Memória de António Capão (1930-2012)

António CapãoAcaba de desaparecer do nosso convívio um dos nomes mais respeitados no panorama cultural bairradino e na própria região de Aveiro. Nunca o tive como professor, mas quem foi tocado por esse dom costuma resumir o seu labor em duas ou três palavras: dedicação, honestidade e competência. Ingredientes que se refletem na obra de quem sempre permaneceu fiel ao chão que o viu nascer. Inestimável património que nos legou e que continua à espera de quem o valorize como merece. Lendo-o, acarinhando-o e discutindo-o como contributo vivo que é.

António Capão conhecia de sobejo a vida dura do povo da sua aldeia: “O antes foi pobre, foi triste e apagado; a nossa geração foi uma geração de sacrificados, de idealistas e de lutadores por alguma coisa nova, fosse o que fosse”(1).  Mas essa aldeia, como tantas outras, para quem está atento e não lança sobre ela o olhar superficial e tantas vezes sobranceiro, é um inesgotável reservatório de lendas e velhas tradições, onde a harmonia com a mãe natureza humaniza as relações de quem não vive ainda sufocado pelos ditames da razão técnica. Pela Palhaça nutria um amor entranhado, profundo e orgânico. Entre outros assinaláveis serviços, está indelevelmente ligado à investigação histórica da sua terra, de que foi, conjuntamente com Manuel Simões Alberto, um dos cabouqueiros e um extremado guardião dos seus valores e das suas gentes.

Nasceu, viveu e foi influenciado por um tempo que praticamente já não existe. Tempo de outra convivência social, de diferentes formas de religiosidade. De curandeiros, mezinhas e superstições. Da chiadeira dos carros de bois e do trabalho árduo nas terras de pão. Dos crimes por causa dos marcos na disputa por um palmo de terra. Das tecedeiras e dos teares, das atafonas e das azenhas, das tremoceiras, tanoeiros, ferradores e moleiros. Dos fornos de cal. Da rega dos campos, com a nora a gemer vergada ao peso dos alcatruzes. Dos pipos cheios e do cheiro a mosto nas adegas. Tempo também de usos e costumes que ajudavam a sacudir o marasmo de um ambiente puramente rural: a “serração da velha”, os bailes da “mi-careme”, a prova do vinho novo a onze de novembro, pelo S. Martinho, a festa do galo, o folar da Páscoa, a massa a levedar na gamela, a cruz na massa para proteger do mau olhado, a broa a sair do forno, a lareira a crepitar amornando corpos e  almas.

De muitas destas coisas me falou o Dr. Capão nas três únicas mas demoradas visitas que fiz a sua casa, a partir de 2003. E também falou de raspão sobre coleções de moedas, conchas marinhas e selos que eu trocava com o filho José Armando, na camioneta da carreira que nos conduzia até Aveiro. Muitas tradições populares e levantamentos etnográficos e linguísticos foram por ele amorosamente registados para memória futura, para que todo esse rico património não se esboroasse.

Alguns desses trabalhos ajudam a manter ou a recriar o espírito do lugar, a sua atmosfera própria e a história das suas gentes. Para dar alguns exemplos, e só no que diz respeito à terra que o viu nascer, basta citar o extenso texto “Memórias da Palhaça”, (2) o jogo do Bichoiro, que praticou em menino e posteriormente registou por lhe reconhecer “grande valor sob o ponto de vista da motricidade, da destreza e da habilidade”(3). Ou os costumes familiares do seu tempo, em que os pais, para lá das orações, ensinavam às crianças as primeiras habilidades de apreensão mais fácil (4). Ou ainda o minucioso estudo elaborado a partir do manuscrito sobre o Auto dos Reis Magos, que Manuel Simões da Silva (Manuel Tomé) em boa hora registou. Sobre o cortejo dos Reis, espetáculo fortemente entranhado na cultura popular local e que se realizou pela primeira vez na freguesia da Palhaça em 6 de janeiro de 1925 (5)  diria António Capão: “Não perde a terra a originalidade se os seus usos, costumes e tradições forem publicadas, antes ganha, pois que passa a ser mais conhecida”(6).

Para lá da Palhaça, António Capão também fez incidir as suas preocupações filológicas, etnográficas e históricas no concelho de Oliveira do Bairro, a quem dedicou a Carta de Foral, um estudo das leis antigas de outorga de direitos e deveres, bem como um Roteiro Religioso e Cultural onde desfilam as relíquias que a população do concelho acarinha (igrejas, imagens icónicas, capelas públicas e particulares, ermidas, alminhas e cruzeiros).

Roteiro

À região dos pâmpanos dedicou Relance histórico-linguístico sobre a região da Bairrada – Influências Arábicas, onde procura mostrar que os árabes e a cultura muçulmana deixaram marcas no território e no vocabulário do nosso quotidiano, um legado que continua vivo. Deu também à estampa Os Moinhos da nossa Região. Sua vida e decadência, um meticuloso trabalho de campo sobre os instrumento e maquinismos de moagem dos cereais, muitos deles praticamente desativados ou em ruina lenta apesar da importante função social que cumpriram em tempos mais recuados. Sendo uma revisitação da infância e um marco na memória coletiva, o livro é também “um belo poema com que a Bairrada poderá, desde agora, adornar-se, como se de mais uma joia o seu dote fosse acrescido”(7).

Ao distrito de Aveiro, em cuja cidade exerceu funções docentes e chegou a residir quando regressou de Moçambique, ofereceu Relíquias da Tecelagem, estudo de  etnografia de uma atividade artesanal com os dias contados. Havia quem chegasse a demorar dias para pôr um tear a funcionar, o que levava os antigos a dizer que um tear aparelhado é como um burro albardado.

MoinhosPublicou também Cultura Popular em Terras de Aveiro (Etnografia e Literatura), onde disserta sobre literatura e cultura popular, aborda os trabalhos agrícolas, dá conta dos processos de moagem, explica os meios de transporte na atividade do campo, analisa os divertimentos, costumes e crendices da população. Fá-lo com a vantagem de quem parte para a investigação “de bornal já bastante bem aviado, porque nascido com as mãos na eira, com os pés no quintal, com os olhos nos moinhos, nas atafonas, em tanta coisa [pois] não admira que alguém o vá encontrar ainda hoje com as mãos na eira a debulhar uns feijões, com os pés nas árvores a chegar a fruta, com a enxada na mão a guiar a água”(8).

Num tempo em que as elites de um Portugal acentuadamente rural manifestavam indiferença ou até desprezo pelas formas de vida rústica, António Capão soube intuir que as tradições seculares se perderiam de forma irremediável se tal património não fosse defendido, registado e colocado à disposição das gerações futuras. Esse um dos seus méritos. A forma como acarinhou o Museu de S. Pedro da Palhaça, de que foi diretor, e o conhecimento seguro com que explicava, com evidente deleite, a utilidade dos arados e das charruas, dos moinhos e das azenhas, atestam bem o saber e a dedicação próprias do especialista do património e da sua luta permanente contra a incúria e a ignorância.Cultura Terras Aveiro

Para António Capão o que sempre foi estável e firme foi a crença em valores imutáveis como a religião, que tenderia a considerar um dos meios mais poderosos de garantir a ordem e a coesão social, erigindo-a como uma espécie de barreira contra a imoralidade. A dissolução dos valores morais conduziria à degenerescência e à anarquia. A política pura e dura pouco o interessava e por isso dela se distanciou sempre: “De política, só o que consideramos importante, como resposta aos valores do homem cristão projectados na própria família e aos verdadeiros valores da Pátria, nos interessa”(9).

É em nome desses valores que no primeiro texto com que no remoto ano de 1952 inicia a colaboração no Jornal da Bairrada denuncia o desajustamento entre o mundo material e moral dos habitantes da sua aldeia: “Por vezes, um ou outro, que a fortuna acarinhou, vai afirmando que o dinheiro é que vai dando o polimento (…). E nota-se um absoluto contraste entre a vida mundana e a vida religiosa (…). A Palhaça é uma freguesia essencialmente católica; e disto a conclusão é péssima: muita gente à missa com hipocrisia; muita gente a comungar em sacrilégio; muita gente a confessar-se dos erros dos outros, deixando os seus em atraso”(10). Verdadeiras pedradas no charco da hipocrisia reinante. Palavras avisadas as deste então jovem estudante liceal, frontais e desassombradas, como que a dizer-nos que o homem não vale pelo que tem mas sobretudo pelo que é e pelo esforço que faz para se tornar naquilo que será.

Terá sido ainda em coerência com esses valores que quando conclui a licenciatura em Filologia Românica, em 1959, recusa qualquer tipo de festejos – como era habitual nessa época, com toda a aldeia a participar –  por se encontrar de luto recente devido ao falecimento do pai. Apenas algum tempo depois assentiu que um grupo de amigos lhe oferecesse um jantar no salão da Junta de Freguesia. Manifestação ainda assim singela, a pedido do homenageado, precedida de missa em ação de graças (11).

António Capão amou e divulgou tão entranhadamente a sua terra e a própria Bairrada que estas não deixarão, mais cedo ou mais tarde,  através dos seus poderes públicos, de o homenagear como merece. Para que o seu nome honrado não desapareça da memória coletiva. Podem dar-lhe um nome de rua, de uma escola, biblioteca ou até de um Museu da Região, que defendeu em 1989 e do qual traçou as linhas orientadoras no 2.º Encontro de Escritores e Jornalistas da Bairrada.

Eis o seu plano: “Cada aldeia deveria possuir um pequeno museu englobando todas as atividades que lhe são inerentes e cujas peças nele guardadas deveriam ser estudadas e devidamente catalogadas; cada sede de Concelho deveria possuir também um museu, mas representativo de todas as aldeias que lhe pertencem e de acordo com os vectores incidentes sobre as suas actividades características; em zona a estudar, dentro da própria região, com características próprias bem definidas, surgiria então o Museu da Região onde estariam representados todos os Concelhos dentro dos aspectos considerados mais representativos, em estreita ligação com todas as suas povoações”(12). A Bairrada e a Etnografia

O Dr. Capão sentia necessidade de apartar-se dos tumultos da vida social e do que sentia ser a sua crescente desumanização, sem contudo cortar as amarras que o ligavam ao mundo. Recolhia-se em casa (para dizer melhor: no lar, que é coisa bem diferente) envolto nalguma solidão, sobretudo após o desaparecimento físico de D. Armanda, a sua esposa. Era aí que como uma harpa sensível – um pouco à semelhança da harpa eólica que os gregos penduravam nas árvores – ia  registando as próprias emoções e também o sentir e o viver dos outros, porque ver os outros com os olhos da imaginação é também, de certo modo, um dom do poeta.

Tal como acontece com muitos homens de cultura, o Dr. Capão sentia não ser profeta na sua terra, o que aliado a algum sentimento de injustiça o tornava uma natureza com propensão para o melindre. Talvez por isso mostrasse em público um semblante carregado e por vezes um ar sisudo. Mas em privado, no espaço acolhedor da sua casa, como que se transfigurava: era afável e cordato, de uma forma quase tocante. Abria-se como um livro vivo, sempre pronto a mostrar as pérolas de cultura que ciosamente ia acumulando e lhe aqueciam a alma sensível.

É longa a folha de serviços prestados à cultura da região e do país. Fica mais pobre a cultura quando um homem com estes méritos parte do mundo dos vivos. Bem merecia estar ainda entre nós quem, há pouco mais de um ano, prometia – ultrapassado já o batente dos oitenta – continuar “a contribuir para o prestígio da Academia” (referia-se à Academia Portuguesa de História, para a qual foi eleito membro em Junho de 2011). A ceifeira impiedosa não permitiu que nos desse a conhecer o muito que ainda tinha para legar. Escrever e registar sempre – pouco ou muito – era essa a sua divisa.

Em 2010, de forma algo premonitória, o Dr. Capão fala-nos do destino a dar ao “variadíssimo espólio” da sua biblioteca particular, que pacientemente foi construindo e considera “precioso”, por ter obedecido a “critérios muito próprios de selecção”. E deixa no ar a pergunta, num tom grave e que se adivinha angustiado: “Que vai ser de todo este papel, cheio de belíssimas lições, pleno de riquíssimos ensinamentos, quando o nosso sangue arrefecer, quando os nossos neurónios deixarem de trabalhar e nós passarmos desta vida para o Além que nos espera inexoravelmente?”(13).

Que eu saiba ninguém respondeu a tão tocante gemido cultural. Onde a resposta da Câmara Municipal do nosso concelho? Onde a de qualquer outra instituição com pretensões de divulgação cultural? Quem respondeu com afeto confiado ao seu apelo? Será que todo esse espólio, com eventuais manuscritos inéditos, vai perder a unidade essencial que o deve caraterizar e fragmentar-se nas mãos dos seus descendentes? Ou vai, por incúria nossa, ser depositado fora do concelho como aconteceu ao de padre Acúrcio Correia da Silva?

