Trabalhos e Paixões de Miguel Duarte: salvar refugiados

Anti-resgate (Vasco Gargalo)
Ilustração: Vasco Gargalo

Miguel Duarte, aluno de doutoramento no Instituto Superior Técnico, anda há quatro anos a salvar refugiados no Mediterrâneo. Sabemos agora que a sua generosidade corre o risco de ser premiada com pena de detenção que pode ir até aos vinte anos. Num gemido de humanidade, que devia ser amplificado até poder ouvir-se por todos, declarou ao Observador: “Quando vejo uma pessoa a morrer afogada não lhe pergunto se tem passaporte. Tiro-a da água”. Eis aqui um valor cristão essencial: amar o próximo, com tudo o que isso significa de o ajudar quando mais precisa.

Na última edição do semanário Expresso Miguel Duarte assina um texto com o título: O que será de nós quando tivermos medo de estender a mão? A dado passo escreve, como quem nos martela a consciência:

“Ao sair para o convés olho para o mar escuro e consigo discernir ondas enormes só disfarçadas pela escuridão da noite (…). À chegada, deparamo-nos com um barco de borracha furado que se vai enchendo de água e desfazendo a pouco e pouco, dezenas de pessoas agarradas às cada vez mais escassas partes do barco, que permanecem à tona e outras tantas já dentro de água tentando, sem esperança, agarrar-se a algo que ainda flutue. A cada onda que passa, mais três ou quatro desafortunados são arrastados impiedosamente para as águas negras num estado de pânico sem descrição que lhe faça justiça (…). No final, naquele momento em que estamos a dois braços de distância, é que nos chega realmente a consciência de que estamos perante pessoas”.Barco no Mediterrâneo

Li isto com o coração alvoroçado e recordei o que disse, em 1992, o filósofo italiano Giorgio Agamben: “Hoje, somos todos refugiados”. E dei comigo a pensar que é muitas vezes a nossa incapacidade para nos colocarmos no lugar do outro que nos distancia ou torna menos sensíveis a estas tragédias. E se estivesse lá eu, com um filho pequeno, com um pai ou uma mãe, a correr risco vida? Não gostaria de ser salvo? E que experiência seria deambular no mar alto dias a fio, numa frágil embarcação apinhada de gente, exposto a vagas alterosas e a um sol inclemente? Seria possível dormir na vertical, fragilizado pela sede e pela fome em noites de breu e de ventos marítimos que enregelam o corpo até à medula? E que sensação experimentaria ao satisfazer as necessidades fisiológicas sem privacidade nem recato, no meio de toda aquela gente – homens, mulheres, crianças?

Bem sei que despejar esta e outras indignações nas redes sociais nada resolve, mas importa perceber a razão pela qual nem os perigos do mar travam o desespero de tantos seres humanos. E também importa perceber como é que a Europa chegou até aqui, a esta forma vergonhosa de tratar refugiados e migrantes. Uma Europa que parece ter esquecido que a história do mundo sempre foi uma história de migrações e que ela própria nasceu em torno da ideia de dignidade da pessoa humana. Esta é a grande tragédia do nosso tempo: a indiferença cada vez maior para com o nosso semelhante.

Compreendo e respeito os argumentos dos que dizem que a Europa não pode dar guarida a toda esta gigantesca mole humana, fustigada por guerras e conflitos políticos e religiosos um pouco por todo o lado. Os que hoje tentam a sua sorte e se aventuram na travessia do mar são a versão moderna dos boat people vietnamitas que entre 1975 e 1990 embarcaram em idêntica e arriscada aventura, abandonando uma terra sem futuro, em busca de melhor sorte. Gente sem eira nem beira, a quem os portos da Europa fecham as portas, encurralando-a numa espécie de cordão sanitário que é o cemitério líquido do Mediterrâneo. Miseráveis que o cínico pragmatismo político europeu encara como uma ameaça e prefere ver nas páginas de um romance de Victor Hugo.

