Eça de Queirós e as polémicas – do local de nascimento ao Panteão Nacional

A possível trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós para o Panteão continua a gerar polémica. Há posições para todos os gostos e nem a família se entende. Uns querem vê-lo no Panteão, porque julgam ser a melhor forma de perpetuar o nome do escritor. Outros preferem, após ter repousado no Alto de S. João,  que continue onde se encontra desde 1989: no cemitério da freguesia de Santa Cruz do Douro (Baião), perto de Tormes, a quinta que podemos encontrar em A Cidade e as Serras.

Talvez Eça tivesse preferido – ousamos dizê-lo – ficar onde está,  ou mesmo descansar junto do avô, perto de Aveiro, onde mergulham as raízes dos seus antepassados. É certo que as gentes de Aveiro assistiram à trasladação dos restos mortais de Lisboa para Santa Cruz do Douro com a apatia do costume e sem um estremecimento de alma, como se o grande escritor nada tivesse a ver com a cidade dos canais e esta nada devesse a esse passado.  Certo, também, é que o solar de Verdemilho onde Eça viveu na infância não foi preservado. Em vez de ser acolhido e protegido no regaço do poder municipal, cedeu de forma inglória ao camartelo, para dar lugar, na altura… a um armazém de botijas de gás! Um verdadeiro gaseamento da memória e da cultura, apetece dizer. A propriedade onde o solar estava implantado era a chamada quinta da Torre. Curiosamente, num estudo em que se debruça sobre as raízes do escritor, Jorge Campos Henriques conclui que o solar é A Ilustre Casa de Ramires, anotando que Eça deu ao solar de Gonçalo Ramires o mesmo nome da quinta dos avós: A Torre.

A apatia geral dos aveirenses apenas seria quebrada em 1949, quando uma comissão constituída por Acácio Rosa, Alberto Souto e António Lebre resolveu homenageá-lo em Verdemilho, quatro anos depois do centenário do nascimento. Apetece dizer que os aveirenses de gema e os que começaram a comer os ovos moles em idades mais avançadas  talvez não mereçam a afeição que Eça lhes dedicou e que de algum modo nos comove, nesta prosa endereçada a Oliveira Martins:

“Filho de Aveiro, educado na Costa Nova, quase peixe da Ria, eu não preciso que mandem ao meu encontro caleches e barcaças. Eu sei ir por meu próprio pé ao velho e conhecido palheiro do José Estêvão.”

Fachada do Solar de Verdemilho (demolido)

Na verdade, entre os 3 e os 10 anos e sem beneficiar dos carinhos maternos, Eça terá vivido no solar de Verdemilho os melhores tempos da sua infância. Na companhia do avô José Joaquim de Queirós e do criado Mateus – que o conselheiro liberal trouxera do Brasil – sentado nos seus joelhos a ouvir as aventuras de João de Calais. Não admira que mais tarde tenha manifestado o desejo de ser sepultado em terras de Aveiro, a fazer fé  na sua viúva, que em carta de 17 de Dezembro de 1932 escreveu a Luís de Magalhães, filho do tribuno José Estevão e grande amigo da família Queirós, admitindo a possibilidade de transladar os restos mortais para Aradas (Aveiro):

Palheiro de José Estêvão, na Costa Nova (aspecto actual)

“Eu desejava muito reunir o meu marido e o meu filho, foi o que me fez pensar no jazigo já existente ao pé de Verdemilho (…)”. Em carta de 15 de Agosto de 1933, Luís Magalhães escreve: “V. Exa. é que nos podia dar o prazer de ir passar  uns dias à Costa Nova (…). Seria ocasião para irmos a Verdemilho e resolver-se, no próprio local, aquele assunto que tanto a preocupa”.

O próprio local de nascimento do escritor tem gerado polémica e continua envolto em mistério. Póvoa do Varzim? Vila do Conde? Pedro Calheiros, professor da Universidade de Aveiro, referiu em entrevista ao Público que o autor de Os Maias “pode, de facto, ter nascido em casa do avô paterno, em Verdemilho”.  E acrescenta: “Há bastantes razões para duvidar da tese sobre o nascimento de Eça de Queirós que a Póvoa de Varzim conseguiu impor, em concorrência muito séria com Vila do Conde, onde o escritor foi baptizado”. Esta teoria é explicada com detalhe no “Suplemento ao Dicionário de Eça de Queirós”, coordenado por A. Campos Matos (Editorial Caminho).

O principal argumento a favor de Verdemilho é precisamente o excerto acima transcrito da carta de Eça de Queirós a Oliveira Martins, que Pedro Calheiros considera uma declaração de amor à “terra natal”, acrescentando também que Aveiro é o lugar de nascimento declarado na certidão de óbito do escritor: “É como se tivesse havido a vontade de repor a verdade [na certidão de óbito], numa situação de descontrolo emocional ou numa altura em que já não havia uma necessidade tão grande de fazer concordar os documentos oficiais com aquele que servia de termo de partida e de comparação, o assento de baptismo”. De facto, como explicar, aquando do falecimento do escritor, que de Paris se informe Portugal que ele seria enterrado em Aveiro? Dificilmente isso seria possível se a questão não tivesse sido ventilada antes e merecido a sua concordância.

Como escreveu Eugénio Lisboa, o Panteão de um escritor são os seus leitores: “Eça está, há muito e para sempre, no seu feliz Panteão: os leitores que o admiram e, na sua afiada e inovadora língua, se banham. Uma das grandes forças da visão e da estilística de Eça foi sempre uma elegante e nobre distanciação da pompa, que considerava cómica e apenas bom material para uma desenfastiada chacota.”

Desenho de Rafael Bordalo Pinheiro

Ironia das ironias: Os Maias (não vá algum aluno perguntar ao professor o que é o incesto…) e A Ilustre Casa de Ramires deixaram de ser leitura obrigatória no ensino secundário, apesar de Eça  de Queirós ter por aí estátuas, nome de ruas e de prémios (e não sei se de escolas e bibliotecas). O retrato que fez da segunda metade do século XIX – como Camilo fez da primeira – deixou de ser uma narrativa legítima, como se nada tivesse a ver connosco. E assim se privam as novas gerações das tiradas do teatral e poseur Tomás de Alencar e do demagogo e incoerente João da Ega, neste Portugal onde floresce cada vez mais a sabedoria balofa de Acácios e Gouvarinhos.

