Recordar Mário Sacramento nos 50 Anos de Abril

Recordar Mário Sacramento nos 50 Anos de Abril

A vida e a obra de Mário Sacramento não podem ser dissociadas da circunstância histórica do tempo que lhe foi dado viver, com as suas possibilidades e os seus limites. Nas condições em que então era possível debater questões relevantes para a sociedade portuguesa, o ensaísta soube viver e interpretar “o drama tensional entre a necessária afirmação da praxis e a necessária interrogação da teoria”.[1]

Falamos de um tempo em que não era fácil discutir ideias, em que havia prisões arbitrárias para quem ousava pensar ou escrever diferente dos cânones impostos pelo regime. Anos de chumbo, povoados de sombras e medos de rumar a Peniche, a Caxias, ao Tarrafal, ou até de sucumbir às minas e emboscadas da guerra colonial. Um tempo em que a censura amordaçava a imprensa. Salazar dizia que “o jornal é o alimento espiritual do povo e deve ser fiscalizado como todos os alimentos”.[2] Também os livros passavam pelo crivo da censura e os considerados incómodos eram apreendidos e retirados do mercado. Só que a extensão destes atropelos era ainda mais vasta: da imprensa ao cinema, do teatro à música e à literatura, nenhum domínio da informação e da criação artística era descurado pela ditadura de Salazar.

Tempos, também, de perversidade conventual, como se pode ler no seu Diário. No lar de freiras em que a filha estava hospedada, na Lisboa dos anos 60, “não deixam as pensionistas andar de calças – mesmo de pijama – porque fazem lembrar homens (às freiras, claro!) [e porque] consideram o refeitório da Cidade Universitária um lugar de perdição [e por isso] estão volta e meia a chamar para orações, ao que muitas ou algumas se furtam escondendo-se nos armários”.[3]

Mário Sacramento, com a sua participação precoce em actividades culturais, acabaria detido pela primeira vez com apenas 17 anos, quando era estudante no então Liceu José Estêvão e primeiro director do jornal  A Voz Académica, mensário fundado por Agostinho da Silva e que difundia as preocupações de uma juventude inconformista.[4] Outras três prisões se seguiriam, com a polícia política a espiar-lhe todos os movimentos. Um itinerário cívico e político vigiado em permanência.

Curiosamente, eram os que mais o acusavam de sectarismo ideológico os mais dogmáticos na análise da sua obra. Manuel Anselmo, nos cadernos periódicos de apologia ao regime de Salazar, deixaria exarados em 1960 estes comentários aos Ensaios de Domingo: “[Mário Sacramento] repete servilmente a lição que aprendeu com os escritores soviéticos ou sovietizantes”,  num “vocabulário demagógico deste papagaio do marxismo na gaiola da literatura” (…). Não perde Sacramento a ocasião para um comíciozinho ateizante (…). É por isso que livros como estes Ensaios de domingo me repugnam duplamente: pela escravidão de inteligência que documentam e pelo sinistro projecto de propaganda que servem”.[5]

Neste pensamento mecânico, previsível na justeza do dente com a calha e onde sobressai a recusa do pensamento crítico, Manuel Anselmo espelha bem a alienação que o aprisiona mas que por cegueira ideológica só descortina nos escritos de Mário Sacramento. A receita é por demais conhecida. Limita-se a misturar os ingredientes  que à época andavam associados ao Mal e por isso colocavam em causa a “verdade” oficial da ordem estabelecida: os ateus e os marxistas. Sempre assim foi. A fé precisa do Mal – e também do medo, habitual cão de guarda das ditaduras – para se alimentar. Mário Sacramento era associado pelos coriféus do Estado Novo aos inimigos da nação e da falta de respeito pelos valores tradicionais de Deus, Pátria e Família. Como certeiramente escreveu O’Neill, para o caso português: “Neste país em diminutivo – respeitinho é que é preciso”.[6]

Ao contrário do que anunciavam, no seu piar agoirento, algumas aves canoras da ditadura política do Estado Novo, Mário Sacramento colocava a inteligência acima do dogma, embora sem abdicar de princípios e convicções. Havia nele a capacidade de nos espevitar, de nos pôr a caminho para qualquer coisa, mas sem calculismos estreitos e oportunistas. Era um homem predisposto ao diálogo com os que estavam interessados em exercitá-lo de forma bem intencionada e sabia reconhecer a inteligência dos argumentos de quem dele discordava: “a sinceridade não teme o confronto: procura-o”.[7]Conhecedor do peso e da influência do catolicismo em Portugal, negá-lo não seria dialéctico. Curiosamente, ao encetar esse diálogo com os católicos acabou por ser brindado com alguns reparos dos que lhe eram mais próximos, que consideravam a iniciativa uma “perda de tempo” no ambiente cultural limitado, ou até inexistente, de uma pequena cidade de província como era então Aveiro.[8]

Prova dessa disponibilidade aberta para o diálogo é o que aconteceu em 1966 em Aveiro, uma “cidade ventosa mas a apodrecer de calmaria”.[9] O Concílio Vaticano II tinha actualizado, em muitos aspectos, o pensamento da Igreja. Só que para Mário Sacramento – sempre à procura de consensos no plano da praxis do imediato, o mesmo é dizer da política – esses ventos de renovação continuavam “encalhados em Vilar Formoso”. Era preciso sacudir o torpor geral, romper com o silêncio dos hierarcas do catolicismo. Não bastava abolir o latim. Urgia, também, encetar um diálogo entre crentes e não crentes que esbarrava com as maiores dificuldades. A fé dos crentes não podia matar a dúvida, transformando-a em silêncio.

O ensaísta recusa enfileirar naquilo que é a marca mais profunda do homem contemporâneo: a fuga ao acto de pensar. O apelo que faz ao diálogo  é uma homenagem de fidelidade ao homem, mas também uma reacção contra as tendências que o diminuem ou amesquinham. É um hino em louvor do questionamento, do pensar com (e em) liberdade. Sondar o que está para lá dos factos requer uma leitura mais profunda, densa, que recuse as evidências do senso comum e subverta uma leitura calmante desses mesmos factos. O domínio das regras da Lógica e da Retórica permitia-lhe encarar qualquer diálogo com seriedade, rigor de análise e distanciamento crítico. Ao contrário de outros, que se mostram incapazes de resistir à tentação de ver inimigos em todo o lado e tendem a substituir o debate pela pura guerrilha, que só afasta as pessoas e desgasta os problemas.

Lá fora esse debate era posto à prova, sem escamotear diferenças de ordem filosófica ou de visão do mundo, mas assente numa fraterna pluralidade de confrontos. Para que tal fosse possível entre nós, contribuiu de forma decisiva Mário Sacramento. Foi dele que partiu o desafio aos católicos conciliares, com propostas teóricas nas acanhadas circunstâncias em que isso era possível naquela altura. São dele estas palavras: “Aceitei dialogar, nestes últimos tempos, com os católicos. Se tivesse nascido num país protestante ou árabe ou budista, tê-lo-ia feito com esses”. [10]

Se para muitas pessoas Vergílio Ferreira foi o escritor das suas manhãs submersas, para mim foi o primeiro volume das obras de Mário Sacramento publicadas a título póstumo – Frátria – Diálogo com os Católicos (ou talvez não) – que acabou por me marcar de forma profunda. E não foram apenas os seus notabilíssimos ensaios sobre a fé (do latim fides, que significa confiança, honestidade, lealdade) que me interpelaram. Foi, também, aquilo que ao longo do livro aprendi no que se refere a uma verdadeira arquitectura do diálogo: “É porque há desacordo que um diálogo urge. Onde toda a gente tem o mesmo parecer, basta acenar com a cabeça como os burros”.[11] Um diálogo que entendia como “desprendimento de vaidades e sectarismos” e capaz de resistir à tentação de arregimentar claques aquiescentes: “não busco uma claque, no mau sentido desportivo, regionalista ou político, mas um auditório de cidadãos responsáveis que dêem razão (crítica e esclarecida) a quem a tiver – seja eu ou outro…”.[12] Saber apelar à melhor parte de nós mesmos, cindindo o que em nós existe de “anjo” e de “besta”, como dizia Pascal, eis o que procurava e nos propunha Mário Sacramento, não com o objectivo de crentes e não crentes se tentarem mutuamente converter, mas para encontrarem plataformas de entendimento no plano ético e nos desafios com que a sociedade os confronta.