Também compreendo que a Itália e a Grécia não podem arcar sozinhas com a responsabilidade de acolher nos seus territórios esta enorme vaga de refugiados. E também não vale a pena sermos ingénuos ao ponto de não ver que entre essa gente há radicais islâmicos infiltrados nas embarcações, dissimulados com falsas famílias, ou mesmo traficantes de seres humanos.  Sendo tudo isso verdade, nada justifica a tolerância zero que a Itália pratica. A tolerância zero é o outro nome dado à intolerância. Em vez de lavar as mãos como Pilatos, pode a Europa acolher alguma desta gente, procedendo a uma triagem onde o pragmatismo político não se sobreponha às questões éticas e humanitárias. Na cristianíssima Itália, muitos dos que elegeram Salvini e apoiam as suas medidas isolacionistas contra os refugiados são os mesmos que declaram guerra ao aborto e à eutanásia em nome do indeclinável direito à vida. Bem prega Frei Tomás…

Cristina Sampaio
Ilustração: Cristina Sampaio

Nem acolhimento indiscriminado nem rejeição radical. Apenas se pede um módico de tolerância e humanidade, sobretudo quando a escolha é entre acolher ou deixar morrer o nosso semelhante, um ser humano com direito à dignidade. Os relatos recorrentes destes naufrágios são um insulto à dignidade humana. A criminalização de quem ajuda a salvar vidas é um escarro lançado à nossa consciência. Não é só Veneza que se afunda. É também a Europa que cai a pique, ao perder cada vez mais as referências da sua ancestral tradição humanista.

O que fazem Miguel Duarte e outros voluntários, recusando-se a interpretar o dever de auxílio como letra morta, parece ser o pouco que sobra da dignidade europeia. Nestes tempos sombrios em que um simples gesto humanitário se arrisca a ser tratado como crime, cada vez me sinto mais rodeado de gente habitada por desertos, onde morre sem eco tudo o que a vida tem de mais apaixonante.

Desculpem-me o desabafo, mas esta foi a melhor forma que encontrei para espantar os fantasmas que não deixam de nos dizer que há inferno. Às vezes chego mesmo a pensar que ele já nasceu comigo…

Amos Oz (1939-2018): a tolerância está de luto

Amos Oz imagemO brilho das luzes de Natal e a euforia que antecede o fim do ano deixaram na penumbra a morte do escritor israelita Amos Oz, no final de Dezembro. Com o seu desaparecimento não é só Israel que perde. Também a esperança de um estado palestiniano fica agora mais longe. Amos Oz foi um dos promotores de “Paz Agora”, movimento israelita a favor do entendimento com os palestinianos. Estamos a falar de um dos nomes mais importantes, e talvez o mais conhecido, da actual literatura israelita.

O direito do povo judeu a ter uma pátria, reclamado pelo movimento sionista no século XIX, está, por assim dizer, na base do conflito actual entre israelitas e palestinianos. Também a derrocada do Império Otomano no final da I Guerra Mundial (1914-1918) obrigou a redesenhar as fronteiras do Médio Oriente. Foi precisamente em 1917 que o governo de Sua Majestade Britânica fez saber que via com agrado o estabelecimento, na Palestina, de uma pátria para o povo judeu. Arthur Koestler, escritor e judeu húngaro, autor de O Zero e o Infinito, registou de forma lapidar as intenções britânicas: “É a promessa feita por uma nação a outra nação de lhe ceder o território de uma terceira”.

Para Amos Oz, a solução para resolver o conflito sangrento entre dois povos que reclamam a soberania de um mesmo território passa pela criação de dois Estados. Estamos a falar da troca de terra por paz. Isso obrigaria Israel a abdicar, de forma progressiva, da sua soberania sobre Gaza e a Cisjordânia – onde estão instalados os colonatos judaicos – em troca do reconhecimento da sua existência pela Autoridade Palestiniana. Falamos de dois Estados separados, com partilha de poder em Jerusalém, regresso dos colonos judeus a casa e dos refugiados palestinianos a um futuro estado palestiniano independente, nunca a Israel. O escritor israelita percebeu bem que o argumento demográfico não joga a favor de Israel: os judeus representam hoje sensivelmente 0,2% da população mundial, enquanto no Médio Oriente a relação é de 5% para 200 milhões de habitantes.