Não é preciso ser um profundo conhecedor da obra queirosiana para intuir que a decisão de transferir os restos mortais do escritor para o Panteão talvez não merecesse o seu consentimento. A  contundente ironia queirosiana – uma estética da ironia lhe chamou Mário Sacramento – sempre  se abateu e demoliu em farpas tudo o que era artifício, demagogia política, pompa e circunstância de uma certa burguesia da decadente sociedade oitocentista.

Deixem-se de argumentos baseados na pretensa “superioridade intelectual” para impor pontos de vista, de guerras estéreis entre a cidade e o campo, a capital e a província. Deixem que cada um pense pela sua cabeça. Deixem as ossadas do Eça em paz.  Ao arrepio de opções diferentes e não menos legítimas, penso que estão bem onde estão, mais perto da placidez rural e dos ares do campo. Longe da pompa citadina e da vacuidade que a sua ironia sempre fustigou. Mais perto, também, do frango alourado com arroz de favas, prato incontornável da gastronomia do Marão.

Eça de Queirós continuará a ser um nome maior das letras portuguesas. No Panteão Nacional ou fora dele.


Consultas:
Eça de Queirós, Correspondência, Lello & Irmão Editores, Porto, 1978.
Eugénio Lisboa, “O Panteão de um escritor são os seus leitores” https://dererummundi.blogspot.com/2023/09/o-panteao-de-um-escritor-sao-os-seus.htm
Jorge Campos Henriques, Eça em Aveiro. Raízes e outras histórias. Edição da Câmara Municipal de Aveiro, 2001.
Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 1382, 20.09 a 03.10.2023
Litoral (semanário de Aveiro), n.ºs 1549, 1576 e 2013.
Pedro Calheiros, “Verdemilho, Berço de Eça?”, in folhas – letras & outros ofícios, n.º 7.
Público (edição de 17 de Fevereiro de 2001), p. 46.
Vértice, n.º 76, Dezembro 1949.

A remoção (falhada) da estátua “pornográfica” de Camilo




“A beleza é o nome que dou às coisas em troca do agrado que elas me dão”
– Alberto Caeiro

Não é preciso ser especialista em arte para reagir a uma obra. Assim aconteceu com a estátua de Camilo, colocada há 11 anos em frente da antiga Cadeia da Relação. Pouco faltou para que fosse parar ao sótão das coisas inúteis, à guarda da Câmara Municipal do Porto. Nada que nos espante, pois já antes tinha acontecido o mesmo com O Cubo da Ribeira, do escultor José Rodrigues, cercado pelas intensas labaredas da polémica.

No trabalho escultórico de Francisco Simões, Camilo está vestido dos pés à cabeça e abraça uma mulher nua. Uma petição de 37 figuras das artes, da política e da cultura (entre elas o administrador Artur Santos Silva, o escritor Mário Cláudio e os políticos António Lobo Xavier e Ilda Figueiredo) veio exigir a remoção da estátua. Na origem estão razões de ordem estética e de ordem moral. Passo ao lado das razões de ordem estética, atenta a reconhecida subjectividade da arte, que sendo intemporal não tem de agradar a todos e não existe apenas para o deleite de nossos olhos. A arte expressa as nossas ambivalências e leva-nos a reflectir sobre os conceitos de beleza e fealdade, ordem e caos, além de cumprir a função de transferir ideias e provocar pensamentos.

Deixemos então de lado as apreciações de natureza estética. Falemos em questões de ordem temporal, moral e de legitimidade política.

Ordem temporal: o que leva 37 cidadãos a reagir 11 anos depois da estátua ter sido exposta na baixa portuense? Só agora se deram conta do incómodo?  Só agora despertaram para o “desgosto estético” e para a “reprovação moral”? Ou será que estas oscilações do gosto andam atreladas a preconceitos acumulados ao longo dos anos?

Estátua de Eça de Queirós  (Lisboa)

Legitimidade política: como é que  uma petição assinada por 37 pessoas tem representatividade suficiente para conseguir revogar uma deliberação municipal de 2012 que aprovou, por unanimidade, a doação e a implantação da escultura naquele local? Será que esses 37 “cidadãos ilustres”, acantonados numa espécie de casulo elitista, são detentores da verdade e capazes de decidir o melhor em nome de todos? A pergunta não é inocente: remete para a natureza íntima do poder e para as diferentes formas da sua legitimação. Rui Moreira parece recuar – na decisão inicial que tomou – aos tempos em que o liberal Herculano desconfiava das maiorias ignaras, ou a um tempo mais recente em que o Integralismo Lusitano classificava a democracia como o triunfo da mediocridade.

Questões morais. Alguns signatários confessam que aquilo que os move é a defesa da memória de Ana Plácido,  que partilhou com Camilo um romance de amor que os levaria à prisão, condenados por adultério. Má sorte a deles, menos afortunados que D. João V, que no século anterior escapou ileso à “escandalosa mancebia” com as freiras do convento de Odivelas. Ficariam juntos entre 1861, ano de saída da cadeia, e 1890, ano fatídico em que Camilo resolve estoirar os miolos em São Miguel de Seide.

Acontece que o argumento dos zelosos defensores da honra de Ana Plácido cai por terra a partir do momento em que o escultor Francisco Simões afirma que a mulher nua abraçada a Camilo é uma  mulher simbólica, em homenagem às várias figuras femininas que atravessaram a vida atribulada do escritor. Para uns, se a mulher está nua, Camilo também devia estar (11 penosos anos ao relento e ao frio, coitada da rapariga…). Para outros, o melhor seria ficarem ambos vestidos. Curiosamente, ninguém equacionou a possibilidade de a mulher ficar vestida e Camilo despido, com as nádegas ao léu. Que comentários fariam? Diriam que o escritor estava exposto à humilhação?

