Crónica de Jacinto dos Louros sobre a criação dos CTT na Palhaça

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Manuscrito de Jacinto Simões dos Louros

“Em 1908 foi criada a estação dos C.T.T. da Palhaça, e o material para a sua inauguração já tinha sido expedido de Lisboa, mas devido à influência de certo político foi descarregado em meio do caminho, para que a estação não fosse inaugurada até ao dia das eleições, que se deviam efectuar daí por cinco dias. Os elementos da Palhaça mexeram-se e convocaram uma reunião de todo o povo da freguesia para certo dia.

Eu tive informações dessa reunião e que Manuel de Melo, que fazia parte como vogal da Comissão Municipal Republicana, ia aderir ao partido Regenerador então no Governo. Convidei o Snr. Manuel de Oliveira Mota da Feiteira a irmos assistir a essa reunião. Quando chegámos à Palhaça ainda estava pouca gente, mas a pouco e pouco foi-se juntando. Em certa altura apareceu o Snr. Capitão Viegas, acompanhado do Dr. Egas Moniz. O Snr. Capitão Viegas fez a apresentação. Dr. Egas Moniz, homem novo com uma belíssima apresentação e com uma grande facilidade em falar, apresentou-se candidato do partido Regenerador pelo distrito de Aveiro, e aproveitou logo a oportunidade de nos pedir o voto, a que eu respondi: teria muito prazer em votar o nome de V. Ex.ª, mas quando estivesse no meu partido. S. Ex.ª pergunta, a que partido pertence? Ao P.R.P. respondi eu. S. Ex.ª diz: A República não vem, mas se vier nós cá estamos.

Como o povo da Palhaça já estava todo, o Snr. Manuel de Melo arvorou-se em orador oficial daquele povo e entre outras coisas disse: se a estação estiver a funcionar na véspera da eleição V. Exa. pode contar com toda a votação do povo desta freguesia. Depois teve a infelicidade de se dirigir à minha pessoa e diz: Isto é um melhoramento tão importante que nós, povo da Palhaça, não podemos nem devemos deixar de ser gratos a quem no-lo cria, não acha senhor Jacinto?

Eu pedi licença e disse o seguinte: Snr. Dr. Egas Moniz, tive muito prazer em conhecer pessoalmente V. Exa. e aproveito esta oportunidade de saudar V. Exa. O meu partido não tem possibilidade de eleger deputados por este círculo; apesar disso, eu não lhe dou o meu voto porque quero ser coerente com as minhas ideias, mas faço votos que V. Exa. seja eleito. Em resposta à interrogação do Snr. Melo, devo dizer-lhe, embora rudemente que caracteriza o meu modo de ser, mas sem intuito de agravo, o seguinte: se todos os republicanos vendessem os seus ideais por tal preço não havia um único republicano em Portugal!

Como tínhamos observado a razão que nos tinha levado a ir à Palhaça, despedimo-nos e viemos embora.”

(Agradeço a Belino Costa a cedência deste precioso documento para a história da Palhaça)

Inaugurado Centro de Actividades Ocupacionais (CAO)

CAO
Fotografia: Pedro Carvalho

Foi inaugurado, no dia 25 de Outubro de 2009, o novo Centro de Actividades Ocupacionais. Entre as diversas entidades que nos honraram com a sua presença contam-se Mário João Oliveira, Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, D. António Francisco dos Santos, Bispo de Aveiro, Eng.º Celestino de Almeida, Director do Centro de Segurança Social de Aveiro e, naturalmente, o Padre José Augusto Nunes, pároco da freguesia.

A Palhaça esteve em festa. O povo encheu-se de brios e acorreu em grande número, com natural regozijo. Nada do que engrandece a nossa terra nos é indiferente e não é todos os dias que se assiste à inauguração de um equipamento social tão importante para o concelho e para a vida das pessoas portadoras de incapacidade e suas famílias.

O Centro de Actividades Ocupacionais é uma resposta social desenvolvida em equipamento, que se destina a actividades para jovens e adultos de idade igual ou superior a 16 anos. Estamos a falar de pessoas que apresentam incapacidade grave, com dificuldades sérias em exercer, de forma temporária ou em permanência, uma actividade produtiva. Seres humanos que precisam de muito carinho e apoio específico e que por norma não estão abrangidos pelo regime de emprego protegido.

Os principais objectivos a atingir neste tipo de equipamento são: o encaminhamento destes jovens e adultos, sempre que possível, para programas adequados de integração sócio-profissional; o reforço da auto-estima e da autonomia pessoal e social; a interacção com a família e a comunidade, integrando-os em actividades de natureza útil, lúdica e recreativa, para que se mantenham activos e interessados; finalmente, o desenvolvimento das suas capacidades físicas e cognitivas.
Convém referir que este desenvolvimento de capacidades não pode estar vinculado a exigências de rendimento profissional ou a qualquer tipo de enquadramento normativo de natureza jurídico-laboral. Os produtos que resultam do seu labor produtivo representam um estímulo à valorização pessoal e podem funcionar como factor de integração e visibilidade social, uma vez comercializados em eventos específicos. O produto da venda dos bens produzidos no âmbito do CAO deve ser canalizado para os utentes que os produzem e não para as instituições (n.º 2, art. 10.º do Decreto-Lei 18/89, de 11 de Janeiro). Infelizmente, nem sempre assim acontece.

O CAO tem de assumir-se como um instrumento importante na construção do projecto de vida de cada indivíduo. Isso requer esforços no sentido de se contratar pessoal qualitativa e quantitativamente necessário para se atingir esse objectivo. Há casos em que é importante admitir um Terapeuta Ocupacional, um Terapeuta da Fala, ou um Fisioterapeuta que trabalhem com carácter exclusivo nesta valência. Nem sempre isso é possível, mas o bom deve aspirar sempre ao melhor e este só pode contentar-se com o óptimo. Estamos a falar de uma valência que ao contrário de outras respostas sociais tradicionais requer dinâmicas diferentes de intervenção.

Também os processos destes utentes devem estar organizados de forma a garantir um registo rigoroso em várias vertentes: a psicológica, a social, a clínica, a familiar, ou a educacional. É importante registar a observação sobre o modo como evolui cada jovem ou adulto em concreto. Isto pressupõe o recurso a dossiers individualizados que permitam uma distinção visível dos diferentes conteúdos, de modo a facilitar a sua identificação e consulta.

Enfim, ter um CAO é um privilégio para qualquer freguesia. Ele dá, a quem mais precisa, oportunidades de participação e gera interacções positivas entre pessoas que o frequentam e o meio que as envolve. Esta prática vai para além da perspectiva meramente reabilitativa. Distancia-se do termo «deficiência» e aposta na adopção do termo mais genérico «incapacidade», que engloba os diferentes níveis de limitações funcionais de cada indivíduo em particular.
O Centro Social Paroquial S. Pedro da Palhaça está a partir de agora dotado de uma infra-estrutura que serve o concelho, consolida o respeito pelos direitos humanos, promove a igualdade de oportunidades e combate a discriminação. O CAO, com capacidade para acolher actualmente 20 utentes, honra a freguesia, dignifica os seus obreiros e privilegia os potenciais utilizadores. E ajuda a combater o estigma social, que o sociólogo Erving Goffman define como sendo a situação do indivíduo que está inabilitado para a aceitação social plena.

Se a Praça de S. Pedro é a “sala de visitas” da freguesia, o Espaço Vida – que, além do CAO, vai integrar a Creche, o Centro de Dia, o Lar de Idosos e o Serviço de Apoio Domiciliário, instalações que vão conviver de perto com a ADREP e a futura Escola do 1.º Ciclo – arrisca-se a ser a “jóia da coroa”, um novo pólo de atracção e desenvolvimento da Palhaça a juntar a outros, como a zona industrial, que cresce a olhos vistos.

Um orgulho para os palhacenses. Um prémio para a sua fé inquebrantável e para a sua dedicação sem limites a iniciativas do género. Uma verdadeira locomotiva em andamento, que no caso do Espaço Vida muito deve à perseverança e ao dinamismo do seu maquinista: o padre José Augusto.

Junta de Freguesia da Palhaça — por Dr. Manuel Ferreira Rebolo

“… É esta freguesia um agregado populacional constituído por seis lugares principais – Vila Nova, Palhaça, Roque, Rebolo, Arieiro e Albergue – e três outros de menor importância – Fonte do Bebe-e-Vai-te, Pedreira e Tojeira. Está situada no extremo Norte do concelho de Oliveira do Bairro, a que pertence, e confina com os concelhos de Aveiro e Vagos. Primitivamente, este agregado populacional fez parte da freguesia e concelho de Soza, da qual foi desmembrado em 1804, data em que foi criada a freguesia da Palhaça, e data também em que ficou a pertencer ao concelho de Oliveira do Bairro.

