É o progresso das ideias que traz as reformas, e não o progresso dos males públicos que as torna inevitáveis.
ALEXANDRE HERCULANO
Na reunião de esclarecimento que teve lugar no Troviscal disse o Senhor Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro ter a perceção de que “a lei é para cumprir e tudo o que se possa dizer é retórica”. E para legitimar a sua opinião acrescentou ter sido o próprio secretário de Estado a transmitir-lhe que “vai cumprir o que foi negociado com a Troika”.[1] Começo por discordar desta visão restritiva da democracia que se preocupa mais em cultivar a obediência do que em exercitar a liberdade. Além disso, tais palavras podem ser entendidas como uma forma de pressão sobre os órgãos do próprio partido que o elegeu, de condicionamento do debate político e de limitação do direito de opinião.
Felizmente que o secretário de Estado da Administração Local, num tom bem mais prudente de estímulo à cidadania e à participação, nos descansa um pouco quando contraria as palavras do Senhor Presidente da Câmara. São dele estas afirmações: “O exercício da política pressupõe anunciar, debater, ouvir, incorporar contributos e decidir”.[2] Em democracia a forma de consolidar a legitimidade das decisões passa por tornar público o conhecimento que se detém, evitando os truques, as manhas e os ardis que tantas vezes caraterizam os segredos do poder. Então tudo o que se possa dizer para lá do estrito cumprimento da lei é retórica, Senhor Presidente? Foi isso que andou a fazer a comissão permanente da Assembleia Municipal, a espalhar retórica pelas freguesias? É assim que classifica os muitos contributos dos munícipes sobre a reforma da administração local? Cumprir a lei e calar, sem debate, marginalizando a vontade dos cidadãos? É esta a forma como entende o exercício do poder democrático?
Mais do que submeterem-se ao império da lei os cidadãos exigem um estilo de política que os sirva e responda às suas preocupações, necessidades e anseios. A melhor reforma autárquica possível será aquela que assenta em motivos sociais e humanos e não exclusivamente em argumentos ou estandartes políticos, o que implica ouvir as populações e não apenas os aparelhos partidários. Os partidos não podem tender a usurpar o exclusivo da intervenção e do poder social. A genuína integração de todos os munícipes no espaço geográfico concelhio está associada não à imposição pura e dura da lei mas à construção de consensos, os quais se ligam a fenómenos como as tradições, os rituais e o próprio poder. Muitos desses costumes e tradições encerram uma sabedoria e desempenham funções latentes, não expressas, que escapam às evidências de senso comum. Não perscrutar este peso das tradições e dos rituais em nome do acatamento cego da lei significa abdicar de entender as coordenadas que assinalam a via da identidade das populações das freguesias do nosso concelho. Não ter isso em conta é enveredar por um caminho armadilhado, é não atender a estas palavras avisadas do legado intelectual de Edmund Burke: os povos que não olham para trás, para os seus antepassados, não serão capazes de olhar para a frente, para a posteridade.
A História ensina que se as leis fossem sempre cumpridas nunca haveria motins, revoltas ou revoluções. Nunca teria sido derrubada a Monarquia em Portugal e por isso não viveríamos hoje em República. Não teria caído o Estado Novo e talvez hoje não andássemos a saborear a liberdade. Com Locke aprendemos que quando as leis não são feitas para o bem do povo se torna legítimo o direito de resistência. Vejamos então alguns exemplos concretos de reclamações populares contra as medidas intervencionistas dos governos centrais.
No tempo da Monarquia absoluta a interferência régia na vida municipal por parte dos corregedores e juízes de fora gerou resistências locais muito fortes. Já no constitucionalismo liberal monárquico, quando a pena reformadora de Mouzinho da Silveira, ministro de D. Pedro IV, produziu uma obra legislativa que é hoje considerada um importante marco jurídico e institucional da primeira metade do século XIX, os protestos não se fizeram esperar. Assim que foi publicado o célebre decreto n.º 23, de 16 de maio de 1832, considerado centralizador e portanto anti-municipal, logo as Câmaras fazem chegar às Cortes as suas exigências de alteração ou mesmo revogação do diploma legal. E foi precisamente a força dos protestos e o fogo cruzado das críticas que levaram a que o diploma viesse a sofrer uma alteração significativa em abril de 1935.