Desgraçadamente, este plano está longe de ser consensual. Há quem acredite e espalhe a ideia de que a concessão de território é uma fraqueza, assim como há quem não acredite que a fórmula de “dois estados” seja viável, tendo em conta a variedade de gentes e credos religiosos (árabes, palestinianos, judeus, cristãos). Há também quem defenda a fórmula de “um Estado” único para israelitas e palestinianos, assente num estado democrático não definido como judeu ou árabe. Para que tal fosse possível, Israel estaria obrigado a renunciar ao reconhecimento do país como um Estado judaico e a conceder aos palestinianos “os mesmos direitos de que gozam os judeus”, o que significaria “o fim do sonho sionista”.[1]Sem a consagração desses direitos aos palestinianos, a solução de um só Estado não passaria de algo parecido com o apartheid.

Caros FanáticosAmos Oz explica-nos que se não se avançar para a fórmula dos dois Estados a solução passará, no futuro, por haver apenas um: “Se houver aqui um único estado, será um estado árabe do mar até ao Jordão. É possível e desejável que judeus e árabes vivam juntos, mas eu não aceito de todo viver como minoria judaica sob domínio árabe, porque quase todos os estados árabes do Mediterrâneo oriental oprimem e reprimem as minorias. E, sobretudo, porque defendo o direito dos judeus de Israel, como de todos os povos, de serem uma maioria e não uma minoria, nem que seja num pedaço de terra muito pequeno”.[2]

Edward Said, talvez o intelectual mais destacado na defesa da causa palestiniana e do direito do seu povo a viver em paz e com independência na sua terra – mas que defendia, também, esse mesmo direito para os judeus – era adepto da fórmula de um único estado para os dois povos. Ao contrário da fórmula dos dois estados, fez a defesa de um estado binacional. Assumiu essa posição depois de constatar que a Faixa de Gaza é um espaço tão pequeno que não é possível evitar o contacto entre israelitas e palestinianos. Fala-nos, também, de “uma das maiores ironias de sempre. Há palestinianos que são empregados de restaurantes no interior de Israel” e também “na Margem Ocidental, onde estão os colonos, especialmente em Hebron (…). Nesses lugares, os israelitas e os palestinianos interagem, com antipatia e hostilidade, mas fisicamente partilham o mesmo espaço”.[3]

Perante esta realidade – conclui – “não estamos diante de alguma coisa que se possa mudar, empurrando as pessoas para as fazer regressar a espaços separados por fronteiras, ou a Estados separados. Há um nexo sem retorno entre um e outro dos dois elementos, que ficou, em grande parte, a dever-se à agressividade com que os israelitas entraram no território palestiniano (…). A meu ver, este nexo implica que terá de ser estabelecida uma ou outra forma de entendimento que permita a israelitas ou palestinianos viverem juntos e em paz. O que não poderá ser obtido por meio da separação”.[4]Tudo passa por conciliar o direito de Israel à sua segurança com o direito dos palestinianos à sua própria pátria e não a uma pátria que seja lugar de exílio, onde o poder continua a ser apenas o do ocupante. Said costumava dizer: até na nossa casa estamos exilados.

Edward SaidSão conhecidas as desavenças com Amos Oz, chegando a chamar-lhe “o médico e o monstro”. De facto, se o escritor israelita reconhecia, de forma desassombrada, que “o sistema de opressão israelita nos territórios ocupados vai destruindo a Autoridade Palestiniana”, que “milhões de palestinianos dos territórios ocupados vivem sob constante humilhação, subjugados e privados de direitos” e que “um terço das terras da margem ocidental já foram usurpadas por Israel e a usurpação continua,[5]não é menos verdade que Amos Oz combateu por Israel em várias guerras. Costumava dizer que é difícil ser profeta na terra das profecias e facilmente se percebe que estas suas declarações condenatórias da política dos governos de Israel estavam longe de merecer o acolhimento dos seus pares. Chegou mesmo a ser rotulado de traidor por sectores mais extremistas da comunidade judaica.