Mudaram os tempos e os hábitos. Cronos é poderoso e implacável, ao ponto de criar e devorar os próprios filhos. Mas o empenho de António Capão em preservar os valores do passado, por ver neles o cimento aglutinador do presente, foi decisivo para resistir ao processo de descaraterização de lugares e culturas ancestrais. A fidelidade a esses princípios prolongou-se na entrega radical aos trabalhos que produziu e nos deu a conhecer.

Ignoro se as pessoas da minha terra estão conscientes de que o Dr. António Capão foi até hoje – por tudo aquilo que publicou e pelas palestras e conferências que produziu – o seu mais genuíno representante cultural, o filho mais dotado que o ventre campestre e acentuadamente rural da Palhaça do seu tempo gerou até hoje. Se há quem considere excessivo este realce, que diga então: que outra figura da sua geração merece na Palhaça maior destaque? Quem, melhor do que ele, soube promover o diálogo entre tradição (transmissão, dádiva, herança recebida do passado) e modernidade (o que se acrescenta à herança recebida, o que criamos de novo, inovando e acrescentado)?

António Capão é um archote da cultura bairradina que não podemos deixar extinguir. Agora que a morte o obrigou a pagar-lhe o seu tributo, é imperativo que a marcha inexorável do tempo não cale a voz de um homem ouro de lei, cujo nome honrado a Palhaça, o concelho de Oliveira do Bairro e a região da Bairrada devem registar para todo o sempre. Não deixemos que uma hera de silêncio comece a enroscar-se dolorosamente em torno do seu nome.


 

[1] Armor Pires Mota, “Entrevista com António Capão”, Terra Verde – Suplemento mensal do Jornal da Bairrada, n.º 3, 05.07.1991.

[2] António Capão, “Memórias da Palhaça”, in Freguesia da Palhaça. Contribuição para a sua monografia. Publicação do Centro Paroquial da Palhaça, 1977, pp. 7-31.

[3] Idem, “A propedêutica infantil e o jogo do Bichoiro”, Boletim da ADERAV, n.º 5, 1981.

4] Idem, “”A família aldeã e a cultura infantil”, Boletim da ADERAV, n.º 23, 1984.

[5] O Democrata, 17.01.1925.

[6] António Tavares Simões Capão, “As ‘Janeiras’, as ‘Pastoras’ e os ‘Reis’”, in Aveiro e o seu Distrito, n.º 4, 1967, p. 60.

[7] Idália Sá Chaves, a propósito do livro ”Os Moinhos na Nossa Região”, Jornal da Bairrada, 13.09.1995, p. 10.

[8] Armor Pires Mota, “António Capão: Cultura Popular em Terras de Aveiro”, Jornal da Bairrada, 08.09.1993, p. 8.

[9] Carta de Foral de Oliveira do Bairro, 1991, p. 10.

[10] António Capão, “Avante com o progresso moral”, Jornal da Bairrada, n.º 39, 15.08.1952.

[11] Jornal da Bairrada, n.º 226, 02.01.1960.

[12] Armor Pires Mota, “Entrevista com António Capão”, Terra Verde – Suplemento mensal do Jornal da Bairrada, n.º 3, 05.07.1991.

[13] António Capão, “Livros Velhos”, Jornal da Bairrada, 29.07.2010, p.28.

Um adeus ao Kevin, mas não à juventude

Ainda consigo ver um sorriso tímido mas desarmante a bailar-te nos lábios. E apetece-me eternizar o instante. Era assim que aparecias cá por casa. Primeiro, acompanhado da tua Mãe. Mais tarde, já adolescente, algumas vezes sozinho.

Trazias na mão o inevitável frasquinho de compota – tantas vezes doce de uva – que a Graça preparava e de forma generosa distribuía – e ainda distribui – pelos outros. No regresso, levavas alguns livros de banda desenhada que eu comprava para o André. Naquele tempo, seguramente o Asterix e o Tintim. O Lucky Luke – o cowboy que dispara mais rápido que a própria sombra – os Dalton e alguns outros só apareceram por cá mais tarde. Lembras-te?

Digo-to agora, com um irremediável instante de atraso: sempre simpatizei muito contigo. E sinto o remorso do que ficou por dizer. Por isso não devias ter partido assim, Kevin. Se nenhuma idade é boa para morrer, a partida de alguém de quem se gosta é sempre uma tristeza. Com a tua idade, as circunstâncias em que partiste não deixam ninguém indiferente.

Não tive contigo as conversas, nem o convívio, nem sequer a cumplicidade que costumam forjar as grandes amizades. Sempre são quarenta anos de diferença a separar-nos!  Mas não era difícl perceber que eras um miúdo porreiro e sensível, e que assim terás continuado a ser até ao sombrio e fatídico domingo passado.

Bem sei que a vida é uma passagem e que ignoramos o que nos espera do lado de lá, ao qual tu já pertences.  Mas a notícia de uma morte inesperada é sempre um grande desconforto. Por isso a sensação de vazio e de ausência que agora começa é mais amarga e difícil de suportar.

Como aplacar este desgosto que morde como um cão danado? A melhor forma que encontrei foi reparti-lo, colar esta dor à dor dos que te querem bem: pais, familiares e amigos certos, todos os que te deram um cuidado sem descanso, uma atenção sem intervalos.  E eram tantos hoje à tarde, a desaguar em lágrimas num lago de ternura e comoção à solta.

Regressei a casa, depois do derradeiro adeus nesta tarde tão agreste. Continuo sem coração para ver enterrar os amigos, mas lá fui, a custo, como um náufrago à procura de um porto de abrigo. A emoção vai passar mas a tristeza perdura. O tempo suaviza-a, mas não a apaga.

Olha Kevin: os livros que leste, manuseaste e tocaste de perto, continuam no mesmo sítio. De algum modo são uma marca tua e te continuam. Sei que não há palavras para exprimir o indizível, mas o que pretendi aqui foi isso mesmo: ressuscitar-te um pouco, ao menos com palavras.

Fico com pena de não teres aparecido nos últimos tempos. Não duvido que tinhas coisas mais interessantes para fazer, reclamadas pelos teus fogosos e verdejantes vinte e um anos. Mas olha que tenho por aqui umas bandas desenhadas, à Milo Manara, que ias apreciar. Fica para um dia destes. Prometido.

(05.02.2014)

Nos 500 anos da Carta de Foral de Oliveira do Bairro (impressões de leitura)

O dia 6 de Abril de 2014 assinalou os 500 anos da Carta de Foral de Oliveira do Bairro, cuja interpretação pertence ao ilustre bairradino António Tavares Simões Capão, um particular interessado no conhecimento da História Local e um homem preocupado com a fixação da memória num tempo em que se caminha para a desmemoriação total. A capacidade para descodificar a linguagem e a estrutura dos textos da carta de foral não está ao alcance de qualquer um. Interpretar fontes documentais ajustadas a uma realidade local tão distinta da actual exige grande perícia e conhecimento. É tudo isto – e isto não é tudo – que lhe devemos.Foral Antonio Capaao

Para se perceber a importância dos forais atente-se ao que refere Marcelo Caetano: “Não basta num Estado a existência do governo supremo com seus órgãos centrais: é necessário que as decisões desse governo possam ser conhecidas e impostas em todas as partes do território e que as necessidades peculiares de cada localidade sejam atendidas e possam chegar ao conhecimento dos governantes”.[1] Dito de outro modo: não bastava legislar. Para realizar a justiça, que era uma das obrigações, se não a principal, de um rei do passado, era necessário que a legislação fosse conhecida de todos e por todos usada correctamente.[2]

Hoje, qualquer cidadão conhece a área geográfica onde reside, identifica a pertença a uma freguesia que está inserida num concelho, o qual, por sua vez, se integra num distrito. Pois bem, na Idade Média esse enquadramento era bem mais difuso: além de não existirem distritos, a realidade medieval projectava-se para lá dos concelhos, devendo atender-se também às “dinâmicas sectoriais que de perto conviviam com as autoridades municipais e se plasmavam no texto dos próprios forais, na medida em que consubstanciavam relações de difícil concorrência e que precisavam de memória escrita para as clarificar e fixar no horizonte social do grupo comunitário a que diziam respeito […]. É pois de crer que o homem medieval teria dificuldade em conseguir representar mentalmente a geografia do território em que estava integrado”.[3]

A estes obstáculos deve somar-se a diversidade e a complexidade de cada território em particular, acentuada pela sobreposição de distintas esferas de actuação, que vão desde o poder real, ao local, passando pelo senhorial. Várias áreas geográficas estavam sob a jurisdição de um núcleo de senhores que partilhavam com a coroa alguns atributos do poder público. Daí a preocupação crescente dos monarcas em restringir os poderes senhoriais – assentes em títulos e na propriedade fundiária – o que não se fazia sem conflitos.

Os poderes senhoriais representavam uma significativa perda de receitas para a coroa. A intervenção régia nos concelhos era bem mais fácil, assumida por oficiais (corregedores ou juízes de fora) que asseguravam localmente a tutela do monarca. Assim se compreende que um dos primeiros objectivos da reforma manuelina consistiu em tentar clarificar as diferentes esferas do poder local.

Também nestas matérias os forais se assumem como fontes de direito indispensáveis para ajudar a perceber como é que estas dinâmicas se articulavam no terreno.[4] Eram frequentes as animosidades, conflitos e resistências das comunidades locais perante os abusos dos poderes senhoriais – clero e nobreza – mais presentes a nível local. A gestão do equilíbrio entre os diferentes poderes era difícil.

As mais antigas cartas de foral tinham como principal objectivo o povoamento do território, assumindo-se como contratos agrários que estão na base da formação de núcleos populacionais autónomos. Fazia-se um apelo a quem quisesse fixar-se em determinada localidade, bastando-lhe acatar as disposições contidas no diploma. Era comum, ao conceder-se foral a uma localidade, adoptar o modelo de outro anterior. Reproduzindo-o integralmente ou com ligeiras alterações. O concelho brindado com a outorga do foral via-se livre do controlo feudal. O poder mudava de sede e passava para um concelho de vizinhos. A população ficava a depender directamente da Coroa.

A temática foraleira está assim associada ao estudo dos municípios portugueses e ao próprio poder local. Interessa às actuais Câmaras Municipais, herdeiras da tradição concelhia medieval, uma vez que os forais espelham os poderes régios, senhoriais e municipais de uma determinada área territorial específica. Em termos gerais os forais preceituavam o seguinte: liberdades e garantias de pessoas e bens dos povoadores; impostos e tributos; multas resultantes de delitos e contravenções; imunidades e serviço militar; encargos e privilégios, ou aproveitamento de terrenos comuns. Muitas outras matérias, nomeadamente de direito privado – e que por isso ocupavam um plano muito secundário nas cartas de foral – continuavam a ser reguladas pelo costume.

No século XV os forais antigos eram motivo de controvérsia. Estavam redigidos em latim bárbaro e por isso afastados do conhecimento da maioria duma população vergada ao peso da terra e manietada pelo flagelo do analfabetismo. É sabido, também, que a Idade Média fabrica sem má consciência – sobretudo nos seus primórdios –  falsos diplomas, falsas cartas e falsos textos canónicos. O facto de muitas cartas se encontrarem delidas pelo tempo ou até, nalguns casos, o seu carácter opressivo, levaram os procuradores dos concelhos a pedir a sua reforma. Eram frequentes os abusos dos donatários. A interpretação dos documentos servia apenas o interesse de alguns. Atente-se só neste exemplo: os nobres chegavam com a sua comitiva a uma qualquer localidade e, fazendo uso do direito de aposentadoria, instalavam-se, assentavam arraiais e exigiam alimentação e outras comodidades. Finalmente, há que dizer que havia também conflitos que resultavam da assinalada disparidade entre regiões relativamente aos pesos e medidas.[5]

A reforma viria a acontecer no reinado de D. Manuel I (1495-1521). Não para fortalecer a autonomia dos municípios mas essencialmente para registar encargos e isenções locais, já que o poder real estava cada vez mais empenhado em estender as disposições legislativas gerais a todo o território. À medida que essas lei gerais iam sendo implantadas, assiste-se ao “enfraquecimento do poder estabelecido nos forais e daqueles que nele se pretendiam firmar”.[6]

Os forais novos são apenas uma das várias emanações das diferentes reformas manuelinas. Eram precedidos de inquirições feitas aos “homens livres” e concedidos aos representantes dos lugares. Estabeleciam as regras a seguir pelos habitantes entre si e em relação à entidade outorgante. A sua análise devolve-nos um retrato da sociedade quinhentista, particularmente no campo do direito e da economia. Eram concedidos pelo rei ou por um senhor laico ou eclesiástico, dependendo a outorga de quem detinha o poder fundiário. Estes forais novos consagram um vasto conjunto de direitos a pagar ao rei, a par de obrigações para com outras esferas de poder. Estamos a falar de uma sociedade em que o privilégio se sobrepunha à lei geral.

