instalada, em que a fragmentação e a diferenciação são cada vez maiores, até que ponto é legítimo exigir aos partidos políticos, e apenas a eles, resposta para todos os problemas? Estarão habilitados a incorporar a diversidade de especializações que a cada vez maior diferenciação social reclama? É de crer que não, o que leva a pressupor que os partidos começam a perder, tendencialmente, o monopólio da vida política, e vão ser obrigados a estabelecer um novo tipo de relações com novos mediadores de interesses sociais, novos artesãos e fabricantes do pensamento quotidiano, bem como com os vários intermediários culturais que fazem comunicar o chamado mundo erudito e as chamadas classes populares.

10. Ninguém faz hoje juras de fidelidade eterna aos partidos. As expectativas que anteriormente neles eram delegadas estão a ser, de forma crescente, apropriadas por outras entidades. A cada vez maior apetência pela captação do eleitorado central, baseada na política dos partidos que querem “pescar” eleitores em todos os quadrantes ideológicos (os chamados catch all parties) acabou por conduzir à sua desidentificação, ao esbatimento das fronteiras ideológicas e à indiferenciação programática. A volatilidade do voto e a abstenção são sintomas da crise de representação. Os partidos que querem ter futuro têm que dar a volta a esta equação, esforçando-se por acrescentar à democracia interna a capacidade de responder a estímulos externos.

O pior que nos pode acontecer, enquanto cidadãos, é deixarmos de ser espectadores comprometidos e permitirmos que se instale em nós a sensação de impotência para mudar as coisas. Também por isso o documento agora divulgado e subscrito por um grupo de cidadãos é importante e um contributo inestimável para o debate político. É a imaginação social em movimento, a alternativa possível aos poderes instalados do presente. É a tentativa de exploração do possível. A utopia no seu melhor, pode dizer-se. Uma tentativa de, a partir dela, garantir uma tensão no existente, criar contrapoder, abrir “o campo do possível para além do actual”, como diria Ricoeur.

Estarão os partidos à altura de discutir e analisar, de forma crítica e serena, este documento? Vão ser capazes de resistir aos acenos blandiciosos da demagogia e do calculismo político, a que o período eleitoral que se avizinha sempre convida?…

Saramago, a Bíblia e uma opinião de Vasco Pulido Valente

Um lamentável texto (1) de Vasco Pulido Valente (VPV) sobre a polémica instalada a propósito do mais recente livro de José Saramago obriga-me, embora contrafeito, a regressar a este tema. Lamentável porque não dignifica o investigador; antes o coloca, neste caso concreto, ao nível do historiador de pacotilha que de facto não é.

Vejamos: começa VPV por dizer que as opiniões de Saramago sobre a Bíblia “são ideias de trolha ou de tipógrafo semianalfabeto”, numa alusão ofensiva ao passado profissional do escritor, a roçar o elitismo mais doentio, como se todos tivessem que nascer em berço de oiro, como ele. Logo a seguir, outra diatribe: ter oitenta e tal anos, como Saramago, é “coisa que não costuma acompanhar uma cabeça clara e que, ainda por cima, não estudou o que devia estudar”. Pois não: Saramago teve que subir a vida a pulso e nesses tempos árduos em que se forjava o self made man não podia estudar, tinha é que trabalhar. Conheço de sobejo o argumento, mais uma vez a tresandar a elitismo. Frequentei estudos pós-graduados num estabelecimento de ensino onde VPV investiga e lecciona. Como éramos quase todos trabalhadores-estudantes, alguns professores davam aulas com evidente fastio, quase sem nos fitar nos olhos, um frete de todo o tamanho. E porquê? Porque sustentam a peregrina tese de que os estudos de pós-graduação não devem ser para trabalhadores-estudantes, gente sem tempo para investigar e queimar as pestanas na Biblioteca Nacional…

Saramago

A seguir, lá vem o argumento com a carga ideológica habitual, a invejazinha bem portuguesa, sempre pronta a desvalorizar o mérito alheio: “Saramago ganhou o prémio Nobel, como vários ‘camaradas’ que não valiam nada”. Para o preclaro e iluminado VPV a qualidade literária é coisa que não pode ser imputada a escritores ou poetas comunistas e quejandos. Digamos que as coisas boas e às vezes excelentes que VPV produz – ao contrário de outras lamentáveis, como o texto a que me refiro – aparecem nos intervalos de lucidez do historiador, que é bem mais novo que Saramago. De facto, que classificação merece esta impertinente afirmação: “Não assiste a Saramago a mais remota autoridade para dar a sua opinião sobre a Bíblia ou sobre qualquer outro assunto, excepto sobre os produtos que ele fabrica”.