Feira antiga
Feira antiga (Foto: João Reis Anastácio – 1928)

Em 1869, como corressem rumores insistentes que ia ser extinto o concelho de Oliveira do Bairro, o que efectivamente sucedeu em 21-11-1895, reuniu o povo desta freguesia conjuntamente com a Junta, ficando resolvido pedir a Sua Majestade que esta freguesia fosse anexada ao concelho de Aveiro, o que realmente sucedeu, em 4-12-1872. Esta freguesia pertenceu ao concelho de Aveiro até 13-1-1898, data em que foi restaurado o concelho de Oliveira do Bairro. Pertenceu esta freguesia à Comarca de Anadia até 4-12-1872, passando nesta data para a Comarca de Aveiro, a que ainda hoje pertence.Diz a tradição que, já na segunda metade do século XVIII, este agregado populacional lançou a ideia da sua emancipação da freguesia mãe – Soza – sendo o óbice principal para esse fim, por parte dos poderes constituídos, a ausência de rendimentos para a sustentação do Culto. E foi assim que um benemérito desta freguesia, Manuel de Oliveira, e sua esposa legaram todos os seus bens à corporação de S. Pedro, erecta no lugar de Vila Nova com o encargo da manutenção das despesas do Culto, inclusivamente com a obrigatoriedade de todos os anos fazer a festa ao Orago da freguesia – S. Pedro. Foi esta corporação que há mais de cem anos criou e explorou o mercado mensal no dia 29 de cada mês.

A Junta de Freguesia de então, como não tinha outros rendimentos, a não ser os resultantes dos covatos, colectava a confraria de S. Pedro nas importâncias disponíveis por aquela para a manutenção do Culto e isto ao abrigo do artigo 324 do Código Administrativo então em vigor.

Em Janeiro de 1871, foi superiormente extinta a Confraria de S. Pedro por ilegal, sendo a Junta de Freguesia incumbida superiormente de administrar todos os rendimentos da dita Confraria e com os mesmos encargos que àquela tinham sido legados pelo testamento. Em 1869 começou a funcionar a primeira Escola Primária nesta freguesia, sendo o seu primeiro Professor o Reverendo Joaquim Rodrigues de Seabra. Em 1885 foi construído pela Junta o cemitério desta freguesia. Em 12 de Janeiro foi criada a primeira feira dos 12 e foi nesta mesma data que os dois mercados, 12 e 29, começaram a ser frequentados tanto por gado suíno como bovino (1).

Festa e procissão
Dia de festa e procissão. (Foto: João Reis Anastácio – 1928)

Em 1912, a comissão concelhia de administração dos bens da igreja, e por ordem da comissão central da Lei de Separação, pretendeu apoderar-se dos bens e rendimentos que a Junta nessa data possuía e administrava. A Junta protestou contra esta usurpação e por despacho de Sua Excelência o Ministro da Justiça, como consta do ofício emanado daquele Ministério de 29 de Novembro de 1912 (Parecer n.º 690, sob o n.º 3346) foi esta Junta confirmada na posse dos citados bens e administração de todos os seus rendimentos.

Em 1914, como o terreno então existente para os mercados já era deficiente, a Junta comprou uma parcela de terreno contígua à feira dos cereais. Em 1916, em virtude do desmoronamento da torre da actual igreja, a Junta comprou um pedaço de terreno para o adro e procedeu à reconstrução da dita torre. Em 1919, como o cemitério se tornasse pequeno em virtude do aumento crescente da população da freguesia, a Junta procedeu ao seu primeiro alargamento.

Com o advento da Revolução Nacional (1926), não ficou esta freguesia insensível à onda de melhoramentos que, de então para cá, têm coberto Portugal de lés a lés e assim, em 1928, comprou a Junta o terreno onde hoje se encontram edificadas as Escolas Primárias, o edifício dos Correios e telégrafos e a sua Sede.

Apesar de a Junta de então pretender, primeiro, construir o edifício das Escolas, teve de dar prioridade à construção do edifício dos Correios, pois que esses serviços funcionavam em casa arrendada e nas piores condições e a Direcção Geral dos Correios e Telégrafos exigiu que para a manutenção daqueles serviços na freguesa fosse aqui construído um edifício próprio, o que a Junta fez em 1929. Em 1930 deu, porém, início à construção, que se prolongou por três anos, devido à sumptuosidade do edifício das Escolas, com todas as suas dependências, que ficou sendo, naquele tempo e para o efeito, o melhor Edifício Escolar do Concelho e um dos melhores do distrito.

Prosseguindo na sua obra de melhoramentos e saneamento da freguesia e, como tanto a feira do gado suíno como a do gado bovino se realizavam no centro da povoação, comprou, em 1933, a Junta terreno em local próprio para a feira do gado suíno e em 1936 para a feira do gado bovino.

Em 1934 procedeu a Junta à captação de águas e construção de lavadouros, com seu respectivo coberto de zinco da fonte da Palhaça. Em 1935 e 36, comprou a Junta terreno para s coradouros da fonte dos Carregais procedendo também à captação de águas e à construção de lavadouros com o seu respectivo coberto de zinco. Ainda em 1935 e 36, para evitar as curvas e contra-curvas existentes na desembocadura da estrada do Rebolo, procedeu a Junta à compra de terreno para uma nova estrada e ao seu respectivo empedramento.

Em 1936 procede ainda a Junta à compra de terreno para o segundo alargamento do cemitério, tendo este alargamento sido feito para Nascente do cemitério primitivo, pois que o primeiro alargamento foi para Poente.

Em 1937, com o auxílio da Câmara Municipal, procede a Junta à electrificação da freguesia, construindo por sua conta a cabine e fornecendo todos os postes, posteletes e consolas e a mão de obra de todo o pessoal auxiliar para a mesma electrificação.

Em 1938 e 39 procede à construção da fonte e lavadouros do Albergue e à construção dos muros e terraplanagem do cemitério novo, ficando este concluído em Dezembro de 1940. Em 1941 constrói a Junta a sua Sede. Em 1942 e 43 procede à cobertura dos lavadouros do Albergue e à construção dos lavadouros de Vila Nova, do Bebe-e-Vai-te, com as suas respectivas coberturas.

Em 1947 faz a reconstrução a maquedame dum troço da estrada da Pedreira e compra em Vila Nova um edifício para nele instalar o Pároco da freguesia, em virtude da dificuldade que existia de se conseguir, por arrendamento, casa apropriada para aquele fim. Em 1948, em comparticipação com a Câmara Municipal, procede à reconstrução da estrada do Arieiro à Azurveira. Em 1948, 49 e 50 subsidia a Igreja para a construção dum salão Paroquial e de vários outros melhoramentos e reparações na mesma.

Como as barracas existentes na feira se tornassem inestéticas e parte delas ameaçasse ruir, despendendo a Junta todos os anos uma verba considerável na sua reparação, desde há muito que se impunha a sua demolição, o que se fez em 1949. Neste mesmo ano foi construído pela Junta no largo da Feira um coreto, tendo subjacente quatro compartimentos e suprajacente um depósito de água que abastece três fontenários, encimado este depósito por uma estátua ao Padroeiro da freguesia, S. Pedro. Anexo a este “Monumento” foi construído um poço que alimenta aquele depósito de água.

Em 1953 constrói a Junta uma fonte na Chousa com os seus respectivos lavadouros.
Como depois do alargamento do cemitério a capela antiga nele existente ficasse em local inestético, constrói a Junta em 1954-55 uma nova Capela e procede ao ajardinamento da parte do mesmo cemitério destinado à construção de capelas particulares, montando também uma rede de canalização em todo o cemitério, não só para rega do mesmo como para limpeza das campas.Em 1955 procede à arborização do Largo da Feira, pois que aquele local, depois do desaparecimento das barracas, ficou com um aspecto árido. Neste mesmo ano procede à grande reparação na residência Paroquial. Em 1956 constrói a betuminoso a estrada ao Sul do Largo da Feira e dá um novo aspecto a este Largo, não só rodeando-o com um lancil de cimento, como ainda orientando as barracas móveis nos dias de feira no sentido Norte-Sul”.


(Texto de Dr. Manuel Ferreira Rebolo, “Junta de Freguesia da Palhaça”, Jornal da Bairrada, Ano VII, n.º 165, 17.08.1957).
(1) A primeira feira dos 12 foi criada em Janeiro de 1903. Ver O Nauta, 18.01.1906.

As duas Igrejas da Palhaça — texto do padre Manuel de Oliveira

Desde que aqui cheguei – nos primeiros dias de 1947 – até hoje, muitas vezes tenho ouvido contar uma história, que não julgo exacta: – que o lugar de Vila Nova, desta freguesia da Palhaça, conseguiu a igreja paroquial dentro dos seus limites, por ter vencido o lugar da Tojeira por um voto. Tinha aquele mais uma casa do que este.