A preocupação dominante em “certificar a natureza e o quantitativo dos direitos reais” ajuda a explicar a razão pela qual estes novos diplomas mantêm intocados os órgãos concelhios e as suas atribuições.[7] Convém referir que a reforma manuelina dos forais é encetada em simultâneo com a reforma das Ordenações: “Muitas das disposições relativas à justiça, assim como as de âmbito económico, estavam já consagradas nas leis gerais do reino”.[8] É o que acontece com o direito de portagem, um direito real inscrito nas Ordenações Manuelinas que passa a ser cobrado de maneira tendencialmente uniforme nas diferentes terras.Ordenações manuelinas

Para a coroa o municipalismo representava uma importante fonte de receitas e até de recursos económicos e militares que podia fornecer ao país, ajudando a fortalecer o poder real. Ao longo do século XVI esse fortalecimento acentuava o declínio das instituições concelhias. Paralelamente, a importância dos forais também diminui, quando se transformam em “meros registos de tributos dos municípios”.[9] Esta reforma promovida pelos forais novos foi tudo menos pacífica: eram frequentes as reclamações dos concelhos e dos senhorios, a quem não agradava a versão final dos documentos que lhes chegavam às mãos.

Feito este enquadramento, vejamos então aquilo que o foral de Oliveira do Bairro nos dá a conhecer de mais relevante sobre o pulsar das terras por ele abrangidas no período quinhentista, nomeadamente na esfera social e da economia. Segundo o Dr. António Capão, os forais novos manuelinos só aludem ao vinho de permeio com outros produtos, como o pão, a cal e o sal, quando se trata de fixar os preços de portagem e passagem. A chamada “regra do relego” (privilégio de que gozavam os senhores de algumas terras para venderem o seu vinho aos pequenos proprietários, proibindo a venda de vinho avulso durante os três primeiros meses do ano, período em que só o seu podia ser vendido) aparece inscrita em algumas cartas de foral da Idade Média. Só que não aparece no foral de Oliveira do Bairro.

Este tempo de relego era pois um atentado sério ao livre comércio. Trata-se de um direito mencionado nas Ordenações Manuelinas, que incidia igualmente sobre a venda do vinho régio, proibindo a venda deste produto a particulares sem que primeiro se escoasse o vinho que pertencia ao Rei.[10]

Infere assim o autor bairradino a forte probabilidade de estarmos em presença da diminuta importância da cultura da vinha durante o século XVI, nos locais abrangidos pela carta de foral: Oliveira, Cercal, Repolão, Pedela (Vila Verde), Montelongo, Lavandeira, Amoreira (do Reploão)  e Bairro do Mogo. Em seu entender, “a produção vinícola até ao século XVI não explicava ainda a necessidade dessa lei específica [pois] o cultivo da vinha no século XVI não teria, na nossa região, a importância que então lhe é dada noutras partes do país”.[11]

O cultivo da vinha na Bairrada parece datar do período romano: “Pode afirmar-se que as vinhas da Bairrada são mais antigas do que a própria Nação Portuguesa, como os numerosíssimos documentos das chancelarias comprovam”.[12] Em 1137 “receberam os monges de Santa Cruz toda uma vastíssima herdade, no coração da Bairrada, com autorização para plantar vinha”.[13] Já a importância da produção do vinho na região terá acontecido bem mais tarde, em plena Idade Média. Pelo menos a partir do século XI o vinho serviria não apenas para consumo e comercialização, mas também como forma de pagamento das rendas e dos impostos.[14] Era no vinho que os senhores da terra encontravam a maior fonte dos seus impostos.

O certo é que as conclusões extraídas pelo Dr. António Capão, a partir da leitura que fez da carta de foral, colocam em causa – pelo menos no que se refere a Oliveira do Bairro – a possibilidade de a viticultura ter sido sempre a actividade predominante na área em estudo, sobrepondo-se, entre outras, à cultura da oliveira. Também Armor Pires Mota se pronuncia sobre o assunto ao constatar que na carta de foral de Oliveira do Bairro o vinho não surge como “moeda” extraindo a conclusão de que, “embora já cultivado, o fosse em pequena escala, ao contrário de outras terras, como Soza e Ouca que, nesses tempos remotos, já produziam bastante, de tal modo que aparece como elemento de pagamento nas obrigações dos casais”.[15]

Este escritor e autor bairradino mostra também alguma perplexidade pelo facto do foral de Oliveira do Bairro não aludir expressamente à produção de cal. Na verdade a cal aparece no documento ao lado do vinho, do pão e do sal, produtos sujeitos ao pagamento de direitos de compra e venda. O certo é que no capítulo que dedica à indústria da cal (páginas 307 a 310) alude a vários locais “onde fumegavam fornos e estoiravam chãos de pedra” mas em nenhum momento os faz remontar a inícios do século XVI, ou seja, à data da outorga do foral. Tudo leva pois a crer que o florescimento desta actividade tenha ocorrido alguns séculos depois.

Anota também o Dr. António Capão, como curiosidade, que no foral “os escravos são colocados ao lado ou em pé de igualdade com as bestas e vendidos ou comprados como tais”.[16] Estamos a falar de servos da gleba que pertenciam à terra do senhor, normalmente fidalgos, ou seja “filhos de algo” que deviam ao nascimento a posição privilegiada que ocupavam na hierarquia social. Os servos pertenciam às suas quintas da mesma forma que as aves de capoeira, o gado ou os cães de guarda e de caça. Quando a herdade mudava de mãos – por transação ou herança – os servos da gleba iam com ela e tornavam-se propriedade do novo senhor. Estamos a falar de reminiscências de tempos bem mais recuados, quando em plena sociedade esclavagista romana Marco Terêncio Varrão, ao aludir aos meios de trabalhar a terra, chamava aos escravos “instrumentos falantes”, para os distinguir dos instrumentos que emitem sons não articulados (animais de tracção) e dos instrumentos mudos (utensílios agrícolas).

Digna de registo é também a importância do sal para a população, sobretudo para a conservação dos alimentos. O foral dá-nos conta disso: além de outros produtos como os ovos ou o pão cozido, também o leite e seus derivados sem sal não pagavam portagem. Enfim, deixa-se ao leitor o prazer de descobrir outras curiosidades que a carta de foral encerra. Que produtos se transacionavam, que tributos pagavam, que pesos e medidas eram usados. E também lá pode encontrar o que era a pena de arma, o gado de vento, o direito de fogaça e de montado e tantas outras curiosidades.

O Decreto de 13 de Agosto de 1832 (Mouzinho da Silveira) extinguiu por completo os forais, vistos como “um peso intolerável” em certas regiões de Portugal, por constituírem um sério travão ao desenvolvimento da agricultura. Na verdade e por efeito do sistema legislativo e fiscal desses tempos recuados, muita gente da nobreza e do clero usufruía de “fartos proventos que o povo ia pagando, nuns casos, para salvação da alma, noutros, para salvaguarda do coiro”.[17]

Os forais são documentos valiosíssimos enquanto repositórios de memórias que podem e devem ser transmitidas às gerações actuais e futuras. Para Jacques Le Goff, o historiador recentemente desaparecido que nos legou trabalhos notáveis como O Nascimento do Purgatório – o nascimento de uma crença, de um espaço construído que corresponde, no século XII, a uma necessidade de espacialização do Além – estes documentos são também monumentos na medida em que estão ligados ao poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas.[18] Assim sendo, a Carta de Foral de Oliveira do Bairro não é apenas um documento do passado: assumindo-se como um produto da sociedade que o fabricou segundo as relações de força de quem à época detinha o poder, é também um monumento, enquanto testemunho escrito legado à memória colectiva que assim se institui em património cultural.

Seria gratificante que a população do concelho de Oliveira do Bairro e por maioria de razão a comunidade escolar pudessem reflectir, um pouco que fosse, sobre algumas questões relacionadas com a atribuição do foral. Por exemplo: há quinhentos anos terá o povo recebido a notícia com o mesmo entusiasmo com que agora se comemora a data? Não houve reclamações ou protestos? Dar a conhecer um pouco como funcionava a sociedade quinhentista e qual o perfil do monarca que empreendeu a reforma dos forais (D. Manuel I foi um rei centralizador, inovador e reformador) ajudaria a distanciar estas comemorações da pior das inculturas: a que faz da cultura uma convenção e não uma convicção.

Espera-se, pois, que para lá do divertimento – cuja programação parece incluir evidentes preocupações culturais – irrompam também momentos de reflexão. O pior que nos podia acontecer é que tudo se resumisse a umas tantas festarolas habilmente confundidas com actos culturais, “pão e circo” para entreter os incautos do costume.


[1] Marcelo Caetano, História do Direito Português (1140-1495), Lisboa, Editorial Verbo, 1992, p. 215.

[2] João José Alves Dias, Ordenações Manuelinas 500 anos depois. Os dois primeiros sistemas (1512-1519), Catálogo da Biblioteca Nacional de Portugal, Centro de Estudos Históricos-Universidade Nova de Lisboa, 2012, p. 15.

[3] Filipa Maria Ferreira da Silva, Os Forais Manuelinos de Entre Douro e Minho (1511-1520): Direito e Economia. Dissertação de mestrado em História Medieval e do Renascimento, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 20012, p. 13. Vamos seguir de perto a obra citada, na elaboração deste texto.

[4] Idem, p. 12.

[5] Idem, p. 18.

[6] Maria Alegria Fernandes Marques, Os Forais Manuelinos de Soza e de Vagos (Nota introdutória), edição da Câmara Municipal de Vagos, s/d, p. 20.

[7] Idem, pp. 20-21.

[8] Filipa Maria Ferreira da Silva, obra citada, p. , p. 34.

[9] Mário Júlio de Almeida Costa, “Forais”, in Dicionário de História de Portugal (Joel Serrão, dir.), Porto, Livraria Figueirinhas, pp. 55-56.

[10] Ordenações Manuelinas, Livro II, Título XXXIV, p. 159, segundo Filipa Maria Ferreira da Silva, obra citada, p. 52, nota 213.

[11] António Capão, Carta de Foral de Oliveira do Bairro, Edição da CMOB (2.ª edição corrigida e aumentada), 2001, p. 28.

[12] J. Branquinho de Carvalho, “Síntese das vicissitudes das Vinhas e dos Vinhos”, Jornal da Bairrada(Suplemento Bairrada Vitivinícola), 26.12.2002, p. 7.

[13] Amaro Neves, “Pantar vinhas…na Bairrada”, Boletim da Associação para o Estudo e Defesa do Património Natural e Cultural da Região de Aveiro (ADERAV), n.º 11, Maio 1984, p. 11.

[14] Diana Moreira, “Bairrada de ontem”, Jornal da Bairrada, 11.08.2005, p. 26.

[15] Armor Pires Mota, Oliveira do Bairro. Alma e Memória, edição da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, 2002, p. 38.

[16] António Capão, obra citada, p. 55.

[17] Carlos Alegre, “Os centenários dos forais”, Jornal da Bairrada, 30.01.2014, p. 3. Sobre o 5.º centenário dos forais manuelinos, ver, no mesmo jornal, Eva Neves Dias, “Os Centenários dos Forais” (edição de 20.02.2014, p. 50) e Acílio Gala, “A comemoração dos 500 anos da Carta de Foral de Oliveira do Bairro” (edição de 27.03.2014, p. 3.).

[18] Jacques Le Goff, “Documento/Monumento”, Enciclopédia Einaudi (vol.1, Memória-História), Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 95-104.

Arsénio Mota — um olhar cultural e regional sobre a Bairrada

AM - Uma Vida como ObraPara lá dos variados caminhos de expressão escrita (poesia, conto, crónica, ensaio e sobretudo literatura infanto-juvenil), a trajectória de vida de Arsénio Mota (AM) inclui também os estudos e antologias que dedicou à Bairrada e as monografias sobre a vila de Bustos,  a terra onde nasceu e que nela se insere.

Nascido em 1930, terá escutado os derradeiros gemidos culturais da Plêiade Bairradina, fundada em 1918. Terá ouvido falar, na adolescência, de padre Acúrcio Correia da Silva, que as gentes locais veneravam e que desapareceu de forma prematura em 1926. O mesmo não se dirá de António de Cértima, que rumou a Lisboa nos anos vinte, atraído pelas sereias do cosmopolitismo, pelo que a Bairrada desse tempo deixou de falar nele.