Estátua de Alves Redol (Vila Franca de Xira)

Ilda Figueiredo (é comovente a sintonia da vereadora da CDU com António Lobo Xavier em questões morais e de costumes) fala em “subalternização inaceitável” e em menorização da mulher. Entretanto, após ouvir as explicações do autor da obra… já recuou! Não se tratando de Ana Plácido nua – a petição fala de “um exemplar mais ou menos pornográfico” – mas de uma mulher simbólica, a coisa muda de figura. A mudança de opinião de Ilda Figueiredo assenta numa lógica de ferro, para não dizer da batata: se a imagem representa uma mulher nua em concreto, existe subalternização e humilhação feminina; se a imagem for “simbólica”, representativa das mulheres que tiveram influência na vida e na obra de Camilo, “já não faz sentido esta polémica”. Camilo com mulher nua, tudo bem; com Ana Plácido nua, nem pensar. Isto é: Camilo está autorizado a colocar a mão direita naquelas formas redondas e suculentas – ao mesmo tempo que hesita num título para o livro: Amor de Perdição ou Rabo de Salvação? – porque elas não pertencem a Ana Plácido, são de todas as mulheres com quem ele se relacionou. Dir-se-ia que a pornografia e o escândalo se diluem à medida que caminhamos do particular para o geral e do concreto para o abstracto.

É neste tipo de paradoxos (ou os 2 nus ou os 2 vestidos, vistam a mulher ou dispam Camilo) que muitas vezes incorre um certo discurso woke e politicamente correcto: por detrás do radicalismo verbal esconde-se, não raras vezes, uma inegável opção puritana e conservadora. A representação de uma mulher nua ainda incomoda muita gente, quase cinquenta anos depois da revolução de Abril. Provam-no os argumentos morais de “nudez”, “assédio” e “pornografia” em que assenta o pedido de remoção da estátua.

Respeitando a subjectividade inerente à apreciação de qualquer obra de arte, não prescindo de deixar aqui exarada a minha opinião: Camilo está vestido dos pés à cabeça porque era inverno e soprava um gélido vento. A mulher está nua porque, mesmo sendo inverno, se viu obrigada a prescindir da roupa para não sucumbir aos calores que dela se apoderavam. Outra hipótese, talvez menos verosímil: Camilo deambulava por aquelas bandas e, sem saber como nem porquê, aquela mulher nua corre para ele cai-lhe nos braços, à procura de agasalho. Nua, talvez por ter sido apanhada em flagrante delito e sem tempo para repor as vestes que lhe tapassem as vergonhas.

Fotografia de Ana Plácido

E digo mais: nunca me passou pela cabeça que a mulher nua da estátua fosse Ana Plácido (diz-se que era avançada para aquela época de beijos castos, que fumava charutos e vestia calças, embora duvide que estivesse disposta a servir de modelo e a mostrar o corpinho como Deus a trouxe ao mundo). Não a conheci pessoalmente, mas bastam-me as fotografias. Embora vestida, consigo despi-la com o olhar, um olhar que não deixa de ser uma incursão na intimidade. E não há comparação possível: uma viola é uma viola e um armário é um armário.

Sejamos claros: não é a defesa da mulher independente que está em causa, como referem os moralistas de argumentação pífia. O que assusta é a confrangedora incapacidade que os impede de distinguir o erotismo da pornografia e os leva a enfiar no mesmo saco da apreciação estética a Vénus do Milo ou um qualquer Zé das Caldas.

Entretanto, depois de ter dito que a estátua é “feia” e de “mau gosto” – um direito que lhe assiste, partilhado também por alguns dos que se opõem a que a obra seja removida – Rui Moreira já recuou. A decisão foi revertida, embora admita que mais tarde possa ser reapreciada. O mesmo é dizer, não podemos dormir descansados. O ovo da serpente não foi enterrado (vale a pena lembrar que foi a partir da serpente, filmada no ovo e que a indiferença social deixou crescer, que nos anos 30 do século XX alguém de má memória se lembrou de retirar dos museus a «arte degenerada»).

"A Melhor Casta" (Alpiarça)
“A Melhor Casta” (Alpiarça)

Esta deriva moralista dos que parecem desconhecer que  na arte também existe uma estética do feio e dos que censuram o feio e o mal em nome do belo e do bem, não vai abrandar. Ou continuamos vigilantes, ou não será apenas a estátua de Camilo que nos podem subtrair do olhar. Outras correm o mesmo risco: a de Eça em Lisboa, “A Melhor Casta” em Alpiarça, a de Redol em Vila Franca de Xira, ou a de José Rodrigues que simboliza “Os Poetas”, em Barcelos.

A Arte, seja ela qual for, deve interpelar-nos mas não nos deve chocar. Já o mesmo não se poderá dizer da vulgaridade.

Natália Correia: Feiticeira, Cotovia, Pitonisa

Ilustração: Vasco Gargalo

“Não Antero meu santo não me mato.
Antes me zango até ficar um cacto.
Quem me tocar (maldito!) que se pique”
(Epístola aos Iamitas)

 “Só se defende fanaticamente aquilo de que se duvida”.
(O Armistício)

Natália Correia (NC) nasceu na ilha açoriana de S. Miguel a 13 de Setembro de 1923.  A sua voz calou-se 69 anos depois, cansada de combater as trevas do provincianismo e de muito sondar os domínios do sagrado. Ficcionista, poetisa, editora, deputada, dramaturga, ensaísta e “às vezes fêmea, às vezes monja”. Divulgou poesia no mítico Botequim, junto ao miradouro da Graça, um dos últimos redutos das tertúlias de Lisboa, ponto de encontro de políticos e jornalistas, artistas e escritores, amantes da madrugada.  Entre o tinir dos copos e as notas do piano, o Botequim era o regaço onde a anfitriã de boquilha e gesto largo acolhia e promovia debates, exposições, concertos, ceias poéticas, lançamentos de livros.

