Contra o declínio da cultura clássica

Na estimulante entrevista que concedeu ao semanário Expresso, o filósofo alemão Peter Sloterdijk afirma:

“O meu pressuposto é que os seres humanos do futuro serão muito menos moldados pelas artes e pelas letras, como era habitual nos tempos da educação humanística, mas sobretudo pelos dispositivos do nosso novo meio ambiente digitalizado (…). A inclinação para a filosofia é — sempre foi — uma espécie de doença rara. E está ligada a uma alergia específica contra as explicações simples e as conversas repetitivas. A repetição é legítima, mas não pode substituir o esforço de pensar. No fundo, filosofa-se graças a uma condição alérgica contra tudo o que está automatizado — mental, emocional e politicamente. A proposição central e última (e primeira) da filosofia é: “Isto não pode ser assim tão simples.”

Jean-Léon Gérôme, “A Verdade saindo do poço”

E não pode ser assim tão simples porque o mundo e o pensamento são complexos. Ao pensamento repetitivo, previsível como o mecanismo da roda dentada, a filosofia deve contrapor, na busca incessante da verdade (Aletheia, entre os gregos) as aporias do debate de ideias, as categorias do pensamento, a fecundidade argumentativa, a substituição do agir mecânico pelo reflexivo. Neste tempo em que os poetas não passam de sonhadores desfasados das realidades terrenas e a filosofia é para muitos mera conversa fiada, tempo de utilitarismo, de modernidade cínica (Sloterdijk) ou de modernidade líquida (Bauman), de comportamentos fluidas que não convidam ao pensamento – o tempo da inteligência artificial, das notícias falsas e das mentiras transformadas em rotina no quotidiano – é reconfortante ler também A Utilidade do Inútil, do filósofo italiano e professor de literatura Nuccio Ordine: Continuar a ler →

Boas Festas e … comam chocolates!

Não, não sou como o Barnabé, que tem qualquer coisa que o torna diferente dos outros.  Sim, como tantos outros, também escrevi sobre a imagem de João Rendeiro em pijama, por entender que não há verdadeira liberdade sem uma esfera de intimidade que proteja os cidadãos das interferências abusivas do Estado, dos meios de comunicação social ou de outros poderes instituídos. Escrevi, mas não publiquei. Não quis oferecer aos meus amigos um presente de Natal com sabor a tabaco mascado por muitas bocas. No essencial, o texto não difere muito destes “Sinais” de Fernando Alves que ecoaram na TSF, na manhã do dia 13 de Dezembro:

“Não quero ver um homem de pijama, ainda que seja um canalha,
se isso significar que o estarei a ver de pijama contra a sua vontade.
Não quero ver um homem de pijama contra a sua vontade, ainda que seja um canalha”.

Neste Natal, troco de bom grado o pijama de Rendeiro por chocolates. E sinto-me bem acompanhado: no poema “Tabacaria”, Álvaro de Campos não deixa de propor isso mesmo: Come chocolates, pequena / Come chocolates!

Sigamos os conselhos do poeta, que – ironia das ironias – também viveu em Durban durante nove anos da sua infância. Quanto a João Rendeiro, começou por sucumbir aos encantos da estética, ao ponto de ludibriar o próprio Estado para salvar as pinturas verdadeiras, trocando-as por quadros falsos (e já que estamos a falar de arte, convém separar o critério artístico do critério moral). A seguir rumou a Durban, local que viria a transformar-se em refúgio de perdição. Escapou-lhe este pequeno pormenor, a provar que o diabo, às vezes, está nos detalhes: o poeta dos heterónimos continua vivo. E sendo ao mesmo tempo uno e múltiplo, desdobrando-se em várias personalidades, pode muito bem tê-lo topado numa esquina e alertado as autoridades.

O presente que aqui vos deixo tem a ver com chocolates, mas não foi confecionado por mim. Comam chocolates à vontade, sem recear a diabetes, embora não possa afiançar, com segurança, que Deus aprova ou desaprova tão pecaminosa gulodice. Em verdade vos digo: a diabetes até pode funcionar como diploma de estatuto social. Ora leiam esta passagem do livro Mandriões no Vale Fértil, de Albert Cossery, onde uma alcoviteira tenta convencer a família de uma rapariga de 16 anos a deixá-la casar com o velho Hafez, que exibia no currículo, para lá da idade avançada, também uma hérnia de dimensões consideráveis, e ainda… diabetes que não tinha:

“Estavam hesitantes. Mas eu, para os convencer, segredei-lhes por fim que tens diabetes.
– E eles, que te disseram eles? interrogou o velho Hafez, sem se ofender com a doença que tão generosamente lhe era imputada.
– Primeiro ficaram de cara a brilhar, depois sorriram e disseram-me: “Se é verdade o que dizes, então é porque é mesmo um homem muito abastado”. Respondi-lhes: “Viram vocês alguma vez pedintes com diabetes? Caramba! De que mais precisam?” E ficaram logo concordantes.”

Vamos então à prenda para os meus amigos. É um texto de Eduardo Cintra Torres, que saiu no Público, edição de 15 de Fevereiro de 1999. Tem por título “O Ambrósio também é maroto” e fala de chocolates, claro. Um dos melhores textos que li, sobre um dos melhores anúncios publicitários que conheço. Um anúncio que se repete todos os anos, publicidade omnipresente nesta altura do Natal. A análise do anúncio é primorosa, suportada por uma irrepreensível utilização da semiótica, um saber antigo que tem a ver com os modos como o homem significa tudo aquilo que o rodeia. Há muitas leituras possíveis para a postura discreta e eficiente do motorista Ambrósio (um nome que remete para o mito do mel de ambrósia, alimento dos deuses gregos, que ao ser ingerido era garante de imortalidade). Assim como há muitas leituras possíveis para o “apetecia-me tomar algo” balbuciado pela suposta proprietária balzaquiana do luxuoso carro que Ambrósio conduz. Algo que pertence ao domínio do não dito, mas que está implícito. Algo polissémico e ambíguo, uma qualquer pulsão que a senhora parece desconhecer (ou não quer dar objectivamente a conhecer) e que o imaginário de cada um de nós gosta de adivinhar. Aqui fica o texto:

“Num artigo sobre televisão, António Pinto Leite debruçou-se sobre a publicidade erótica que viu nos intermináveis intervalos dum filme de violência gratuita passado na SIC: “Margarinas, carros, champôs, perfumes, bilhas de gás, tudo se vende com mulheres nuas.” E acrescentava o meu amigo e articulista do “Expresso” (“Revista”, 05.12.98): “Qualquer dia, esse paradigma da moral que é o anúncio da Ferrero Rocher, onde há uma senhora decente no banco de trás de um carro, ainda acaba com o Ambrósio desgrenhado.»

Ó António, então tu não percebeste que esse anúncio da Ferrero Rocher é o mais erótico de todos os que passam na televisão?! Que entre o Ambrósio e a “senhora decente” se adivinha uma pulsão secreta? Eu sei que os outros anúncios são mais, ou muito, explícitos, vêem-se corpos, gestos de carícias e mesmo alguma actividade sexual propriamente dita. Mas, afinal, mostram muito e não “prometem” nada. Ao contrário, o Ambrósio todo fardado, de chapéu e tudo, e a senhora toda decentemente vestida, de chapéu e tudo, intrinsecamente balzaquiana, são um universo de promessas que o espectador subentende.