Foi já ausente da sua Bairrada que AM sentiu mais profundamente o apelo das raízes e o reavivar de algumas evocações e memórias ainda não delidas pelo tempo. Era preciso que alguém voltasse a reabilitar o espírito da Plêiade e a empunhar a bandeira cultural que esta desfraldara ao vento nos seus tempos áureos. O escritor bairradino viria a assumir, por sua conta e risco, esta ingente tarefa.

É desse incansável labor que se dá aqui testemunho. Esforços que passam pelo recuperar da visibilidade dos seus principais mentores – padre Acúrcio e António de Cértima – mas também de nomes mergulhados num esquecimento imerecido, como os poetas populares Manuel Alves, José Francisco Moreira e António Barata, o pintor Fausto Sampaio, o arquitecto Cipriano Maia, Feliciano Soares e França Martins, entre outros; pelos contributos que deu, sistematizando os já existentes, para a definição e delimitação da região da Bairrada; finalmente, pela insistência na importância duma análise regional capaz de libertar a região da imagem distorcida que dela temos, por simples associação redutora ao leitão assado e ao vinho maduro.

AM sempre intuiu que divulgar e promover a Bairrada requer o conhecimento prévio dos seus traços distintivos. Isso o fez procurar respostas para interrogações do tipo: como se define a nossa região em termos geográficos e culturais? Que trabalhos revelam e exaltam o espaço bairradino? Existirá, na Bairrada, um conjunto assinalável de obras que configure uma corrente literária regionalista? Tem a Bairrada aspectos paisagísticos, tipos humanos e linguísticos distintos dos de outras regiões portuguesas? Se tem, em que obras estão presentes? Até que ponto a psicologia do bairradino é moldada pela ambiência dos campos de milho e vinhedos, e pela corografia de horizontes, aqui e ali tapada pela mancha dos pinhais? A fala do bairradino é circunscrita a este espaço geográfico ou é comum à fala dos habitantes de outras regiões do país?

O escritor não foge a discutir estas questões e a dar-nos frontalmente o seu ponto de vista. Fá-lo em nome da defesa, valorização e divulgação de uma memória local e regional. O pontapé de saída acontece em 1987, na crónica “Bairrada sem Literatura”, publicada no Jornal de Notícias. Queria provar – e conseguiu – que a região tinha uma literatura que a exprimia, e que a Bairrada estava dentro da literatura. Em 1989, na Câmara de Anadia, participa no relançamento do livro «Versos do Campo», do poeta popular José Francisco Moreira. Nessa apresentação já falava «do desamor que vem condenando sistematicamente a cultura bairradina às urtigas».[1]

É também em 1989 que explica, com entusiasmo, como encontrou o Hino da Bairrada, logo vendo nele «outro elemento para desencantar a região adormecida». E acrescenta: «Eu gostava de ver esta música, com o poema, a correr na Bairrada de boca em boca».[2] Recordo, também, a alegria que sentiu quando finalmente conseguiu ter em mãos um livro de poesia que não aparecia em lado nenhum, as Seroadas Fulvas, de padre Acúrcio Correia da Silva.[3]

A ele se deve a organização dos três primeiros encontros de escritores e jornalistas da Bairrada, no quais via “a expressão mais flagrante de um movimento cultural-literário que pretendeu, e pretende, ir até às fronteiras da identidade regional”.[4] Entre as múltiplas iniciativas e propostas,  contam-se a organização de encontros e colóquios, a promoção de cursos de jornalismo, o apoio à edição de publicações, a instituição de prémios, a promoção de viagens de estudo, a aquisição da casa onde viveu Manuel Rodrigues Lapa, ou mesmo o reconhecimento do inegável interesse da imprensa regional como valor documental insubstituível.

A proposta para comemorar, em 1994, o centenário do nascimento de António de Cértima, avultava entre as restantes: pela figura do homenageado, pelas personalidades e entidades envolvidas, pelas iniciativas a empreender e por ter decorrido durante um período de tempo pouco habitual, praticamente seis meses. Para lá de organizar e ser o principal impulsionador das comemorações, AM profere a conferência “António de Cértima, a Bairrada e a Crítica” e realiza (com ideia e guião) o vídeo “António de Cértima” sobre a vida e obra deste escritor e diplomata bairradino.

Ao fundar, em 1990, a AJEB – Associação de Jornalistas e Escritores da Bairrada – a cuja direção presidiu durante quatro mandatos, a região adquire um dinamismo cultural e fervilha de entusiasmo como há muito não se via. Convocam-se reuniões, sucedem-se encontros, editam-se livros e antologias, cria-se o suplemento literário Terra Verde, instituem-se prémios literários e homenageiam-se escritores. Todas as iniciativas têm a participação activa e a marca inconfundível de AM. Para lá disso, organiza Letras Bairrradinas (1990), uma antologia de poetas e prosadores que cantaram ou deram testemunho da região; publica Estudos Regionais sobre a Bairrada (1993), o estudo biográfico António de Cértima – Vida, Obra e Inéditos (1994), organiza o livro António de Cértima – Colectânea de estudos no centenário do seu nascimento (1995) e publica ainda Pela Bairrada (1998) e Figuras das Letras e Artes na Bairrada (2001).

Estudos regionais bairradaNum tempo de esbatimento acelerado das identidades, de choque cada vez mais agudo entre o velho e o novo, entre o passado e o futuro, entre tradição e inovação, ninguém como AM lançou sobre a Bairrada o olhar regional com que sempre a quis ver. Ninguém como ele mostrou um pensamento tão articulado e consistente, procurando isolar o que se encontra em crescente processo de integração ou diferenciar o que está submetido a processos de homogeneização. Acreditava que só uma vigorosa intervenção cultural de matriz regional seria capaz de travar o rolo compressor da massificação acelerada, que tudo esmaga à sua passagem. Por isso encetou uma luta sem tréguas contra as formulações localistas redutoras, contra os que “insistem em reduzir a região à escala mesquinha das suas terreolas”.[5]

Estimular a reivindicação regional significa “ver” e planificar para lá dos interesses e da vontade das elites locais, não reduzir a história e a geografia desses lugares ao folclorismo pitoresco, ou ao eruditismo balofo, conferindo importância acrescida a entidades com competência cultural específica, às maneiras de sentir, pensar e agir das populações em estudos integradores ou de síntese – sobre um determinado espaço enquanto condensação de múltiplas manifestações sociais – que nos devolvam, com nitidez, a coesão e a coerência interna de uma dada região. Só dessa forma nos será revelada uma região com contornos específicos e não reprodutíveis em qualquer outro espaço geográfico.

Entende também AM que a aspiração à universalidade se tem mostrado inimiga da análise regional: ao esquecer que todo o universal tem o seu chão, ela tende a remeter os estudos regionais para um lugar subalterno no quadro mais geral da cultura, sem se dar conta que a genuína universalidade não dispensa as marcas de tempo e de lugar. Uma obra que é digna desse nome “não dilui na vaguidade de intenção universalista as suas marcas de origem”, na exacta medida em que no universo da cultura estão presentes, necessariamente, “todas as culturas nacionais, regionais e locais existentes, cada uma delas imbuída da sua própria especificidade, isto é, com os respectivos traços de originalidade inconfundível e vazada numa peculiar expressão linguística”. [6]

Foram estes, em breve síntese, os inestimáveis contributos de AM para os estudos regionais sobre a Bairrada, pela qual nutre um acrisolado amor e à qual dedicaria ainda, em 2008, já depois de sair de cena, o surpreendente e enternecedor Leitão Ciclista em Busca do  Paraíso, talvez o fecho desta sua aventura regional. Fábula sobre uma região com uns tantos centros mas sem cento nenhum, por se obstinar em não querer perder nenhum deles. A obra, na qual podemos entrever vestígios biográficos de quem sente saudade e vai da cidade à terra natal, mas logo se desencanta por ver tudo mudado, é mais um hino e uma ode à Bairrada, pois o leitão e as bicicletas são nela reconhecíveis traços identitários.Leitão Ciclista

Cansado de “pesos mortos” e de “rivalidades mesquinhas”, AM acabaria por sair de cena em finais de 2002. Com estrondo. Abandonou a Associação de que foi o primeiro fundador, um dedicado presidente e o principal dinamizador.

E daí para cá – vá lá saber-se porquê – a Bairrada mergulhou de novo numa apagada e vil tristeza cultural. É outra vez, a esse nível, uma seca, fera e estéril região.

(Texto publicado no catálogo do Museu do Neo-Realismo, pp. 21-26, no âmbito da homenagem ao escritor Arsénio Mota, que decorreu em Vila Franca de Xira e incluiu uma exposição patente ao público entre 1 de Novembro de 2014 e Fevereiro de 2015).


[1] Jornal da Bairrada, nº. 985, 21.07.1989, p. 24.

[2] Arsénio Mota, «Do Buçaco ao Vouga», Jornal da Bairrada, nº. 986, 28.07.1989.

[3] Idem, “Enfim, Seroadas Fulvas”,  Terra Verde, n.º 16, 07.08.1992, Suplemento mensal do Jornal da Bairrada.

[4] Idem, Encontros de Escritores e Jornalistas da Bairrada – Comunicações. Edição da AJEB, Abril de 1991, p. 7.

[5] Idem, “Para além das aparências”, Jornal da Bairrada (Suplemento Terra Verde, n.º 11, 07.03.1992). Texto incluído em Arsénio Mota, Pela Bairrada, Edição da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, 1998, p. 39.

[6] Idem, Estudos Regionais sobre a Bairrada, Editora Figueirinhas, Porto/Lisboa, 1993, p. 16.

— Ó Pai, a Terra é redonda

A ceia de Natal em família é uma tradição secular, que principiou nos Judeus para solenizar os dias festivos e chegou aos nossos dias para festejar o nascimento de Jesus. Mas, enquanto no tempo dos Judeus se comia a carne do Cordeiro Pascal com pão ázimo e legumes, no nosso tempo a imolação do cordeiro assado no forno foi substituída pelo bacalhau pescado nas costas da Noruega ou nos Bancos da Terra Nova.
Esta ceia sempre foi uma refeição mais substancial que o normal quotidiano nas aldeias da nossa região. Há sempre nela aquele prato tradicional e indispensável do bacalhau cozido, cujas postas são escolhidas e cortadas ao longo da espinha dorsal dum alentado garnisé e que, bem demolhadas, constituem a delícia dos apreciadores do fiel amigo que tão raramente aparece, agora, são e escorreito nas mercearias do nosso apagado burgo.
Nas cidades, nas vilas e nas aldeias, sempre se festejou o Natal, com a ceia da véspera, em que a família se reúne em volta de uma fogueira acolhedora. Mas ao passo que nas cidades e vilas andam as criadas a servir os seus patrões, engalanadas em punhos de renda e alva crista bordada, nas aldeias, uma enorme travessa redonda, farta e recheada, é posta sobre a mesa da cozinha, de onde pais e filhos comem espetando o garfo nos alimentos que se encontram na linha recta da sua posição à mesa, sendo-lhes absolutamente proibido invadir a área ocupada por outrém, para não tercejarem lanças em posição diagonal que poderia produzir um conflito familiar de graves consequências, aleivosas para a paz santa da família que se ama em liberdade e respeito.
Conta-se com uma certa graça que numa dessas ceias de Natal, em casa de um dos mais abastados proprietários ali do nosso vizinho lugar do Cercal, se passou a cena seguinte: depois de todos estarem sentados à mesa aguardando o apetitoso bacalhau, as claras batatas arran-banner, as tenras couves da horta, cortadas momentos antes, foi colocada entre todos, ainda fumegante, uma rica travessa de postas de bacalhau com alguns centímetros de lombo.
Em frente do chefe de família ficou uma posta que luzia pelo seu tamanho e apetecia pela sua altura, em lascas sobrepostas, como as folhas de um livro que a gente anseia por abrir, na avidez da sua leitura. O filho mais velho do casal, que cursara oito anos de liceu, não tirava os olhos daquele naco apetício e, antes que a mãe distribuísse por todos os garfos para a luta, diz o Abel, em tom de mestre-escola:
– Ó pai, a terra é redonda! E acompanha os seus conhecimentos de cosmografia agarrando nos bordos da travessa e dando-lhe uma volta demonstrativa da configuração e movimentos do planeta em que habitamos, levando para o seu lado e colocando na sua frente a posta de bacalhau que “era de gritos”. Mas o pai, inteligente e rábula, embora menos versado que o filho nos estudos dos filósofos gregos que explicaram a forma e os movimentos da Terra, mas tendo compreendido até onde queria chegar a atitude do seu filho, responde-lhe:
– Deves ter razão, meu filho, a Terra é redonda, tanto anda como desanda! E leva para o seu lado, novamente, o naco de bacalhau que deslumbrava a assistência, ante a passividade inquieta dos outros filhos que aguardavam, ansiosos, o fim do debate metafísico! Tinham caído por terra as conclusões a que chegaram Anaxímenes e Pitágoras, pois o velho Roças tinha demonstrado ao filho que a Terra tanto anda como desanda, isto é, tanto anda para a frente como anda para trás!