Na intervenção política – que acreditava ser uma “obrigação dos poetas” – procurou imprimir uma feição vincadamente cultural. Ao contrário dos que gostam de planar nas nuvens e costumam tropeçar e cair de borco na realidade, ela tanto vivia imersa num mundo imaginário como se movimentava no da razão. Em harmonia e dissonância, desafiando deuses e humanos. Como gostava de lembrar, “a minha causa é combater a extinção das causas”. Um combate com língua de fogo e cóleras sagradas contra a obediência civil da manada: “Político nocturno é personagem que não vislumbro; porque o nocturno é uma situação lunar da alma que a abre ao sonho e os políticos são a brigada anti-sonho” (…). Pode dar-se o caso de vermos por aí, na noite, indivíduos da classe política não ainda hospedados nos graus supremos do poder (…). Conheci muitos desta casta que até recitavam o Fernando Pessoa às 3 da manhã, hora em que agora ressonam, no leito de uma glória enganadora. Paz às suas almas”.

Se a coerência tem um preço, a poetisa pagou-lhe o tributo ao ver-se censurada durante o Estado Novo e depois da revolução de Abril de 1974. Já tinha livros de poesia e de teatro proibidos quando foi editada, nos anos 60, a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. Uma obra que provocou escândalo, por conter textos de “carácter pornográfico” (segundo o veredicto oficial) e por essa escolha recair numa mulher cujo desassombro ajudava a derrubar os interditos sexistas da época. A obra seria apreendida pela PIDE, retirada do mercado e os responsáveis julgados em Tribunal Plenário. Ficou célebre o violento poema “A Defesa do Poeta”, saído da pena de NC, para ser lido durante o julgamento, que termina com estes versos “Sou uma impudência a mesa posta / de um verso onde o possa escrever / ó subalimentados do sonho / a poesia é para comer”.

Nem mesmo os ventos de mudança trazidos pela revolução de Abril a livraram da fúria censória. Começou por ser afastada do jornal A Capital, que lhe colou o rótulo de “direitista”. Em 1976 criou o suplemento de O Século, que também foi censurado. Em 1980 aconteceu a proibição da peça Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente. Responsável pela proibição: Vasco Pulido Valente, à data secretário de Estado da Cultura. A fúria de NC não deixou de apontar o dedo acusador àquele “que tem asco no nome”. E acabaria também censurada pelo partido em que militou. Impaciente com qualquer tipo de menoridade dos seus pares – chegou a classificar alguns de “vampiros de Sá Carneiro” – recusou hipotecar ou trocar a coerência pela disciplina partidária. Nunca desarmou, também, na luta pela crescente qualidade do Parlamento, que via indissociável da intervenção das mulheres na vida política, num país que sempre as educou para aceitarem, com resignação, ser representadas por homens.

Ano de 1982. A Assembleia da República debatia a despenalização do aborto. O deputado João Morgado proclamou:  “O acto sexual é para ter filhos”. A musa da provocação não se conteve e, pouco tempo depois, distribuía nos corredores um poema de escárnio contra as barreiras morais e religiosas.

O Coito do Morgado

Já que o coito – diz Morgado –
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.

Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou – parca ração! –
uma vez. E se a função
faz o órgão – diz o ditado –
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.

Em O Armistício, escreve: “Não jurarei que qualquer deus exista. Só sei que é grosseiro viver sem deuses”. Talvez porque lhe corria nas veias um fogo secreto, invoca os anjos, os deuses e as fadas. Manuel Alegre disse habitar nela “aquele duende de que fala Lorca, o duende que ama a tentação do poço” (a luta de um poeta não é com o anjo que guia, nem com a musa que inspira, mas com o duende que ama a tentação do poço: um duende que fere e que é preciso enfrentar, na busca incessante de perfeição da obra poética). Curioso é que também acredite “na ocupação do mundo pelas rosas”. Rosas de esperança contra a submissão que avilta, a indiferença que paralisa, o silêncio que compromete.

CREDO

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes;

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen.

A poesia de NC continua a ser, para citar o título de um livro de Alberto Pimenta, a magia que tira os pecados do mundo. Foi esse rasto de beleza que nos legou e que vai perdurar por muito tempo. “A queixa das almas jovens censuradas” continuará a ser escutada enquanto alguém acreditar “num céu futuro que houve dantes”.

A autora de Sonetos Românticos é muito maior do que as histórias que sobre ela se contam, talvez por irradiar um brilho que nem todos conseguiam suportar. Ela era o elogio da noite, da boémia e dos amores. Misto de sibila e feiticeira, livre e insubmissa, prestou relevantes serviços à causa da cultura e da liberdade em Portugal. Foi, no dizer de Torcato Sepúlveda, “um meteoro que atravessou o céu negro da cultura portuguesa do século XX”.

(texto publicado em NERVO/19 – colectivo de poesia, Setembro-Dezembro 2023)

Consultas:
Fernando Dacosta, O Botequim da Liberdade, Casa das Letras, 2013.
Filipa Martins, O Dever de Deslumbrar, Contraponto, Março 2023.
Manuel Alegre, “Natália, ou a Feiticeita Cotovia”, Uma Outra Memória, D. Quixote, 2016.
Natália Correia, Epístola aos Iamitas, D. Quixote, 1976.
Idem, A Noite e os Políticos”, O Jornal, 03.02.1984.
Idem, O Armistício, Publicações D. Quixote, 1985.
Nuno Costa Santos, “Há 50 anos a indecência de Natália Correia libertou-nos”.
Observador, 28.12.2016.
Torcato Sepúlveda, “A deusa e os homens”, Público, 17.03.1993.

Mário Cesariny (1923-2006) – Surrealista, Pintor e Poeta

“Eu acho que se se é surrealista, não é porque se pinta uma ave, ou um porco de pernas para o ar. É-se surrealista porque se é surrealista”

Nascido em Lisboa a 9 de Agosto de 1923, Mário Cesariny frequentou a Academia de Amadores de Música, na altura orientada pelo maestro e compositor Fernando Lopes Graça. Seria na Escola de Artes Decorativas António Arroio que na década de 1940 se viria a cruzar com os que viriam a ser seus companheiros surrealistas. As primeiras intervenções do grupo de surrealistas portugueses acontecem nos anos 40. O ponto de encontro eram os cafés de Lisboa, com destaque para o Café Gelo.