Olhemos o espaço que eles ocupam: móvel, porque é um automóvel, e em andamento; imóvel, porque eles quase não se mexem, deixando para os diálogos e os minúsculos, subtis movimentos do corpo toda a explosão de significados que outros, noutros anúncios, precisam de mostrar com ginásticas esforçadas de corpos contorcionistas. E o que significa este espaço? O carro é um espaço de evasão do lar; um espaço de liberdade adentro do qual se passam muito coisas! O cinema, a televisão e a publicidade não só aproveitam a imagem “viril” do automóvel, mas muito em especial essa simbologia de lugar de libertação dos constrangimentos dos lugares habituais do quotidiano. Eu lembro-me de ver, naquele cinema de zinco sobre areia na Praia das Maçãs, o “Rolls Royce Amarelo”, filme de Anthony Asquith (GB, 1964), com Jeanne Moreau, Ingrid Bergman, Shirley McLaine, Alain Delon e Omar Shariff. As coisas que, dono após dono, aquele Rolls Royce não viu (e nós também!). Não será este anúncio um remake? A “senhora decente” e o Ambrósio estão igualmente adentro dum Rolls Royce — e o Ambrósio não é o marido ou o noivo, nem sequer o irmão mais velho. Já temos espaço e personagens, agora vamos à estória. A “senhora decente” diz: “Ambrósio, apetecia-me tomar algo”. Repare-se: ela tem um apetite que partilha com o motorista do seu Rolls! Será por ter assumido a democracia nas relações sociais com os seus servidores? Ela tem de facto um ar de balzaquiana “decente”, mas não tanto. E mais: ela diz que lhe apetece “algo”. Ora este “algo” é mais do que “uma coisa qualquer”. Ela quer “algo” e o motorista, com impecável elegância e profissionalismo, pergunta: “paramos para a senhora tomar alguma coisa?”. O tom e a cara do Ambrósio denotam, todavia, que ele sabe antecipadamente a resposta: ele sabe que a senhora não quer sair do carro, ele sabe muito bem o que a senhora quer! E é isso que a resposta confirma: “Não, o que eu queria era algo… Bom?” A “senhora decente” continua a desejar “algo” que não diz (e porque não diz? por vergonha? porque há coisas que se querem e não se dizem?) E ela quer algo “bom” – que não chega a explicar pois o Ambrósio, que, entretanto, trocara olhares com a senhora pelo espelho retrovisor e mostrara adivinhar o que ela não consegue exprimir em palavras, diz enigmaticamente: “compreendo, senhora”. Como o Ambrósio compreende os desejos reprimidos da senhora!

Nessa altura, a “senhora decente” assume o desejo e abre-se ao motorista: “Apetecia-me Ferrero Rocher”. Respeitou-se o relacionamento entre as classes sociais: foi a “senhora decente” que tomou a iniciativa. Estabelecida a insinuação, criado em nós o desejo de saber qual o desejo secreto da senhora, eis que o “algo”, o nome da coisa, já pode ser dito: Ferrero Rocher! E que nome! Formado por duas palavras, cada qual duma libidinosa língua latina: o italiano e o francês!

Mas o anúncio, que podia bem terminar aqui, quando a senhora “se abre ” ao motorista dizendo o que realmente quer, o anúncio tem ainda uma longa estória para contar: confirma-se que o Ambrósio já sabia antecipadamente o que a senhora desejava! Diz ele: “Tomei a liberdade de pensar nisso, senhora!” Mas que motorista espectacular! E, “tomando a liberdade” de adivinhar o desejo íntimo da senhora, o Ambrósio abre, desvenda, mostra o objecto do desejo: brilhando como barras de ouro, as bolas de Ferrero Rocher surgem de dentro do carro quando o Ambrósio acciona uma porta secreta, como nas Mil e Uma Noites. Abre-te, Sésamo!

“Oh, Bravo, Ambrósio!”, diz a “senhora decente”, que não cabe em si de contente e que já quase não controla os seus actos: pela primeira e única vez, dá-se o contacto físico entre os dois. A senhora decente toca ao de leve com a mão direita no ombro protector do motorista e leva um Ferrero Rocher à boca, consumando o desejo. Tudo é sugerido, até, digo eu, a sugestão felaciana implícita nas sílabas e vogais abertas na frase “Oh, bravo Ambrósio!” (duas vezes br, duas vezes ó, etc: quase uma onomatopeia!)

O novo Ambrósio e a nova Senhora da Ferrero Rocher

Extraordinário anúncio este, onde nada há de explícito, onde tudo é elegante. Mas, ao invés do que sucede em três dos spots que referes (Peugeot 106, água-de-colónia Calvin Klein e o “perfume macho” Denim), neste há contacto físico. Os jovens do Peugeot despem-se (ó António, nem sequer se vê nada) mas não se tocam, enquanto aqui a “senhora decente” toca no Ambrósio! Claro que não toca de qualquer maneira, até porque, diz a voz “off”, Ferrero Rocher “satisfaz o desejo de requinte”. O anúncio, que começara com o Rolls vindo em nossa direcção e passara depois para os interiores secretos do automóvel de luxo, termina com o Rolls afastando-se de nós depois de partilhar um dos seus mais íntimos segredos. As coisas que se passam no interior dum carro! Tu bem o adivinhas quando escreves que a “senhora decente” está “no banco de trás dum carro”: a separação do banco da frente não a impede de trocar olhares com o Ambrósio, de lhe tocar. Dizes que o filme que a SIC ia passando no meio dos intervalos era “ideal para ver sem ver”. Mas, se me estiveres a seguir, não poderás reencontrar o maroto do Ambrósio no ecrã sem pensar que aquele anúncio, além de ser para ver, também é para ler. Com prazer.”

 

 

Das partilhas, dos “likes” e da arquitectura do diálogo

Prisão do cérebroQuando partilhamos um texto isso significa que, no essencial, concordamos com ele. É o que acontece com o texto de Carlos Esperança que vou reproduzir. Alguns amigos não se vão rever nesta partilha, tal como não me revejo em algumas partilhas deles, onde subscrevem, no essencial, o que tornam público.

É a democracia a funcionar, desde que o contraditório seja acompanhado pelo máximo de respeito pelo outro. A amizade, que devemos situar no terreno da moral e da ética, não teme confrontos políticos (o conflito é a essência da vida política), ideológicos ou religiosos. Rasgar amizades por diferenças de opinião é negar a essência da democracia e um sintoma de menoridade mental. E também de intolerância. Jamais vou bloquear o acesso a este mural a quem de mim discorda e me confronta de forma séria ou irónica, pois o humor é um tónus de saúde. Não hesitarei em o fazer por imperativos de ordem moral, ou falta de carácter, porque não estou disponível para responder a insultos. Não me custa nada reconhecer a inteligência dos argumentos de quem de mim discorda, e por isso cultivo amizades com quem está nos antípodas do que penso em termos políticos ou religiosos. Amizades que só resistem porque são adubadas e regadas com  a tolerância recíproca.

Asaf Hanuka
Ilustração: Asaf Hanuka

Para lá do texto que vou partilhar, também subscrevo este comentário de Carlos Esperança: “Colocar ‘gosto’ nos elogios parece-me narcisismo”. Nada poderia vir mais ao encontro do meu sentir nesta questão. Em vez do ‘like’ a um elogio, prefiro o silêncio. Ou até o breve comentário, relativizando o que nele me constrange. Entenda-se: não questiono a dose de generosidade de quem elogia, mas a incomodidade de quem não sabe lidar bem com isso. Não é falta de auto-estima. Será mais uma forma de recusar as capelinhas do elogio mútuo que no Facebook assentaram arraiais, o mendigar de ‘likes’ que outra coisa não expressa senão o incontornável desejo de afirmação pessoal de quem nesse espelho virtual e narcísico gosta de se contemplar.