E nós, em face dos tempos que vão correndo e no desejo de imprimir um caminho recto e seguro aos nossos ideais e uma unidade clara a todos os nossos actos, talvez acabemos por dar razão ao velho Roças, do Cercal.

(Texto de Miguel França Martins, publicado no Jornal da Bairrada, n.º 52, de 14.02.1953).

Autárquicas em Oliveira do Bairro: prenúncios de uma campanha alegre

Era de prever: com o aproximar das eleições autárquicas, o recém-criado movimento UPOB (Unidos Por Oliveira do Bairro) teria o seu baptismo de fogo. Os movimentos de cidadãos – ora encabeçados por independentes, ora por quem já teve uma filiação partidária – têm muito a ver com a insatisfação contra o funcionamento dos partidos políticos e os seus processos de escolha de candidatos. Por isso, há cada vez mais cidadãos que à revelia dos partidos se organizam para resolver os problemas das suas comunidades. Ao fazê-lo, alargam o espectro da participação política sem que tenham de se submeter às trocas de favores e às intrigas em que se atolam muitas estruturas locais dos partidos tradicionais.

As listas sem patrocínio partidário não agradam, é bom de ver, aos que tudo têm feito para enquadrar e até monopolizar os direitos dos cidadãos. O atrevimento dos que deixam o casulo partidário e abandonam a sua zona de conforto teria que esbarrar nos que sempre olharam, com desconfiança, para qualquer proposta de refrescamento da vida autárquica. A esses convém dizer que se não há democracia sem partidos, a democracia também não se esgota neles.

E como em Oliveira do Bairro também os lobos uivam, o UPOB já teve o seu baptismo de fogo. Na edição de 23 de Março de 2017, o Jornal da Bairrada inseriu um texto assinado por Pedro Fontes da Costa, com o seguinte título: “Candidato da UPOB à Câmara de Oliveira do Bairro plagia Plano Estratégico do Sabugal 2025”. Assim mesmo, falando de plágio de uma forma peremptória. Só que, logo no primeiro parágrafo, o citado jornalista troca o assertivo “plagia” pela expressão mais evasiva “terá plagiado”.

Em que ficamos? Quando num título de jornal se diz, sem evasivas, que há plágio e logo a seguir se fala em eventual plágio, estão a colocar-se em causa valores básicos do jornalismo como a procura da objectividade e a busca da isenção. Se o título de um texto não bate certo com o corpo da notícia, é comum dizer-se que estamos a vender gato por lebre. É o que acontece quando o rótulo de um vinho não corresponde ao conteúdo da garrafa: estamos a defraudar as expectativas do cliente.

Mais do que uma opinião, ou uma metáfora, o rótulo de plágio que Pedro Fontes da Costa colou ao candidato Fernando Silva é uma acusação (não esqueceu, sequer, a moldura penal…) que deve ser comprovada. Ou se prova a acusação – com consequências para o visado – ou o rótulo é difamatório e tem consequências para o autor da notícia. A quem acusa incumbe o ónus da prova. Se o não fizer, então o texto do Jornal da Bairrada não terá passado de pólvora seca: fez estrondo, mas talvez poucos estragos na imagem do candidato. Ou há prova, ou tudo não terá passado da construção de um insulto que a alguém aproveita.

Para que não subsistam quaisquer dúvidas, quero desde já acrescentar que o texto de Pedro Fontes da Costa tem pelo menos um mérito: o de nos dar a conhecer que o artigo de opinião assinado por Fernando Silva, na edição de 9 de Fevereiro do mesmo jornal, não é da sua autoria. E isso não soubemos, na altura. Bastaria uma simples alusão ao Plano Estratégico do Sabugal para tudo ser diferente. Para não sermos, enquanto destinatários da sua mensagem, induzidos em erro ou enredados nos problemas da verdade ou da falsidade dos discursos produzidos.

Dito isto, vale a pena acrescentar que a facilidade com que hoje se acede aos bens culturais disponibilizados em rede levanta problemas sérios quando falamos de utilização ilícita. Como os coloca, também, quando estamos em presença de noções como “direito de autor”, “propriedade intelectual” ou “plágio”. Quando uma pessoa copia outra sem citar as fontes, para haver plágio é preciso provar que essa outra pessoa também não se inspirou em ninguém. Dito de outro modo: que o que essa pessoa escreveu ou disse é cultura em primeiro grau e não, como acontece com as anedotas, tabaco já mascado por muitas bocas.

Ora, no caso em análise, podemos ler na própria notícia do Jornal da Bairrada que Victor Cardial chama a si a propriedade intelectual do documento, quando afirma: “Fui eu que escrevi o que está no Plano Estratégico do Sabugal e dei autorização ao Eng.º Fernando Silva para publicar. E fui eu que lhe pedi para não colocar o meu nome no artigo de opinião que foi colocado no jornal”. E quando se diz que que o artigo de opinião de Fernando Silva reproduz “de forma quase integral” (sublinho o quase) duas páginas do Plano Estratégico do Sabugal, está-se a reconhecer que o texto “apresenta alguns elementos de inovação”. Ora a inovação, acrescentada ao documento inicial, também fragiliza a noção de plágio.

Para se poder falar de roubo intelectual são precisas três coisas: um objecto roubado, um ladrão e uma vítima. No caso em apreço quem é a vítima? Quem se queixou? Ninguém. O detentor da propriedade intelectual do documento apenas se justificou. Nem sequer exigiu ver o seu nome tornado público. Em vez disso, limitou-se a autorizar a utilização da sua obra.

Como era de esperar, nada disto foi suficiente para abafar as acusações de plágio. O que veio à tona, não só no Jornal da Bairrada, foi um indisfarçável azedume contra o novo movimento cívico. Ninguém se preocupou em saber se o Plano Estratégico do Sabugal está a ser bem aplicado, se está a ter sucesso, ou se pode representar uma mais-valia para o concelho de Oliveira do Bairro. Discutir ideias dá trabalho e só discute ideias quem as tem. Mais importante, para alguns, é tentar fragilizar os adversários políticos. Pouco importa se um artigo de jornal não é propriamente um trabalho académico ou se o Jornal da Bairrada está longe de poder ser considerado uma revista científica. Falta a citação, a nota de rodapé… e pronto!

Além das ideias que perfilha para o concelho, um candidato a Presidente da Câmara não está impedido de importar ou imitar modelos que no plano material ou estético enriqueçam as suas propostas. Se muitos autarcas viajassem e conhecessem o que se faz por essa Europa fora, não teríamos certamente que contemplar os mamarrachos que por aí abundam em praças, rotundas e jardins públicos. Quando as BUGA (bicicletas de utilização gratuita) apareceram em Aveiro – certamente inspiradas na Holanda, na Bélgica ou noutro país qualquer – o Presidente da Câmara incorreu em plágio por não citar a fonte da sua inspiração?

Enfim, como o discurso político é um dos que maior carga de contrabando de sentidos pode gerar, é legitimo que os eleitores locais se interroguem se alianças como a do UPOB significam amor verdadeiro aos interesses do concelho ou tão só a salvaguarda de interesses particulares. Se são ouro de lei ou apenas reflectem o brilho de falsos ouropéis. O certo é que estas candidaturas assustam, a avaliar pelos resultados de 2013.

Vai ser um ano escaldante – antecipava um dia destes a directora do Jornal da Bairrada. Pois vai. Oxalá que o aproximar das eleições autárquicas não nos devolva as cenas menos edificantes registadas há uns bons quinze anos na Assembleia Municipal do nosso concelho. Numa delas, um ilustre representante do poder local “teve que ser agarrado e aconselhado pelos colegas a sair da sala para que os ânimos arrefecessem um bocado. Uma verdadeira sessão de pancadaria esteve mesmo iminente” – pode ler-se na edição do Jornal da Bairrada de 2 de Dezembro de 2004. Talvez o UPOB ajude a refrescar as estruturas partidárias locais e a arejar um pouco mais a casa da democracia do concelho.

Até lá, convém estarmos atentos. Como acontece com Uma Campanha Alegre, de Eça de Queirós, nada nos garante que não vá ser preciso derrubar, uma ou outra vez, a “tolice de cabeça de touro”.

Reorganização Administrativa Territorial Autárquica – IV (sobre as propostas de agregação de João Nuno Pedreiras)

 

1. Li recentemente, pela lavra duma pena bustuense, um estimulante texto com propostas de agregação de freguesias para o nosso concelho. Entre outros méritos o autor ousa arriscar, assume uma posição, avança com cenários concretos. João Nuno Pedreiras (JNP) é notoriamente pedagógico quando alerta para a necessidade de evitar “exacerbadas paixões bairristas”, quando lembra que “as fronteiras estão nas nossas cabeças”, ou quando refere que “os termos agregado-agregador são inapropriados pois sugerem a superioridade de uma freguesia em relação às demais”. É certo que não subscrevo tudo o que pensa ou diz, da mesma forma que ele próprio ou outros não estarão de acordo com o que tenho escrito sobre este assunto. São discordâncias normais em democracia, até porque se sabe que mesmo no interior dos partidos políticos há opiniões contraditórias sobre a utilidade de executar esta “reforma”.

A minha dificuldade em aderir a esta reorganização do território assenta no facto de não acreditar que ela possa ter êxito sem uma verdadeira reforma dos municípios. E também por me parecer que é perfeitamente voluntarista, já que os critérios técnicos convocados para reduzir ou agregar freguesias são quantitativos, assentam em valores puramente aritméticos. São estes critérios como poderiam ser outros, o que por si só transforma esta lei numa reforma falhada. Além do mais, sou contra formas de pensamento territorial produzidas centralmente, de cima para baixo. Acredito no envolvimento ativo dos agentes económicos e da sociedade civil, na partilha de responsabilidades e na contratualização entre atores públicos, privados e associativos.

Por isso mesmo não avancei com nenhum cenário de agregação. Discordo de uma lei que prevê, sem qualquer imposição – ao contrário do que faz para as freguesias – a fusão de municípios (artigo 16.º, da Lei 22/2012).  Como prémio de fusão é-lhes garantido um tratamento preferencial no acesso a linhas de crédito asseguradas pelo Estado, bem como a projetos de natureza diversa. Até o Fundo de Garantia Municipal é aumentado em 15% no município criado por fusão! Assim se premeia, na iniciativa dos outros, a “coragem” que o governo não teve para aplicar aos municípios a mesma receita coerciva que impõe às freguesias. É desta maneira que o governo se propõe tapar, com a altura moral que não tem, a pequenez da estatura que o vem caraterizando na condução deste processo. Como a vida nos ensina, é própria dos tíbios a subserviência para com os mais poderosos (neste caso os municípios) ao mesmo tempo que se lança mão da prepotência para com os mais frágeis (as freguesias).

Não é certamente por acaso que esta lei não é apadrinhada pela Associação Nacional dos Municípios Portugueses nem pela Associação Nacional de Freguesias. Por alguma razão as duas entidades não morrem de amores por esta reforma. Fazendo orelhas moucas a tudo isso e utilizando uma expressão em que os argumentos genuinamente democráticos são os que lá não estão, disse o ministro Miguel Relvas que “as freguesias ou caem a bem ou caem a mal”.  Para as freguesias não há liberdade de escolha. Já sobre as Câmaras Municipais – a joia da coroa do seu partido – não derramou o ministro a mesma catilinária. Pudera! Como certeiramente escreve o historiador Rui Ramos, “extinguir câmaras municipais é a mesma coisa que extinguir distritais e concelhias de partidos”.

Discordo pois de JNP – esperando não deturpar o seu pensamento –  sobretudo quando refere que esta “é uma realidade que temos que aceitar” ou quando diz que “a lei existe, é preciso refletir sobre a melhor forma de a aplicar”, acrescentando logo a seguir que “temos de aproveitar o problema que nos é colocado como gerador de novas oportunidades”. Parece-me uma posição demasiado conformista, não deixando espaço à contestação ou revisão de uma lei que ele próprio considera conter alguns aspectos negativos.