O surrealismo português é um movimento tardio. Apenas em 1947 se dá uma aproximação mais formal com o movimento surrealista internacional, nascido no início dos anos 20 e que por essa altura já vivia uma segunda fase. É em 1947 que Cesariny conhece em Paris André Breton, o autor de conhecido Manifesto Surrealista e que viria a influenciar de forma decisiva a sua obra, sobretudo no que se refere à recusa do racionalismo e à valorização do inconsciente. Mas mais do que tributário dos surrealistas franceses, há quem sustente que a obra de Cesariny, até por o ter traduzido de forma particularmente inventiva, é sobretudo devedora do modernismo de Rimbaud. É assim que pensa António Carlos Cortez quando se refere à obra de Cesariny: “o espelho de um percurso de vida (…) ao longo do qual se perseguiu sempre mais a ‘liberdade livre’, honrando Rimbaud, que a liberdade artificial das sociedades ditas democráticas”.

Os surrealistas afrontaram a escolástica racionalista, dando aso a que os pensamentos mais obscuros pudessem estar reflectidos nas suas telas. Propunham-se libertar a imaginação, o que levou Mário Cesariny a escrever, em 1949: “Só a imaginação transforma. Só a imaginação transtorna”. Tratava-se de subverter a realidade através do desejo e do inconsciente. Uma corrente criadora que recusava impor uma doutrina estética. Artaud falava do surrealismo como “o escoicinhar do ser contra toda e qualquer coerção”, o mesmo é dizer, uma atitude de rebeldia contra tudo o que oprime a actividade humana. O surrealismo, se não promoveu uma verdadeira revolução – segundo Carlos de Oliveira não será lícito falar-se em revolução em poesia, mesmo que apenas no plano simbólico – teve pelo menos o mérito de rasgar clareiras e traçar novos rumos de descoberta e aventura para a poesia portuguesa.

É também em 1947 que se forma o Grupo Surrealista Português, no qual pontificavam, além de Cesariny, Alexandre O’Neill e António Pedro. Mário Cesariny viria a demarcar-se deste grupo inicial. Formaria outro – Os Surrealistas – a que se associam nomes como os de António Maria Lisboa, Mário-Henrique Leiria, Carlos Calvet e Pedro Oom. Nos anos de 1949 e 1950 têm lugar as primeiras exposições surrealistas, nas quais Cesariny dá a conhecer algumas das suas obras.

Houve querelas na formação dos grupos. Houve escândalos e dissidências, questiúnculas pessoais, grupos e grupinhos: o Grupo Surrealista de Lisboa deu lugar, um ano depois, ao Grupo Surrealista (que viria a extinguir-se em 1952, formado por dissidência do primeiro – do qual Cesariny havia sido expulso – e mais orientado para a poesia do que para a pintura). Também menos alinhado com o sacerdote-mor Breton e mais próximo dos dadaístas. Mas para lá destas dissidências, pelo menos duas coisas os uniam: a transversalidade das técnicas e o repúdio pela situação política que se vivia em Portugal. Para muitos acabou aqui (em 1952) o surrealismo português. Para outros, permanece e está vivo, porque como defendeu Cesariny, “aquilo a que se chamou Surrealismo existiu sempre”.

Há um esclarecedor episódio que espelha bem estas divergências entre surrealistas: aquando da exposição “O Surrealismo em Portugal”, patente no Museu do Chiado e que devia transitar para Madrid, Cruzeiro Seixas ameaçou retirar as suas obras. Porquê? Porque não aceitava estar representado em Espanha se o formato da exposição reproduzisse o do Museu do Chiado. Fazia finca-pé em manter a versão apresentada em Vila Nova de Famalicão, da qual tinham sido retirados três trabalhos de António Pedro e acrescentados os de outros pintores, onde se incluíam Paula Rego e Mário Botas. E parece que Cesariny também se recusou inicialmente a participar nessa exposição que incluía quadros da “fase fascista” de António Pedro, embora na carta enviada ao Museu do Chiado se tenha limitado a referir que as suas obras não podiam figurar na exposição, mas sem adiantar qualquer explicação para essa sua atitude, a qual, como a de Cruzeiro Seixas, pode radicar no facto de sentirem que ao grupo ao qual ambos pertenciam (os Surrealistas) estaria a ser dado um papel subalterno na exposição, ficando o palco principal para António Pedro e para o Grupo Surrealista de Lisboa.

Cesariny seguiria o seu percurso individual de artista plástico, que inclui pinturas, colagens – através das quais recria a visão onírica do mundo através das vias abertas da imaginação criadora –  “soprografias” e “cadavres-exquis”, mas foi na pintura e na poesia que se destacou e atingiu maior projecção. Muitos dos seus trabalhos associam texto e imagem ou incluem palavras recortadas, num permanente recurso a formas experimentais.

É sabido que Cesariny preferia Pascoaes – seu hipotético mestre – a Pessoa, o poeta da heteronímia a quem parodiava e chamava “o Virgem Negra”. Di-lo abertamente numa entrevista ao suplemento Mil Folhas, do Público (19.01.2002): “O Pascoaes é o grande poeta, não tenho nada contra o Pessoa, mas para mim o Pascoaes é o velho da montanha, o mágico”.

Mais do que semelhanças, talvez possamos falar de uma tensão entre a heteronímia (arte do desdobramento) e o surrealismo (enquanto arte de montagem). O que Cesariny faz é muito mais do que subverter a imitação, esse princípio básico da estética clássica que se mostrou incapaz de resistir ao advento do Romantismo, que acabaria por o derrubar de forma inapelável. Fernando Cabral Martins, na contracapa do livro Mário Cesariny e o Virgem Negra, deixa exaradas estas palavras: “não é Pessoa que é atacado (nem as suas obras maiores, pois nunca o considerou medíocre ou desprezível), mas o mito que dele se criou e, sobretudo, certos persistentes lugares-comuns da sua leitura”. Talvez uma reacção de Cesariny ao boom pessoano dos anos 80 que desembocaria na conhecida rima “tanto Pessoa já enjoa”, ou uma resposta ao exercício sacralizante dos que por essa altura desenvolviam um aturado trabalho de decifração – depois de muito remexer na arca do poeta –  e de edição sistemática dessas supostas descobertas.