Saramago não pode. Mas a ele, cronista e historiador ungido pelos eleitos, assiste essa autoridade para arrasar e demolir em farpas violentas – muitas vezes injustas e pouco clarividentes – tudo e todos. Seguindo à letra este raciocínio primário, podemos inferir não estar ao nosso alcance comentar os livros do historiador, por não serem produto nosso, amassado pelas nossas mãos. E assim ficaríamos impossiblitados de lhe dizer, cara a cara, que O Poder e o Povo. A Revolução de 1910, é uma interpretação altamente discutível e metodologicamente impugnável daquele período histórico (2). Ou que narrou os primeiros anos do regime republicano segundo uma óptica parecida com a de Cobb nos seus estudos sobre a Revolução Francesa, escapando-lhe o essencial das reformas indicadas pelos republicanos (3). Na verdade, para VPV a I República foi puro terror, não consegue vislumbrar nela os traços de modernidade que também contém.

Por fim, mas não menos importante, fixemo-nos neste raciocínio: “Depois do que fez no PREC, Saramago está mesmo entre as pessoas que nenhum indivíduo inteligente em princípio ouve”. O historiador refere-se ao período em que Saramago, no ano de 1975, esteve à frente do Diário de Notícias e despediu trabalhadores. Sem pretender escamotear esta realidade, conviria avivar a memória de VPV, lembrando-lhe que em todos os períodos revolucionários se cometem excessos. Referimo-nos a períodos de “conjuntura política fluida” e de “incerteza estrutural” (4) caracterizados por situações de excepção, onde é manifesta a aceleração do regime de funcionamento do campo político. Ao contrário do que acontece nos regimes políticos estabilizados, em que funcionam as mediações tradicionais, assistimos neste tipo de conjunturas à confrontação aberta entre novas gramáticas políticas.

Seguindo à letra o raciocínio de VPV, também poderíamos dizer: depois do que fez no tempo da Inquisição, a Igreja está mesmo entre as instituições que nenhum indivíduo inteligente em princípio ouve. Claro que recusamos liminarmente este raciocínio grosseiro. A Igreja, como as pessoas, também evolui. E só por má fé se pode não reconhecer-lhe, hoje, o importante papel que desempenha nas áreas da assistência e da solidariedade social, ou na inculcação de valores que reforçam a coesão familiar e social, entre outros.

Enfim: no extenso rol das suas certezas inabaláveis, o que VPV às vezes mostra é a mais completa insensibilidade para conhecer e entender o Outro. Mesmo que não concordemos com ele, o que o Outro pensa não pode ser visto com hostilidade ou ameaça. A solução não passa por erguer muros em vez de pontes. A cultura da hospitalidade deve prevalecer sobre a cultura da indiferença ou da guerrilha permanente. O insuspeito filósofo Emmanuel Lévinas via no encontro com o Outro – enquanto ser único e irrepetível – um “acontecimento” ou até um “acontecimento fundamental”, o patamar mais elevado da convivência humana. O padre Carreira das Neves soube fazer isso, no frente a frente com o autor do Memorial do Convento.

Pena que VPV misture coisas sérias com as banais crises hepáticas que por vezes o atormentam e o levam a esgalhar prosa tão ácida, retorcida e deliberadamente provocatória.


(1) Vasco Pulido Valente, “Uma farsa”, Público, 23.10.09

(2) A. H. Oliveira Marques, Guia de História da 1.ª República Portuguesa, Lisboa, Editorial Estampa, 1981, p. 142.

(3) Manuel Villaverde Cabral, Portugal na Alvorada do Século XX, Lisboa, Editorial Presença, 1988, pp. 154 e 262.

(4) Michel Dobry, Sociologie des Crises Politiques, Paris, Presse de la Fundation Nationale des Sciences Politiques, 1992, pp. 40 e 150.

O TGV, o “perigo espanhol” e uma polémica de 1853

Assistimos, nos dias que correm, sempre que se fala da linha de alta velocidade, ao esgrimir de argumentos que remetem para o marulhar de outros tempos. Para o longínquo ano de 1853, como adiante se verá. Quando as solas da imaginação se rompem, o remédio é recuperar alguns registos antigos de inspiração alheia.