2. Embora esteja por provar que as freguesias de maior dimensão territorial e mais populosas estejam mais aptas a prestar aos cidadãos os serviços de que estes efetivamente precisam, prestemos atenção ao essencial, que são as sugestões de agregação que JNP esboça para o nosso concelho. Num primeiro momento e apoiado no princípio do equilíbrio, sugere a criação de uma freguesia “de dimensão considerável” no extremo poente do concelho, deixando de lado Oliveira do Bairro e Oiã que no seu entender “vivem bem com o seu tamanho”. E avança com três hipóteses: I) A união de Palhaça-Bustos-Mamarrosa (que deixa de fora o Troviscal); II) A união de Mamarrosa-Bustos-Troviscal (que deixa de fora a Palhaça); III) A união de Troviscal-Bustos-Palhaça (que deixa de fora a Mamarrosa).

Curioso é notar que nesta análise combinatória Bustos aparece sempre no meio das outras duas freguesia e assume perante elas uma efetiva centralidade. Nos cenários que nos são sugeridos Bustos é a única freguesia que nunca fica excluída. A proposta parece conter algumas fragilidades. Seguindo o raciocínio de JNP, estes arranjos convergem para a criação de uma freguesia de dimensão considerável, agregando freguesias pequenas para lhes dar escala. Mas se é assim, como se compreende que fique sempre uma freguesia de fora, com exceção de Bustos? A vingar qualquer destas propostas que destino estaria reservado à freguesia excluída? Seria agregada a Oiã ou a Oliveira do Bairro? Ou estaria condenada a definhar, a ficar isolada e sem hipótese de qualquer tipo de desenvolvimento? Para mim os resultados duma hipotética agregação devem assentar numa visão estratégica para o concelho que seja capaz de garantir a coesão territorial, situação que estas propostas parecem não contemplar ao não incluir na agregação uma das quatro freguesias mais pequenas do concelho.

É certo que JNP avança com um quarto cenário que tem o mérito de não excluir nenhuma das quatro freguesias mais pequenas. Acrescento que caso a agregação se torne inevitável este é porventura o que mais colhe a minha simpatia. Teríamos assim a união de Bustos-Palhaça-Troviscal-Mamarrosa. JNP aponta para que a sede seja em Bustos, o que só lhe fica bem, ou não fosse ele membro da respetiva Assembleia de Freguesia. Não nego que os argumentos que invoca tenham uma poderosa lógica interna, sobretudo no que se refere à centralidade geográfica e, no caso dos equipamentos, à existência e influência do IPSB.

Há no entanto um outro cenário de agregação possível para as quatro freguesias mais pequenas e que também não deixa de fora nenhuma delas: seria a união da Palhaça com Bustos e a do Troviscal com a Mamarrosa. Desconheço as razões pelas quais JNP não aflora esta possibilidade, não acreditando sequer que tal omissão  tenha a ver com a perda da centralidade de Bustos. Este cenário permitiria manter o concelho de Oliveira do Bairro com quatro freguesias e não apenas com três. Temo que um concelho com dimensão territorial tão diminuta (87 K2) e com apenas três ou mesmo quatro freguesias possa no futuro vir a ser extinto ou agregado a outro.

Convém ainda referir que para lá da centralidade geográfica há outros critérios a ter em conta, previstos na alínea b), artigo 8.º, da Lei 22/2012. São eles: um índice de desenvolvimento económico-social mais elevado; o maior número de habitantes e a maior concentração de equipamentos coletivos. Todos eles se devem assumir como critérios preferenciais para selecionar freguesias que funcionam como pólos de atração e por isso mesmo são indutoras do desenvolvimento de todas as outras. De todo o modo, o poder de regulação e de decisão duma eventual agregação de freguesias deve resultar de soluções organizacionais flexíveis e estar sintonizado com a aplicação do princípio da subsidiariedade entre diferentes entidades e serviços.

Diria que é na forma de determinar a localização da sede da junta de freguesia obtida por agregação que reside a questão mais polémica. Uma espécie de problema-tabú em que ninguém toca. As freguesias agregadas que ficarem sem Presidente de Junta verão os seus habitantes deslocar-se ao local onde passará a funcionar a sede da nova freguesia criada por agregação para obterem um simples atestado de residência. São coisas destas que os cidadãos não conseguem engolir de ânimo leve. Vão ser confrontados com uma solução que cava um fosso ainda maior com os anteriores serviços de proximidade que lhes eram prestados, diminuindo-lhes o grau de autonomia e de independência a que se foram habituando ao longo dos anos. De algum modo esta lei configura uma violação do princípio de autonomia das autarquias e degrada a qualidade de vida das populações. Veremos também se a par do desaparecimento de muitas freguesias, sobretudo as mais desertificadas do interior e com população mais envelhecida, não vamos assistir igualmente à extinção de serviços públicos como os CTT, a GNR, as Escolas ou as Extensões de Saúde, que serão sempre motivo de protesto e de descontentamento.

3. Não é pecado gostarmos da nossa terra. Nem falar com emoção do lugar onde nascemos, onde aprendemos as primeiras letras, onde fizemos a comunhão solene, onde nasceram e cresceram os nossos filhos, onde vivemos e tencionamos morrer. Ter uma aldeia é ter sido moldado por ela e proclamar para todo o sempre que a ela pertencemos.

Mas ao valorizar o que é nosso – como aconteceu nas sessões de esclarecimento promovidas pela Comissão Permanente da Assembleia Municipal –  ao identificar  o que nos carateriza e distingue dos demais, convém não chocalhar autoelogios desnecessários. É preciso evitar  a guerra de todos contra todos e o excesso de devoção que pode conduzir à tentação de considerar as outras freguesias inferiores, quando falamos da nossa. É um preconceito que não respeita os méritos alheios e tende a considerar como inferior aquilo que apenas é diferente. As nossas freguesias não podem evoluir apenas voltadas para si próprias, como se a porosidade das “fronteiras” não constituísse um apelo à convivência fraterna com os nossos vizinhos (longe vão os tempos, como acontecia no império romano, em que tudo o que estava para lá dos seus limites geográficos era considerado “bárbaro” ou hostil). Enriquecemo-nos quando respeitamos a diversidade. É a criar laços e a estabelecer ligação com as outras freguesias do concelho, ou a compreender e a integrar as suas preocupações e não apenas as nossas, que verdadeiramente crescemos.

Vivemos num tempo em que a regra é a coexistência num mesmo território de grupos étnicos e culturais distintos, onde se pratica a convivência e a fusão de culturas e não a sua segregação. O momento que atravessamos é pois de unir e não de dividir. Dividir para reinar é a divisa do poder, não a dos cidadãos. O pior que nos pode acontecer é que sob a capa da democracia e do direito à livre expressão e opinião se manipulem as pessoas atirando-as umas contra as outras ou arrumando-as entre “boas” e “más”.  Em vez de causarem estranheza os espaços de vizinhança devem ser cada vez mais lugares de cooperação e enriquecimento e não de exclusão.

Não há grandes disparidades de povoamento, da economia e da sociedade, ou mesmo ao nível dos comportamentos e práticas culturais (crenças e valores) entre as freguesias do nosso concelho. O que faz um concelho não é tanto o espaço geográfico mas sobretudo o tempo e a história que o caraterizam. Assim sendo, o que verdadeiramente está em causa não pode ser a conversão de umas freguesias a outras, mas a concretização de sucessivas plataformas de entendimento em que todos caibam sem atropelos, abdicações ou exclusões.  Temos que olhar para aquilo que nos liga e aproxima, evitando a apologia do “único”, do “só nosso”, elementos que usualmente salpicam a valoração constante do lugar matricial e são próprias duma visão paroquializada dos nossos interesses. A proposta de agregação de freguesias só pode traduzir-se na necessidade de maior compreensão da proximidade.

Eis por que tanto apreciei o texto de João Nuno Pedreiras, para lá de uma ou outra discordância pontual. Não quis deixar de o dizer, ao encerrar esta série de textos sobre a reorganização administrativa territorial autárquica.

Reorganização Administrativa Territorial Autárquica – III (do cumprimento da lei à resistência das populações)

É o progresso das ideias que traz as reformas, e não o progresso dos males públicos que as torna inevitáveis.

ALEXANDRE HERCULANO

Na reunião de esclarecimento que teve lugar no Troviscal disse o Senhor Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro ter a perceção de que “a lei é para cumprir e tudo o que se possa dizer é retórica”. E para legitimar a sua opinião acrescentou ter sido o próprio secretário de Estado a transmitir-lhe que “vai cumprir o que foi negociado com a Troika”.[1] Começo por discordar desta visão restritiva da democracia que se preocupa mais em cultivar a obediência do que em exercitar a liberdade. Além disso, tais palavras podem ser entendidas como uma forma de pressão sobre os órgãos do próprio partido que o elegeu, de condicionamento do debate político e de limitação do direito de opinião.

Felizmente que o secretário de Estado da Administração Local, num tom bem mais prudente de estímulo à cidadania e à participação, nos descansa um pouco quando contraria as palavras do Senhor Presidente da Câmara. São dele estas afirmações: “O exercício da política pressupõe anunciar, debater, ouvir, incorporar contributos e decidir”.[2] Em democracia a forma de consolidar a legitimidade das decisões passa por tornar público o conhecimento que se detém, evitando os truques, as manhas e os ardis que tantas vezes caraterizam os segredos do poder. Então tudo o que se possa dizer para lá do estrito cumprimento da lei é retórica, Senhor Presidente? Foi isso que andou a fazer a comissão permanente da Assembleia Municipal, a espalhar retórica pelas freguesias? É assim que classifica os muitos contributos dos munícipes sobre a reforma da administração local? Cumprir a lei e calar, sem debate, marginalizando a vontade dos cidadãos? É esta a forma como entende o exercício do poder democrático?

Mais do que submeterem-se ao império da lei os cidadãos exigem um estilo de política que os sirva e responda às suas preocupações, necessidades e anseios. A melhor reforma autárquica possível será aquela que assenta em motivos sociais e humanos e não exclusivamente em argumentos ou estandartes políticos, o que implica ouvir as populações e não apenas os aparelhos partidários. Os partidos não podem tender a usurpar o exclusivo da intervenção e do poder social. A genuína integração de todos os munícipes no espaço geográfico concelhio está associada não à imposição pura e dura da lei mas à construção de consensos, os quais se ligam a fenómenos como as tradições, os rituais e o próprio poder. Muitos desses costumes e tradições encerram uma sabedoria e desempenham funções latentes, não expressas, que escapam às evidências de senso comum. Não perscrutar este peso das tradições e dos rituais em nome do acatamento cego da lei significa abdicar de entender as coordenadas que assinalam a via da identidade das populações das freguesias do nosso concelho. Não ter isso em conta é enveredar por um caminho armadilhado, é não atender a estas palavras avisadas do legado intelectual de Edmund Burke: os povos que não olham para trás, para os seus antepassados, não serão capazes de olhar para a frente, para a posteridade.

A História ensina que se as leis fossem sempre cumpridas nunca haveria motins, revoltas ou revoluções. Nunca teria sido derrubada a Monarquia em Portugal e por isso não viveríamos hoje em República. Não teria caído o Estado Novo e talvez hoje não andássemos a saborear a liberdade. Com Locke aprendemos que quando as leis não são feitas para o bem do povo se torna legítimo o direito de resistência.  Vejamos então alguns exemplos concretos de reclamações populares contra as medidas intervencionistas dos governos centrais.

No tempo da Monarquia absoluta a interferência régia na vida municipal por parte dos corregedores e juízes de fora gerou resistências locais muito fortes. Já no constitucionalismo liberal monárquico, quando a pena reformadora de Mouzinho da Silveira, ministro de D. Pedro IV, produziu uma obra legislativa que é hoje considerada um importante marco jurídico e institucional da primeira metade do século XIX, os protestos não se fizeram esperar. Assim que foi publicado o célebre decreto n.º 23, de 16 de maio de 1832, considerado centralizador e portanto anti-municipal, logo as Câmaras fazem chegar às Cortes as suas exigências de alteração ou mesmo revogação do diploma legal. E foi precisamente a força dos protestos e o fogo cruzado das críticas que levaram a que o diploma viesse a sofrer uma alteração significativa em abril de 1935.

Na década de 90 do século XIX a grave crise financeira do país levou alguns políticos a equacionar uma nova vaga de anexação de concelhos, iniciada em 1836 com a reforma administrativa de Passos Manuel que extinguiu 475 dos 826 então existentes. O receio dos grupos de pressão locais e de perturbações sociais mais que previsíveis acabou por fazer gorar essa iniciativa. Embora não se exija que os nossos deputados e políticos concelhios saibam história das instituições, é bom que se tenham em conta os ensinamentos do passado. Os conflitos gerados pela reorganização do território na primeira metade do século XIX são o resultado inevitável duma centralização administrativa executada à revelia dos órgãos municipais, onde a imposição dos magistrados prevaleceu sobre a produção dos consensos.

Mas não é preciso recuar tanto no tempo para encontrar exemplos de resistência das populações a medidas que consideram atentar contra os seus direitos. Basta não ter memória curta e recordar o que se passou  há cerca de vinte anos com a tentativa de instalar unidades de incineração e aterros de resíduos tóxicos em Portugal.