Não concordo com esta história. É, no entanto, natural que, lá pelos meados do século dezassete, o aglomerado populacional, que daria margem no século dezanove à criação desta freguesia, se estendesse ao longo do caminho que de Águeda conduzia à feira da Palhaça, não tendo importância populacional nesse tempo os lugares do Arieiro e Albergue, que talvez nem sequer existissem.

O que é histórico é que, em data que desconhecemos, se construiu a capelinha de S. Pedro, no local onde hoje se encontra a actual igreja, sendo esta um produto de sucessivas transformações daquela.

Segundo lápide, que se pode ler na parede norte da capela-mor, em 1804 foi esta freguesia desanexada da Matriz de Soza. Uma vez criada a freguesia, surgiu o problema da igreja, pois as dimensões da capela de S. Pedro não serviam a paroquial E optou-se pelo mais fácil: – aumentar o corpo da capela, o que se realizou no ano de 1831. Porém, o problema não estava resolvido satisfatoriamente. A igreja continuava pequena. Em 1837 é lançada a primeira pedra para a continuação da actual capela-mór. E assim ficou a igreja da Palhaça até aos nossos dias, com excepção da torre, que, de velha, ruiu até aos alicerces em 1914, sendo a actual construída em 1917 a expensas da Junta de Freguesia.

Partindo duma capela feita com dimensões arquitectonicamente bem proporcionadas, chegou-se a uma igreja sem estética e sem comodidade, por mais reparações e melhoramentos que desde então se lhe tenham feito. Temos uma igreja tão desproporcional, que para seis metros e vinte centímetros de largura há um comprimento de vinte e oito metros.
Entretanto, a divisão matricial das freguesias levava os limites da Paróquia de Oiã até às portas de Vila Nova, a cerca de quinhentos metros da sua igreja. A freguesia forçadamente cresce para poente, aparecendo os lugares do Arieiro e Albergue e cobrindo-se de casas a rua que une a igreja ao Largo de S. Pedro, o centro da freguesia. E, em fins do século passado, volta a pôr-se o problema da igreja, que se reconhece não estar localizada e não ter condições decentes para a boa celebração dos actos do culto. E o problema toma tal acuidade – segundo informações colhidas – um dos antepassados da família Capão, do Arieiro, oferece assentamento e material suficiente para cobrir a nova igreja. Mercê de circunstâncias várias, este benemérito não consegue ver o seu sonho realizado e, reagindo, mandou construir, no Arieiro, em propriedade sua, a Capela de Nossa Senhora do Rosário, que enriquece com alfaias necessárias ao culto e mantém durante anos um capelão privativo, tendo alcançado da Santa Sé o privilégio de conservar permanentemente o Santíssimo no referido templo.

Somos informados que mais tarde um outro senhor, da família Martins, igualmente do Arieiro, – outra casa rica da freguesia – sentindo o mesmo problema da igreja, comprou o terreno e casas sitas no lado norte do cemitério, com o fim de as doar para assentamento da nova igreja. Mas o sonho não passou outra vez de sonho e o bom cristão morreu sem poder dar a sua terra à igreja.

Mas não se deixou de pensar na nova igreja. E assim, segundo documentos em nosso poder, em 1943 há uma sessão em que o pároco e mais povo deliberou dar novos passos para a dita construção. E ainda desta vez o sonho não passou de sonho…

E já no nosso tempo – 1947 – nova tentativa se fez, chegando uma comissão a consultar todos os chefes de família sobre o quantitativo que cada um podia dar. E mais uma vez o sonho não passou de sonho…

Desde então, tendo as autoridades locais ao tempo contra nós, abandonou-se totalmente o sonho da nova igreja, e lançou-se ombros à reforma completa da velha, para que nem tudo se perdesse. Até que, em Novembro de 1955, numa tarde de sol de inverno, recebemos a visita do Sr. Bispo Auxiliar da Diocese, que, juntamente com o Sr. Director da J. A. de Estradas, vinha estudar o corte do adro da velha igreja. Falando-se da nova, diz o Sr. Bispo: – Tente fazê-la; não gaste mais um centavo nesta. E, ao nosso desalento, pelas tentativas frustradas, responde o Sr. Director: – Tente mais uma vez…

E tentou-se… e esperamos vencer… e jurámos tornar realidade o sonho começado a sonhar há mais de sessenta anos! É longa a caminhada… é duro o calvário de preocupações… de desalentos… de noites mal dormidas… de incompreensões deste ou daquele que tinha obrigação de também carregar com a cruz. Mas Deus está connosco. A casa é d’Ele e para Ele. E a quase totalidade dos nossos paroquianos sente que este problema é o seu problema.

Dentro de poucos dias, a grande construção – a maior do concelho nos últimos anos – começará a surgir da terra – no centro da freguesia, pertinho dos nossos mortos, para melhor por eles rezarmos, a dois passos do coração da freguesia da Palhaça, que é o Largo de S. Pedro.

Que todos os Palhacenses, que amam a sua terra, ganhando o pão com o suor do seu rosto, cá, na América, no Brasil, na Venezuela, no Canadá ou na África, – que todos, de fé católica ou não, ajudem esta grande obra, que deve ser na Palhaça a obra do século XX.

De todos precisamos, pois o orçamento ronda os 1 800 contos.
Com todos conta a comissão e o vosso
PRIOR


(Texto publicado por padre Manuel de Oliveira no Jornal da Bairrada, Ano VII, n.º 165, 17.08.1957, pp. 1 e 4).

Achegas para a história da Palhaça: o toque dos sinos

Durante a Primeira República muitas polémicas foram ateadas por causa do toque dos sinos, mesmo em freguesias mais recônditas e nos lugares mais pacatos. O badalo era o constante pomo de discórdia entre católicos e não católicos.

Em tempos de eriçado anticlericalismo o toque dos sinos era considerado, por muitos, como a mais ruidosa das manifestações do culto externo. Outros, cujas vidas eram ritmadas por esse toque, teimavam em manter a tradição, já que na sabedoria popular a voz dos sinos era a voz de Deus. Havia mesmo quem acreditasse que afugentava os diabos e as trovoadas.

O curioso episódio que a seguir se relata passou-se na Palhaça e não deixou de ser aproveitado na campanha anti-religiosa que grassava um pouco por todo o lado.

No lugar de Vila Nova, quando foi conhecida a notícia da morte do Papa Pio X, o sacristão Joaquim Francisco Caniçais Júnior subiu à torre e começou a tocar os sinos, em sinal de sentimento. Como estava só, tinha de deixar um para tocar o outro. Isso obrigava-o a passar repetidas vezes por um buraco profundo, situado no centro da torre e que permitia o movimento dos pesos do relógio. Lá se foi equilibrando durante algum tempo, fazendo nos sinos uma “barulheira infrene”.

A certa altura, porém, foi colhido pelo bordo de um dos sinos que o atirou para o tal buraco, onde ficou como morto, de cabeça para baixo. Quando dali foi retirado apresentava uma profunda brecha na cabeça. O mais grave é que terá ficado privado das suas capacidades mentais. Ao comentar jocosamente esta notícia, o correspondente do jornal de Anadia Bairrada Livre acrescentava: “E assim teve a recompensa do seu piedoso acto! Ou o papa não era santo ou a ingratidão não é defeito exclusivo dos pobres mortais” (1)


(1) “Um desastre”, Bairrada Livre, n.º 195, 25.09.1914, p. 3. Ver, também, Nuno Rosmaninho, “O anticlericalismo na província: um ferreiro da Bairrada”, Actas do Colóquio O Anticlericalismo Português: História e Discurso, Aveiro, Universidade de Aveiro, 2002, pp. 307-326. Publicado também em Aqua Nativa, Anadia, n.º 21, Dezembro de 2001, pp. 27-38.

Conto de Natal

Conto do Natal1Era o lugar ameno, a fonte clara. O coradouro, ladeado de vergueiros e os tanques de água fresca. Eram os cômoros altos. Era o regato manso. E o pinhal mais acima, bordando o horizonte. O pinhal onde Tiago apanhava tufos de musgo, verde-claros, para o presépio.
Era isso que fazia todos os anos. Sempre no dia vinte e quatro. E logo pela manhã, indiferente aos rigores certos de Dezembro. A tarde era o tempo de que dispunha para fazer o presépio. Uma tarde especial que o fazia arder de impaciência, à espera da noite que a sua imaginação fértil povoava de segredos e mistérios.