Vem isto a propósito do que Manuela Ferreira Leite afirmou num debate televisivo que travou com José Sócrates a propósito do TGV: que Portugal não é uma província espanhola. Assim mesmo. O que está aqui em causa não é um respeitável e diferenciado ponto de vista sobre os méritos ou deméritos da linha férrea de alta velocidade. O assunto é polémico e tem causado naturais clivagens entre as diversas forças políticas. A uns interessará mais o investimento público, a criação de empregos e a oportunidade de negócios; outros argumentarão que há países que continuam a dispensar o TGV e nem por isso deixam de ser evoluídos e modernos.

Nada de mal quando se discutem concepções de sociedade e modelos de desenvolvimento. São diferentes maneiras de tentar melhorar o destino de Portugal. Coisa bem diferente é o aceno explícito ao populismo, o resvalar para os tortuosos caminhos da demagogia, o reacender de velhos mitos nacionalistas (de Espanha, nem bom vento nem bom casamento). Foi por aí que enveredou Manuela Ferreira Leite ao agitar o papão do “perigo espanhol”.

É assim irresistível não falar do que se passou em 1853. Também nessa altura, ao discutir-se a criação dos caminhos de ferro, se atearam as labaredas da polémica. Como refere Maria Filomena Mónica, o que estava em causa, em 1853, “era já a ligação à Europa” quando os comboios eram vistos como “o símbolo por excelência do Progresso”(1). Tudo era diferente, mas tudo parece igual. Em 1853 a Europa mais evoluída já se afastara bastante de Portugal, que nem sequer tinha uma rede viária ou ferroviária de ligação a Espanha. A crença na possibilidade de desenvolver o País e acabar com o isolamento passava pela construção de estradas, caminhos de ferro e portos. A polémica entre Alexandre Herculano e Lopes de Mendonça ficou célebre, por revelar duas atitudes opostas: dum lado, a visão mais conservadora e representativa de um mundo em vias de extinção, protagonizada por Herculano; do outro, a visão modernizadora de Lopes de Mendonça, para quem a abertura à Europa passava pela construção de uma rede viária ou ferroviária. Como pano de fundo pontificava a recorrente obsessão com a identidade e a independência nacional.

Repare-se nos argumentos de Alexandre Herculano: “Os caminhos de ferro tendem a destruir as divisões entre os povos, a uniformizar as ideias e os costumes e a igualar as diversas civilizações. As antigas autonomias vão desaparecer: vão destruir-se todas as formas de separação conhecidas. Sob este aspecto, os diferentes povos vão constituir, num futuro talvez mais próximo do que supomos, uma sociedade única” (2).

Como se vê, para Herculano o comboio era o coveiro das pequenas nações. O caminho de ferro, na ausência de uma enérgica descentralização administrativa, conduziria à importação das ideias e produtos estrangeiros e fazia perigar a independência nacional, empurrando-nos para uma mais que possível “fusão” com a Espanha. Já para Lopes de Mendonça a construção do caminho de ferro e a ligação a Espanha aproximava-nos da Europa e ajudava a derramar sobre o País o progresso material que por cá se mantinha ausente.

Tal como hoje acontece com o TGV, outro ponto importante da discussão dizia respeito ao financiamento das obras públicas. Teria a sociedade portuguesa dinheiro para construir o caminho de ferro sem o contributo do Estado? Herculano assumia a posição do liberal clássico, para quem a sociedade deve fazer o mais que puder, deixando ao Estado a segurança das populações. Esta polémica – tal como a que gira hoje em torno do TGV – revela duas atitudes opostas face à modernização: a da defesa de um estado mínimo e da liberdade privada, protagonizada por Herculano, para quem a liberdade e a moral precedem os melhoramentos materiais; e a de Lopes de Mendonça que entendia o patriotismo como devoção ao estado nacional e identificava a descentralização municipalista (tese cara a Herculano) “com a prepotência dos caciques de campanário”.

Um outro curioso ponto de contacto entre esta polémica de 1853 e a actualidade tem a ver com a velha rivalidade entre Porto e Lisboa. Hoje discute-se se é mais vantajosa a ligação a Espanha a partir de uma ou outra cidade. Em 1853 o Porto “temia que a capital e o seu porto se agigantassem ainda mais graças ao incremento do comércio com o país vizinho, deixando o Norte abandonado a um inexorável definhamento” (3).