Não cabe aqui discutir a bondade dessas medidas. Mas a propósito do cumprimento da lei, ou da imposição da vontade de quem governa, convém lembrar que as estações de incineração são hoje de tal modo contestadas e boicotadas pelos cidadãos que muitos países já não conseguem pôr a funcionar mais nenhuma. E quem não se lembra da enorme contestação popular que por essa altura varreu os concelhos de Oliveira do Bairro e Vagos? A tentativa de instalar um aterro de resíduos industriais no Cardal/Azurveira colocou as populações locais em pé de guerra com o ministério do Ambiente, deu lugar a reuniões em Lisboa e Aveiro e à criação de um grupo dinamizador do processo, alimentou revoltas e manifestações um pouco por todo o lado, gerou comunicados dos partidos políticos na imprensa e contrarrespostas de cidadãos, além de provocar fraturas entre militantes políticos de base e o poder central da mesma cor política.

Poderá sempre argumentar-se que a Lei n.º 22/2012 foi aprovada por maioria. Mas convém recordar que o respeito pelos direitos da minoria é também, ao lado do critério maioritário, um dos elementos chave da essência da democracia contemporânea.  Uma assembleia popular encarregada de gerir os destinos da Grécia decidiu por voto democrático condenar à morte o mais importante filósofo do seu tempo. Condenar Sócrates a beber a cicuta foi uma decisão “democrática” se tivermos em conta o conceito de democracia que vigorava quatro séculos antes de Cristo. Mas não foi certamente uma decisão justa, humana ou pelo menos liberal à luz do conceito de democracia do nosso tempo, por ser incompatível com o ideal de cidadania universal herdado do Iluminismo. Foi uma decisão que se mostrou incapaz de compreender o outro e preferiu anular as divergências com ele, roubando a vida a um dos seus melhores cidadãos.

Neste momento ainda não sabemos se a dimensão das resistências à Lei n.º 22/2012 é uniforme em todo o País. Mas não é difícil perceber que a opinião geral dos munícipes de Oliveira do Bairro também é contrária à lei. Já todos viram que não se trata de um instrumento jurídico objetivo e rigoroso, no qual possam descortinar qualquer utilidade. Se a reorganização administrativa vier a ser executada à margem do sentir das populações, as labaredas do descontentamento podem irromper um pouco por todo o lado. A prudência aconselha a que não se recuse o diálogo com todos os que se dispõem a dialogar, pois a população do concelho não é propriamente um rebanho de basbaques.

Cá estaremos para ver como se comportam nos próximos capítulos desta novela os nossos políticos locais e concelhios. Veremos se são políticos a sério ou pequenos agentes de campanário para quem a fidelidade partidária se sobrepõe ao sentir das populações. Agora que tanto se fala em agregar freguesias para “dar escala”, será que cada época tem os políticos à escala que merece?…

O problema da reorganização do território deve ser resolvido. Como deve ser resolvido, eis a questão do momento. Quando a vontade popular se alicerça na força da razão, cabe a quem legisla estar atento e saber dar a resposta adequada, o mesmo é dizer melhorar uma lei que parece ter sido concebida à medida e por encomenda. Ignorar isso é não perceber que as populações começam a dar-se conta que não vencem todas as vezes que lutam, mas que seguramente perdem todas as vezes que deixam de lutar. Daí ao sobressalto cívico vai um passo muito curto.


 

[1] Jornal da Bairrada, 26.07.2012, pp. 6-7.

[2] Expresso, 28.07.2012, p. 32.

Reorganização Administrativa Territorial Autárquica – II (ou o muito que falta esclarecer…)

 
1. Quando se fala de extinção ou agregação de freguesias, com tudo o que isso implica de redução orçamental e de funcionários, é indisfarçável, à direita e à esquerda – mas sobretudo nos partidos do arco da governação – o mal-estar e uma evidente falta de consenso. É que esta reforma não deixará de ser acompanhada por uma recomposição do mapa político e por isso vai afetar todos os partidos. Cabe, pois, começar por perguntar: a quem interessa alterar a contabilidade político-partidária nas eleições locais? Por que é que nenhum governo, ao longo de mais de 150 anos, ousou reformar a administração local onde coexistem  municípios despovoados e freguesias maiores que municípios?
 
2. Convém, no debate em curso, não ter memória curta e relembrar algumas verdades elementares: o memorando de entendimento com a troika foi avalizado pelo PS, pelo PSD e pelo CDS. Mas dizer isto é apenas uma meia-verdade. É preciso acrescentar que a Lei n.º 22/2012 não foi votada favoravelmente pelo PS, PCP e Bloco de Esquerda e que uma das medidas acordadas com a troika foi a redução do número de municípios. Isto é: não apenas juntas de freguesia mas também câmaras municipais. Outra das medidas que constam do memorando aponta para a necessidade de reduzir em 15% os quadros dirigentes da administração local. Curioso foi ouvir na mesma altura o então secretário de estado da administração local – o socialista José Junqueiro – referir que seriam poucas as câmaras municipais extintas ou fundidas. Já nessa altura de governação socialista se apontava para a redução do número de executivos e assembleias de freguesia. Apontava-se para um número que rondava as 1500, praticamente um terço das existentes. E quanto à redução de dirigentes autárquicos logo sentenciou António Costa: “é um absurdo”. E Rui Rio afinou pelo mesmo diapasão: “ é uma imbecilidade técnica” (1).  Que dizer de tudo isto? Apenas uma coisa: que nenhum dos grandes partidos do arco da governação está vivamente interessado em reduzir executivos camarários.
 
3. Isto, apesar das evidências mostrarem que nos últimos anos a evolução dos recursos humanos das autarquias andou em contraciclo com a contenção nos serviços centrais do Estado. Enquanto estes, entre 2005 e 2009 (e a assimetria será, hoje, com toda a probabilidade, ainda maior) reduziram em 8% o número de funcionários, o pessoal das câmaras aumentou 5,6% no mesmo período (2). Nada melhor, para iluminar esta questão, do que recuperar algumas ideias expressas pelo Eng.º Fernando Silva num lúcido e corajoso texto publicado no Jornal da Bairrada, a que deu o título Os Municípios e as Finanças do País. Entre outras verdades que ferem como punhais, afirma: “Para municípios com população entre 10.000 e 50.000 habitantes, os seus executivos camarários são compostos por 7 membros e as respetivas assembleias municipais terão em média cerca de 40 membros (…). Os membros dos executivos com pelouros atribuídos são remunerados e, após dois mandatos a tempo inteiro, têm assegurada uma reforma. O tempo de permanência em funções é também contado a dobrar para efeitos de reforma. Assim, ao fim de 37 anos de democracia temos várias dezenas de milhar de ex-autarcas com direito a reforma, e somas exorbitantes são gastas nos seus vencimentos”(3). A esta e a outras verdadeiras pedradas no charco dos interesses instalados ninguém ousou dizer nada. Apenas se lhe referiu, de raspão mas em tom concordante, o diretor do Jornal da Bairrada na edição de 19.05.2011. Tudo o resto ficou alagado em silêncio, que o caladinho é o melhor…
 
4. Relembre-se que o chamado “pacote autárquico” não se restringe apenas à controversa agregação de freguesias. Inclui também a legislação eleitoral autárquica e a da própria gestão municipal. A fazer fé no que vai sendo anunciado, o principal partido do governo terá já ultimado a sua proposta de lei eleitoral. Mas precisa de a negociar com o parceiro de coligação e em fase ulterior com o principal partido da oposição. Fala-se mesmo numa verdadeira revolução no poder local. No essencial essa proposta de lei contempla o seguinte: executivos homogéneos escolhidos pelo presidente da câmara – isto é: sem vereadores da oposição – como forma de se garantir a governabilidade; controlo político a cargo da assembleia municipal, que fica com poderes reforçados, entre os quais o de poder chumbar a lista de vereadores apresentada pelo presidente; os presidentes de junta (deputados municipais por inerência) não vão poder votar a composição do executivo municipal nem moções de censura aprovadas pela assembleia municipal; finalmente, a proposta de lei eleitoral aponta para uma forte redução no número de vereadores e de deputados municipais (4).
 
Que tem a dizer a isto a população do concelho? E os principais agentes políticos? Será que os presidentes de junta não se vão transformar em meras figuras decorativas se não puderem, pelo menos, votar em matérias que diretamente lhes dizem respeito, nos assuntos específicos da sua freguesia?  Concordam com a diminuição do número de vereadores e com as moções de censura autárquica, à semelhança do que acontece com o governo? Aprovam o reforço do poder das assembleias municipais e a constituição de executivos monocolores? Não serão estes incompatíveis com a filosofia do sistema proporcional que consagra a representação das minorias? Não funcionarão como uma espécie de maioria absoluta que tende a perpetuar os equilíbrios políticos atingidos? Com a proporcionalidade afetada, o que vai acontecer aos partidos com menor expressão eleitoral no concelho? É legítimo anular-se, assim de uma penada, a correspondência entre a percentagem de votos e a percentagem de deputados de cada partido? Subscrevem os cidadãos do concelho que o Presidente da Câmara possa escolher o seu executivo de entre todos os eleitos – incluindo os da oposição – e nessa medida possa igualmente destituí-los durante o mandato caso entenda – no que isso tem de subjetivo – não estarem a desempenhar bem o seu papel?
 
5 Regressemos à agregação de freguesias para perguntar: as que se situam no perímetro urbano devem acabar, transitando as respetivas competências para o município? E quanto aos concelhos: não seria de agregar alguns para lhes dar escala? Fará sentido continuar a existir um concelho como o de S. João da Madeira? E que dizer da limitação dos mandatos dos autarcas? Continua a fazer sentido, caso passem a ser controlados pelas moções de censura? E os autarcas condenados em processo: permanecem em funções ou devem ser pura e simplesmente demitidos e impedidos de se candidatar a novos mandatos? E por que não suspender o mandato, até à conclusão do processo, aos autarcas constituídos arguidos ou até acusados, substituindo-os pelo candidato posicionado imediatamente a seguir na lista vencedora? É que agregar freguesias deixando tudo o resto na mesma é um pouco o vira-odisco-e-tocao-mesmo de que já estamos a ficar cansados. Não é uma verdadeira reforma, mas sim uma caricatura distorcida dela própria. Tantas perguntas. Quantas respostas? Tudo isto ficou por dizer nas sessões de esclarecimento. Culpa da assembleia municipal? Não certamente. Culpa de todos nós, que parecemos distraídos e abstraídos do que se passa à nossa volta. O silêncio, que muitas vezes é uma forma de poder, pode ser também uma forma de consentimento.
 
6. Estas são algumas das questões urgentes e inadiáveis a que urge dar resposta. Não tanto por se encontrarem na ordem do dia, mas precisamente porque às vezes o não estão. Não se veja neste texto um libelo acusatório contra os partidos políticos, porque quem preza a democracia sabe que esta não existe sem eles. Nem uma rejeição liminar da reorganização administrativa territorial autárquica. Quando muito, assume-se contra “esta” reorganização. Acontece que se multiplicam os sinais de enfado para com a falta de qualidade da nossa democracia. Há sinais evidentes de descrédito e desconfiança. Por isso se exigem respostas claras e assertivas para problemas complexos.
 
Ninguém desconhece que nas estruturas partidárias a contestação interna é por vezes vista como uma forma de traição, sobretudo quando tornada pública. Como sublinhou o Eng.º Fernando Silva no texto já citado, muitas vezes não há oposição interna “pois isso poderia ser razão suficiente para ser excluído das listas de candidatos (…). Poucos são aqueles que, na praça pública, realmente dizem o que lhes vai na alma e também não o fazem nos locais próprios por receio de retaliação sobre si, seus familiares ou empresas”. Elucidativo, por vir de quem vem, de quem sabe do que fala.
 
Também por isso se saúda, no debate que está a ser travado sobre a agregação de freguesias, a independência de espírito e até o desassombro de alguns conhecidos militantes políticos, nomeadamente dos mais próximos ideologicamente do atual governo. Em blogues, ou até nas reuniões de esclarecimento, sabem colocar os interesses da sua terra, ou das populações do concelho, acima dos particulares interesses do partido em que militam. Dizendo abertamente que a Lei n.º 22/2012 é má e foi gizada à revelia dos autarcas. Neles, há ponderação e respeito por direitos conflituantes. Batalham pela razão quando outros procuram excitar as emoções que transformam os cidadãos em súbditos. Para eles, um aceno de simpatia.
 
Voltarei ao tema, para (talvez) então concluir. Porque, a pretexto da mudança, o objetivo não pode ser abafar as vozes discordantes em nome do irrefragável cumprimento da lei. 