Para merecer os favores do Pai Natal, Tiago recriava o presépio com todos os elementos, manjedoura e tudo, tal como aprendera na catequese. Às vezes faltava um rei mago, um pastor ou uma ovelha, partidos em traquinices cúmplices com outros meninos de riso largo. Devolvia-lhos a mãe, na feira que antecedia o Natal, para que na altura própria nada faltasse. Figuras toscas e ingénuas, um tanto garridas, a exalar aquele cheiro forte, característico, que se desprende das argilas bafejadas.

A noite, fria e espessa, reunia a família no ritual da ceia farta. Era o bacalhau tradicional, com couves e batatas. Era a broa quente, o vinho novo. Eram os figos, as nozes, rabanadas e castanhas no borralho. E a fogueira de labaredas altas, amornando os corpos, inundando tudo de luz e aconchego.

As conversas à mesa, arrastadas e suaves, não as entendia o Tiago. Mas nem por isso deixava de estar feliz. O presépio, obra inteiramente sua, lá estava, acabado a tempo e lindo de se ver. O que era preciso era manter-se acordado. Largando a mesa, irrequieto e agitado, apartou-se dos demais indo sentar-se ao canto da lareira. Para se distrair brincava com as agulhas dos pinheiros, construindo arcos e flechas a que logo chegava o lume. Ou então separava, com a tenaz, as castanhas da fogueira.

Lá fora um vento gélido e agreste soprava forte, acentuando a sonolência que se desprendia da lareira. Com o avançar das horas, as vozes pareciam chegar até Tiago vindas de longe, distantes, sumidas e imperceptíveis. A dada altura deixou de as ouvir e adormeceu, adiando por mais um ano a conversa aprazada com o Pai Natal. Ainda não era meia-noite, hora a que começava a missa do galo.

Sem o saber, iria falar com ele a noite toda. Em sonhos e fantasias se realizou o desejo de Tiago, adiado com a experiência falhada da noite anterior. Bem pela manhã, ainda o relógio da torre não havia badalado as sete e já ele se levantava de um pulo, descendo dois a dois os degraus da escada de madeira que terminava junto à cozinha.

Ao entrar, puxaram-se-lhe os olhos para a lareira. Qualquer coisa cintilou dentro dele! Lá estavam, a transbordar dos sapatos pequenos, os brinquedos que em sonhos pedira ao Pai Natal. Esses e outros. Embrulhados no celofane garrido do contentamento. Atados com o laçarote seguro do amor verdadeiro, que Tiago julgava distribuído em iguais rações de afecto por todos os meninos do mundo.

Julgava. Hoje sabe que não é assim. Já não vê as coisas com as lentes finas da fantasia. Usa as lentes mais grossas da maioridade. Com elas vê crianças de existência curta mas já viúva de alegrias. Meninos sem riso largo, que o não são na altura certa, colando o narizito às montras e os olhos magoados a ilusórias abundâncias. E sabe de homens sem ceia farta e sem ceia escassa, comendo em pratos de nada e de coisa nenhuma. Conhece outros que arrotam em hossanas de gozo caridade por todos os poros. Sempre a horas certas, no ritual da hipocrisia anualmente renovada.

Sabe disso tudo. E às vezes apetece-lhe, numa raiva surda, dizer a todos os meninos que o Pai Natal não existe. Ou que existe só para alguns, fingindo os que sabem disso que ele existe para todos. Apetece-lhe dizer mas não diz. Não vê nisso a mais leve ponta de hipocrisia, pois não se pode cortar o fio do sonho. Mentir por amor é que é falar verdade.

Era o lugar ameno, a fonte clara, o regato manso.

Era? É!


(Texto com ligeiras alterações ao que foi publicado no semanário aveirense Litoral, edição de 19.12.1986, pp. 1-2. Memória difusa  do autor sobre a véspera de Natal no final dos anos 50, na Palhaça do século XX. O cenário descrito no início do conto é a fonte dos Carregais).

 

Memória de António Capão (1930-2012)

António CapãoAcaba de desaparecer do nosso convívio um dos nomes mais respeitados no panorama cultural bairradino e na própria região de Aveiro. Nunca o tive como professor, mas quem foi tocado por esse dom costuma resumir o seu labor em duas ou três palavras: dedicação, honestidade e competência. Ingredientes que se refletem na obra de quem sempre permaneceu fiel ao chão que o viu nascer. Inestimável património que nos legou e que continua à espera de quem o valorize como merece. Lendo-o, acarinhando-o e discutindo-o como contributo vivo que é.

António Capão conhecia de sobejo a vida dura do povo da sua aldeia: “O antes foi pobre, foi triste e apagado; a nossa geração foi uma geração de sacrificados, de idealistas e de lutadores por alguma coisa nova, fosse o que fosse”(1).  Mas essa aldeia, como tantas outras, para quem está atento e não lança sobre ela o olhar superficial e tantas vezes sobranceiro, é um inesgotável reservatório de lendas e velhas tradições, onde a harmonia com a mãe natureza humaniza as relações de quem não vive ainda sufocado pelos ditames da razão técnica. Pela Palhaça nutria um amor entranhado, profundo e orgânico. Entre outros assinaláveis serviços, está indelevelmente ligado à investigação histórica da sua terra, de que foi, conjuntamente com Manuel Simões Alberto, um dos cabouqueiros e um extremado guardião dos seus valores e das suas gentes.

Nasceu, viveu e foi influenciado por um tempo que praticamente já não existe. Tempo de outra convivência social, de diferentes formas de religiosidade. De curandeiros, mezinhas e superstições. Da chiadeira dos carros de bois e do trabalho árduo nas terras de pão. Dos crimes por causa dos marcos na disputa por um palmo de terra. Das tecedeiras e dos teares, das atafonas e das azenhas, das tremoceiras, tanoeiros, ferradores e moleiros. Dos fornos de cal. Da rega dos campos, com a nora a gemer vergada ao peso dos alcatruzes. Dos pipos cheios e do cheiro a mosto nas adegas. Tempo também de usos e costumes que ajudavam a sacudir o marasmo de um ambiente puramente rural: a “serração da velha”, os bailes da “mi-careme”, a prova do vinho novo a onze de novembro, pelo S. Martinho, a festa do galo, o folar da Páscoa, a massa a levedar na gamela, a cruz na massa para proteger do mau olhado, a broa a sair do forno, a lareira a crepitar amornando corpos e  almas.

De muitas destas coisas me falou o Dr. Capão nas três únicas mas demoradas visitas que fiz a sua casa, a partir de 2003. E também falou de raspão sobre coleções de moedas, conchas marinhas e selos que eu trocava com o filho José Armando, na camioneta da carreira que nos conduzia até Aveiro. Muitas tradições populares e levantamentos etnográficos e linguísticos foram por ele amorosamente registados para memória futura, para que todo esse rico património não se esboroasse.

Alguns desses trabalhos ajudam a manter ou a recriar o espírito do lugar, a sua atmosfera própria e a história das suas gentes. Para dar alguns exemplos, e só no que diz respeito à terra que o viu nascer, basta citar o extenso texto “Memórias da Palhaça”, (2) o jogo do Bichoiro, que praticou em menino e posteriormente registou por lhe reconhecer “grande valor sob o ponto de vista da motricidade, da destreza e da habilidade”(3). Ou os costumes familiares do seu tempo, em que os pais, para lá das orações, ensinavam às crianças as primeiras habilidades de apreensão mais fácil (4). Ou ainda o minucioso estudo elaborado a partir do manuscrito sobre o Auto dos Reis Magos, que Manuel Simões da Silva (Manuel Tomé) em boa hora registou. Sobre o cortejo dos Reis, espetáculo fortemente entranhado na cultura popular local e que se realizou pela primeira vez na freguesia da Palhaça em 6 de janeiro de 1925 (5)  diria António Capão: “Não perde a terra a originalidade se os seus usos, costumes e tradições forem publicadas, antes ganha, pois que passa a ser mais conhecida”(6).

Para lá da Palhaça, António Capão também fez incidir as suas preocupações filológicas, etnográficas e históricas no concelho de Oliveira do Bairro, a quem dedicou a Carta de Foral, um estudo das leis antigas de outorga de direitos e deveres, bem como um Roteiro Religioso e Cultural onde desfilam as relíquias que a população do concelho acarinha (igrejas, imagens icónicas, capelas públicas e particulares, ermidas, alminhas e cruzeiros).

Roteiro

À região dos pâmpanos dedicou Relance histórico-linguístico sobre a região da Bairrada – Influências Arábicas, onde procura mostrar que os árabes e a cultura muçulmana deixaram marcas no território e no vocabulário do nosso quotidiano, um legado que continua vivo. Deu também à estampa Os Moinhos da nossa Região. Sua vida e decadência, um meticuloso trabalho de campo sobre os instrumento e maquinismos de moagem dos cereais, muitos deles praticamente desativados ou em ruina lenta apesar da importante função social que cumpriram em tempos mais recuados. Sendo uma revisitação da infância e um marco na memória coletiva, o livro é também “um belo poema com que a Bairrada poderá, desde agora, adornar-se, como se de mais uma joia o seu dote fosse acrescido”(7).