Digam lá se os argumentos esgrimidos há mais de 150 anos estão ou não estão na ordem do dia. A atitude subjacente a estes textos de Herculano e Lopes de Mendonça não podia ser mais actual. Vale a pena lê-los e familiarizarmo-nos com eles. Está lá tudo. É só trocar caminho de ferro por TGV, ou por Internet, ou por globalização. Mas o que separava irremediavelmente estes dois homens é muito mais que o caminho de ferro. São duas concepções antagónicas de Estado e da liberdade que reflectem a tensão, nunca inteiramente resolvida ou superada, entre democracia e liberalismo.

Também o que separa hoje os que são pró e contra o TGV é muito mais que a linha de alta velocidade em si mesma: é sobretudo a maior ou menor confiança no papel do Estado para conduzir a sociedade e os destinos do País; o maior ou menor receio de correr riscos, sendo certo que o conservadorismo se cola mais aos que, não desdenhando o progresso, o desejam sem os habituais incómodos da mudança. Um dos elementos da retórica conservadora é a perversidade, que assenta no postulado segundo o qual as acções de mudança provocam efeitos não esperados, ou o contrário do que pretendiam (os chamados efeitos perversos) que contribuem para a não realização dos objectivos da acção. Outro elemento é o risco, que sublinha que os custos da mudança são de tal monta que podem comprometer as conquistas já alcançadas. (4). Como disse um dia a jornalista Helena Matos, o “não” à obra, seja ela qual for, é o não a um mundo que não sabendo como se mudar se prefere manter assim.

Por mim, arrisco uma tese bem mais peregrina sobre o TGV. Discordo da ligação Porto-Lisboa mas não rejeito as ligações a Espanha, quer a norte quer a sul. Não vejo nisso qualquer cedência aos espanhóis, nomeadamente às suas pretensões hegemónicas na península. Valorizo tudo o que combate o isolamento e o “orgulhosamente sós”, com o que isso implicou noutros tempos de vida miserável generalizada a grande parte da população, além de um evidente atraso civilizacional. O dilema parece ser este: ou continuarmos um País pobre, resguardado das ameaças à sua nacionalidade, ou avançarmos para um progresso material que obriga à formação de espaços económicos e políticos tendencialmente uniformizadores e onde as nacionalidades se diluem.

Mas a razão mais ponderosa desta minha opção é outra: será que Portugal ficará mais rico sem o TGV? Seríamos mais ricos sem as auto-estradas que temos? Teríamos escapado da crise e da cauda da Europa sem o Centro Cultural de Belém, sem a Expo 98, sem o Euro 2004?

É de crer que não. Pobres por pobres, agarremos as oportunidades. Portugal lembra-me sempre o triângulo das Bermudas, onde desaparecem coisas de forma insólita, como barcos e aviões. Ali há dedo de extraterrestres, dizem os mais avisados. Já em Portugal é o dinheiro que desaparece, torna-se volátil, esfuma-se, dissolve-se no ar, escapa-se não se sabe bem para onde. Se não for para o TGV vai parar a outro buraco qualquer, há-de desaparecer sem deixar rasto ou marca visível. Um verdadeiro poço sem fundo.

Os extraterrestres do nosso atraso sempre adiado são os suspeitos do costume. Pena é que não encontremos forma de os substituir por outros mais capazes e confiáveis. E daqui não saímos, enquanto continuarmos amarrados a preconceitos atávicos e a despertar fantasmas do século XIX no Portugal europeísta do século XXI.


(1) Maria Filomena Mónica (org. e prefácio), A Europa e Nós: Uma Polémica de 1853. A. Herculano contra A. P. Lopes de Mendonça, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais/Quetzal Editores, 1996, pp. 7-8.

(2) Alexandre Herculano, Opúsculos, Tomo I, Questões Públicas. Política, Lisboa, Livraria Bertrand, 1983, p. 359.

(3) Maria de Fátima Bonifácio, “Diferente, igual”, Expresso (Cartaz), n.º 1233, 15.06.1996, p. 27.

(4) Albert O. Hirschman, O Pensamento Conservador. Perversidade, Futilidade e Risco, Difel, 1997.