Tanto a fórmula de um só Estado como a dos dois Estados encontram defensores entre israelitas e palestinianos. A fórmula “dois Estados para dois povos” obriga Israel a devolver aos palestinianos os territórios conquistados durante a Guerra dos Seis Dias (1967), onde se inclui a parte árabe de Jerusalém, a cidade que os dois contendores reclamam para capital e também cidade-santa para as três grandes religiões monoteístas: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. E obriga ainda Israel a ceder a Cisjordânia, onde neste momento se concentram os colonatos judaicos.

Sabemos que continua bem acesa a fogueira de intolerância recíproca onde ardem todas as esperanças de paz para o Médio Oriente e que o fanatismo é exímio a abafar as vozes discordantes. Neste tempo em que os demónios continuam à solta, feito de tentativas de exclusão, de absorção ou até apagamento da cultura do outro, em que uma forma mentis intolerante vê o Outro como um inimigo a abater – sem se dar conta que para o Outro nós também somos Outros– a voz tolerante e pacifista de Amos Oz vai fazer-nos muita falta. Dificilmente haverá paz enquanto houver um património religioso e cultural comum a israelitas e palestinianos, mas apenas um Estado para um dos dois povos, neste caso o de Israel. Amos Oz sempre acreditou que, a prazo, só uma convivência pacífica de Israel com a Palestina poderá garantir a sua segurança e até a sua existência. Itzhak Rabin pensava o mesmo e, não por acaso, acabou assassinado por um judeu radical de direita em 1995, depois de ter participado, minutos antes, numa grande manifestação pela paz.

A Expulsão do OutroA política não pode estar refém do ódio. O destino destes irmãos desavindos não se constrói a regar com gasolina as labaredas da intolerância que continuam a consumi-los. O que Amos Oz nos ensina é que qualquer paz conquistada pela submissão à violência é ainda uma violência. Isso mesmo nos diz, por outras palavras, o filósofo Byung-Chul Han: “Não é unicamente a violência do outro que se revela destrutiva. A expulsão do outro põe em marcha um processo destrutivo totalmente diferente: a autodestruição”.[6]Para o escritor israelita agora desaparecido, a construção da paz exige concessões dos dois lados, o que significa que ambos se vão sentir amputados. Por isso fala num “compromisso territorial onde ambas as partes estão condenadas à desilusão”.[7]

Podemos discordar de Amos Oz, mas dificilmente podemos ignorar as propostas de paz de alguém com um percurso de vida ligado a Israel antes e depois da fundação do Estado judaico. Alguém que denuncia todos os tipos de fanatismo e que sabe que o fanatismo religioso foi sempre, e continuará a ser, um entrave à paz. Em Uma História de Amor e Trevas oferece-nos relatos inesquecíveis. Como este, quando um amigo mais velho mostra compreensão pela atitude dos árabes a quem foi retirada a terra e a quem o escritor desafia a mudar-se para o outro lado: “Mas eles não me querem lá. Não me querem em lado nenhum do mundo. O problema é esse”.[8]

Como as guerras não são eternas, um dia haverá paz, nem que seja por exaustão. Uma paz que não pode ser apenas ausência de guerra, mas bem mais do que isso. Por agora, o estado binacional com que sonhou Edward Said e a fórmula de “dois estados” preconizada por Amos Oz não passam de uma miragem e parecem cada vez mais distantes. Não sabemos quando termina este conflito sangrento, nem qual o preço a pagar. Sabemos é que há cada vez menos Palestina, embora Israel fale sempre em guerra defensiva, invocando o seu direito de sobrevivência.

Até lá, enquanto a paz não assentar arraiais e a brutalidade impune persistir – disfarce dos fracos e não uma qualidade dos fortes – vão continuar a martelar-nos a consciência poemas lancinantes como este do poeta e prosador palestiniano Mahmoud Darwich, intitulado “Confissão de um terrorista”, que um dia perdeu o direito de regressar à sua aldeia, entretanto integrada em Israel, mas jamais deixou fenecer a paixão por uma sua amada judia[9]:

Ocuparam a minha pátria
Expulsaram o meu povo
Anularam a minha identidade
E chamaram-me terrorista.

Confiscaram a minha propriedade
Arrancaram o meu pomar
Demoliram a minha casa
E chamaram-me terrorista.