Mário Sacramento não confundia o confronto civilizado com um palco onde se desenrolam duelos de caneta. Frátria é um hino à compreensão das diferenças, onde é possível perceber que a fé transcende as ideologias e o debate entre marxistas e católicos permite equacionar as relações entre a existência e a transcendência. Não sendo crente, sabia bem que o pior, segundo o próprio Evangelho, é guardar o talento confiado, não o disponibilizando aos outros. Como observou de forma particularmente lúcida Mário da Rocha – um dos intervenientes nesse diálogo, em que também participaram o padre Filipe Rocha e Ançã Regala – “viver era nele um verbo transitivo. E o diálogo foi seu complemento directo”.[13]

Cinco anos após o seu desaparecimento em Março de 1969, quando contava apenas 49 anos, acontecia a revolução de Abril de 1974. Apesar de ter sido uma figura incontornável da oposição democrática ao Estado Novo, Mário Sacramento não escapou a polémicas, rejeições e intolerâncias várias quando se procurou homenageá-lo com a proposta de atribuição do seu nome a uma rua ou até para patrono da antiga Escola Secundária n.º1. Aconteceu em Ílhavo, onde nasceu em 1920, e em Aveiro, cidade onde passou a residir e onde tinha consultório médico, a partir de 1957.

Entre alguns mitos que os Congressos Republicanos de 1957 e 1969 e da Oposição Democrática de 1973 geraram, encontramos o da cidade progressista, apesar de muitos não terem conseguido libertar-se dos cadeados da intolerância e das crostas dos preconceitos. E encontramos também o volúvel conceito de  aveirismo, essa espécie de visão ptolomaica e até provinciana dos que encaram a cidade como o centro do mundo, arvorando-se em lídimos representantes e fiéis intérpretes dos mais nobres sentimentos das gentes de Aveiro. Foi esse aveirismo que funcionou como arma de arremesso contra a inclusão do seu nome numa Escola. Um conceito que tanto serve para noivar o espírito liberal do “berço da liberdade” como para cortejar figuras como Homem Cristo Filho, com nome de rua em Aveiro e considerado pelo historiador João Medina “o primeiro autêntico e indiscutível fascista luso”.[14] Também José Afonso veria o nome recusado para uma rua de Aveiro em nome do aveirismo. Argumento (serôdio) para a recusa: o cantor perfilhar um projecto de intervenção política “que não se coaduna com o das gentes de Aveiro”. O mesmo é dizer, incompatível com o aveirismo. Afinal que aveirismo é este, que se mostra incapaz de respeitar os vultos mais representativos da cidade e até do país?

Historiemos um pouco, por dever de memória, a incompreensão de alguns sectores da sociedade aveirense para com este cidadão exemplar que através do empenhamento cívico acabaria materialmente lesado, que pagou com a cadeia e as torturas físicas e morais o seu amor pela liberdade e a favor dela expôs, expondo-se. Ora através da escrita, ora erguendo a voz em haste de compromisso, generosidade e coragem. Foi esse o preço que pagou pela coerência de uma vida.

O médico e escritor não foi apenas perseguido em vida. Também o foi post-mortem. Em finais de 1978 os professores da antiga Escola Industrial e Comercial de Aveiro elegeram-no para patrono. Nessa mesma altura Homem Cristo foi o escolhido para a Escola que ainda hoje ostenta o seu nome. Apesar do processo de escolha ter sido idêntico nas duas Escolas, o nome de Mário Sacramento foi rejeitado para a então Escola Secundária n.º 1. Estranha e paradoxal visão de democracia, que em nome do aveirismo acatou pura e simplesmente os resultados mais em consonância com os seus valores e pontos de vista. O quê? Mário Sacramento?, rangeram de espanto os pilares do aveirismo. Até a Juventude Centrista se associou a este moderno espírito de cruzada ao manifestar, em comunicado, “a sua estranheza e repúdio pela escolha do nome de Mário Sacramento (…) distinto aveirense mas não menos distinto comunista”. Chamou-lhe, também, “a fina flor do materialismo dialéctico e da fidelidade marxista”.

Também não faltaram, para condimentar a polémica, as habituais pitadas de aveirismo: “… a maioria que a favor do seu nome se verificou, na consulta feita aos professores da Escola, está em desarmonia aberta com os sentimentos mais gerais, mais convictos e integrados dos aveirenses”. E os professores que votaram em Mário Sacramento acabaram por ser rotulados de “opacos analfabetos”, de “néscios e da mais vácua, ou mais espessa e impenetrável ignorância”.[15] Quanto aos professores que votaram em Homem Cristo, tudo muito democrático. Nem um reparo…

Em 1980 a memória de Mário Sacramento seria também agredida em Ílhavo, terra onde nasceu em 1920. A Câmara Municipal, na altura gerida pela Aliança Democrática, riscou-lhe o nome da toponímia local. Trocou-o pelo de Dinis Gomes, que presidiu à edilidade durante os tempos da ditadura. Argumento invocado: o escritor teria feito saber que não queria ser sepultado em Ílhavo. A falsidade do argumento, a “indecorosa atoarda” como lhe chamou Cecília Sacramento, viúva do escritor, foi de imediato desmentida na imprensa e a injustiça reparada.[16]

Assim se prova como foi tecido este processo verdadeiramente kafkiano em torno de Mário Sacramento. Em Ílhavo retiraram-lhe o nome de uma rua com o argumento de estar sepultado em Aveiro. Em Aveiro recusaram-lhe o nome por ter nascido em Ílhavo e por ferir a sensibilidade dos aveirenses. Quanta  alienação travestida de sabedoria. Os agravos cometidos em Aveiro e Ílhavo recaíram certamente no activista político e não no homem de cultura. Alguns dos que lhe denegriram o nome pouco ou nada saberiam da sua oposição ao positivismo clássico em cujas raízes mergulhou o pensamento republicano; da luta que travou contra os neopositivismos que considerava “as variantes do estruturalismo”, ou da demarcação do marxismo de Althusser ou até daquilo que o distanciava de Marcuse: “a substituição da classe operária pelas camadas universitárias como elemento motriz da dinâmica histórica”.[17]

Atento a todas as formas de expressão artística, Mário Sacramento sabia bem que o conhecimento humano só progride através do ensaio e do erro. Distinguiu-se como crítico literário e teórico do neo-realismo. Falou, com rara acuidade, de existencialismo e estruturalismo, de ciência e de religião. Discutiu estética, ideologia e a alienação de uma e outra. Dissertou sobre a ironia queirosiana. Dialogou e escreveu muito. Decerto para convencer, mas também para deixar-se convencer por aquilo que um verdadeiro diálogo tem fatalmente de integrador.

Hoje, transcorridos 50 anos após a Revolução dos Cravos, Mário Sacramento e José Afonso têm em Aveiro nome de rua e o primeiro também nome de Escola. Justa homenagem a duas figuras respeitadas no panorama cívico e cultural da cidade e do país. Ambos souberam interpretar, em tempos adversos, estas palavras avisadas de Mário Sacramento: “Só constrói quem se opõe ao que o nega”.[18] Uma forma, afinal, de permanecerem vivos, sem respiração assistida.