ALIMENTO PARA EGOS: Angel BoliganSe às vezes, um tanto a contragosto e à revelia do que penso, coloco um ‘like’ num elogio, é para que quem elogiou não se sinta desconsiderado ou veja ingratidão no meu silêncio. Compreendo que outros gostem de carambolar ‘likes’ como quem avia pãezinhos quentes, talvez porque lhes afague o ego, mas essa não é a minha praia. Há que saber respeitar o direito ao recato, à não exposição e ao silêncio, da mesma forma que devemos respeitar os mais extrovertidos, afinal ramos diferentes da mesma imperfeição e fragilidade que nos caracteriza enquanto humanos. Era só.

E agora sim, o texto de Carlos Esperança, intitulado “O direito ao contraditório e ao ruído”

“Gosto de quem exerce o legítimo direito de discordar das minhas posições invocando o gosto de pensar pela própria cabeça, na insinuação subliminar de que eu penso com uma cabeça alheia.

Aprecio a alegação contra a denúncia dos crimes cometidos por Hitler, Franco, Pinochet ou Salazar com perguntas retóricas sobre os de Mao, Estaline, Enver Hoxha ou Pol Pot, como se alguma vez tivessem defesa uns ou outros.

Agrada-me o argumento irritado, quanto à denúncia de crimes cometidos por militantes de um qualquer partido, com o desfiar do rol de delinquentes de um partido concorrente, como se a bondade partidária se medisse pela conduta dos militantes.

Regozijo-me com a amnésia dos admiradores de Cavaco, Passos e Portas, que os julgam salvadores da Pátria e responsabilizam o governo anterior pelas suas malfeitorias, como se a crise financeira mundial de 2008 não tivesse existido, e ignorando que a falência de um Estado ou de uma empresa (bancarrota) não se confunde com a fissura numa banca da praça do peixe (banca rota), como há uma década vêm escrevendo.

Mas nada me extasia tanto como os ataques irritados a qualquer governo que não inclua o PSD e o seu apêndice de serviço, o CDS. Há quem, na sua crença, pense que Cavaco é um intelectual e Passos Coelho um académico. É mais um motivo para minha diversão.

Finalmente, resta-me recordar à direita truculenta a satisfação manifestada pela eleição de Bolsonaro, por Paulo Portas, Nuno Melo, Assunção Cristas, André Ventura e Luís Nobre Guedes, para não falar da carta de felicitações que Santana Lopes lhe enviou”.

 

 

Os velhos e Max Weber: o político, o cientista e o espírito do capitalismo

Abro uma excepção e reproduzo, parcialmente, um texto já aqui publicado em 29 de Outubro de 2017. O motivo por que o faço é simples: o tema dos velhos (primeiro transformados em idosos e, mais recentemente, em séniores) continua na ordem do dia e não pelas melhores razões: em tempos de pandemia, morre-se muito nos lares e há quem tudo faça para legitimar a continuidade do confinamento dos velhos, com o recurso estafado a argumentos sanitários (tomados de empréstimo aos cientistas) e à proclamada indisciplina dos maiores de 65 anos.

Querem exemplos? Bastam dois, de pessoas com responsabilidades acrescidas na política e na ciência. Ursula Von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, foi das primeiras a alertar para a necessidade dos velhos (muitos deles já privados da visita de familiares) terem de continuar confinados até se encontrar uma vacina, o que pode demorar pelo menos um ano. Em entrevista ao Expresso (edição de 18.04.2020), Maria Manuel Mota, reconhecida cientista portuguesa, fala-nos de um vírus “relativamente bonzinho”, porque praticamente não afecta crianças, adolescentes e jovens adultos, mas sobretudo grupos de risco, pessoas com mais de 70 anos ou portadoras de outras complicações de saúde. Daí – conclui – a necessidade de se adoptarem medidas colectivas para proteger estas pessoas, sem estagnar a vida daqueles de quem depende o futuro: os mais jovens, para quem é preciso arranjar maneira de continuarem a viver a sua vida.

Nestes discursos – o da política e o da cientista – parece alojar-se uma convicção que a roupagem linguística tenta escamotear: a de que o novo normal só é possível com o prolongado isolamento dos mais velhos, precisamente aqueles que, afinal, já pouco ou nada acrescentam à sacrossanta produção de bens materiais. Dá que pensar: como é que pessoas tão representativas da política e da ciência parecem não se dar conta dos arrasadores efeitos psicológicos que um confinamento prolongado é capaz de gerar? Não, não é apenas o contágio pelo vírus que pode acabar de vez com os mais velhos: há outros vírus não menos letais: o mergulho na depressão, a silicose do abandono, o roubo da alegria, a queda no poço sem fundo da solidão.

Max WeberNo livro O Político e o Cientista, Max Weber mostra-nos as semelhanças e as diferenças entre estas duas profissões e vocações distintas, aconselhando a que não se misturem nem invadam as respectivas esferas de competência. Apesar de nesta crise – que, sendo sanitária, continua a ser predominantemente política – já haver quem defenda o primado dos cientistas sobre os políticos, prefiro manter-me fiel ao pensamento de Weber nesta matéria e proclamar: a Deus o que é de Deus, a César o que é de César (a ciência, responsável pelo aumento da esperança média de vida, incute cada vez mais esperanças de eternidade e acaba  por ser vista, aos olhos de muitos, como uma religião, uma deusa a quem muitos rendem cada vez mais culto). Difícil é optar entre ciência sem consciência ou política sem dimensão ética. Como dizia o filósofo Roger Garaudy em Apelo aos Vivos, sem dimensão transcendente a ciência converte-se em cientismo (superstição que separa a ciência da sabedoria) e sem dimensão ética a política transforma-se em tecnocracia. Entre as duas, venha o diabo e escolha.

Max Weber, Ética protestanteNuma outra obra célebre, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, o sociólogo alemão sustenta que a crescente racionalização do mundo – elevada a princípio unificador e organizador da vida social – só pode conduzir a uma crescente ausência de liberdade (estamos a falar de uma antinomia: da liberdade negada pela racionalidade) e a uma “evaporação do espírito”. Esta evaporação do espírito de que falava Max Weber está a dificultar-me o simples acto de respirar (S.O.S., S.O.S., um ventilador!) sempre que alguém fala da necessidade de prolongar o confinamento dos velhos. Eis a descarada subalternização dos afectos, a fisionomia autoritária de um capitalismo tardio e sem ética. O que se pede é menos domínio da razão pela razão. Menos evaporação do espírito, essência sensível que é matéria, mas também a força espiritual que a move.

Dito isto, dou por mim a concordar com quem várias vezes tenho estado em desacordo: Miguel Sousa Tavares. São dele estas palavras, retiradas da última crónica do Expresso, a propósito da utilização recorrente da palavra idoso: “Eu sei que faz parte do novo léxico politicamente correcto, (mas) alguém diz ‘o meu idoso’ em vez de ‘o meu velho’, quando se quer referir carinhosamente ao pai? Já imaginaram o que faríamos à literatura se aplicássemos a ditadura do idoso a alguns casos célebres: O Velho Que Lia Romances de Amor (…) passaria a ‘O Idoso Que Lia Romances de Amor’, O Velho e o Mar, de Hemingway, passaria a ‘O Idoso e o Mar’; Os Velhos Marinheiros, de Jorge Amado, seriam ‘Os Idosos Marinheiros’, e até o nosso ‘velho do Restelo’ acabaria transformado no idoso do Restelo”.