Legislaram leis fascistas
Praticaram o odiado apartheid
Destruíram, dividiram, humilharam
E chamaram-me terrorista

Assassinaram as minhas alegrias,
Sequestraram as minhas esperanças,
Algemaram os meus sonhos,
Quando recusei todas as barbáries
Eles… mataram um terrorista!


[1] Ver Ana Fonseca Pereira, Público, 17.02.2017, p. 24; Margarida Mota, Expresso, 18.02.2017, p. 30.

[2] Amos Oz, Caros Fanáticos. Fé, fanatismo e convivência no século XXI, Publicações D. Quixote, 2018, p. 113.

[3] Edward. W. Said, Cultura e Resistência (entrevista de David Barsamian). Porto, Campo das Letras, 3003, pp. 16-17.

[4] Idem, p. 17.

[5] Amos Oz, obra citada, pp. 117-118.

[6] Byung-Chul Han, A Expulsão do Outro, Lisboa, Relógio D’Água, 2018, p. 9.

[7] Luís M. Faria, “Filho da Terra”, Actual (revista do Expresso), 21.04.2017.

[8] Amos Oz, Uma História de Amor e Trevas, edições Asa, 2007, (Luís M. Faria, artigo citado).

[9] Margarida Santos Lopes, “A amada judia do poeta da Palestina”, Actual (revista do Expresso), 21.06.2014.

Brasil na encruzilhada: da neutralidade política ao silêncio dos intelectuais

murillo_leal_so_pra_lembrar_o_voto_e_secreto_a_conseque_l587rnp

Assim vai o Brasil: discursos de ódio recíproco e incitamento à violência. Notícias falsas a baralhar os dados e a serena reflexão. Um país polarizado, com laços de sangue que se desatam, relações extremadas entre famílias desavindas e amigos divididos. Grandes universidades ocupadas por forças policiais para confiscar material eleitoral contra Bolsonaro. Baixíssimos índices de educação. Um cenário deprimente.

Não vale a pena iludir o que está à frente dos olhos de todos: no Brasil alastra a nódoa negra da criminalidade, da insegurança – com várias cidades entre as mais violentas do mundo – e da corrupção, que manchando o PT não deixa de ser transversal a toda a classe política. Os brasileiros sentem medo: de sair à rua, de viajar nos transportes públicos, de parar nos semáforos, quase medo de existir, para citar o título de um livro do filósofo José Gil. E agora muitos receiam um regresso da ditadura, de que os mais novos apenas ouviram vagamente falar, mas sem lhe sentir as consequências.

O medo invade o povo brasileiro e condiciona os seus comportamentos. Por isso hesita entre a liberdade, a autoridade e a segurança. Se para uns, normalmente conotados com a esquerda política, a liberdade é um valor acima de todos os outros, para a direita política há uma prioridade da ordem e da autoridade sobre o conceito de liberdade. Ao que tudo indica, há hoje um número considerável de brasileiros dispostos a abdicar de umas tantas rações de liberdade a favor de outras tantas da segurança que lhes tem faltado.

À beira do abismo, o PT não foi capaz de abdicar da lógica partidária e clientelar na luta pelo poder. Não conseguiu estabelecer pontes de entendimento com outros partidos políticos para tentar barrar um candidato com tiques autoritários, que bolsa as alarvidades que se conhecem, não aceita debates (um desrespeito notório pelo cidadão eleitor, intolerável em democracia) e só comunica pelas redes sociais. Nestas eleições o PT não foi capaz de desarmadilhar o ódio que a corrupção e a insegurança nunca estancadas em 14 anos de governação concitam contra si próprio. O distanciamento de Fernando Henrique Cardoso, de Marina Silva e de Ciro Gomes, entre outros, tem um significado político preciso: eles detestam Bolsonaro, mas não acreditam em Haddad nem na regeneração política do PT. Para utilizar uma expressão do ex-Presidente da República, recusam-se a vender a alma ao diabo. Ciro Gomes, com o país a arder, preferiu mesmo ir respirar os ares de Paris. Grande estadista!