(Texto publicado em Folhas – Letras & Outros Ofícios [Revista do Grupo Poético de Aveiro], n.º 22, 2024).


1] António Pedro Pita/Odete Belo (Curadoria), “O Regresso de Mário Sacramento”, Catálogo da Exposição Voltar – Mário Sacramento: a hora do ensaio. Museu do Neo-Realismo, 04.6 a 30.10.2022.

[2] Entrevista a António Ferro, in Palavras no Tempo, Volume 1. Política. Diário de Notícias/Imprensa-Nacional Casa da Moeda, 1990, p. 59. Ver também Norberto Lopes, Visado pela Censura, Lisboa, Editorial Áster, 1975, p. 38.

[3] Mário Sacramento, Diário. Porto, Editora Limiar, 1975, p. 146.

[4] António Pedro Pita e Luís Augusto Costa Dias, A Imprensa Periódica na Génese do Movimento Neo-Realista (1933-1945). Catálogo da Exposição, editado pelo Museu do Neo-Realismo/Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, 1996, pp. 59-60. Ver também, sobre levantamento de textos de Mário Sacramento publicados em A Voz Académica, João Sarabando, Joaquim Correia e Cecília Sacramento (coord.), Livro de Amizade. Lembrando Mário Sacramento, Edições Húmus, Lda., 2009,  pp. 278-279.

[5] Os Cadernos de Manuel Anselmo, Volume I, Abril-Maio de 1960 (fascículo IV), p. 339.

[6] Alexandre O’Neill, Uma Lisboa Remanchada, in Poemas com Endereço, Lisboa, Livraria Moraes Editora 1962.

[7] Mário Sacramento, Frátria – Diálogo com os Católicos (ou talvez não), Porto, Editorial Inova, 1971, p. 44.

[8] Ver Diário de Lisboa, 08.01.1971, p. 11.

[9] Mário Sacramento, citado por Mário da Rocha, in Frátria – Diálogo com os Católicos (ou talvez não), p. 32.

[10] Idem, Carta-Testamento, Porto, Editorial Inova, 1973,  pp. 16-17. O envelope que contém a carta tem a data de 07.04.1967.

[11] Idem, Frátria – Diálogo com os Católicos (ou talvez não), p. 56.

[12] Idem, ibidem (…), p. 11. Artigo inicialmente publicado no Litoral, 09.11.1968.

[13] Mário da Rocha, in Frátria (…), p. 32.

[14] João Medina, “Os primeiros fascistas portugueses”, Vértice, n.ºs 400/401, Setembro/Outubro 1977, p. 604.

[15] Eduardo Cerqueira, in Litoral, n.º 1227, 08.12.1978.

[16] Em 13.04.1980 Cecília Sacramento enviou uma carta ao director de Litoral, (ver Litoral, n.º 1293, 18.04.1980) acompanhada de um texto enviado ao director do Jornal de Notícias. Aí se explica que a decisão do médico e escritor ser sepultado fora da terra natal partiu dela. A Carta-Testamento, aliás, não alude a qualquer preferência pelo local: “a família tem uma pirâmide egípcia em Ílhavo. Embora eu esteja farto de conhecer prisões em vida (…) não me oponho a ir para lá, se for mais económico ou mais fácil de arrumar”.

[17] António Pedro Pita, “Reler Mário Sacramento. A eterna quadratura do círculo”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 19.10 a 01.11, 2022, pp. 27-28.

[18] Mário Sacramento, Há uma estética Neo-Realista?, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1968, p. 34.

Sondagens e qualidade da democracia

Temos hoje empresas de sondagens que se mostram mais falíveis que as pitonisas, adivinhos e oráculos da mitologia antiga. Assim acertassem nelas com a mesma precisão com que Tirésias, o profeta cego, acertou ao predizer que Édipo assumiria o trono de Tebas e tomaria a mão de Jocasta.

Quando pedimos uma garrafa de vinho e o conteúdo não corresponde ao rótulo, é costume dizer-se que estão a vender-nos gato por lebre. O mesmo se passa com as sondagens e com quem as paga e se vê a braços com uma autêntica zurrapa informativa. As sondagens divulgadas nos últimos dois meses eram praticamente unânimes: Medina ganhava folgadamente a Moedas. Sondagens e comentários baseados em sondagens, das quais só os ingénuos pensam que o marketing político está ausente.

Só que… sentado em frente da televisão para escutar as primeiras projecções, assim que ouvi falar em empate técnico, pensei para com os meus botões: Carlos Moedas já ganhou. Depois, já passava das duas da matina, viria a confirmação desse triunfo em que muito poucos acreditavam. Quem o anunciou foi António Costa, ao resolver falar antes de Rui Rio.

Depois de tamanho descalabro profético, importa perguntar, tendo presente o elevado nível de abstenção que muitos se esforçam por branquear: até que ponto estas sondagens não são responsáveis por milhares de potenciais votantes não se terem deslocado às mesas de voto? Uns, (apoiantes de Carlos Moedas), porque se convenceram que a eleição estava irremediavelmente perdida; outros, (simpatizantes de Fernando Medina), por entenderem que a eleição estava no papo, que eram favas contadas. Se as sondagens se tivessem aproximado mais dos resultados que hoje conhecemos, que poderia ter acontecido: uma votação mais expressiva em Medina, ou ainda mais expressiva em Moedas?

Eis as perguntas de quem duvida, por estar sinceramente convencido que o caminho de resgate passa pela interrogação em busca de possíveis certezas e não de mitos. De duas uma: ou os portugueses são exímios na arte de dissimulação do voto, sempre que questionados em quem tencionam votar; ou, hipótese também a ter em conta, há incompetência manifesta na forma como os responsáveis pelas sondagens seleccionam os eleitores de uma amostra que se pretende fiável e representativa.

No actual estado comatoso em que se encontram, as sondagens parecem representar mais um perigo do que um benefício para a qualidade da nossa democracia. As coisas só podem piorar  quando alguns papagaios do pluralismo se servem delas como alguém que, depois de emborcar uns tintos em demasia, se encosta aos candeeiros públicos: mais para conseguir amparo do que para se deixar iluminar.

 

 

 

O escorpião (Marcelo) e a rã “lelé da cuca” (Balsemão)

Era uma vez um escorpião, de nome Marcelo, e uma rã chamada Balsemão. O escorpião pediu à rã para o ajudar a atravessar com segurança o rio da política. A rã, desconfiada, perguntou:

– Mas como é que eu sei que não me vais picar a meio do rio?

Responde o escorpião:

– Não tens quer ter medo, se te morder vamos os dois ao fundo.

Convencido da bondade do escorpião, a rã aceitou carregá-lo até à outra margem da política. A meio do rio, o escorpião – como era de prever – não resistiu a picar a rã. Incrédula, esta fitou-o e ele limitou-se a responder:

– Desculpa, está-me na massa do sangue, faz parte da minha natureza.

Ao contrário do que acontece na fábula, nesta história pouco exemplar nenhum dos dois morreu afogado. A rã, a quem um dia o escorpião chamou lelé da cuca – tornou-se o todo-poderoso patrão dos media em Portugal e o venenoso escorpião traidor, como lhe chamou a rã, conseguiu chegar a Presidente da República.

O escorpião não deixou de marcar presença na recente homenagem prestada à rã lelé da cuca. Num exercício do mais puro contorcionismo político, em vez de voltar a ferrá-la com o seu veneno, resolveu tão só picar o ponto, embora não tenha assistido à cerimónia.

Uma rã pode desempenhar múltiplas tarefas. Se, por exemplo, faz cópias, podemos chamar-lhe… a rã que xerox! (Mia Couto, “Cronicando”, p. 130). Se, mesmo lelé da cuca, consegue escrever as suas memórias, podemos encontrar aí coisas engraçadas. Quando o escorpião traidor é chamado para integrar o governo da rã – uma forma airosa desta se livrar de novas ferroadas no semanário espesso – os amigos mais fiéis não deixam de a avisar: “Estás a aproximar-te do escorpião da fábula, e tu serás a rã”.