Feito este intróito, aqui fica a prometida transcrição parcial do texto que editei em Outubro de 2017 com o título “Vozes (cada vez mais) anoitecidas”, por entender que, infelizmente, não perdeu actualidade.

Idosas“Tudo se faz para suavizar a nossos olhos a velhice dos outros. Os idosos encerram um paradoxo: a sociedade que exibe a longevidade como valor supremo é a mesma que os trata como um fardo e um problema. Estamos cercados de idosos, mas quase não os vemos. Encaixotados em lares de gosto duvidoso, duram tempo demais e dão cabo do erário público. Deixou de fazer sentido a ideia segundo a qual por cada velho que morre é uma biblioteca que desaparece (…). O envelhecimento é visto como uma “perturbação” e não como uma oportunidade de utilizar recursos adquiridos ao longo da vida; os idosos representam um fardo, esquecendo-se o apoio que muitas vezes alguns deles ainda podem prestar à família e mesmo à sociedade.

(…) A pressa, a ligeireza e o desinteresse (que é desconsideração) pelos outros, são a imagem de marca do nosso tempo. Na sociedade em que o ter se substituiu ao ser, em que cada um já não vale pelo que é, mas por aquilo que ostenta, ou pela imagem muitas vezes falsa que retoca e de si dá aos outros, quem assim nos fala não é o ser humano dotado de afectos. É o homem-máquina, um corpo sem alma, um rolo compressor que tudo cilindra à sua passagem.

Dizia Cícero – orador romano que nasceu e viveu antes de Cristo – que a velhice todos a buscam alcançar, mas quando a alcançam, deploram-na. Para ser possível suportar mais facilmente o envelhecimento só parece existir um caminho: devolver a vez e a voz aos idosos”.

Trabalhos e Paixões de Miguel Duarte: salvar refugiados

Anti-resgate (Vasco Gargalo)
Ilustração: Vasco Gargalo

Miguel Duarte, aluno de doutoramento no Instituto Superior Técnico, anda há quatro anos a salvar refugiados no Mediterrâneo. Sabemos agora que a sua generosidade corre o risco de ser premiada com pena de detenção que pode ir até aos vinte anos. Num gemido de humanidade, que devia ser amplificado até poder ouvir-se por todos, declarou ao Observador: “Quando vejo uma pessoa a morrer afogada não lhe pergunto se tem passaporte. Tiro-a da água”. Eis aqui um valor cristão essencial: amar o próximo, com tudo o que isso significa de o ajudar quando mais precisa.

Na última edição do semanário Expresso Miguel Duarte assina um texto com o título: O que será de nós quando tivermos medo de estender a mão? A dado passo escreve, como quem nos martela a consciência:

“Ao sair para o convés olho para o mar escuro e consigo discernir ondas enormes só disfarçadas pela escuridão da noite (…). À chegada, deparamo-nos com um barco de borracha furado que se vai enchendo de água e desfazendo a pouco e pouco, dezenas de pessoas agarradas às cada vez mais escassas partes do barco, que permanecem à tona e outras tantas já dentro de água tentando, sem esperança, agarrar-se a algo que ainda flutue. A cada onda que passa, mais três ou quatro desafortunados são arrastados impiedosamente para as águas negras num estado de pânico sem descrição que lhe faça justiça (…). No final, naquele momento em que estamos a dois braços de distância, é que nos chega realmente a consciência de que estamos perante pessoas”.Barco no Mediterrâneo

Li isto com o coração alvoroçado e recordei o que disse, em 1992, o filósofo italiano Giorgio Agamben: “Hoje, somos todos refugiados”. E dei comigo a pensar que é muitas vezes a nossa incapacidade para nos colocarmos no lugar do outro que nos distancia ou torna menos sensíveis a estas tragédias. E se estivesse lá eu, com um filho pequeno, com um pai ou uma mãe, a correr risco vida? Não gostaria de ser salvo? E que experiência seria deambular no mar alto dias a fio, numa frágil embarcação apinhada de gente, exposto a vagas alterosas e a um sol inclemente? Seria possível dormir na vertical, fragilizado pela sede e pela fome em noites de breu e de ventos marítimos que enregelam o corpo até à medula? E que sensação experimentaria ao satisfazer as necessidades fisiológicas sem privacidade nem recato, no meio de toda aquela gente – homens, mulheres, crianças?

Bem sei que despejar esta e outras indignações nas redes sociais nada resolve, mas importa perceber a razão pela qual nem os perigos do mar travam o desespero de tantos seres humanos. E também importa perceber como é que a Europa chegou até aqui, a esta forma vergonhosa de tratar refugiados e migrantes. Uma Europa que parece ter esquecido que a história do mundo sempre foi uma história de migrações e que ela própria nasceu em torno da ideia de dignidade da pessoa humana. Esta é a grande tragédia do nosso tempo: a indiferença cada vez maior para com o nosso semelhante.

Compreendo e respeito os argumentos dos que dizem que a Europa não pode dar guarida a toda esta gigantesca mole humana, fustigada por guerras e conflitos políticos e religiosos um pouco por todo o lado. Os que hoje tentam a sua sorte e se aventuram na travessia do mar são a versão moderna dos boat people vietnamitas que entre 1975 e 1990 embarcaram em idêntica e arriscada aventura, abandonando uma terra sem futuro, em busca de melhor sorte. Gente sem eira nem beira, a quem os portos da Europa fecham as portas, encurralando-a numa espécie de cordão sanitário que é o cemitério líquido do Mediterrâneo. Miseráveis que o cínico pragmatismo político europeu encara como uma ameaça e prefere ver nas páginas de um romance de Victor Hugo.

Também compreendo que a Itália e a Grécia não podem arcar sozinhas com a responsabilidade de acolher nos seus territórios esta enorme vaga de refugiados. E também não vale a pena sermos ingénuos ao ponto de não ver que entre essa gente há radicais islâmicos infiltrados nas embarcações, dissimulados com falsas famílias, ou mesmo traficantes de seres humanos.  Sendo tudo isso verdade, nada justifica a tolerância zero que a Itália pratica. A tolerância zero é o outro nome dado à intolerância. Em vez de lavar as mãos como Pilatos, pode a Europa acolher alguma desta gente, procedendo a uma triagem onde o pragmatismo político não se sobreponha às questões éticas e humanitárias. Na cristianíssima Itália, muitos dos que elegeram Salvini e apoiam as suas medidas isolacionistas contra os refugiados são os mesmos que declaram guerra ao aborto e à eutanásia em nome do indeclinável direito à vida. Bem prega Frei Tomás…

Cristina Sampaio
Ilustração: Cristina Sampaio

Nem acolhimento indiscriminado nem rejeição radical. Apenas se pede um módico de tolerância e humanidade, sobretudo quando a escolha é entre acolher ou deixar morrer o nosso semelhante, um ser humano com direito à dignidade. Os relatos recorrentes destes naufrágios são um insulto à dignidade humana. A criminalização de quem ajuda a salvar vidas é um escarro lançado à nossa consciência. Não é só Veneza que se afunda. É também a Europa que cai a pique, ao perder cada vez mais as referências da sua ancestral tradição humanista.

O que fazem Miguel Duarte e outros voluntários, recusando-se a interpretar o dever de auxílio como letra morta, parece ser o pouco que sobra da dignidade europeia. Nestes tempos sombrios em que um simples gesto humanitário se arrisca a ser tratado como crime, cada vez me sinto mais rodeado de gente habitada por desertos, onde morre sem eco tudo o que a vida tem de mais apaixonante.