Ao distrito de Aveiro, em cuja cidade exerceu funções docentes e chegou a residir quando regressou de Moçambique, ofereceu Relíquias da Tecelagem, estudo de  etnografia de uma atividade artesanal com os dias contados. Havia quem chegasse a demorar dias para pôr um tear a funcionar, o que levava os antigos a dizer que um tear aparelhado é como um burro albardado.

MoinhosPublicou também Cultura Popular em Terras de Aveiro (Etnografia e Literatura), onde disserta sobre literatura e cultura popular, aborda os trabalhos agrícolas, dá conta dos processos de moagem, explica os meios de transporte na atividade do campo, analisa os divertimentos, costumes e crendices da população. Fá-lo com a vantagem de quem parte para a investigação “de bornal já bastante bem aviado, porque nascido com as mãos na eira, com os pés no quintal, com os olhos nos moinhos, nas atafonas, em tanta coisa [pois] não admira que alguém o vá encontrar ainda hoje com as mãos na eira a debulhar uns feijões, com os pés nas árvores a chegar a fruta, com a enxada na mão a guiar a água”(8).

Num tempo em que as elites de um Portugal acentuadamente rural manifestavam indiferença ou até desprezo pelas formas de vida rústica, António Capão soube intuir que as tradições seculares se perderiam de forma irremediável se tal património não fosse defendido, registado e colocado à disposição das gerações futuras. Esse um dos seus méritos. A forma como acarinhou o Museu de S. Pedro da Palhaça, de que foi diretor, e o conhecimento seguro com que explicava, com evidente deleite, a utilidade dos arados e das charruas, dos moinhos e das azenhas, atestam bem o saber e a dedicação próprias do especialista do património e da sua luta permanente contra a incúria e a ignorância.Cultura Terras Aveiro

Para António Capão o que sempre foi estável e firme foi a crença em valores imutáveis como a religião, que tenderia a considerar um dos meios mais poderosos de garantir a ordem e a coesão social, erigindo-a como uma espécie de barreira contra a imoralidade. A dissolução dos valores morais conduziria à degenerescência e à anarquia. A política pura e dura pouco o interessava e por isso dela se distanciou sempre: “De política, só o que consideramos importante, como resposta aos valores do homem cristão projectados na própria família e aos verdadeiros valores da Pátria, nos interessa”(9).

É em nome desses valores que no primeiro texto com que no remoto ano de 1952 inicia a colaboração no Jornal da Bairrada denuncia o desajustamento entre o mundo material e moral dos habitantes da sua aldeia: “Por vezes, um ou outro, que a fortuna acarinhou, vai afirmando que o dinheiro é que vai dando o polimento (…). E nota-se um absoluto contraste entre a vida mundana e a vida religiosa (…). A Palhaça é uma freguesia essencialmente católica; e disto a conclusão é péssima: muita gente à missa com hipocrisia; muita gente a comungar em sacrilégio; muita gente a confessar-se dos erros dos outros, deixando os seus em atraso”(10). Verdadeiras pedradas no charco da hipocrisia reinante. Palavras avisadas as deste então jovem estudante liceal, frontais e desassombradas, como que a dizer-nos que o homem não vale pelo que tem mas sobretudo pelo que é e pelo esforço que faz para se tornar naquilo que será.

Terá sido ainda em coerência com esses valores que quando conclui a licenciatura em Filologia Românica, em 1959, recusa qualquer tipo de festejos – como era habitual nessa época, com toda a aldeia a participar –  por se encontrar de luto recente devido ao falecimento do pai. Apenas algum tempo depois assentiu que um grupo de amigos lhe oferecesse um jantar no salão da Junta de Freguesia. Manifestação ainda assim singela, a pedido do homenageado, precedida de missa em ação de graças (11).

António Capão amou e divulgou tão entranhadamente a sua terra e a própria Bairrada que estas não deixarão, mais cedo ou mais tarde,  através dos seus poderes públicos, de o homenagear como merece. Para que o seu nome honrado não desapareça da memória coletiva. Podem dar-lhe um nome de rua, de uma escola, biblioteca ou até de um Museu da Região, que defendeu em 1989 e do qual traçou as linhas orientadoras no 2.º Encontro de Escritores e Jornalistas da Bairrada.

Eis o seu plano: “Cada aldeia deveria possuir um pequeno museu englobando todas as atividades que lhe são inerentes e cujas peças nele guardadas deveriam ser estudadas e devidamente catalogadas; cada sede de Concelho deveria possuir também um museu, mas representativo de todas as aldeias que lhe pertencem e de acordo com os vectores incidentes sobre as suas actividades características; em zona a estudar, dentro da própria região, com características próprias bem definidas, surgiria então o Museu da Região onde estariam representados todos os Concelhos dentro dos aspectos considerados mais representativos, em estreita ligação com todas as suas povoações”(12). A Bairrada e a Etnografia

O Dr. Capão sentia necessidade de apartar-se dos tumultos da vida social e do que sentia ser a sua crescente desumanização, sem contudo cortar as amarras que o ligavam ao mundo. Recolhia-se em casa (para dizer melhor: no lar, que é coisa bem diferente) envolto nalguma solidão, sobretudo após o desaparecimento físico de D. Armanda, a sua esposa. Era aí que como uma harpa sensível – um pouco à semelhança da harpa eólica que os gregos penduravam nas árvores – ia  registando as próprias emoções e também o sentir e o viver dos outros, porque ver os outros com os olhos da imaginação é também, de certo modo, um dom do poeta.

Tal como acontece com muitos homens de cultura, o Dr. Capão sentia não ser profeta na sua terra, o que aliado a algum sentimento de injustiça o tornava uma natureza com propensão para o melindre. Talvez por isso mostrasse em público um semblante carregado e por vezes um ar sisudo. Mas em privado, no espaço acolhedor da sua casa, como que se transfigurava: era afável e cordato, de uma forma quase tocante. Abria-se como um livro vivo, sempre pronto a mostrar as pérolas de cultura que ciosamente ia acumulando e lhe aqueciam a alma sensível.

É longa a folha de serviços prestados à cultura da região e do país. Fica mais pobre a cultura quando um homem com estes méritos parte do mundo dos vivos. Bem merecia estar ainda entre nós quem, há pouco mais de um ano, prometia – ultrapassado já o batente dos oitenta – continuar “a contribuir para o prestígio da Academia” (referia-se à Academia Portuguesa de História, para a qual foi eleito membro em Junho de 2011). A ceifeira impiedosa não permitiu que nos desse a conhecer o muito que ainda tinha para legar. Escrever e registar sempre – pouco ou muito – era essa a sua divisa.

Em 2010, de forma algo premonitória, o Dr. Capão fala-nos do destino a dar ao “variadíssimo espólio” da sua biblioteca particular, que pacientemente foi construindo e considera “precioso”, por ter obedecido a “critérios muito próprios de selecção”. E deixa no ar a pergunta, num tom grave e que se adivinha angustiado: “Que vai ser de todo este papel, cheio de belíssimas lições, pleno de riquíssimos ensinamentos, quando o nosso sangue arrefecer, quando os nossos neurónios deixarem de trabalhar e nós passarmos desta vida para o Além que nos espera inexoravelmente?”(13).

Que eu saiba ninguém respondeu a tão tocante gemido cultural. Onde a resposta da Câmara Municipal do nosso concelho? Onde a de qualquer outra instituição com pretensões de divulgação cultural? Quem respondeu com afeto confiado ao seu apelo? Será que todo esse espólio, com eventuais manuscritos inéditos, vai perder a unidade essencial que o deve caraterizar e fragmentar-se nas mãos dos seus descendentes? Ou vai, por incúria nossa, ser depositado fora do concelho como aconteceu ao de padre Acúrcio Correia da Silva?

Mudaram os tempos e os hábitos. Cronos é poderoso e implacável, ao ponto de criar e devorar os próprios filhos. Mas o empenho de António Capão em preservar os valores do passado, por ver neles o cimento aglutinador do presente, foi decisivo para resistir ao processo de descaraterização de lugares e culturas ancestrais. A fidelidade a esses princípios prolongou-se na entrega radical aos trabalhos que produziu e nos deu a conhecer.

Ignoro se as pessoas da minha terra estão conscientes de que o Dr. António Capão foi até hoje – por tudo aquilo que publicou e pelas palestras e conferências que produziu – o seu mais genuíno representante cultural, o filho mais dotado que o ventre campestre e acentuadamente rural da Palhaça do seu tempo gerou até hoje. Se há quem considere excessivo este realce, que diga então: que outra figura da sua geração merece na Palhaça maior destaque? Quem, melhor do que ele, soube promover o diálogo entre tradição (transmissão, dádiva, herança recebida do passado) e modernidade (o que se acrescenta à herança recebida, o que criamos de novo, inovando e acrescentado)?