O escorpião é um aracnídeo venenoso que se esconde debaixo das pedras e que em algumas regiões de Portugal é conhecido por lacrau. Para se perceber melhor o que é um verdadeiro escorpião ou lacrau da política – e na esperança de que os meus amigos não venham a ser picados por nenhum deles – aqui fica o retrato de corpo inteiro do lacrau político, em excertos dum texto delicioso que tem precisamente por título “Os Lacraus”, da autoria de Frederico de Moura e publicado no semanário aveirense Litoral, de 10.10.1980:

“Macia, gelatinosa, de palavras mansas, hesitantes e entrecortadas, existe aí uma casta de sujeitos que, cumprimentando suavemente à direita e à esquerda, metendo surdina nas palavras e tornando bambos os gestos, procura metodicamente uma lura no chão ou a penumbra projectada por uma pedra do caminho para espreitar, de olho esgazeado, o momento oportuno para erguer a cauda, usar do esporão e inocular a peçonha.

Inimigos jurados das atitudes claras e frontais e da lealdade de processos, não contestam opiniões de cara levantada, não se pronunciam nas controvérsias e, pastosamente, alojam-se como bichos-da-seda, moles, sinuosos, frios, atentos a uma nesga de pele onde possam injectar o veneno.

Todos nós os encontramos no caminho, mas só damos conta deles quando a ferroada imprevista nos vem alertar que há escorpiões na vereda que pisamos.

Tipos inferiores, cadinhos de rancores recalcados, superam as inferioridades encapotados em sombras coniventes e são, frequentemente, usados por sujeitos sem escrúpulos, vocacionados para atirar a pedra e esconder a mão.

Estes lacraus têm o dom da ubiquidade (..). Respiram da mesma forma a metana dos pântanos e o incenso das sacristias e entram com o mesmo à-vontade pelas portas escancaradas da hospitalidade mais leal e insinuam-se pelas frinchas dos subterrâneos donde, aproveitando a moleza da sua constituição, lançam, para fora, pseudópodes empeçonhados (…).

Cristo, quando por cá andou, topou-os em profusão nos caminhos duros que percorreu (…). Para essa fauna só é lícito usar um argumento, e esse localiza-se na sola da bota capaz de lhe esmagar a compleição gelatinosa nas luras em que se lhe processam as metamorfoses que lhe garantem o polimorfismo e lhe permitem surgir, em todas as contingências ideológicas e em todos os caminhos políticos, a poluir a letra de forma, a sugar o suor honrado dos tipógrafos e, até, a sujar a oratória das tribunas quando a fala lhes é correntia e há dez réis de massa cinzenta que, ao menos, lhe permita alinhar meia dúzia de palavras (…).

Por isso é que mandei pôr meias solas bem grossas nas botas para esmagar os que puder da ninhada dos que, no nosso tempo, pululam à nossa roda.

Não trago, como é evidente, nenhuma cabacinha de antídoto presa à cintura, mas, ao menos, sempre deixo o aviso de que…  há lacraus no caminho.”

Ao contrário das Memórias de Adriano, em que Marguerite Yourcenar se afundou em séculos de um tempo morto para nos dar a conhecer um imperador que por vezes agia de forma brutal, estas “Memórias” de Francisco Pinto Balsemão remexem no baú de histórias e acontecimentos que ajudaram a definir a história política portuguesa do último meio século. Aqui não há brutalidade impune, apenas alguns ajustes de contas com um passado ainda presente na memória de muitos.

Ainda não li, nem sequer comprei o livro. Mas, a avaliar pela amostra do que se vai escrevendo sobre ele, é bem capaz de nos dar a ver até que ponto a suposta grandeza (ou pequenez) de certas personagens se harmoniza (ou não) com a grandeza (ou a pequenez) que outros homens vêm nelas, porque nada é definitivo na análise de uma época, de um acontecimento, de uma vida.

 

 

“Vestido” para homem, ou como fintar a castração

Este vestido para homem, da marca italiana Gucci (custa apenas 1900 euros…), não podia vir em melhor altura. Já encomendei um exemplar. Vá lá: não esbugalhem os olhos nem abram desmesuradamente a boca de espanto. Tenham calma, já vão perceber porquê.

Parece que o vestido se destina a combater a masculinidade tóxica. Não é por isso que o compro, até porque não sou de modas: tanto se me dá que rosa seja cor de menina e azul de menino, já que os significados das cores vão variando entre culturas e antes do século XX o padrão oficial até funcionava ao contrário do que hoje se considera certo para cada género. Se recorro a esta indumentária… é pura e simplesmente para que não me cortem os tomates. Assim mesmo. Passo a explicar, para evitar mal-entendidos. 

Sorte a das mulheres, já que não vingou a proposta de remoção dos ovários às que ousem abortar. Quanto aos homens, falo apenas por mim. Embora não seja dado a comer criancinhas ao pequeno almoço, as minhas noites nunca mais foram as mesmas. Tremo como varas verdes, só de pensar que pode surgir alguém a acusar-me de pedofilia, à semelhança do que se passava com as denúncias insidiosas contra os cristãos-novos ou as acusações de feitiçaria e bruxaria contra as mulheres – supostas noivas de Satanás – que entre os séculos XV e XVII acabavam invariavelmente a arder como tochas nas labaredas da intolerância.

Em tempo de Convenção, um partido político da nossa praça procura reintroduzir a pena de Talião na sociedade portuguesa contemporânea, porventura (e por Ventura) inspirado na conduta ética do Deus do Antigo Testamento: olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe (Êxodo, 21. 23-25). Transpondo o raciocínio milenar para uma possível revisão da Constituição no século XXI, o que se propõe é nem mais nem menos do que a castração física – presumo que sem anestesia – para os condenados por abuso e violação de menores.

Tudo isto me provoca pesadelos, suores gelados, convulsões e espasmos, urticária e unhas encravadas. Aqui fica o que retive de um sonho tenebroso: estou numa sala a frequentar formação obrigatória para castradores a soldo do Estado. Ao meu lado, alguns médicos, aprendizes de talhantes, obrigados a mandar às malvas o juramento de Hipócrates. O monitor dispara catilinárias contra as teorias médicas, gabando-se de ser alguém com saber de experiência feito. Não deixa de ter alguma razão: à falta de gente do ramo com experiência no corte de genitais, o Estado recorrera a um velho alveitar, tirocinado a capar porcos nos currais das aldeias recônditas de Portugal.

O pior viria a seguir. Não houve castrações ao vivo, com figurantes de carne e osso, como se estivéssemos numa daquelas aulas de anatomia onde, subrepticiamente, alguém coloca uma parte do corpo retalhado no bolso da bata branca de uma caloira, candidata a exercer medicina ou a embrenhar-se nos meandros da justiça. Em vez disso, o monitor-capador projecta alguns vídeos, onde o som e a imagem não deixam de suscitar reacções de horror, como se dum cenário real se tratasse. 

Num deles, um homem condenado à castração tenta auto-mutilar-se – embora sem sucesso, por lhe faltar a coragem necessária– numa tentativa desesperada de evitar a humilhação pública às mãos dos algozes, à boa maneira dos autos de fé da Santa Inquisição.

Noutra imagem, mulheres nuas aparecem num prado verdejante a pendurar, com aparente deleite, genitais cortados pela raiz, como se colocassem roupa a secar e ainda pudessem retirar deles algum proveito. 