Vejamos este exemplo – que os mais incautos podem entender como plágio, intertextualidade, ou nem uma coisa nem outra. Cesariny, a pretexto do centenário de nascimento de Fernando Pessoa, subverte alguns dos seus textos recorrendo àquilo a que chama “chocalhar a metafísica fernandina tentando simplificá-la”. Comecemos pelo texto de Pessoa, inserido em Cancioneiro:

Não: não Digas Nada!
Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.

Agora o poema de Cesariny, inserido em O Virgem Negra:

Faz-me o favor
Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor — muito melhor!
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

Para melhor se compreender o humor e o sarcasmo ao serviço do surrealismo, sugiro aos interessados, entre outros possíveis exemplos de alteração radical do sentido original dos textos pessoanos,  a comparação entre o conhecido poema de Álvaro de Campos “Vem, Noite antiquíssima e idêntica” e  a reescrita em forma de paródia  do poema de Cesariny inserido em O Virgem Negra, “Vem, Vulva antiquíssima e idêntica”. Para António Carlos Cortez, trata-se da “destruição do poder simbólico de Fernando Pessoa enquanto ‘mestre’ ou fundador da modernidade poética” (Relâmpago, n.º 26, pp. 62-63).

Cesariny e João Perry no dia 25 Abril de 1974

Da vasta obra desta figura maior do surrealismo português – poeta, autor dramático, ficcionista, crítico, ensaísta, tradutor e artista plástico – destacamos Corpo Visível (1950), Poesia: Discursos sobre o Real Quotidiano (1952), Louvor e Simplificação a Álvaro de Campos (1953), Manual de Prestidigitação (1956), Pena Capital (1957), Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Postos à Circulação pelo Autor (1958) Nobilíssima Visão (1959), Planisfério e Outros Poemas(1961), Titânia e a Cidade Queimada (1965), Burlescas Teóricas e Sentimentais (1972), As mãos na água a cabeça no mar (1972), Primavera Autónoma das Estradas (1980) e O Virgem Negra. Fernando Pessoa Explicado às Criancinhas Naturais & Estrangeiras (1989).

No Manual de Prestidigitação, dado à estampa pela Contraponto quando Mário Cesariny dava os primeiros passos na sua surreal caminhada, podemos encontrar, entre outras, esta relíquia:

A Imaculada Concepção

Um pássaro
a pino sobre as rochas
um pássaro jamais visto
um pássaro só pássaro
um pequeno pássaro enorme
fascinante
gelado

Um pequeno pássaro vivo
sobre as coisas
como um lado do mar
brilhante impalpável
seguro
e apesar disso impossível
terrível
obsidiante

Foi quando me voltei
para dizer-te: ‘Repara!’
que ele passou

No poema que começa com os versos da antítese “Em todas as ruas te encontro/ em todas as ruas te perco”, inserido em Pena Capital (1982), somos transportados para o possível reencontro de dois amantes. O ser apaixonado tende a ver em tudo o que o rodeia o “objecto” da sua paixão. É tal o desejo de reencontro que o “vê” mesmo onde ele não existe. Sonhos que se desmoronam e a seguir se reconstroem. Podem ser ressonâncias de sombras, de corpos que se cruzam nas ruas, de muros e paredes que o ser apaixonado encontra no percurso, de aves a esvoaçar no horizonte. Ressonâncias que lhe chegam, também, da água que contempla ou bebe, ou até do ar que respira e dos aromas que esse ar transporta consigo: “bebo a água e sorvo o ar/ que te atravessou a cintura.”

No regresso à realidade – uma realidade por vezes mais estranha que a própria ficção – o apaixonado deixa de “ver” aquele que ama e talvez por isso o verso “em todas as ruas te perco”. É o amor que sente, mas já não vê; que persiste, mas já não (re) encontra. Talvez por isso Cesariny não gostasse do “real quotidiano”, explicando-se deste modo : “porque não presta. Porque é o que menos interessa. Eu sempre desejei ir além, ir para dentro. O que presta é o amor, a liberdade, a poesia”. A realidade, nestes versos de Cesariny, pode ser vista como a fatalidade de quem perde aquilo que um dia encontrou (e em que acabou por se perder). Perda dolorosa, na exacta medida em que só quem um dia ganhou sabe o que é perder. Sobre este “real quotidiano” escreveu Pedro Mexia: “ O Cesariny visionário é notabilíssimo, majestoso até, mas nada me entusiasma tanto quanto a sua “reabilitação do real quotidiano”, até pela noção de que aquilo que salva o quotidiano são os grandes encontros, os grandes acasos, os grandes deslumbramentos”. Cesariny tinha de facto essa invulgar capacidade de desconstruir o “real quotidiano”, que procurava reabilitar através da linguagem poética.

Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura

e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

Nos últimos anos de vida, o homem livre e luminoso que foi Cesariny já não escreve poesia e afasta-se da vida pública. Como dizia Torga, existir é ir perdendo. Neste caso, os amigos da aventura surrealista e os cafés que acolhiam essas tertúlias e funcionavam como espaços privilegiados de convivialidade. Cesariny sente-se tributário desses espaços em acelerada extinção onde se aspirava o cheiro forte do café torrado, quando escreve: “Voltei à esplanada mas tinha gente a mais. Procuro outro café, outra esplanada próxima: não consigo escrever” (in Titânia e a Cidade Queimada, D. Quixote, 1977).

Censura a “Um Auto Para Jerusalém”

O poeta da insurreição permanente contra as convenções morais ou estéticas da época – mais do que da escola ou do método surrealista – aceitaria mesmo assim, em 2005, o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores e também ser condecorado pelo Presidente da República com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. Homenagens justas e merecidas a quem, nos tempos de privação da liberdade, ergueu a voz em haste de coragem e foi capaz de recorrer a metáforas e a simbolismos para exprimir desalento pelo quotidiano sombrio do nacional-saudosismo que pautava e alagava a vida dos portugueses. Essa poética contra as convenções e  os servilismos rastejantes era a sua forma de exorcizar o medo, de transgredir e afrontar o sistema, ou não soubesse ele que na vida…

“Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!”