Desculpem-me o desabafo, mas esta foi a melhor forma que encontrei para espantar os fantasmas que não deixam de nos dizer que há inferno. Às vezes chego mesmo a pensar que ele já nasceu comigo…

Padre Melícias: português, franciscano, oitenta anos de idade

Melícias 1Ando, há quase duas semanas, a evitar escrever sobre o padre Melícias. Há razões para isso. Tenho por aqui publicado, nos últimos tempos, alguns textos de cariz religioso. Admito o exagero e até ter carregado em demasia na água benta, ao ponto de uma amiga do Facebook me ter questionado, com inteira pertinência:

– “Desculpe, é padre?”

Ora, eu que nunca frequentei o seminário – embora seja possível ter sido seminarista, como Salazar, e nunca ter chegado a padre católico – decido agora avançar. Só que, ao afinar este novo texto pelo diapasão dos anteriores, corro o sério risco de aparecer outra vez por aí alguém a perguntar se não serei bispo, ou até cardeal. Que os deuses me protejam (desculpem-me a diatribe politeísta, os que acreditam sinceramente no Deus único).

Vítor Melícias foi, em tempos, confessor de António Guterres e de Marcelo Rebelo de Sousa. Vale a pena lembrar, já agora, que foi Guterres quem o nomeou Alto-Representante do Estado Português para Timor-Leste. Mais propenso a misturar do que a separar o que é de César e o que é de Deus – cargos na Igreja e fora dela – conhece, como poucos, os meandros do poder político, económico e social. Os picos de notoriedade aparecem nas décadas de 80 e 90, quando é convidado para cargos de grande relevo em organizações tão distintas como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a União das Misericórdias Portuguesas, o Banco Português de Gestão, a Liga dos Bombeiros Portugueses, o Montepio Geral ou a União das Mutualidades, para só citar algumas. Eis um padre franciscano com apetite voraz para gerir bancos e queda irrefreável para os negócios.

Foi em finais da década de 80, ou início dos anos 90, que conheci ao vivo o padre Melícias, num encontro qualquer, talvez a celebração do Dia da Segurança Social, que acontece a 8 de Maio. Deu para ver como domina o conceito aristotélico de pathos: a capacidade para quebrar o gelo inicial, o recurso a uma retórica centrada no estado emocional do auditório. Ainda hoje recordo os frémitos de emoção que se apoderavam de quase todos os presentes, mal começava a arengar. Aquela mole humana erguia-se de um pulo e rebentava em estridentes aplausos. Eu permanecia sentado, pouco atreito  a idolatrias fáceis ou a enfileirar nos rebanhos mansos de ilusórias unanimidades. Via naquela encenação uma verdadeira floresta de enganos.

Comigo me desavim. Por isso me interrogava se toda aquela gente, ao levantar-se de forma tão sincronizada, não estaria a ser espetada por uma qualquer sovela da solidariedade que o padre Melícias tão generosamente distribuía. E porque não me levantava eu? Na altura, torturado pelo remorso de me sentir ovelha tresmalhada, para a qual todos olhavam de soslaio, só conseguia aventar duas hipóteses: ou era uma cachola oca, desprovida das sinapses que permitem alcançar o entendimento do risonho franciscano; ou então tinha, na altura, as nádegas suficientemente duras para resistir às metafóricas picadas da sovela no cú. Aquela alegria breve, toda aquela preocupação com os mais carenciados, representavam para mim um verdadeiro murro no estômago, quando lhes contrapunha o mundo cinzento e as existências viúvas de alegrias que tão bem conhecia.

Onde está Wally? Vitor Malícias entre os bonecos do Contra-Informação
Onde está Wally? (Vitor “Malícias” entre os bonecos do Contra-Informação)

Hoje, reconheço: ainda bem que não me deixei inebriar com as cintilantes gotas argumentativas distribuídas pelo padre Melícias, talvez por saber que a arte da persuasão não é só pathos, mas também logos e, sobretudo, ethos: conceito através do qual o discurso se torna digno de crédito e de confiança (Aristóteles estava convencido que um argumento eficaz é o que mistura os três conceitos). Alegra-me saber que nunca cirandei em seu redor e que recusei respirar o incenso da discutível solidariedade que impregna a atmosfera que o rodeia. Deixo assim para ele, e para os fiéis seguidores, os louros de conduzir os pobres e os excluídos à terra prometida da fraternidade e da solidariedade universal.

Passemos então em análise alguns depoimentos impressivos deste padre franciscano, que muito ajudam a traçar-lhe o perfil, por não passarem de farrapos esburacados que ainda mais lhe deixam as vergonhas ao sol:

Melícias e as couvesEm 2005 era presidente da União das Misericórdias Portuguesas. Seguramente não desconhecia, a par dos relevantes serviços prestados pelas instituições de solidariedade social, que também nelas ocorriam – e, infelizmente, continuam a ocorrer – situações de maus tratos a crianças e idosos e vários tipos de desrespeito pelas regras instituídas com o Estado, que as apoia financeiramente. Ora quando a fiscalização a essas instituições ganhou um novo alento, que fez o padre Melícias? Disse, pura e simplesmente, de forma depreciativa e com a maior das leviandades, que os inspectores incompetentes (leia-se: os que ousavam denunciar essas irregularidades) deviam ir “plantar couves”. Fê-lo, não restam dúvidas, depois alguém ter recorrido aos seus préstimos e à sua consabida influência junto do poder político. Ele próprio o confessa, quando afirma: “Obviamente que, às vezes, há determinadas situações em que, para resolver um problema, é mais fácil falar com o ministro do que com o porteiro.” Apetece perguntar: faz sentido o Estado apoiar financeiramente as instituições de solidariedade social e não controlar, mais tarde, a qualidade dos resultados e a forma mais ou menos criteriosa como o dinheiro é gasto?

Em 2008, ficámos a saber que o padre franciscano passou a receber uma pensão mensal de 7450 euros. Conforme então explicou, tal pensão resulta da remuneração acima da médiaauferida em vários cargos e de “vinte e poucos anos de descontos”. E como se os números não fossem ocasião de escândalo, quando comparados com pensões mínimas de portugueses com quarenta e mais anos de descontos, acrescentou: “não sou rico, tenho uma pensão aceitável”. Aceitável, quando comparada com as de 250 e 300 Euros? Esperemos que não passe fome, que a bagatela que recebe dê ao menos para o Calcitrin e para a Depuralina. Ou, vá lá, para pagar ao sapateiro o arranjo das sandálias…

Última atoarda, já em 2019. Na arrastada novela do Montepio, onde permanece há mais de três dezenas de anos e continua a movimentar os cordelinhos, o padre Melícias defende com intransigência Tomás Correia, o actual presidente, mesmo depois de publicamente se saber que foi condenado pelo Banco de Portugal ao pagamento de uma multa de 1,25 milhões de euros. Esta protecção sem reservas a Tomás Correia, depois de tudo aquilo que já se conhece, lembra as palavras avisadas e certeiras de Natália Correia em O Armistício: só se defende fanaticamente aquilo de que se duvida.