A neutralidade de alguns políticos – há quem lhe chame cobardia – e o silêncio dos intelectuais brasileiros perante alguém que mostra fascínio pela ditadura, dá que pensar. Vale a pena recordar o que sobre estes comportamentos escreveu Miguel Torga, no já longínquo ano de 1944: “O que é contra todas as leis da vida é [o homem] ficar ao lado da contenda como espectador (…). Assim é que nada se salva. Fica-se homem sem qualquer sentido, manequim vestido de gente, coisa que não tem personalidade. Porque nem se representa a inteligência, nem o instinto, nem qualquer das forças que nos fazem viver. É-se, mas apenas estátua de carne petrificada no meio dum mundo onde sempre é preciso tomar posição, optar, para merecer o equilíbrio final que a própria catástrofe implica.[1]

Quanto à estratégia de silêncio adoptada por muitos intelectuais, ela não é nova e espelha as transformações operadas ao longo do tempo entre poder e saber, teoria e prática, utopia e realidade. O lugar que hoje ocupam nos media é aproveitado mais para desancarem uns nos outros do que para denunciar as iniquidades e atropelos das democracias ou das ditaduras. Há muito que deixaram de ser irreverentes e indisciplinados, de utilizar a sua notoriedade para intervir no espaço público. Já pouco exercitam o intelecto, são mais dados à acomodação ao poder do momento – que garante prebendas e sinecuras – do que à interrogação permanente. António Tabucchi definiu-os bem, numa crónica de imprensa: “todas as santas manhãs desfiam num ou vários jornais as suas ideiazinhas sobre cada coisa, acabadas de fazer, como os bolos”.[2] Eis a “Trahison des Clercs”, como lhe chamou um dia Julien Benda.

 

Democracia

O que sabemos é que se Bolsonaro, como tudo indica, vencer esta batalha e logo a seguir virar tudo do avesso à revelia dos direitos e liberdades fundamentais – e não é seguro que assim aconteça, embora os indícios sejam preocupantes – não seria a primeira vez que alguém chega democraticamente ao poder para depois destruir a democracia. E convém não esquecer que, em Portugal, a insegurança resultante da enorme bagunça político-ideológica da I República acabou mal e deu no que deu: 48 anos de ditadura.

Escrevo estas linhas com preocupação, porque amo o Brasil e o colorido das palavras forjadas na olaria tropical. Também porque penso que, ganhe quem ganhar, o Brasil não vai ficar bonito: na próxima segunda-feira vamos ter um país mais radicalizado e mais violento. Tenho por lá amigos e neste momento penso neles e sangro por eles. Desejo-lhes o melhor, sem saber se o que eles desejam para si próprios é o mesmo que eu lhes desejo e que se pode resumir nestas palavras do nosso liberal Alexandre Herculano: em dois grandes escolhos se perde a liberdade: na tibieza com que se defende, ou na demasia com que dela se goza.


 

[1] Miguel Torga, Diário III ( 3.ª edição), Coimbra, 1973, pp. 55-56.

[2] António Tabucchi, “A última fronteira dos intelectuais”, Pública, 07.03.1999.

Stephen Hawking em viagem no tempo cósmico

Stephen HawkingAcordar ao som da fúria dos elementos. Água a cântaros, projectada contra as vidraças pelo soprar inclemente do vento. Acordar, logo a seguir, com a rádio a noticiar a morte de Stephen Hawking. Caramba, há formas bem mais razoáveis de despertar.

A seguir, o dilema: vontade de falar deste físico teórico britânico, deste cientista da cosmologia e da gravitação, sem nunca ter lido nenhuma das suas obras, apenas artigos de opinião em jornais e revistas. Sem nada perceber da “Teoria do Tudo”, do “paradoxo da perda de informação nos buracos negros”, de partículas subatómicas, de conceitos como o de “super-gravitação”, ou até de cordas superdensas.

Não é pelo conhecimento científico, que não consigo verdadeiramente avaliar, que admiro Stephan Hawking. É muito mais pela forma como soube lutar contra as adversidades que a vida lhe pregou e – arriscaria dizer – mesmo assim ser feliz. Somos demasiado humanos, precários, normais e previsíveis e por isso quase todos falamos agora dele, ou comentamos o que dele se vai escrevendo. Mas quantos dos que por aqui aparecem, o leram? E dos que o leram, quantos o compreenderam de verdade?