De repente, acordo. Aturdido e com o coração alvoroçado. Levanto-me de um pulo, e porque há sonhos que podem tornar-se realidade, decido: vou mesmo usar o vestido como disfarce. Pode ser que não me topem e desse modo escape aos novos inquisidores com complexos de Torquemada. E para reforçar ainda mais a segurança, resolvi também usar, por baixo do vestido, um cinto de castidade. O mesmo cinto que no tempo das cruzadas as mulheres usavam ao pescoço, enquanto os maridos iam para longes terras ajudar à dilatação da fé e do império (outras davam-lhe o uso adequado, mas só até ao momento em que um ferreiro mais atrevido arranjava a chave da salvação, aliviando-as do tédio que representava passarem anos a fio a olhar para os campos de milho ou de trigo…).

Pelo sim pelo não, e enquanto não chega a encomenda, tenho aproveitado para ir depilando as pernas…

(Nota: algumas imagens procuram retratar, com a fidelidade possível, a espessura do sonho que partilhei convosco).

Achegas para uma estética do surripianço nacional

Piet MondrianNo país do faz de conta, em que ninguém escrutina nada, mas que para alguns é o país das maravilhas, tanto desaparecem armas em Tancos, como dinheiro dos bancos ou obras de arte em embaixadas, serviços públicos e gabinetes ministeriais. Pelo que se vê, estamos em presença de uma verdadeira estética do surripianço. Para certos comilões do que deveria ser de todos por a todos pertencer, não há oscilações do gosto: tanto se alambazam com armas que matam como se empanturram com o que é belo e tem valor seguro: pinturas, desenhos ou fotografias que ajudam a colorir a nossa vida.

Estamos a falar de 170 obras de arte que levaram sumiço – uma gota no alguidar de lacraus da roubalheira nacional – assinadas por nomes incontornáveis das artes plásticas portuguesas como Vieira da Silva, Júlio Pomar, Almada Negreiros, Paula Rego, Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis e Mário Cesariny, entre outros. Pinturas, desenhos e gravuras que ganharam asas de desejo e voaram para lugar incerto. Como diz o povo, foi um ar que lhes deu. Dão-se alvíssaras a quem as encontrar.

Estas obras, penduradas nos gabinetes dos ministérios, ajudavam a aliviar o cinzentismo de quem pratica funções cinzentas. Quem lhes deu sumiço, optou por aliviar as paredes e não o cinzentismo. Estamos a falar de gente que se movimenta nos caminhos tortuosos de privilégios e sinecuras e se comporta como os áulicos que na corte de D. João V eram premiados pelo destempero e a corrupção.

Em Portugal até parece que tudo o que é sólido se dissolve no ar. Em Portugal desaparecem coisas. Só que, para compensar, também aparecem coisas. Ao contrário do chamado “triângulo das Bermudas”, cenário de vários desaparecimentos, em Portugal há um triângulo de aparições, com vértices em Fátima, Tomar e Ladeira do Pinheiro. Nem tudo é mau, portanto.

Na minha boa fé, creio que as obras não foram atraídas para mãos onde as coisas se pegam e custam a descolar, como a pele do bacalhau. E até arrisco uma hipótese: os gabinetes ministeriais não serão climatizados e o calor tem apertado tanto que as obras de arte bem podem ter derretido, ao ponto de se evaporarem. A vingar esta tese peregrina, teríamos nos nossos ministérios os verdadeiros precursores do artista Alper Dostal, que nos mostra a arte a derreter como forma de aviso para as graves consequências do aquecimento global no planeta que habitamos. O exemplo que aqui vos deixo, uma obra-prima de Piet Mondrian a derreter (Composição II em Vermelho, Azul e Amarelo) pode muito bem ajudar a explicar o misterioso desaparecimento das obras de arte do Estado português.

1Acredito nisto. Acredito na ideia de belo enquanto emanação do bom. Acredito que as obras derreteram e se evaporaram e que o calor tem costas largas. Acredito que toda a obra de arte é uma possibilidade de reincarnação. No caso –  improvável, repito – de terem sido furtadas, acredito piamente que um qualquer Tintim ou professor Girassol português as vai fazer regressar ao local de onde nunca deveriam ter saído, tal como o fizeram com As Jóias de Castafiori ou em A Orelha Quebrada.

Afinal, como bons portugueses que somos, encontramos sempre uma forma de nos salvar.

 

 

Da Arte de Furtar ao Discurso Sobre o Filho-da-Puta

Berardo1Cansado, muito cansado. Das personagens grotescas. Da falta de vergonha. Do riso alarve do comendador, que ao rir-se de nós e para nós parece ultrapassar em estupidez todos os outros animais. Duas vezes condecorado por outros tantos Presidentes,  como se mandassem bilhetes de pêsames a um regime decadente e do qual a tão propalada ética republicana parece cada vez mais arredada.

Cansado, muito cansado. De quem trafulha e de quem deixa trafulhar. Da rendição do poder político ao poder económico. Da escandalosa mancebia em que se envolvem. Do leito de esterco da impunidade em que convivem.

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Cansado, muito cansado. Da crescente bifurcação dos jogos de influência. Da mancha viscosa da corrupção que não pára de alastrar. De uma sociedade cada vez mais armadilhada de aldrabices, a precisar de uma boa barrela, capaz de lhe devolver a  ecologia dos valores humanos, onde cada um vale pelo que é e não pelo que tem ou ostenta. Cansado de gente “importante”, que não se dá conta que só os medíocres se babam da própria mediocridade. Cansado de gente “séria”, mas capaz de alojar as maiores vigarices numa alma só aparentemente imaculada.

Gente deste calibre tem um nome: filhos da puta! Assim mesmo, tal como um dia os retratou Alberto Pimenta no seu pequeno-grande livro “Discurso Sobre o Filho-da- Puta”:

O filho-da-puta, por si, nunca se define à primeira vista, e esse é o primeiro e o principal dos seus traços distintivos. À primeira vista, o filho-da-puta mostra-se sempre bem disposto, acima de tudo disposto a viver e a deixar viver. À primeira vista, o filho-da-puta diz quase sempre sim senhor (…). É só depois, às vezes muito depois, que o filho-da-puta diz que não, não senhor e mostra que não está disposto: nem a viver nem a deixar viver (…). O filho da-puta acha que o mais importante é conseguir toda a espécie de vantagens com os outros e assim ocupa a vida com essa preocupação, isto é, ocupa a vida preocupando-se com o modo de conseguir sempre o melhor”.

PimentaOs filhos da puta (e esse é ainda outro traço seu, o terceiro traço distintivo) conhecem-se bem uns aos outros pelos lugares que ocupam e só podem ser ocupados por eles; deste modo é fácil associarem-se para fazer as coisas mencionadas e outras, muitas outras, públicas e particulares. Por vezes, negoceiam particularmente o bem público; se isto porém é dito publicamente, ofendem-se porque consideram que se trata de uma ingerência na sua vida particular. Todo o filho-da-puta é altamente cioso da sua vida particular, porque a vida particular dos filhos-da-puta é quase sempre, de uma ou outra maneira, pública (…). Por isso, sempre que o filho-da-puta especializado em fazer faz um acordo, é difícil saber se é um acordo público que traz vantagens particulares ou se é um acordo particular que traz desvantagens públicas”.

Berardo2Que sociedade é esta, em que os mais desprotegidos são atirados sem remorso para a cadeia (às vezes por roubarem o que lhes falta em casa para matar a fome aos filhos), enquanto as práticas ilícitas dos todo-poderosos gozam da maior impunidade? Que Estado é este, que dispõe de meios técnicos e tecnológicos para nos controlar até ao mais ínfimo pormenor, e não se mostra capaz de desatar os nós e os laços apertados entre políticos e especuladores financeiros que o lesam e desfalcam? Então quem rouba milhões fica apenas sem condecorações? Então quem premeditadamente blinda a colecção de arte, para mais tarde a oferecer aos Bancos como garantia dos milhões que recebe, fica apenas sem a medalha e a comenda? Esta criminosa condescendência do poder político e judicial para com os abusos e as ilegalidades espelha bem o triste fado lusitano, a miséria portuguesa, mais mental do que outra coisa qualquer.