António Capão é um archote da cultura bairradina que não podemos deixar extinguir. Agora que a morte o obrigou a pagar-lhe o seu tributo, é imperativo que a marcha inexorável do tempo não cale a voz de um homem ouro de lei, cujo nome honrado a Palhaça, o concelho de Oliveira do Bairro e a região da Bairrada devem registar para todo o sempre. Não deixemos que uma hera de silêncio comece a enroscar-se dolorosamente em torno do seu nome.


 

[1] Armor Pires Mota, “Entrevista com António Capão”, Terra Verde – Suplemento mensal do Jornal da Bairrada, n.º 3, 05.07.1991.

[2] António Capão, “Memórias da Palhaça”, in Freguesia da Palhaça. Contribuição para a sua monografia. Publicação do Centro Paroquial da Palhaça, 1977, pp. 7-31.

[3] Idem, “A propedêutica infantil e o jogo do Bichoiro”, Boletim da ADERAV, n.º 5, 1981.

4] Idem, “”A família aldeã e a cultura infantil”, Boletim da ADERAV, n.º 23, 1984.

[5] O Democrata, 17.01.1925.

[6] António Tavares Simões Capão, “As ‘Janeiras’, as ‘Pastoras’ e os ‘Reis’”, in Aveiro e o seu Distrito, n.º 4, 1967, p. 60.

[7] Idália Sá Chaves, a propósito do livro ”Os Moinhos na Nossa Região”, Jornal da Bairrada, 13.09.1995, p. 10.

[8] Armor Pires Mota, “António Capão: Cultura Popular em Terras de Aveiro”, Jornal da Bairrada, 08.09.1993, p. 8.

[9] Carta de Foral de Oliveira do Bairro, 1991, p. 10.

[10] António Capão, “Avante com o progresso moral”, Jornal da Bairrada, n.º 39, 15.08.1952.

[11] Jornal da Bairrada, n.º 226, 02.01.1960.

[12] Armor Pires Mota, “Entrevista com António Capão”, Terra Verde – Suplemento mensal do Jornal da Bairrada, n.º 3, 05.07.1991.

[13] António Capão, “Livros Velhos”, Jornal da Bairrada, 29.07.2010, p.28.

Um adeus ao Kevin, mas não à juventude

Ainda consigo ver um sorriso tímido mas desarmante a bailar-te nos lábios. E apetece-me eternizar o instante. Era assim que aparecias cá por casa. Primeiro, acompanhado da tua Mãe. Mais tarde, já adolescente, algumas vezes sozinho.

Trazias na mão o inevitável frasquinho de compota – tantas vezes doce de uva – que a Graça preparava e de forma generosa distribuía – e ainda distribui – pelos outros. No regresso, levavas alguns livros de banda desenhada que eu comprava para o André. Naquele tempo, seguramente o Asterix e o Tintim. O Lucky Luke – o cowboy que dispara mais rápido que a própria sombra – os Dalton e alguns outros só apareceram por cá mais tarde. Lembras-te?

Digo-to agora, com um irremediável instante de atraso: sempre simpatizei muito contigo. E sinto o remorso do que ficou por dizer. Por isso não devias ter partido assim, Kevin. Se nenhuma idade é boa para morrer, a partida de alguém de quem se gosta é sempre uma tristeza. Com a tua idade, as circunstâncias em que partiste não deixam ninguém indiferente.

Não tive contigo as conversas, nem o convívio, nem sequer a cumplicidade que costumam forjar as grandes amizades. Sempre são quarenta anos de diferença a separar-nos!  Mas não era difícl perceber que eras um miúdo porreiro e sensível, e que assim terás continuado a ser até ao sombrio e fatídico domingo passado.

Bem sei que a vida é uma passagem e que ignoramos o que nos espera do lado de lá, ao qual tu já pertences.  Mas a notícia de uma morte inesperada é sempre um grande desconforto. Por isso a sensação de vazio e de ausência que agora começa é mais amarga e difícil de suportar.

Como aplacar este desgosto que morde como um cão danado? A melhor forma que encontrei foi reparti-lo, colar esta dor à dor dos que te querem bem: pais, familiares e amigos certos, todos os que te deram um cuidado sem descanso, uma atenção sem intervalos.  E eram tantos hoje à tarde, a desaguar em lágrimas num lago de ternura e comoção à solta.

Regressei a casa, depois do derradeiro adeus nesta tarde tão agreste. Continuo sem coração para ver enterrar os amigos, mas lá fui, a custo, como um náufrago à procura de um porto de abrigo. A emoção vai passar mas a tristeza perdura. O tempo suaviza-a, mas não a apaga.

Olha Kevin: os livros que leste, manuseaste e tocaste de perto, continuam no mesmo sítio. De algum modo são uma marca tua e te continuam. Sei que não há palavras para exprimir o indizível, mas o que pretendi aqui foi isso mesmo: ressuscitar-te um pouco, ao menos com palavras.

Fico com pena de não teres aparecido nos últimos tempos. Não duvido que tinhas coisas mais interessantes para fazer, reclamadas pelos teus fogosos e verdejantes vinte e um anos. Mas olha que tenho por aqui umas bandas desenhadas, à Milo Manara, que ias apreciar. Fica para um dia destes. Prometido.

(05.02.2014)

Reorganização Administrativa Territorial Autárquica – IV (sobre as propostas de agregação de João Nuno Pedreiras)

 

1. Li recentemente, pela lavra duma pena bustuense, um estimulante texto com propostas de agregação de freguesias para o nosso concelho. Entre outros méritos o autor ousa arriscar, assume uma posição, avança com cenários concretos. João Nuno Pedreiras (JNP) é notoriamente pedagógico quando alerta para a necessidade de evitar “exacerbadas paixões bairristas”, quando lembra que “as fronteiras estão nas nossas cabeças”, ou quando refere que “os termos agregado-agregador são inapropriados pois sugerem a superioridade de uma freguesia em relação às demais”. É certo que não subscrevo tudo o que pensa ou diz, da mesma forma que ele próprio ou outros não estarão de acordo com o que tenho escrito sobre este assunto. São discordâncias normais em democracia, até porque se sabe que mesmo no interior dos partidos políticos há opiniões contraditórias sobre a utilidade de executar esta “reforma”.

A minha dificuldade em aderir a esta reorganização do território assenta no facto de não acreditar que ela possa ter êxito sem uma verdadeira reforma dos municípios. E também por me parecer que é perfeitamente voluntarista, já que os critérios técnicos convocados para reduzir ou agregar freguesias são quantitativos, assentam em valores puramente aritméticos. São estes critérios como poderiam ser outros, o que por si só transforma esta lei numa reforma falhada. Além do mais, sou contra formas de pensamento territorial produzidas centralmente, de cima para baixo. Acredito no envolvimento ativo dos agentes económicos e da sociedade civil, na partilha de responsabilidades e na contratualização entre atores públicos, privados e associativos.

Por isso mesmo não avancei com nenhum cenário de agregação. Discordo de uma lei que prevê, sem qualquer imposição – ao contrário do que faz para as freguesias – a fusão de municípios (artigo 16.º, da Lei 22/2012).  Como prémio de fusão é-lhes garantido um tratamento preferencial no acesso a linhas de crédito asseguradas pelo Estado, bem como a projetos de natureza diversa. Até o Fundo de Garantia Municipal é aumentado em 15% no município criado por fusão! Assim se premeia, na iniciativa dos outros, a “coragem” que o governo não teve para aplicar aos municípios a mesma receita coerciva que impõe às freguesias. É desta maneira que o governo se propõe tapar, com a altura moral que não tem, a pequenez da estatura que o vem caraterizando na condução deste processo. Como a vida nos ensina, é própria dos tíbios a subserviência para com os mais poderosos (neste caso os municípios) ao mesmo tempo que se lança mão da prepotência para com os mais frágeis (as freguesias).

Não é certamente por acaso que esta lei não é apadrinhada pela Associação Nacional dos Municípios Portugueses nem pela Associação Nacional de Freguesias. Por alguma razão as duas entidades não morrem de amores por esta reforma. Fazendo orelhas moucas a tudo isso e utilizando uma expressão em que os argumentos genuinamente democráticos são os que lá não estão, disse o ministro Miguel Relvas que “as freguesias ou caem a bem ou caem a mal”.  Para as freguesias não há liberdade de escolha. Já sobre as Câmaras Municipais – a joia da coroa do seu partido – não derramou o ministro a mesma catilinária. Pudera! Como certeiramente escreve o historiador Rui Ramos, “extinguir câmaras municipais é a mesma coisa que extinguir distritais e concelhias de partidos”.