Às pressões para que Tomás Correia abandone a liderança do Montepio, respondeu desta maneira o seu ilustre paraninfo: “Não é um secretariozeco ou qualquer ministro que vai afastar os órgãos sociais democraticamente eleitos”. Assim trata o padre Melícias os que desafiam o seu poder. Assim estala o verniz da sua tão propalada bonomia. Considera-se intocável e por isso subalterniza os que lhe fazem frente, que essa coisa de sermos todos irmãos não passa de uma grande treta. Ora manda os inspectores plantar couves, ora aponta o dedo acusador a ministros e secretariozecos, como quem se movimenta nos quadros mentais de uma república de súbditos e não de cidadãos. Talvez sinta saudades do sacerdotalismo, daquele tempo medievo em que os reis dependiam do poder que os sacerdotes tinham de lhes perdoar os pecados. Esquece-se que foi com muitos desses ministros e secretariozecos que montou, ao longo dos anos, uma perigosa estratégia da aranha, tecendo com eles controversos fios de cumplicidade e de poder.

Não nos espantemos se um dia aparecer por aí, em livro, a Pastoral dos Banqueiros. Assim como Philip Roth escreveu Pastoral Americana, para nos dar a conhecer a ambivalência entre uma América de vida tranquila e outra América onde o instinto guerreiro se aloja no coração de cada cidadão, bem pode o padre Melícias desvendar-nos, na sua Pastoral dos Banqueiros, o paradoxo que consiste em servir  ao mesmo tempo a Deus e à fragilidade mundana da banca, que cada vez mais transforma os nossos sonhos em pesadelos.

A terminar, só mais este desabafo. Num certo dia de inverno, alguém que até então só me conhecia pelo nome, mirou à distância a minha silhueta de sobretudo azul e cabelo branco e disparou:

–  Olha, parece o padre Melícias!

Senti-me tão lisonjeado, que mal saí dali apeteceu-me ir logo pintar o cabelo…

 

 

 

 

 

Aveiro em Dia de Finados – o obelisco da discórdia

Monumento aos vivos“Parece-me que as notícias sobre a minha morte são manifestamente exageradas.”  Mark Twain

“Essas poucas palavras lavradas na pedra resumem com uma majestade impessoal tudo o que o mundo precisa de saber de nós” – Marguerite Yourcenar

Em Aveiro, “berço da liberdade”, como lhe chamou Marques Gomes, acontecem coisas de espantar. Acabo de ler, da lavra do ilustre aveirense Aberto Souto de Miranda, que já foi Presidente de Câmara, que o seu nome está gravado na pedra de um obelisco colocado no Cemitério Sul, numa lista que integra Presidentes de Câmara dos últimos cem anos. Eis o poder autárquico no seu melhor.

Alberto Souto manifestou de imediato o seu desagrado no Facebook. Com o sentido do ridículo só ao alcance daqueles que o não são, escreveu, com refinada ironia: “Agradeço muito à Junta de Freguesia o terem-me imortalizado num obelisco no cemitério. Que era fantasma já se sabia. Agora com lugar cativo no cemitério é que ainda não. A coisa é um bocadinho estranha, para não dizer totalmente deselegante. Os meus familiares já começaram a receber coroas de flores e mensagens de solidariedade. A minha mulher e os meus filhos abraçaram-me e obrigaram-me a beber um bom tinto, para ter a certeza que eu não era um holograma ou um fake human. Os amigos em romagem curvam-se perante a minha memória. As funerárias capricham na cerimónia. E o epitáfio, o morto vai escrevê-lo (…). E desculpem ser um tipo com princípios “démodés”, de respeito pela memória dos entes queridos: não se fazem comícios no dia e à hora da visita aos cemitérios. Até o Bispo…. Mau demais.”

Garanto-vos que se me tivesse acontecido o mesmo, ter lá o nome escarrapachado sem consentimento prévio, tudo faria para o apagar. E se acaso o poder autárquico fizesse orelhas moucas a tal pretensão, ou assobiasse para o lado, não hesitaria em recorrer ao Obélix. Quem carrega às costas menires que pesam toneladas, muito facilmente poderia remover aquele obelisco erigido sem pudor no corredor de entrada do Cemitério Sul.

Obélix2Tudo aconteceu no passado dia 1 de Novembro, Dia de Finados. Temos que agradecer ao poder autárquico aveirense o ter-nos aberto os olhos para a emergência de um novo paradigma nos cemitérios públicos: a convivência, gravada na pedra, entre os vivos e os mortos, ao mesmo tempo que se substitui o minimalismo estético pelo kitsch arquitectónico (não propriamente o kitsch do monumento, mais o da ideia que lhe subjaz, porque é também kitsch a redução dos sentimentos religiosos a um objecto de utilização profana). Eis mais um desplante duma sociedade que Guy Debord sempre viu como uma imensa acumulação de espectáculos. Espectáculo triste, este que teve lugar num cemitério de Aveiro, onde além de se perpetuar a memória e revigorar a saudade dos que já nos deixaram, é possível agora homenagear também os vivos, como se de um mero espaço cívico se tratasse. Sim, a morte é uma expressão da vida: morremos porque estamos vivos, mas perpetuar na pedra ou no bronze vivos e mortos ao mesmo tempo é não perceber nada dessa distinção essencial.

Concentremo-nos na imagem do obelisco inaugurado na presença de centenas de pessoas e que pretende homenagear os Presidentes de Câmara que atravessaram o centenário do cemitério. Na base está inscrito o nome do Presidente de Câmara em exercício no ano de 1918, aquando da aquisição do terreno: Lourenço Simões Peixinho, a quem Homem Cristo chamava “o caboz” (que significa peixe muito pequenino). E no topo, a fechar o ciclo, qual águia altaneira a sobrevoar o espaço cemiterial, transformado agora em nova forma de perpetuar o poder, quem haveria se estar? Nem mais nem menos que o actual Presidente de Câmara, de seu nome José Agostinho Ribau Esteves.

Como já não cabe mais ninguém no obelisco, imaginemos que nos próximos cem anos os futuros Presidentes manifestam a mesma veia comemoracionista e o mesmo acrisolado amor pela perpetuação das suas memórias na pedra ou no bronze. Saia mais um obelisco para o Cemitério Sul! E a trapalhada não se fica por aqui. A União de Freguesias da Glória e Vera Cruz, autora da iniciativa – seguramente depois de ouvir e ter o aval da Câmara Municipal – fala em “memorial aos 100 anos do cemitério sul da cidade”. Ora é preciso dizer que as coisas podem não ser bem assim, quando falamos em centenário. Em 1918 foi comprado o terreno, mas segundo o Portal de Aveiro o primeiro funeral, de um morador de São Bernardo, ocorreu a 24 de Outubro de 1919. Estamos a falar de centenário de quê? Seguramente que do primeiro enterramento não é. Será da decisão que aprovou a construção do cemitério? Ou da sua inauguração? Se sim, será que ela aconteceu no mesmo ano em que se procedeu à aquisição do terreno? Responda quem souber.

Nem tudo seria mau se o obelisco pudesse ser levado a sério. Se assim fosse, Ribau Esteves estaria à frente dos destinos de Aveiro por apenas mais dois meses. Os aveirenses e o Rossio podiam, finalmente, respirar de alívio.