(1) Expresso, 07.05.2011, p. 4.
(2) Público, 08.05.2011, p. 3.
(3) Jornal da Bairrada, 05.05.2011, p. 2.
(4) Expresso, 21.07.2012.

Reorganização Administrativa Territorial Autárquica – I (Reflexões em torno da reunião na Palhaça)

 

1. Introdução

Em boa hora a Assembleia Municipal de Oliveira do Bairro tomou a iniciativa de promover sessões de esclarecimento nas seis freguesias do concelho. A iniciativa vale ouro e é digna de registo, se tivermos em conta o fosso cavado entre as elites políticas e o resto duma população que pouco cultiva o exercício da cidadania.

O que aconteceu na Palhaça – e, segundo foi dito, em todas as outras freguesias do concelho – pode considerar-se uma verdadeira festa da democracia. Houve participação cívica, vontade de clarificar, debate intenso mas sem picardias ou ofensas gratuitas. Ninguém quis ter razão a qualquer preço. Mais do que convencer, houve disponibilidade aberta para cada um se deixar convencer e não para chamar o outro aos seus pontos de vista.  É isto que um verdadeiro diálogo tem de integrador. É assim que se ganha a confiança das populações numa matéria tão controversa e escaldante como esta. Não há entendimento mínimo onde não há confiança. E a confiança é o que a má-fé mais pretende roubar-nos.

Gratificante para as gentes da Palhaça foi ouvir dizer que esta reunião foi a que teve mais cidadãos a intervir. E aquela onde mais jovens deram o seu testemunho. Também aqui houve festa da democracia. A sua qualidade só pode melhorar com a participação dos mais novos. A eles cabe não permitir que a democracia fique esvaziada na sua componente de participação e intervenção popular nos assuntos públicos. Melhor que ninguém, os mais novos começam a perceber que não há vitórias sem luta nem luta sem empenhamento ou até algum sofrimento. Por isso não desarmam nem dão tréguas a quem governa, porque sabem que sem movimento não se gera a mudança.

2. O papel das freguesias

As freguesias sempre desempenharam em Portugal um papel de grande relevo. Ao prestarem às populações serviços públicos de proximidade, tornaram-se de há muito uma referência incontornável do poder local. São um património dos portugueses e não uma coutada de qualquer governo.

É nas eleições autárquicas que encontramos uma maior proximidade entre eleitores e eleitos. Nas pequenas freguesias até conhecemos os candidatos e, em muitos casos, mantemos com eles relações de amizade, proximidade e vizinhança. Quanto mais se enquadram em território do interior, mais pequenas, periféricas e distantes ficam da sedo do poder concelhio, tanto mais as populações dessas freguesias precisam de recorrer ao presidente de junta. Falamos de pessoas que muitas vezes apresentam níveis de instrução elementar, sem grande mobilidade geográfica e com um estatuto socioeconómico muito baixo, portanto com alguma dificuldade de integração social.

São sobretudo as pessoas idosas, as mais marcadas pelo passado e as de origem social mais modesta – de algum modo excluídas do crescimento económico e de outras dimensões do desenvolvimento – quem mais recorre e valoriza o papel do presidente de junta. Reconhecem-lhe ainda hoje uma importância idêntica, em termos de estatuto social, à que tinha um padre ou um professor nas sociedades predominantemente rurais que persistiam no início do século passado. O presidente da junta é, nestes casos concretos, “pau para toda a obra”: desbloqueia situações embaraçosas, estabelece contactos, ajuda a preencher documentos, enfim, funciona como elo de ligação entre os anseios das populações e os serviços de proximidade, encurta distâncias entre os centros de poder e as periferias. Por todo este esforço e dedicação recebem esses presidentes de junta uma contrapartida monetária que muitas vezes não chega para a gasolina que gastam nas andanças a resolver os problemas dos outros.

3. Efeitos da aplicação da Lei n.º 22/2012, de 30 de maio

Através desta lei e sob o pretexto da reforma do poder local o governo definiu uma estratégia que assenta na extinção de freguesias e mantem inalterados os concelhos. Fê-lo “de régua e esquadro”, com base em critérios meramente quantitativos, sem obter consensos prévios, mandando às malvas a opinião dos autarcas. Quer cortar o mais possível e no prazo mais curto. Invoca, entre outros argumentos, o da diminuição das despesas. Nada de mais falacioso. Basta referir que o peso da despesa das freguesias no orçamento do estado é de 0,098%. Quanto se vai poupar, ninguém sabe. Veremos no futuro se os custos operacionais deste novo modelo de gestão autárquica diminuem ou não. E o pior de tudo isto é que uma genuína descentralização do poder raramente é compaginável com o declarado propósito governamental de controlo e consolidação das finanças públicas.

Não são, portanto, os critérios economicistas ou de base financeira que presidem ao reordenamento territorial. São critérios técnicos e administrativos – e, por que não dizê-lo? – de base política e vincadamente ideológicos. Ideológicos, sim, porque numa pura lógica de mercado se tende a valorizar tudo o que é média ou grande concentração urbana, por ser aí que confluem os fatores estratégicos de competitividade e decisão, sejam eles públicos ou privados. Ao invés, tudo o que é pequeno e singular tende a ser esquecido, desprezado ou rasgado do mapa. E assim se rasuram as freguesias de menor dimensão, precisamente aquelas que valorizam mais o património comum e as identidades socioculturais, numa luta constante contra o rolo compressor dum falso “progresso” que tudo esmaga e nivela à sua passagem, uma espécie de camartelo impiedoso que reduz a cacos as singularidades e a carga subjetiva e simbólica que esses pequenos agregados populacionais transportam. E conviria não esquecer que algumas dessas pequenas comunidades que a lei agora descarta entroncam as suas raízes nos primórdios da nacionalidade. São espaços onde habita gente “estranha” para um certo provincianismo bem-pensante que desvaloriza – quando não ridiculariza – quem gosta de preservar as suas tradições e a sua religiosidade, quem pauta, ou ainda o fez até há bem pouco tempo, os ritmos de trabalho e descanso pelos sinos da igreja, gente que nunca teve uns dias de férias e ainda confia na honra da palavra dada, sem precisar de passar os compromissos a papel e competente assinatura.

Enumera a Lei 22/2012, no artigo 2.º, alguns objetivos de reorganização administrativa, entre os quais se contam a coesão territorial, a melhoria e desenvolvimento dos serviços públicos de proximidade prestados pelas freguesias às populações e o alargamento das atribuições e competências das juntas de freguesia.

Como diz? Pode repetir? – apetece perguntar. Nenhuma destas miríficas vantagens foi confirmada por qualquer dos participantes no encontro da Palhaça (e, presume-se, nos encontros anteriores). Ninguém sabe que atribuições e competências vão ser cometidas às novas freguesias, para lá das que já existem. Como ninguém sabe dizer o que significam os 15% que vão beneficiar as freguesias criadas por agregação. Dará esse dinheiro para construir um fontanário? Talvez sim. Mas em que espaço físico da nova freguesia agregada vai ser construído?

Embora nos preocupe sobremaneira o que se passa no nosso concelho, a dimensão dos problemas que a aplicação desta lei coloca tem repercussões à escala nacional. Afeta as relações de poder e de prestação de serviços de proximidade em todo o território, com consequências ainda mais gravosas nas pequenas freguesias do interior e do mundo rural. Extingue freguesias nos territórios em vias de desertificação e onde as populações mais precisam delas e dos seus presidentes de junta. Ao proceder deste modo, deixa de salvaguardar os direitos e garantias de muitos cidadãos, especialmente dos que se encontram em situação de particular vulnerabilidade.  Ao promover a desertificação, em resultado do desaparecimento de alguns serviços essenciais, está a contribuir para um dos muitos fatores de perturbação da sociedade portuguesa contemporânea: o excesso de litoralização, com todo o seu cortejo de desempregados e multiplicação dos riscos e ameaças à coesão social.

A redefinição do território sempre foi matéria delicada e geradora de conflitos. As resistências locais ao reordenamento territorial não são de hoje. Se não deixa de ser legítimo que uma sociedade, no seu processo de evolução, procure redefinir o seu território, já não parece legítimo que o faça retirando importância a um corpo político – as juntas de freguesia – que por tradição sempre funcionou, a par dos municípios, como contraponto do poder central.

Não cabe nestas linhas tentar mostrar as razões pelas quais a verdadeira reforma – a dos municípios – fica por fazer. Mas se as juntas de freguesia, como afirmou o diretor do Jornal da Bairrada, já dependem hoje “mais das transferências de verba das câmaras e do governo central do que da vontade própria do seu presidente e fregueses” então porquê toda esta obstinação em as enfraquecer ainda mais, ao ponto de acabar com muitas delas?

Num tempo de recursos escassos a reorganização administrativa torna-se mais premente. Todos concordam que é preciso gastar menos, mas ninguém acaba com algumas empresas municipais de utilidade pública duvidosa e que se diz à boca cheia funcionarem como agências de emprego para os correligionários políticos que as promovem. Um estudo recente mostra que a grande maioria dos municípios portugueses não é sustentável. Falta-lhe escala para ter racionalidade económica. A solução apontada passa pela fusão de municípios. Então por que não se avança por aí? Malhas que o império (do poder municipal) tece…

Não é nas juntas de freguesia – pobres delas – que se multiplicam os cargos e as prebendas do costume. Não é nelas que se esbanjam dinheiros públicos em equipamentos desproporcionados e não raras vezes de gosto duvidoso. Também não é nas juntas de freguesia que encontramos alguns responsáveis políticos a contas com a justiça. E não foram os presidentes de junta, mas um presidente de câmara com responsabilidades acrescidas, por ser também presidente da Associação Nacional de Municípios, quem há anos atrás incitou outros autarcas a correr à pedrada os fiscais do ministério do Ambiente.

4. Da pronúncia da Assembleia Municipal

Segundo a Lei n.º 22/2012 cabe à Assembleia Municipal decidir quais as freguesias a agregar. Se o não fizer essa tarefa fica cometida a uma designada Unidade Técnica que funciona junto da Assembleia da República.  Não é fácil, há que reconhecer, encontrar critérios que apontem para uma solução justa.

Uma primeira questão que pode colocar-se reside em saber que solução serve melhor os interesses do concelho de Oliveira do Bairro: a pronúncia da Assembleia Municipal ou a da Unidade Técnica? No pressuposto de que só se gere bem aquilo que se conhece faz sentido que nos inclinemos para a Assembleia Municipal. Pensemos na Unidade Técnica a agregar, a partir de Lisboa, as freguesias de Bustos e Mamarrosa sem atender aos antecedentes históricos que determinaram a desanexação da primeira da freguesia-mãe em 1920. Bem sabemos que as relações entre as duas populações são cordiais e amistosas. Mas imaginemos essa agregação, ainda que por hipótese académica e que as instalações da futura junta de freguesia eram deslocalizadas de Bustos para a Mamarrosa. Não poderia tal decisão despertar alguns demónios porventura ainda adormecidos?

Mas pressionar a Assembleia Municipal a decidir exige que se pense previamente no seguinte: ao ser reconhecido, em todas as reuniões de esclarecimento, que estamos perante uma Lei de contornos muito discutíveis e ainda por cima cozinhada à revelia dos autarcas, ao assumir essa responsabilidade não está a Assembleia a legitimar uma Lei de que discorda frontalmente?

Não se duvida que na sua heterogeneidade a Assembleia Municipal trata todas as freguesias do concelho por igual. Obrigá-la a decidir as agregações é um pouco como obrigar um pai a decidir relativamente ao futuro dos seus filhos, sabendo de antemão que essa decisão vai certamente beneficiar uns e prejudicar os outros. Em suma, tal decisão – e decidir é desagradar – não deixa de configurar algum grau de violência. E perante isso apetece dizer: que fique com o odioso e arque com as responsabilidades e a ira das populações quem patrocinou estas medidas. Assim mesmo.

De nada vale elogiar o papel das freguesias e enaltecer as suas virtudes em prol do bem comum e ao mesmo tempo propor-lhes casamentos de conveniência de utilidade mais que duvidosa. Do que foi possível ouvir na reunião da Palhaça fica a ideia de que esta reforma dificilmente vai melhorar o serviço aos cidadãos ou a coesão das populações. Não é fácil assistir de ânimo leve à mais que provável extinção de freguesias que nos habituámos a ver recuperar, cuidar e manter vivas práticas culturais diferenciadoras. Com esta organização territorial muitas freguesias são discriminadas negativamente, ao verem desprezado o seu património material e imaterial.

Será ainda possível alterar ou revogar esta lei? Seja qual for a resposta, esperemos ao menos que o marketing político não prevaleça sobre a racionalidade das escolhas.