Na década de 90 do século XIX a grave crise financeira do país levou alguns políticos a equacionar uma nova vaga de anexação de concelhos, iniciada em 1836 com a reforma administrativa de Passos Manuel que extinguiu 475 dos 826 então existentes. O receio dos grupos de pressão locais e de perturbações sociais mais que previsíveis acabou por fazer gorar essa iniciativa. Embora não se exija que os nossos deputados e políticos concelhios saibam história das instituições, é bom que se tenham em conta os ensinamentos do passado. Os conflitos gerados pela reorganização do território na primeira metade do século XIX são o resultado inevitável duma centralização administrativa executada à revelia dos órgãos municipais, onde a imposição dos magistrados prevaleceu sobre a produção dos consensos.
Mas não é preciso recuar tanto no tempo para encontrar exemplos de resistência das populações a medidas que consideram atentar contra os seus direitos. Basta não ter memória curta e recordar o que se passou há cerca de vinte anos com a tentativa de instalar unidades de incineração e aterros de resíduos tóxicos em Portugal.
Não cabe aqui discutir a bondade dessas medidas. Mas a propósito do cumprimento da lei, ou da imposição da vontade de quem governa, convém lembrar que as estações de incineração são hoje de tal modo contestadas e boicotadas pelos cidadãos que muitos países já não conseguem pôr a funcionar mais nenhuma. E quem não se lembra da enorme contestação popular que por essa altura varreu os concelhos de Oliveira do Bairro e Vagos? A tentativa de instalar um aterro de resíduos industriais no Cardal/Azurveira colocou as populações locais em pé de guerra com o ministério do Ambiente, deu lugar a reuniões em Lisboa e Aveiro e à criação de um grupo dinamizador do processo, alimentou revoltas e manifestações um pouco por todo o lado, gerou comunicados dos partidos políticos na imprensa e contrarrespostas de cidadãos, além de provocar fraturas entre militantes políticos de base e o poder central da mesma cor política.
Poderá sempre argumentar-se que a Lei n.º 22/2012 foi aprovada por maioria. Mas convém recordar que o respeito pelos direitos da minoria é também, ao lado do critério maioritário, um dos elementos chave da essência da democracia contemporânea. Uma assembleia popular encarregada de gerir os destinos da Grécia decidiu por voto democrático condenar à morte o mais importante filósofo do seu tempo. Condenar Sócrates a beber a cicuta foi uma decisão “democrática” se tivermos em conta o conceito de democracia que vigorava quatro séculos antes de Cristo. Mas não foi certamente uma decisão justa, humana ou pelo menos liberal à luz do conceito de democracia do nosso tempo, por ser incompatível com o ideal de cidadania universal herdado do Iluminismo. Foi uma decisão que se mostrou incapaz de compreender o outro e preferiu anular as divergências com ele, roubando a vida a um dos seus melhores cidadãos.
Neste momento ainda não sabemos se a dimensão das resistências à Lei n.º 22/2012 é uniforme em todo o País. Mas não é difícil perceber que a opinião geral dos munícipes de Oliveira do Bairro também é contrária à lei. Já todos viram que não se trata de um instrumento jurídico objetivo e rigoroso, no qual possam descortinar qualquer utilidade. Se a reorganização administrativa vier a ser executada à margem do sentir das populações, as labaredas do descontentamento podem irromper um pouco por todo o lado. A prudência aconselha a que não se recuse o diálogo com todos os que se dispõem a dialogar, pois a população do concelho não é propriamente um rebanho de basbaques.
Cá estaremos para ver como se comportam nos próximos capítulos desta novela os nossos políticos locais e concelhios. Veremos se são políticos a sério ou pequenos agentes de campanário para quem a fidelidade partidária se sobrepõe ao sentir das populações. Agora que tanto se fala em agregar freguesias para “dar escala”, será que cada época tem os políticos à escala que merece?…
O problema da reorganização do território deve ser resolvido. Como deve ser resolvido, eis a questão do momento. Quando a vontade popular se alicerça na força da razão, cabe a quem legisla estar atento e saber dar a resposta adequada, o mesmo é dizer melhorar uma lei que parece ter sido concebida à medida e por encomenda. Ignorar isso é não perceber que as populações começam a dar-se conta que não vencem todas as vezes que lutam, mas que seguramente perdem todas as vezes que deixam de lutar. Daí ao sobressalto cívico vai um passo muito curto.
[1] Jornal da Bairrada, 26.07.2012, pp. 6-7.
[2] Expresso, 28.07.2012, p. 32.