Apetece dizer: ah! se Homem Cristo cá estivesse. Não deixaria de zurzir nos arrivistas, “os adventícios, que se vieram estabelecer em Aveiro”, e que os aveirenses receberam “de braços abertos e, estendendo o pescoço à canga, sofreram-lhes o jugo, deixando-os dominar. É possível que venha daí a tara com que os de Aveiro, ainda hoje, (…) tratando mal os nativos estão sempre de cócoras diante dos que chegam de fora.”[1]

Apetece também dizer: ah! se Carlos Candal cá estivesse. Um político frontal, irreverente, que não hesitava em colocar algum picante na política. “Antes de tudo sou aveirense” – gostava de dizer, com orgulho. E por ser aveirense fustigava os que, no dizer de Mário Sacramento, só começaram a comer ovos moles em idades muito avançadas. Por isso criticou em tom sarcástico Paulo Portas e Pacheco Pereira no seu Breve Manifesto anti-Portas em Português Suave, quando os dois políticos lisboetas se candidataram pelos respectivos partidos ao círculo de Aveiro. Entre muitos outros mimos contidos nos 25 pontos do Manifesto, aqui fica este: “Só nos faltava agora mais essa: sermos doravante representados no Parlamento por dois intelectuais da capital”.

Sem Homem Cristo e sem Carlos Candal, os aveirenses que se cuidem. Os que não souberam revelar, até agora, grandeza moral para um pedido de desculpas públicas pela peregrina ideia de mandar gravar no obelisco o nome de alguns vivos ao lado dos mortos – que assim chegam ao cemitério mesmo antes de partir – são até bem capazes de mandar rezar-lhes uma missa de sétimo dia.


[1] Homem Cristo, Notas da Minha Vida e do Meu Tempo, volume I, Lisboa, Livraria Editora Guimarães & C.ª, s. d., pp. 63-64.

Contra as touradas

leo Picasso, Corrida de Touros 5
Óleo de Pablo Picasso “Corrida de Touros 5”

Aconteceu agora outra vez. De tempos a tempos, lá voltam os argumentos contra e a favor das touradas e das transmissões televisivas dos espectáculos tauromáquicos. Sendo certo que só os vê quem quer, a questão de fundo é outra: deve a televisão pública financiar e publicitar tal prática? Falamos da televisão que depende dos subsídios do Estado e que é paga com os impostos dos contribuintes. Apetece dizer que se à RTP compete assegurar uma programação variada que vá de encontro ao interesse dos diferentes públicos, então deve brindar-nos com touradas, mas igualmente com espectáculos de ópera, música clássica, bons filmes e aconselhamento de boa poesia e bons romances, portugueses ou estrangeiros.

Aviso à navegação: não é meu fito alimentar a interminável polémica que se instalou ao redor das touradas. Sou contra e torno isso público. Apesar de não faltarem por aí armas de arremesso em qualquer das barricadas – do lado dos aficionados e do lado dos antitaurinos – não me move, nesta tomada de posição, qualquer intuito polémico ou qualquer propósito de superioridade moral. Nenhum cidadão será melhor do que outro só porque pensa diferente em relação a este assunto. Mais do que acusar quem pensa e sente de forma diversa, interessa-me fundamentar a posição que assumo. Trata-se de expor e não de impor pontos de vista. Do mesmo modo, dispenso rituais – por muito que lhes chamem antropológicos – de matança do porco em espaços públicos, com a justificação de se reavivar uma tradição que noutros tempos era privada e familiar.

Pode a antropologia afirmar que todas as festas onde se sacrificam animais representam uma celebração da vida e reforçam sentimentos de identidade. Só que amarrar, esfaquear e matar o porco, abafando os guinchos lancinantes com acordes de grupos folclóricos convidados para a festança, ou ver um touro picado, rasgado e a esvair-se em sangue por entre palmas, urros e olés de gente ululante e ávida de sensações fortes, está fora dos meus princípios. Por detrás do “frisson” gerado pela agonia de um touro é impossível descortinar qualquer intenção nobre. É um espectáculo que não me diverte enquanto forma de entretenimento público. Claro que a moral é relativa, existe a de uns e a de outros.

Há quem defenda, em nome da tradição, que não matar o touro na arena desvirtua a corrida. E há quem associe as touradas integrais a ritos antigos com influências religiosas e culturais evidentes. Sou contra as armadilhas da tradição como forma de legitimar as lides de touros na arena. Tradições há muitas. Umas devem ser preservadas, outras não. É importante saber distinguir a violência exercida em nome da tradição, que muitas vezes não é tradição mas uma forma inaceitável de dominação social (mutilação genital feminina, apedrejamento de mulheres adúlteras, oferecer uma filha em troca de um dote, entre outras) de costumes ancestrais que funcionam como contraponto moderno ao molde unificador da aldeia global. Não há inovação sem tradição, mas para que tal aconteça esta deve eliminar os traços mais chocantes em nome do progresso civilizacional. Foi também em nome do progresso (desta vez económico, não civilizacional) que há poucos anos um primeiro-ministro baniu o feriado de Carnaval, com o argumento de que os tempos que vivemos já não se compadecem com a tradição. Enfim, tradições há para todos os gostos e cada um serve-se delas conforme lhe dá mais jeito, mas as tradições a manter devem ser precisamente aquelas que não violam valores civilizacionais entretanto adquiridos.

As tradições não são apenas boas pela antiguidade do seu foral, mas pelas práticas que as caracterizam. O progresso humano tem sido e continuará a ser feito contra muitas tradições. Só pode manter-se como tradição o que engrandece a humanidade, não aquilo que a degrada ou embrutece. Se fossem ininterruptas, como muitos defendem, ainda hoje nos seria dado desfrutar das virtuosas tradições do Santo Ofício ou presenciar a queima de pessoas acusadas de bruxaria, os hereges e até gatos pretos, vistos durante muito tempo como encarnação do demónio. Ou, recuando uns séculos, assistir ao lançamento de cristãos às feras, acabando devorados por elas.

Enquanto as touradas não passarem a ser consideradas um capítulo triste da nossa História, não transpomos completamente o estado de natureza para o estado de cultura. Continuamos a ulular, em vez de dialogar, sem perceber que é a cultura que torna a humanidade mais sensível. O que não falta por aí é gente apostada em fazer regressar Portugal aos tempos do marquês de Marialva, perpetuado em bronze numa placa à entrada da praça do Campo Pequeno (eu, pecador me confesso: marquês por marquês, prefiro o de Sade).

Uma boa síntese de muitos dos defensores da “festa brava” pode ser lida na Cartilha do Marialva, de José Cardoso Pires. Ou no marialva que Alexandre O’Neill ridiculariza no poema “Fraco, mas forte”: “Bebo contigo /cerveja, whisky / p’ra que se veja / mais rubra a crista”.

Aqui fica o que penso das touradas. Fi-lo, porque prefiro a candeia que vai à frente do que a que permanece escondida debaixo do alqueire.

 

Idosos: vozes (cada vez mais) anoitecidas

“Idosos descartáveis” – assim titulou Armor Pires Mota a sua oportuna crónica no Jornal da Bairrada do dia 4 de Fevereiro de 2009. O mesmo título, embora na interrogativa, colou o escritor Arsénio Mota, da vizinha vila de Bustos, a um post do seu blog em Junho de 2008. Aproveito a embalagem para escrever também sobre um tema que merece séria reflexão.

Idosas

Lamentavelmente, o abandono dos idosos, a negligência e até os maus tratos a que tantas vezes são sujeitos, devem merecer a nossa melhor atenção e também o nosso mais veemente repúdio.

Para mistificar a realidade, a chamada sociedade pós-moderna transforma, em passes de mágica falaciosa, os idosos em “seniores”, como se a velhice fosse coisa sem sentido, não arrastasse consigo algumas moléstias, como a dependência, o desamparo e a solidão, não prenunciasse o aproximar da morte, ou não suprimisse progressivamente os prazeres que a vida realmente vivida proporciona.