Discordo pois de JNP – esperando não deturpar o seu pensamento –  sobretudo quando refere que esta “é uma realidade que temos que aceitar” ou quando diz que “a lei existe, é preciso refletir sobre a melhor forma de a aplicar”, acrescentando logo a seguir que “temos de aproveitar o problema que nos é colocado como gerador de novas oportunidades”. Parece-me uma posição demasiado conformista, não deixando espaço à contestação ou revisão de uma lei que ele próprio considera conter alguns aspectos negativos.

2. Embora esteja por provar que as freguesias de maior dimensão territorial e mais populosas estejam mais aptas a prestar aos cidadãos os serviços de que estes efetivamente precisam, prestemos atenção ao essencial, que são as sugestões de agregação que JNP esboça para o nosso concelho. Num primeiro momento e apoiado no princípio do equilíbrio, sugere a criação de uma freguesia “de dimensão considerável” no extremo poente do concelho, deixando de lado Oliveira do Bairro e Oiã que no seu entender “vivem bem com o seu tamanho”. E avança com três hipóteses: I) A união de Palhaça-Bustos-Mamarrosa (que deixa de fora o Troviscal); II) A união de Mamarrosa-Bustos-Troviscal (que deixa de fora a Palhaça); III) A união de Troviscal-Bustos-Palhaça (que deixa de fora a Mamarrosa).

Curioso é notar que nesta análise combinatória Bustos aparece sempre no meio das outras duas freguesia e assume perante elas uma efetiva centralidade. Nos cenários que nos são sugeridos Bustos é a única freguesia que nunca fica excluída. A proposta parece conter algumas fragilidades. Seguindo o raciocínio de JNP, estes arranjos convergem para a criação de uma freguesia de dimensão considerável, agregando freguesias pequenas para lhes dar escala. Mas se é assim, como se compreende que fique sempre uma freguesia de fora, com exceção de Bustos? A vingar qualquer destas propostas que destino estaria reservado à freguesia excluída? Seria agregada a Oiã ou a Oliveira do Bairro? Ou estaria condenada a definhar, a ficar isolada e sem hipótese de qualquer tipo de desenvolvimento? Para mim os resultados duma hipotética agregação devem assentar numa visão estratégica para o concelho que seja capaz de garantir a coesão territorial, situação que estas propostas parecem não contemplar ao não incluir na agregação uma das quatro freguesias mais pequenas do concelho.

É certo que JNP avança com um quarto cenário que tem o mérito de não excluir nenhuma das quatro freguesias mais pequenas. Acrescento que caso a agregação se torne inevitável este é porventura o que mais colhe a minha simpatia. Teríamos assim a união de Bustos-Palhaça-Troviscal-Mamarrosa. JNP aponta para que a sede seja em Bustos, o que só lhe fica bem, ou não fosse ele membro da respetiva Assembleia de Freguesia. Não nego que os argumentos que invoca tenham uma poderosa lógica interna, sobretudo no que se refere à centralidade geográfica e, no caso dos equipamentos, à existência e influência do IPSB.

Há no entanto um outro cenário de agregação possível para as quatro freguesias mais pequenas e que também não deixa de fora nenhuma delas: seria a união da Palhaça com Bustos e a do Troviscal com a Mamarrosa. Desconheço as razões pelas quais JNP não aflora esta possibilidade, não acreditando sequer que tal omissão  tenha a ver com a perda da centralidade de Bustos. Este cenário permitiria manter o concelho de Oliveira do Bairro com quatro freguesias e não apenas com três. Temo que um concelho com dimensão territorial tão diminuta (87 K2) e com apenas três ou mesmo quatro freguesias possa no futuro vir a ser extinto ou agregado a outro.

Convém ainda referir que para lá da centralidade geográfica há outros critérios a ter em conta, previstos na alínea b), artigo 8.º, da Lei 22/2012. São eles: um índice de desenvolvimento económico-social mais elevado; o maior número de habitantes e a maior concentração de equipamentos coletivos. Todos eles se devem assumir como critérios preferenciais para selecionar freguesias que funcionam como pólos de atração e por isso mesmo são indutoras do desenvolvimento de todas as outras. De todo o modo, o poder de regulação e de decisão duma eventual agregação de freguesias deve resultar de soluções organizacionais flexíveis e estar sintonizado com a aplicação do princípio da subsidiariedade entre diferentes entidades e serviços.

Diria que é na forma de determinar a localização da sede da junta de freguesia obtida por agregação que reside a questão mais polémica. Uma espécie de problema-tabú em que ninguém toca. As freguesias agregadas que ficarem sem Presidente de Junta verão os seus habitantes deslocar-se ao local onde passará a funcionar a sede da nova freguesia criada por agregação para obterem um simples atestado de residência. São coisas destas que os cidadãos não conseguem engolir de ânimo leve. Vão ser confrontados com uma solução que cava um fosso ainda maior com os anteriores serviços de proximidade que lhes eram prestados, diminuindo-lhes o grau de autonomia e de independência a que se foram habituando ao longo dos anos. De algum modo esta lei configura uma violação do princípio de autonomia das autarquias e degrada a qualidade de vida das populações. Veremos também se a par do desaparecimento de muitas freguesias, sobretudo as mais desertificadas do interior e com população mais envelhecida, não vamos assistir igualmente à extinção de serviços públicos como os CTT, a GNR, as Escolas ou as Extensões de Saúde, que serão sempre motivo de protesto e de descontentamento.

3. Não é pecado gostarmos da nossa terra. Nem falar com emoção do lugar onde nascemos, onde aprendemos as primeiras letras, onde fizemos a comunhão solene, onde nasceram e cresceram os nossos filhos, onde vivemos e tencionamos morrer. Ter uma aldeia é ter sido moldado por ela e proclamar para todo o sempre que a ela pertencemos.

Mas ao valorizar o que é nosso – como aconteceu nas sessões de esclarecimento promovidas pela Comissão Permanente da Assembleia Municipal –  ao identificar  o que nos carateriza e distingue dos demais, convém não chocalhar autoelogios desnecessários. É preciso evitar  a guerra de todos contra todos e o excesso de devoção que pode conduzir à tentação de considerar as outras freguesias inferiores, quando falamos da nossa. É um preconceito que não respeita os méritos alheios e tende a considerar como inferior aquilo que apenas é diferente. As nossas freguesias não podem evoluir apenas voltadas para si próprias, como se a porosidade das “fronteiras” não constituísse um apelo à convivência fraterna com os nossos vizinhos (longe vão os tempos, como acontecia no império romano, em que tudo o que estava para lá dos seus limites geográficos era considerado “bárbaro” ou hostil). Enriquecemo-nos quando respeitamos a diversidade. É a criar laços e a estabelecer ligação com as outras freguesias do concelho, ou a compreender e a integrar as suas preocupações e não apenas as nossas, que verdadeiramente crescemos.

Vivemos num tempo em que a regra é a coexistência num mesmo território de grupos étnicos e culturais distintos, onde se pratica a convivência e a fusão de culturas e não a sua segregação. O momento que atravessamos é pois de unir e não de dividir. Dividir para reinar é a divisa do poder, não a dos cidadãos. O pior que nos pode acontecer é que sob a capa da democracia e do direito à livre expressão e opinião se manipulem as pessoas atirando-as umas contra as outras ou arrumando-as entre “boas” e “más”.  Em vez de causarem estranheza os espaços de vizinhança devem ser cada vez mais lugares de cooperação e enriquecimento e não de exclusão.

Não há grandes disparidades de povoamento, da economia e da sociedade, ou mesmo ao nível dos comportamentos e práticas culturais (crenças e valores) entre as freguesias do nosso concelho. O que faz um concelho não é tanto o espaço geográfico mas sobretudo o tempo e a história que o caraterizam. Assim sendo, o que verdadeiramente está em causa não pode ser a conversão de umas freguesias a outras, mas a concretização de sucessivas plataformas de entendimento em que todos caibam sem atropelos, abdicações ou exclusões.  Temos que olhar para aquilo que nos liga e aproxima, evitando a apologia do “único”, do “só nosso”, elementos que usualmente salpicam a valoração constante do lugar matricial e são próprias duma visão paroquializada dos nossos interesses. A proposta de agregação de freguesias só pode traduzir-se na necessidade de maior compreensão da proximidade.

Eis por que tanto apreciei o texto de João Nuno Pedreiras, para lá de uma ou outra discordância pontual. Não quis deixar de o dizer, ao encerrar esta série de textos sobre a reorganização administrativa territorial autárquica.