(excerto de “Pastelaria”, in Nobilíssima Visão)

Consultas:
Bernardo Pinto de Almeida, Mário Cesariny. Editorial Caminho, 2005.
Fernando Cabral Martins, Mário Cesariny e o Virgem Negra, Sistema Solar, 2016
Maria de Fátima Martinho, O Surrealismo em Portugal, IN-CM, 1987
Pedro Mexia, “O jovem centenário”, Expresso Revista, 07.07.2023)
Relâmpago (Revista de Poesia), n.º 26, evocativa de Mário Cesariny.
https://cesariny.blogs.sapo.pt

Adeus a José Mattoso, não à sua obra (1933-2023)

Nasceu em 1933 e aos dezassete anos quis ser monge beneditino. Uma forma – dizia – de encontrar Deus e, com ele, também a paz. Uma vida feita de muitos caminhos, em demanda dos trilhos da sabedoria: em Singeverga (Santo Tirso) aprofundou a experiência religiosa; em Lovaina (Bélgica) doutorou-se em História e tornou-se medievalista; em Timor ajudou a organizar arquivos e enalteceu a dignidade do seu povo a partir da biografia de Konis Santana; em Portalegre envolveu-se na alfabetização de adultos e em Lisboa foi professor, investigador e director da Torre do Tombo.

Depois da vida monástica e da vida mundana, do bulício da cidade e do ruído do tempo, o regresso à busca da interioridade. Um retiro ditado pelo desprendimento em relação aos diferentes poderes, de alguém mais vocacionado para a vida contemplativa, ao contrário de Herculano, que se retirou para Vale de Lobos desagradado com o mundo do seu tempo. Primeiro rumou a um monte alentejano, à vida simples numa casa de pastores; mais tarde, a uma aldeia com meia dúzia de casas, a norte de Portugal. Homem discreto, isolado e contemplativo, mas não menos produtivo. Uma atenção sem intervalos às coisas profundas e não à espuma dos dias. Tempo de consagrar o tempo à busca espiritual.

Um outro olhar sobre o Portugal medieval. A coordenação da História da Vida Privada em Portugal e da História de Portugal, oito volumes que são um ponto de viragem na visão global do passado português.  A direcção  de Património de Origem Portuguesa no Mundo. A distinção com o Prémio Pessoa. Uma obra imensa, uma produção historiográfica brilhante. Ao fim de  quatro décadas de intenso labor, decidiu libertar-se de fardos institucionais e acabar com a investigação e a divulgação científica, por não querer “prolongar os trabalhos para além do momento em que estava seguro da sua lucidez”. Fê-lo, também, por saber que a verdadeira capacidade dos mais velhos consiste em saberem retirar-se a tempo, para dar lugar aos novos.

A erudição. O saber preciso. A História como lugar privilegiado de reflexão. Cultura em primeiro grau. Sabedoria em estado puro: a que nos ensina o que é importante e o que é secundário, a que funciona como “o antídoto mais poderoso contra a angústia que nos causa um mundo à beira do colapso”.

Obrigado pela Identificação de Um País, pela Nobreza Medieval Portuguesa, pel’A Escrita da História e também por Levantar o Céu, já que o labor científico nunca dispensou a atenção ao transcendente e ao sagrado. Obrigado por tantas heranças.

Há quem entenda que escrever sobre a morte de alguém é ridículo. Aos que neste espaço procuram ridicularizar quem tem escrito sobre a morte de José Mattoso, apenas isto: antes correr esse risco do que a injustiça dum imerecido esquecimento.

Contra o declínio da cultura clássica

Na estimulante entrevista que concedeu ao semanário Expresso, o filósofo alemão Peter Sloterdijk afirma:

“O meu pressuposto é que os seres humanos do futuro serão muito menos moldados pelas artes e pelas letras, como era habitual nos tempos da educação humanística, mas sobretudo pelos dispositivos do nosso novo meio ambiente digitalizado (…). A inclinação para a filosofia é — sempre foi — uma espécie de doença rara. E está ligada a uma alergia específica contra as explicações simples e as conversas repetitivas. A repetição é legítima, mas não pode substituir o esforço de pensar. No fundo, filosofa-se graças a uma condição alérgica contra tudo o que está automatizado — mental, emocional e politicamente. A proposição central e última (e primeira) da filosofia é: “Isto não pode ser assim tão simples.”

Jean-Léon Gérôme, “A Verdade saindo do poço”

E não pode ser assim tão simples porque o mundo e o pensamento são complexos. Ao pensamento repetitivo, previsível como o mecanismo da roda dentada, a filosofia deve contrapor, na busca incessante da verdade (Aletheia, entre os gregos) as aporias do debate de ideias, as categorias do pensamento, a fecundidade argumentativa, a substituição do agir mecânico pelo reflexivo. Neste tempo em que os poetas não passam de sonhadores desfasados das realidades terrenas e a filosofia é para muitos mera conversa fiada, tempo de utilitarismo, de modernidade cínica (Sloterdijk) ou de modernidade líquida (Bauman), de comportamentos fluidas que não convidam ao pensamento – o tempo da inteligência artificial, das notícias falsas e das mentiras transformadas em rotina no quotidiano – é reconfortante ler também A Utilidade do Inútil, do filósofo italiano e professor de literatura Nuccio Ordine: Continuar a ler →

Eduardo Lourenço – “mestre da dúvida” e da interrogação permanente

Gostaria de viver num convento onde o superior fosse Álvaro de Campos

“No plano do conhecer ou no plano do agir, na filosofia ou na política, o homem é uma realidade dividida. O respeito pela sua divisão é Heterodoxia”

Eduardo Lourenço

Assinala-se a 23 de Maio o centenário de nascimento de Eduardo Lourenço. A Fundação Calouste Gulbenkian já lhe prestou merecida homenagem, ao organizar um colóquio no dia 28 de Março. Outras iniciativas estão programadas, na cidade da Guarda, onde o Congresso Leituras de Eduardo Lourenço vai revisitar as diferentes facetas da vasta obra daquele que a si próprio se intitulava um “místico sem fé”, ou – atrevemo-nos a dizer – alguém que é portador de uma fé heterodoxa.