(Aqui fica o desabafo magoado de quem, não sendo um “água-bórica”, sente uma força a crescer-lhe nos dedos e uma raiva a nascer-lhe nos dentes. Afinal, Joe Berardo tem menos património para penhorar que o autor destas linhas – uma simples garagem no Funchal – e por isso pagará, seguramente, menos impostos ao Estado. Para os que, mesmo assim, não compreendem um desabafo que é filho da indignação, só mais este verso de Álvaro de Campos: “Merda! Sou lúcido”).

 

 

 

Os chifres de Belzebu, como fonte de inspiração artística

 

Cornos de Pinho cartoon
Cartoon de António (Expresso, 05.05.2018)

Embora não goste de touradas, é-me difícil resistir à tentação de voltar a falar nos cornos de Pinho. Há uma razão para isso: quando agora sabemos que um ministro da Nação foi ao mesmo tempo um avençado do Banco Espírito Santo (a avaliar pelo silêncio, quem cala consente) a coreografia que fez não foi para ninguém da oposição, mas para todos os portugueses. O gesto bovino insulta-nos a todos. E o raciocínio seria o mesmo, se em vez dos cornos pusesse a língua de fora ou nos brindasse com um manguito de insolência.

Sempre que um político do governo corrompe ou se deixa corromper, está, embora metaforicamente, a colocar os cornos a todos os portugueses. Se pudesse, garanto-vos que lhes aplicava o seguinte correctivo: assim como alguns – os mais velhos – ainda terão usado, nas escolas primárias do Estado Novo, as célebres “orelhas de burro”, obrigava-os agora a usar, para todo o sempre, uns retorcidos chifres de Belzebu.

Camilo José Cela1Como é sabido os cornos sempre foram, ao longo do tempo, motivo grande de controvérsia. Nas relações conjugais (quem os tem, por dádiva ou herança, esconde-os, não os usa), na tauromaquia (às vezes lá entra um corno na artéria, ou na veia femoral), na arte popular, na mitologia (símbolos de poder e autoridade) ou até na poesia e na literatura. Relembro, aqui, o “Coro dos cornudos” de Luiz Pacheco, declamado pelo Mário Viegas, e mesmo o “Rol de Cornudos”, de Camilo José Cela, escritor agraciado com o Nobel da Literatura em 1989, que nesta obra vincadamente humorística nos propõe uma divertida antologia dos diversos tipos e subtipos de ser cornudo. Deveras instrutivo, se me é permitido um conselho de amigo. Reparem só nesta passagem que caracteriza o “cornudo milagreiro”: aquele que, depois de muitos anos de esterilidade se encontra com um filho nos braços, que, não sendo seu, até parece que é, ou, mesmo que não pareça, lhe é atribuído. Costuma encontrar mui benéfica consolação ao pensar em São José e na Sagrada Escritura.

Cornos há, pois, muitos e para todos os gostos: o de marfim, o afrodisíaco, o manso, o de pinho, o de África, o que não se vê e até a dor de corno. É só escolher. Ser ou não ser, eis a questão. E quem não quer correr riscos, já sabe: o melhor é morrer solteiro. Já contra os cornos metafóricos da política, o melhor é seguir à risca o que pedia o embaixador e escritor alemão Stéphane Hessel, porque, ao que parece, indignarmo-nos já não chega: Empenhai-vos! Podemos não apreciar os duelos na arena política, mas às vezes fica a sensação de que ninguém se importa de continuar a ser colhido. Até à marrada final? Não será mais avisado, como no poema de Ary dos Santos, pegar o mundo/ pelos cornos da desgraça/ e fazermos da tristeza/ graça?

Ouçam bem o que vos digo: só é corno quem quer. Ou quem não sabe…

Desventuras de Manuel Pinho no País das Maravilhas

manuel-pinho-volta-do-bullmanManuel Pinho começou a descer na minha consideração quando deixou que o camartelo derrubasse um edifício que lhe pertencia e acabou por se sujar com o pó da demolição: a casa de Almeida Garrett. Esta, como a Casa Grande de Romarigães ou a Casa de Camilo, são lugares de memória, espaços de recordação que devem ser preservados e legados às gerações futuras. Cuidar do que recebemos é dar atenção, não é deixar ao abandono ou destruir. A Casa de Garrett já não existe. Desabou com estrondo, após mais uma cedência vergonhosa do poder político às pressões económicas do momento e aos interesses privados do seu proprietário.

Voltou Manuel Pinho a descer um degrau na minha consideração quando fez aos chineses uma oferta descarada de mão-de-obra barata em Portugal. Também quando, num evidente abastardamento da língua, quis transformar o Algarve em Allgarve. Ou até quando soprou umas certezas sobre o fim da crise, no preciso momento em que ela mais flagelava os portugueses.

O então ministro da Economia bateu no fundo da minha consideração quando resolveu brindar com um “par de cornos” um deputado da oposição. Gesto técnico lamentável, porque desprovido de qualquer sentido ético ou estético, e ainda menos sentido de Estado. Gesto impróprio de uma cidadania adulta e de um democrata que se preze. Acabou demitido, tramado pelos indicadores (os seus, embora também pudéssemos falar dos económicos).

E quando se pensava que já não podia descer mais, ei-lo agora a chafurdar no pântano das relações perigosas em que se movimenta. É muito importante sabermos se Manuel Pinho recebeu da sua anterior entidade patronal (do aparentemente inesgotável saco azul do Grupo Espírito Santo), no exercício de funções governativas, qualquer tipo de remuneração (fala-se em quase 15 000 euros mensais transferidos para uma offshore, ascendendo o montante global a um milhão de euros e metade desse valor auferido enquanto governante). É que se recebeu, estamos a falar de uma grosseira ilegalidade, já que os membros do governo estão sujeitos à exclusividade de funções durante o exercício do seu mandato. Mas mais do que isso: se teve esse benefício, interessa saber se não se deixou capturar pelos interesses privados, se muitas das decisões que tomou não favoreceram quem o remunerou, em vez de preservarem o interesse público.

Pinho não desmentiu nada daquilo de que é acusado. Diz que vai ao Parlamento, mas que não fala, que entra mudo e sai calado. Quem não deve não teme. Pinho seria o primeiro interessado em esclarecer e negar tudo aquilo de que o acusam. Dizer se houve ou não influência política nos créditos concedidos pela Caixa Geral de Depósitos e clarificar as relações do Estado com a EDP. Por que se cala?  Eis a crise da palavra. Da ética republicana. Da transparência na vida política. E da honra.

Resta acrescentar que Manuel Pinho adquiriu a Casa de Garrett à sua anterior entidade empregadora, o grupo Espírito Santo. Entretanto, sabemos que Ricardo Salgado, arguido já em quatro processos (Monte Branco, GES, Marquês e EDP) continua a proclamar aos quatro ventos a sua inocência, a dizer que nunca corrompeu ninguém. Quero também proclamar aqui que fui ontem a Saturno pesquisar a origem dos anéis e ainda tive tempo de regressar ao planeta Terra e ir jantar à Polinésia.

Já agora, ficámos também a saber que José Sócrates confessou esta coisa extraordinária: “A única motivação ao longo da minha vida que encontro para a actividade política é essa: a vaidade”. Apetece dizer, citando o grande vate: Ó glória de mandar! Ó vã cobiça / Desta vaidade a que chamamos fama!

Convém lembrar que em seis meses Bernard Madoff foi julgado e condenado a prisão perpétua. Estamos a falar da maior fraude de sempre, que se prolongou por duas décadas e ficou resolvida enquanto o diabo esfrega um olho. Por cá as coisas são como são: arrastadas, longas e penosas, a fazer lembrar o processo de Kafka. Até quando?…

vistas curtas
Ilustração: Revista Única, 27.02.2010.