Os eufemismos funcionam, na sociedade actual, como escudo protector e como arte de dissimulação. Exemplos? Tudo se faz para suavizar a nossos olhos a velhice dos outros. Os velhos, além de “seniores”, encerram um paradoxo: a sociedade que exibe a longevidade como valor supremo é a mesma que os trata como um fardo e um problema. Estamos cercados de idosos mas quase não os vemos. Encaixotados em lares de gosto duvidoso, duram tempo demais e dão cabo do erário público. Deixou de fazer sentido a ideia segundo a qual por cada velho que morre é uma biblioteca que desaparece.

Este artifício retórico dos “seniores” podia ser evitado. Bastava que os que a ele recorrem tivessem a percepção do valor e dos benefícios da idade avançada que outras sociedades – países africanos e asiáticos, por exemplo – lhes reconhecem. Se nessas sociedades os velhos são descritos como “aqueles que ganharam sabedoria”, na cultura ocidental esses valores encontram-se em erosão acelerada. O envelhecimento é visto como uma “perturbação” e não como uma oportunidade de utilizar recursos adquiridos ao longo da vida; os idosos representam um fardo, esquecendo-se o apoio que muitas vezes alguns deles ainda podem prestar à família e mesmo à comunidade.

Não é só a sociedade que está em crise. É também a solidariedade, e os valores morais. E por isso falham cada vez mais as respostas do Estado e o modelo tradicional de obrigações filiais. Todos os anos, pelo Natal, assistimos ao espectáculo indecoroso de gente que interna os seus pais ou avós nos hospitais e os deixa por lá, sem a menor ponta de remorso ou o menor estremecimento de desconforto. Entretanto, os idosos têm “alta”, o hospital contacta, mas as famílias não aparecem. Despachado o fardo incómodo, demandam outras paragens onde vão passar o Natal e o Ano Novo, libertos de preocupações, mas atolados no egoísmo e na desumanidade, agindo como se os seus familiares fossem seres desprovidos de direitos.

Estamos a falar de crimes sem castigo. Quem faz isto, ou coloca os seus idosos em lares clandestinos de vão de escada, devia ser acusado de crime de abandono. A indiferença pelos direitos do nosso semelhante é uma forma de cumplicidade no atentado a esses mesmos direitos.

Enquanto as coisas continuarem como estão, estes actos ignóbeis tendem a transformar-se em rotina no quotidiano. A pressa, a ligeireza e o desinteresse (que é desconsideração) pelos outros, são a imagem de marca do nosso tempo. Na sociedade em que o ter se substituiu ao ser, em que cada um já não vale pelo que é mas por aquilo que ostenta, ou pela imagem muitas vezes falsa que retoca e de si dá aos outros, quem assim nos fala não é o ser humano dotado de afectos. É o homem-máquina, um corpo sem alma, um rolo compressor que tudo cilindra à sua passagem.

Dizia Cícero – orador romano que nasceu e viveu antes de Cristo – que a velhice todos a buscam alcançar, mas quando a alcançam, deploram-na. Para ser possível suportar mais facilmente o envelhecimento só parece existir um caminho: devolver a vez e a voz aos idosos.


(Artigo publicado em Pretextos – Revista do Instituto da Segurança Social, I. P., n.º 36, Dezembro 2009, p. 4).

Tempo de mudança — singela homenagem aos amigos do serviço e do comboio

Hoje deu-me para isto. Para recordar os amigos que deixei em Coimbra, amarrados às angústias do presente e às incertezas do futuro. Enredados na moral da competição desenfreada, tantas vezes sem ética. A todos devo muito: o companheirismo, a fraternidade aberta, o apoio nas horas difíceis, as lições de vida. Tanto que aprendi com eles! Alguma timidez e não menor emoção, na hora da despedida, impediram que lhes dissesse o que mereciam ouvir. Talvez porque a generosidade é mais para retribuir que para agradecer, se para tanto chega o coração. Quantas vezes temos amizades à boca do coração mas não sabemos como as cultivar com desvelo. Somos desleixados com os afectos, o que não quer dizer que os desprezemos A melhor forma que encontrei para retribuir foi dizê-lo agora, por escrito. Porque o que deveras nos toca e cativa só ex-corde se transmite. Obrigado por esse bálsamo de todos os dias e de todas as horas.

Uma palavra, também, para os amigos do comboio. As diferenças políticas, religiosas ou clubísticas nunca impediram uma boa conversa ou o melhor convívio espiritual. Essas diferenças nunca nos destruíram. Apenas nos distinguem. Por isso nos realizávamos – dialogando! Irreverentes e alegres, ajudaram a suavizar alguns dias cinzentos (e outros contos…). As saudáveis picardias da bola ou da política derrotavam sempre os mangas de alpaca do cinzentismo que nos vigiam à distância, os gestores dos pequenos poderes do centralismo burocrático que nos infernizam a vida e envenenam o dia a dia com o amianto das suas frustrações e da sua pequenez. Sem o saber, promovem o conceito de “inoperância” introduzido pelo filósofo Giorgio Agambem: a inoperância não como passividade mas como actividade que torna inoperativas as operações económicas e sociais. É um tipo de trabalho que não nos realiza: apenas cansa e desespera.

Agora é tempo de mais serenidade. Tempo de usar o tempo em proveito próprio e de forma aprazível. De fazer aquilo que mais gosto, para lá do convívio: sentir o cheiro da terra fresca, inebriar-me com os aromas que rescendem por todo o lado; percorrer o areal da praia, sentir a brisa marítima, embebedar-me de azul e infinito; ler e escrever, ouvir música, ver filmes, apreciar a tranquilidade e até o silêncio. Às vezes, o inteiro silêncio.

Não comecem a pensar que digo adeus ao trabalho, sentado no sofá a ver televisão – essa grande ladra do tempo – com as pantufas fofas que os amigos do comboio me ofereceram. Não é nada disso. Além de um direito (por enquanto…), a reforma é a possibilidade que temos de trabalhar folgadamente, sem pilhas eléctricas acumuladas nos nervos. Sem pressão, nem pressas aturdidas.

Não quero só a liberdade para procurar ser mais feliz. Reclamo também algumas parcelas de felicidade para me sentir mais livre. A felicidade está muito para lá do conforto material. Para mim, passa igualmente pela partilha com os outros – mesmo que esporádica – daquilo que sentimos e expressamos. É o que sinto quando a escrita se apodera de mim como um incêndio interior, onde se queima a alma toda no holocausto à beleza da vida e às suas seduções.

Quero cultivar o gosto de ter com quem conversar, mesmo que apenas através do éter. Porque todo o homem tem o dever de dar aos outros não o que lhe resta, mas o que ainda lhe faz falta. A vida será sempre um esforço para alcançarmos o que ainda não temos. Ou não será assim?

Bem sei que em relação a vós a ausência que agora começa é mais amarga. Rebobino, silencioso, ajudado com os pedais da memória, alguns momentos marcantes na vossa companhia. O silêncio das palavras não consegue parar o tropel do pensamento. Se tenho saudades? Sim, tenho, ou não sentisse já a hera da saudade a enroscar-se na garganta. Mas sei – como dizia Mário Sacramento –  que a saudade é uma força quando projecta no futuro uma esperança. Estou feliz com a partida? Sim, estou. Creio que não podia sentir-me melhor. E isso dá-me o alento de saber que os meus amigos ficam felizes por mim, também.

O nosso tempo de vida é a nossa única fortuna. E esse tempo não tem que ser um museu de silêncio. A todos os meus amigos – os do comboio e os do serviço – aqui deixo, escancarado, o tamanho da amizade que lhes tenho.