Eis a coragem e a persistência de uma vida: pouco depois de completar 21 anos, é-lhe diagnosticada uma esclerose lateral amiotrófica, doença incurável e degenerativa que lhe garantia pouco tempo de vida. Condenado a ficar, para sempre, imobilizado numa cadeira de rodas, privado de quase todos os movimentos, viria a sofrer mais tarde outro doloroso contratempo: submetido a uma traqueotomia, ficou impossibilitado de falar e passou a comunicar através de um sintetizador de voz electrónico.

Cinquenta anos depois de declarada a doença, e apesar das graves limitações físicas que teve de enfrentar, o cientista podia dizer: “estou muito satisfeito com a minha vida”. Uma vida cheia e plena de realizações: prémios importantes ao longo da carreira, professor em Cambridge, na cátedra ocupada por Isaac Newton; vários livros e artigos científicos publicados (Breve História do Tempo vendeu mais de dez milhões de exemplares), além de conferências para o público e para a comunidade académica. Para lá do sucesso na carreira científica, casou duas vezes e teve três filhos. Hawking disse ter realizado “a maioria das coisas que queria”. Apesar de acometido por doença tão grave, não desistiu de ser feliz. Viajou muito, amarrado à sua cadeira de rodas: sete viagens à ex-União Soviética; seis ao Japão, três à China e uma à Antártida, para lá de outras. Encontros com Presidentes de vários países e com dois Papas: (Paulo VI e Bento XVI). Viagens ao fundo do mar, de balão e num voo de avião em gravidade zero.[1]

Em 2014 Stephen Hawking declarou ao mundo ser ateu. “Não há Deus nenhum” – disse. Tanto bastou para que alguns crentes, misturando crenças legítimas com provas científicas não menos legítimas, começassem a depreciar a sua obra, sem se darem conta que alguém que não foi tocado pela fé pode, em simultâneo, reconhecer a importância e o alcance das religiões. Hawking acreditava que Deus não existe, mas curiosamente também acreditava na transcendência da salvação da Humanidade a partir da exploração espacial que abre caminho à colonização de outros planetas. Era essa a sua crença. Tão legítima como a dos que parecem ter ficado incomodados com esta sua confissão. Digamos que não sentia necessidade de recorrer a entidades sobrenaturais para compreender ou explicar as suas teorias científicas e a sua interpretação do mundo real. O que está para lá da quântica é espiritual e cada ser humano recorre ao livre arbítrio para acreditar ou não na existência de Deus enquanto transcendência e não enquanto imanência.

BaroisStephen Hawking deixou-nos, sem aparentemente ter vivido o drama de Jean Barois, que partiu das crenças duma juventude religiosa e inquieta para a descrença, e desta, no final da vida, novamente para a crença em Deus, resumindo assim toda a angústia do pensamento moderno do seu tempo. Mais importante que uma possível conversão religiosa do cientista no fim da vida, é que parece ter partido feliz e em paz. Coisa extraordinária em alguém que passou pelas limitações físicas que se conhecem. Apetece falar de uma vida divinamente inspirada, esta que lhe foi dado viver, apesar de tudo, de uma forma plena.

Impossível não estabelecer comparações entre Stephen Hawking e Frida Kahlo. Ambos parecem guindar-se, uma vez desaparecidos fisicamente, ao estatuto de mito que suplanta as próprias obras. Frida fez da sua pintura memória e história, num tempo dolorosamente adverso. Hawking fez o mesmo com a sua obra académica e científica, num tempo também para ele dolorosamente cruel. Ela, amarrada à cama. Ele, à cadeira de rodas. Produtores de eleição a partir de corpos quase inertes e imóveis. Duas obras singulares, que completaram as suas vidas e assim se foram da lei da morte libertando…


[1] Virgílio Azevedo, “Um Homem Feliz”, Actual (Revista do Expresso), 19.07.2014, p. 25. Ver, também, Stephen Hawking, A Minha Breve História, Gradiva, 2014.