Acudam-me, que começo a ficar deprimido. Já não aguento tanta trafulhice e desconfio cada vez mais da justiça dos homens. Gente deste calibre, capaz de vender a alma ao diabo e dar cabo das nossas vidas, só pode merecer o nosso mais vivo repúdio. Faz-nos tanta falta como a viola no enterro.  É tempo de nos deixarmos de vistas curtas. De ver claro, limpando de vez os óculos embaciados da ideologia. A democracia assim o exige, para não retroceder ainda mais, correndo o risco de sucumbir às mãos dos seus inimigos. Isto para quem ainda acredita nela, claro está.

 

Raríssimas (ou talvez não) ligações perigosas

Presidente, letícia e Ma. Cavaco Silva
A Presidente, a Rainha e a Madrinha

Não vi a peça transmitida pela TVI, no passado sábado, a propósito da Raríssimas. Depois de tanto alarido nas redes sociais, decidi ver a reportagem. Falta-lhe o contraditório, é certo, mas o que vi e ouvi não é bonito. Dá voltas ao estômago. Cria um formigueiro de indignação. A simples ideia de alguém poder utilizar uma instituição social para se servir, em vez de servir os outros, provoca calafrios.

A Raríssimas – Associação Nacional de Doenças Mentais e Raras, é financiada por subsídios do Estado e donativos. Vieira da Silva, actual ministro que tutela as Instituições Particulares de Solidariedade Social, foi vice-presidente da assembleia geral da Raríssimas entre 2013 e 2015. Sónia Fertuzinhos, deputada e mulher de Vieira da Silva, foi acusada de viajar até à Noruega, paga pela Associação. Não negou a viagem, mas negou ter viajado a expensas da Raríssimas. Maria Cavaco Silva é madrinha da Raríssimas. O secretário de Estado da Saúde já foi consultor da associação e recebia 3 mil euros por mês. Dinheiro pago pelo Estado, através do Fundo de Socorro Social, que, diga-se, visa acorrer a situações de calamidade pública, ou apoiar as instituições em casos de dificuldades absolutamente excepcionais. Terá recebido, ao longo de quase dois anos, cerca de 63 000 euros.

Porquê tantos políticos, ex-políticos, administradores e outra gente tida como notável, a gravitar em torno de uma associação de doenças raras? Só vejo uma resposta: porque isso ajuda a puxar o brilho ao currículo profissional e porque estar ligado a instituições de solidariedade, bombeiros e associações recreativas e culturais, costuma funcionar como trampolim seguro para voos mais altos.

A presidente, que se confunde com a própria instituição, era a dona da quinta. O homem encarregado do armazém, que ganha por mês 1 300 euros (mais um subsídio de coordenação de 400 euros e ainda 1500 euros para deslocações em viatura própria) é o seu marido. Ao todo, 2673 euros. A Presidente acha pouco. Disse ter-lhe chegado às mãos um recibo “vergonhoso”. Assim mesmo.  O “colaborador”, seu filho, ainda a estudar, aufere 1000 euros de vencimento-base, mais 200 euros de coordenação. Chama-lhe “o herdeiro da parada”, fala dele como futuro Presidente e acrescenta: “E sim, é os meus olhos e os meus ouvidos, como o pai dele é aqui”. Marido e filho funcionam, pois, como os antigos sátrapas, uma rede de espiões montada por Dario, rei da Pérsia. São os olhos e os ouvidos deste imperatriz de pechisbeque, atraída pelo falso brilho dos falsos ouropéis.

Uma solução dinástica, portanto, à revelia do normal funcionamento dos órgãos sociais. Uma presidente que exige que todos os colaboradores da recepção se levantem à sua passagem, porque o respeitinho é muito bonito. Se passasse vinte vezes, vinte vezes teriam os colaboradores de se levantar. Porque não, “não somos todos iguais” – diz ela, muito senhora do seu nariz. Pois não, não somos. Uns servem-se descaradamente do erário público. Outros não. E disse mais: “A partir de amanhã, o primeiro que passe por mim e não me cumprimente, como eu mereço, a seguir está no olho da rua, fica já a saber”. E mais ainda: “É pá, ninguém se lembre em comprar uma briga comigo”.

Ah, mulher valente e imortal em todo o seu esplendor, garbosa padeira de Aljubarrota do século XXI. Mulher que não se coibia de utilizar dinheiro do Estado para gastos pessoais e até para precaver o futuro. É o caso de um PPR (Plano Poupança Reforma) no montante de 816 euros por mês, feito em nome da presidente da Raríssimas, certamente para fazer jus ao lema segundo o qual “quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo ou não tem arte”. As Actas eram redigidas antes das reuniões e acolhiam as decisões que a presidente da direcção previamente tomava. Eram assinadas pelos “senhores directores”, no final da reunião, presume-se que sem pestanejar. E também sem “bicos de papagaio”, pois só quem deles não padece dobra assim a cerviz à curvatura de interesses alheios. Eis o controlo total, eis o poder absoluto a corromper absolutamente.

Segundo a TVI, a madame Paula Brito da Costa recebia um salário base de 3 mil euros mensais, ao qual acresciam 1300 em ajudas de custo, 816,67 euros de um plano poupança-reforma e ainda 1500 euros em deslocações. A esta quantia, que já ultrapassa os 6500 euros, deve ainda ser acrescentado o aluguer de um carro de luxo com o valor mensal de 921,59 euros e compras pessoais que a presidente da Raríssimas faria com o cartão de crédito da associação. Cabe, então, perguntar: é necessário vestir roupas caríssimas para representar uma Associação? É preciso andar de BMW? Não se pode viajar e andar vestido com dignidade por muito menos? E o dinheiro transferido pelo Estado às IPSS é para essas coisas ou para aplicar em favor de quem dele realmente precisa? Os apoios atribuídos pela Segurança Social devem ser canalizados para o desenvolvimento das respostas sociais protocoladas e não para gastos pessoais da sua Presidente.

Tudo isto (e isto estará longe de ser tudo) é o quê? Que cumplicidades são estas, que assim garantem costas largas e um comportamento tão indecoroso? Como em cada ser normal há um doente que se ignora, talvez a psiquiatria nos pudesse ajudar a compreender o sentimento de impunidade de tão repelente personagem. Andam por ali tiques de psicopata à solta, disso não restam grandes dúvidas. Gente que a si própria se considera normal e nos considera a nós, que verberamos os seus actos, doidos varridos. E tanto que essa gente nos pode ensinar acerca do sucesso, como exemplarmente mostra Kevin Dutton em “O que Podemos Aprender com os Psicopatas”.

Ao abordar este momentoso assunto, Daniel Oliveira fala em “raríssimo escrutínio ao terceiro sector”. A questão não é bem essa. Escrutínios há. Inspectores é que haverá poucos. E legislação suficientemente punitiva para os prevaricadores, ainda menos. O problema não é tanto de escrutínio, mas de instrumentos de escrutínio credíveis, ao dispor de quem fiscaliza. A questão incontornável parece ser esta: fará sentido o Estado apoiar financeiramente as IPSS e não controlar, depois, a qualidade dos resultados, a forma mais ou menos criteriosa como o dinheiro é gasto?

Resta acrescentar o seguinte: como não soube voar baixinho, a presidente da Raríssimas acabou por se tornar vítima da conhecida ambição de Ícaro: tanto se aproximou do sol, que acabou por derreter as asas e estatelar-se ao comprido. Já não é a presidente. Já não vai cumprir o sonho de colocar o filho como presidente. E acabou por arrastar, na queda, o secretário de Estado da Saúde. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos, sem esquecer que a bota que nos oprime, seja ela de esquerda ou de direita, será sempre a bota que nos oprime.