Reorganização Administrativa Territorial Autárquica – III (do cumprimento da lei à resistência das populações)

É o progresso das ideias que traz as reformas, e não o progresso dos males públicos que as torna inevitáveis.

ALEXANDRE HERCULANO

Na reunião de esclarecimento que teve lugar no Troviscal disse o Senhor Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro ter a perceção de que “a lei é para cumprir e tudo o que se possa dizer é retórica”. E para legitimar a sua opinião acrescentou ter sido o próprio secretário de Estado a transmitir-lhe que “vai cumprir o que foi negociado com a Troika”.[1] Começo por discordar desta visão restritiva da democracia que se preocupa mais em cultivar a obediência do que em exercitar a liberdade. Além disso, tais palavras podem ser entendidas como uma forma de pressão sobre os órgãos do próprio partido que o elegeu, de condicionamento do debate político e de limitação do direito de opinião.

Felizmente que o secretário de Estado da Administração Local, num tom bem mais prudente de estímulo à cidadania e à participação, nos descansa um pouco quando contraria as palavras do Senhor Presidente da Câmara. São dele estas afirmações: “O exercício da política pressupõe anunciar, debater, ouvir, incorporar contributos e decidir”.[2] Em democracia a forma de consolidar a legitimidade das decisões passa por tornar público o conhecimento que se detém, evitando os truques, as manhas e os ardis que tantas vezes caraterizam os segredos do poder. Então tudo o que se possa dizer para lá do estrito cumprimento da lei é retórica, Senhor Presidente? Foi isso que andou a fazer a comissão permanente da Assembleia Municipal, a espalhar retórica pelas freguesias? É assim que classifica os muitos contributos dos munícipes sobre a reforma da administração local? Cumprir a lei e calar, sem debate, marginalizando a vontade dos cidadãos? É esta a forma como entende o exercício do poder democrático?

Mais do que submeterem-se ao império da lei os cidadãos exigem um estilo de política que os sirva e responda às suas preocupações, necessidades e anseios. A melhor reforma autárquica possível será aquela que assenta em motivos sociais e humanos e não exclusivamente em argumentos ou estandartes políticos, o que implica ouvir as populações e não apenas os aparelhos partidários. Os partidos não podem tender a usurpar o exclusivo da intervenção e do poder social. A genuína integração de todos os munícipes no espaço geográfico concelhio está associada não à imposição pura e dura da lei mas à construção de consensos, os quais se ligam a fenómenos como as tradições, os rituais e o próprio poder. Muitos desses costumes e tradições encerram uma sabedoria e desempenham funções latentes, não expressas, que escapam às evidências de senso comum. Não perscrutar este peso das tradições e dos rituais em nome do acatamento cego da lei significa abdicar de entender as coordenadas que assinalam a via da identidade das populações das freguesias do nosso concelho. Não ter isso em conta é enveredar por um caminho armadilhado, é não atender a estas palavras avisadas do legado intelectual de Edmund Burke: os povos que não olham para trás, para os seus antepassados, não serão capazes de olhar para a frente, para a posteridade.

A História ensina que se as leis fossem sempre cumpridas nunca haveria motins, revoltas ou revoluções. Nunca teria sido derrubada a Monarquia em Portugal e por isso não viveríamos hoje em República. Não teria caído o Estado Novo e talvez hoje não andássemos a saborear a liberdade. Com Locke aprendemos que quando as leis não são feitas para o bem do povo se torna legítimo o direito de resistência.  Vejamos então alguns exemplos concretos de reclamações populares contra as medidas intervencionistas dos governos centrais.

No tempo da Monarquia absoluta a interferência régia na vida municipal por parte dos corregedores e juízes de fora gerou resistências locais muito fortes. Já no constitucionalismo liberal monárquico, quando a pena reformadora de Mouzinho da Silveira, ministro de D. Pedro IV, produziu uma obra legislativa que é hoje considerada um importante marco jurídico e institucional da primeira metade do século XIX, os protestos não se fizeram esperar. Assim que foi publicado o célebre decreto n.º 23, de 16 de maio de 1832, considerado centralizador e portanto anti-municipal, logo as Câmaras fazem chegar às Cortes as suas exigências de alteração ou mesmo revogação do diploma legal. E foi precisamente a força dos protestos e o fogo cruzado das críticas que levaram a que o diploma viesse a sofrer uma alteração significativa em abril de 1935.

Na década de 90 do século XIX a grave crise financeira do país levou alguns políticos a equacionar uma nova vaga de anexação de concelhos, iniciada em 1836 com a reforma administrativa de Passos Manuel que extinguiu 475 dos 826 então existentes. O receio dos grupos de pressão locais e de perturbações sociais mais que previsíveis acabou por fazer gorar essa iniciativa. Embora não se exija que os nossos deputados e políticos concelhios saibam história das instituições, é bom que se tenham em conta os ensinamentos do passado. Os conflitos gerados pela reorganização do território na primeira metade do século XIX são o resultado inevitável duma centralização administrativa executada à revelia dos órgãos municipais, onde a imposição dos magistrados prevaleceu sobre a produção dos consensos.

Mas não é preciso recuar tanto no tempo para encontrar exemplos de resistência das populações a medidas que consideram atentar contra os seus direitos. Basta não ter memória curta e recordar o que se passou  há cerca de vinte anos com a tentativa de instalar unidades de incineração e aterros de resíduos tóxicos em Portugal.

Não cabe aqui discutir a bondade dessas medidas. Mas a propósito do cumprimento da lei, ou da imposição da vontade de quem governa, convém lembrar que as estações de incineração são hoje de tal modo contestadas e boicotadas pelos cidadãos que muitos países já não conseguem pôr a funcionar mais nenhuma. E quem não se lembra da enorme contestação popular que por essa altura varreu os concelhos de Oliveira do Bairro e Vagos? A tentativa de instalar um aterro de resíduos industriais no Cardal/Azurveira colocou as populações locais em pé de guerra com o ministério do Ambiente, deu lugar a reuniões em Lisboa e Aveiro e à criação de um grupo dinamizador do processo, alimentou revoltas e manifestações um pouco por todo o lado, gerou comunicados dos partidos políticos na imprensa e contrarrespostas de cidadãos, além de provocar fraturas entre militantes políticos de base e o poder central da mesma cor política.

Poderá sempre argumentar-se que a Lei n.º 22/2012 foi aprovada por maioria. Mas convém recordar que o respeito pelos direitos da minoria é também, ao lado do critério maioritário, um dos elementos chave da essência da democracia contemporânea.  Uma assembleia popular encarregada de gerir os destinos da Grécia decidiu por voto democrático condenar à morte o mais importante filósofo do seu tempo. Condenar Sócrates a beber a cicuta foi uma decisão “democrática” se tivermos em conta o conceito de democracia que vigorava quatro séculos antes de Cristo. Mas não foi certamente uma decisão justa, humana ou pelo menos liberal à luz do conceito de democracia do nosso tempo, por ser incompatível com o ideal de cidadania universal herdado do Iluminismo. Foi uma decisão que se mostrou incapaz de compreender o outro e preferiu anular as divergências com ele, roubando a vida a um dos seus melhores cidadãos.

Neste momento ainda não sabemos se a dimensão das resistências à Lei n.º 22/2012 é uniforme em todo o País. Mas não é difícil perceber que a opinião geral dos munícipes de Oliveira do Bairro também é contrária à lei. Já todos viram que não se trata de um instrumento jurídico objetivo e rigoroso, no qual possam descortinar qualquer utilidade. Se a reorganização administrativa vier a ser executada à margem do sentir das populações, as labaredas do descontentamento podem irromper um pouco por todo o lado. A prudência aconselha a que não se recuse o diálogo com todos os que se dispõem a dialogar, pois a população do concelho não é propriamente um rebanho de basbaques.

Cá estaremos para ver como se comportam nos próximos capítulos desta novela os nossos políticos locais e concelhios. Veremos se são políticos a sério ou pequenos agentes de campanário para quem a fidelidade partidária se sobrepõe ao sentir das populações. Agora que tanto se fala em agregar freguesias para “dar escala”, será que cada época tem os políticos à escala que merece?…

O problema da reorganização do território deve ser resolvido. Como deve ser resolvido, eis a questão do momento. Quando a vontade popular se alicerça na força da razão, cabe a quem legisla estar atento e saber dar a resposta adequada, o mesmo é dizer melhorar uma lei que parece ter sido concebida à medida e por encomenda. Ignorar isso é não perceber que as populações começam a dar-se conta que não vencem todas as vezes que lutam, mas que seguramente perdem todas as vezes que deixam de lutar. Daí ao sobressalto cívico vai um passo muito curto.


 

[1] Jornal da Bairrada, 26.07.2012, pp. 6-7.

[2] Expresso, 28.07.2012, p. 32.