 

 

Autárquicas em Oliveira do Bairro: prenúncios de uma campanha alegre

Era de prever: com o aproximar das eleições autárquicas, o recém-criado movimento UPOB (Unidos Por Oliveira do Bairro) teria o seu baptismo de fogo. Os movimentos de cidadãos – ora encabeçados por independentes, ora por quem já teve uma filiação partidária – têm muito a ver com a insatisfação contra o funcionamento dos partidos políticos e os seus processos de escolha de candidatos. Por isso, há cada vez mais cidadãos que à revelia dos partidos se organizam para resolver os problemas das suas comunidades. Ao fazê-lo, alargam o espectro da participação política sem que tenham de se submeter às trocas de favores e às intrigas em que se atolam muitas estruturas locais dos partidos tradicionais.

As listas sem patrocínio partidário não agradam, é bom de ver, aos que tudo têm feito para enquadrar e até monopolizar os direitos dos cidadãos. O atrevimento dos que deixam o casulo partidário e abandonam a sua zona de conforto teria que esbarrar nos que sempre olharam, com desconfiança, para qualquer proposta de refrescamento da vida autárquica. A esses convém dizer que se não há democracia sem partidos, a democracia também não se esgota neles.

E como em Oliveira do Bairro também os lobos uivam, o UPOB já teve o seu baptismo de fogo. Na edição de 23 de Março de 2017, o Jornal da Bairrada inseriu um texto assinado por Pedro Fontes da Costa, com o seguinte título: “Candidato da UPOB à Câmara de Oliveira do Bairro plagia Plano Estratégico do Sabugal 2025”. Assim mesmo, falando de plágio de uma forma peremptória. Só que, logo no primeiro parágrafo, o citado jornalista troca o assertivo “plagia” pela expressão mais evasiva “terá plagiado”.

Em que ficamos? Quando num título de jornal se diz, sem evasivas, que há plágio e logo a seguir se fala em eventual plágio, estão a colocar-se em causa valores básicos do jornalismo como a procura da objectividade e a busca da isenção. Se o título de um texto não bate certo com o corpo da notícia, é comum dizer-se que estamos a vender gato por lebre. É o que acontece quando o rótulo de um vinho não corresponde ao conteúdo da garrafa: estamos a defraudar as expectativas do cliente.

Mais do que uma opinião, ou uma metáfora, o rótulo de plágio que Pedro Fontes da Costa colou ao candidato Fernando Silva é uma acusação (não esqueceu, sequer, a moldura penal…) que deve ser comprovada. Ou se prova a acusação – com consequências para o visado – ou o rótulo é difamatório e tem consequências para o autor da notícia. A quem acusa incumbe o ónus da prova. Se o não fizer, então o texto do Jornal da Bairrada não terá passado de pólvora seca: fez estrondo, mas talvez poucos estragos na imagem do candidato. Ou há prova, ou tudo não terá passado da construção de um insulto que a alguém aproveita.

Para que não subsistam quaisquer dúvidas, quero desde já acrescentar que o texto de Pedro Fontes da Costa tem pelo menos um mérito: o de nos dar a conhecer que o artigo de opinião assinado por Fernando Silva, na edição de 9 de Fevereiro do mesmo jornal, não é da sua autoria. E isso não soubemos, na altura. Bastaria uma simples alusão ao Plano Estratégico do Sabugal para tudo ser diferente. Para não sermos, enquanto destinatários da sua mensagem, induzidos em erro ou enredados nos problemas da verdade ou da falsidade dos discursos produzidos.

Dito isto, vale a pena acrescentar que a facilidade com que hoje se acede aos bens culturais disponibilizados em rede levanta problemas sérios quando falamos de utilização ilícita. Como os coloca, também, quando estamos em presença de noções como “direito de autor”, “propriedade intelectual” ou “plágio”. Quando uma pessoa copia outra sem citar as fontes, para haver plágio é preciso provar que essa outra pessoa também não se inspirou em ninguém. Dito de outro modo: que o que essa pessoa escreveu ou disse é cultura em primeiro grau e não, como acontece com as anedotas, tabaco já mascado por muitas bocas.

Ora, no caso em análise, podemos ler na própria notícia do Jornal da Bairrada que Victor Cardial chama a si a propriedade intelectual do documento, quando afirma: “Fui eu que escrevi o que está no Plano Estratégico do Sabugal e dei autorização ao Eng.º Fernando Silva para publicar. E fui eu que lhe pedi para não colocar o meu nome no artigo de opinião que foi colocado no jornal”. E quando se diz que que o artigo de opinião de Fernando Silva reproduz “de forma quase integral” (sublinho o quase) duas páginas do Plano Estratégico do Sabugal, está-se a reconhecer que o texto “apresenta alguns elementos de inovação”. Ora a inovação, acrescentada ao documento inicial, também fragiliza a noção de plágio.

Para se poder falar de roubo intelectual são precisas três coisas: um objecto roubado, um ladrão e uma vítima. No caso em apreço quem é a vítima? Quem se queixou? Ninguém. O detentor da propriedade intelectual do documento apenas se justificou. Nem sequer exigiu ver o seu nome tornado público. Em vez disso, limitou-se a autorizar a utilização da sua obra.

Como era de esperar, nada disto foi suficiente para abafar as acusações de plágio. O que veio à tona, não só no Jornal da Bairrada, foi um indisfarçável azedume contra o novo movimento cívico. Ninguém se preocupou em saber se o Plano Estratégico do Sabugal está a ser bem aplicado, se está a ter sucesso, ou se pode representar uma mais-valia para o concelho de Oliveira do Bairro. Discutir ideias dá trabalho e só discute ideias quem as tem. Mais importante, para alguns, é tentar fragilizar os adversários políticos. Pouco importa se um artigo de jornal não é propriamente um trabalho académico ou se o Jornal da Bairrada está longe de poder ser considerado uma revista científica. Falta a citação, a nota de rodapé… e pronto!

Além das ideias que perfilha para o concelho, um candidato a Presidente da Câmara não está impedido de importar ou imitar modelos que no plano material ou estético enriqueçam as suas propostas. Se muitos autarcas viajassem e conhecessem o que se faz por essa Europa fora, não teríamos certamente que contemplar os mamarrachos que por aí abundam em praças, rotundas e jardins públicos. Quando as BUGA (bicicletas de utilização gratuita) apareceram em Aveiro – certamente inspiradas na Holanda, na Bélgica ou noutro país qualquer – o Presidente da Câmara incorreu em plágio por não citar a fonte da sua inspiração?

Enfim, como o discurso político é um dos que maior carga de contrabando de sentidos pode gerar, é legitimo que os eleitores locais se interroguem se alianças como a do UPOB significam amor verdadeiro aos interesses do concelho ou tão só a salvaguarda de interesses particulares. Se são ouro de lei ou apenas reflectem o brilho de falsos ouropéis. O certo é que estas candidaturas assustam, a avaliar pelos resultados de 2013.

Vai ser um ano escaldante – antecipava um dia destes a directora do Jornal da Bairrada. Pois vai. Oxalá que o aproximar das eleições autárquicas não nos devolva as cenas menos edificantes registadas há uns bons quinze anos na Assembleia Municipal do nosso concelho. Numa delas, um ilustre representante do poder local “teve que ser agarrado e aconselhado pelos colegas a sair da sala para que os ânimos arrefecessem um bocado. Uma verdadeira sessão de pancadaria esteve mesmo iminente” – pode ler-se na edição do Jornal da Bairrada de 2 de Dezembro de 2004. Talvez o UPOB ajude a refrescar as estruturas partidárias locais e a arejar um pouco mais a casa da democracia do concelho.

Até lá, convém estarmos atentos. Como acontece com Uma Campanha Alegre, de Eça de Queirós, nada nos garante que não vá ser preciso derrubar, uma ou outra vez, a “tolice de cabeça de touro”.