Eduardo Lourenço de Faria (doravante designado por EL) nasceu em S. Pedro do Rio Seco, pequena aldeia do concelho de Almeida, distrito da Guarda. Fez a escola primária na terra natal e os estudos secundários na Guarda. Mais tarde rumaria à Universidade de Coimbra, onde encontra um ambiente propício à reflexão cultural, concluindo o curso de Ciências Histórico-Filosóficas. Nos anos 50 foi leitor de português em universidades alemãs e francesas, acabando por se fixar primeiro em Nice e depois em Vence (sul de França) como professor de Filosofia. Não é fácil classificar uma personalidade tão rica e multifacetada, alguém que foi ao mesmo tempo filósofo, pensador, crítico literário e ensaísta penetrante, ensaísmo esse entendido enquanto experiência do questionamento e de busca de sentido capazes de rasgar clareiras para domínios inexplorados.

No plano da filosofia merecem destaque dois dos seus primeiros e mais citados livros, Heterodoxia I (1949) e II (1967) e ainda os estudos sobre António Sérgio ou sobre a filosofia em Antero de Quental, reunidos em Antero ou a Noite Intacta (2007). Sobre Heterodoxia I, obra em que o então jovem EL assume pela primeira vez a sua condição de pensador solitário, é ele mesmo que nos esclarece ter o livro nascido do seu desejo de se demarcar das duas ortodoxias que por essa altura monopolizavam os meios intelectuais portugueses: o catolicismo e o marxismo. Era esta a polarização fundamental da vida cultural portuguesa nos anos 40. Essa dicotomia, tantas vezes extremada no debate político, era para EL a responsável pelo estreitar do caminho onde deviam circular e fluir livremente a cultura e o pensamento.

Chegou a confessar, numa entrevista, que este livro lhe provocou vários dissabores entre os antigos camaradas já entretanto ligados ao núcleo coimbrão da geração neo-realista, “uma audácia” que o deixou “isolado” e “sem família”. O heterodoxo que recusou tanto a leitura racional e positiva dos acontecimentos como a tentação de explicar o mundo que nos rodeia com recurso exclusivo aos mitos, disse em Heterodoxia I, no prólogo, que “a heterodoxia é a consciência absoluta da pluralidade histórica das ortodoxias” (p. 6). Anos mais tarde, no segundo prólogo sobre o espírito da heterodoxia, empenhou-.se em clarificar – e de algum modo também corrigir – ainda mais o conceito: “Recusar a verdade dos outros ou o espírito com que eles a vivem não é o mesmo que encontrar a sua” (Heterodoxia II, p. 90). EL assumiu que em 1949 teria cometido o equívoco de pensar que um ortodoxo não pode ser um homem livre e que a heterodoxia seria a única forma de exercitar a liberdade. Irresistível não pensar no poeta Joaquim Namorado, com quem privou em Coimbra e de quem foi colega nas páginas da Vértice, que um dia proclamou aos quatro ventos que “só a ortodoxia é uma aventura”.

Nas décadas de 50 e 60 avulta sobretudo o crítico literário, embora já na anterior apareçam as primeiras recensões de EL em revistas como Vértice ou Seara Nova. Em 1955 dá a estampa O Desespero Humanista de Miguel Torga e o das Novas Gerações, inaugurando com esse e outros textos sobre poesia, no dizer de Miguel Real, “uma crítica de tipo novo” em Portugal. A consagração desta sua faceta de crítico literário – depois de abandonar, quase por completo, a reflexão filosófica – acontece com a publicação do célebre e polémico ensaio “Presença ou a contra-revolução do modernismo português”? sedimentada, anos depois, com a edição de Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista (1968), as fulgurantes análises de Fernando Pessoa Revisitado (1973) ou Fernando, Rei da Nossa Baviera (1986), Tempo e Poesia (1974), Poesia e Metafísica (1983) ou O Canto do Signo, Existência e Literatura (1994).

O ensaio “Presença ou a contra-revolução do modernismo português?” foi publicado inicialmente em 1960, no suplemento quinzenal Cultura e Arte do jornal O Comércio do Porto e tornou-se desde então um texto incontornável, apesar da poda feita pela censura, nomeadamente com a supressão de referências a Adolfo Casais Monteiro. Num tempo pautado pela quase inexistência de sentido crítico no árido panorama das letras em Portugal, a ninguém foi indiferente esta publicação, que acabou por merecer o aplauso de uns e o melindre de outros – sobretudo os presencistas convictos – e ateou polémicas cujas labaredas ainda perduram. Este ensaio – que Miguel Real considera o “artigo de crítica literária possivelmente mais famoso do século XX em Portugal” – contra as ideias feitas e uma certa unanimidade instalada na crítica literária da época, não podia deixar indiferentes os que sustentavam ser o espírito da Presença o continuador cultural do Orpheu e não a contra-revolução do modernismo, como sustenta EL

O texto acabaria por gerar uma fecunda controvérsia, que se prolongou até aos nossos dias. De entre os presencistas mais convictos, aquele que se terá sentido mais agredido com a tese da contra-revolução do modernismo foi João Gaspar Simões, o “guarda-mor das nossas letras”, como lhe chama EL (Tempo e Poesia, p. 19). Ao lado de EL colocou-se, entre outros, Jorge de Sena, que apesar de não subscrever na íntegra a tese da contra-revolução, considera não existir continuidade na poesia dos dois modernismos.

O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português (1978) é, porventura, o seu mais conhecido e celebrado livro. Nele encontramos ensaios que traçam o retrato da mentalidade portuguesa e onde se procura uma resposta sobre que é, afinal, isto de ser português. Num desses ensaios, escreve: “a mais sumária autópsia da nossa historiografia revela o irrealismo prodigioso da imagem que os Portugueses fazem de si mesmos” (p. 17).  Uma das obras fundamentais do século XX sobre a nossa identidade, que ajudou a outorgar-lhe o estatuto de incontornável teórico da cultura portuguesa, reconhecido nacional e internacionalmente. Grande parte da sua vida foi passada a sondar os mitos da nossa cultura, nomeadamente o diálogo que os mitos estabelecem com as várias épocas. O ensaio principal desta obra foi escrito para a revista Raiz e Utopia (n.º 5-6, 1978).

Para lá das facetas já aqui abordadas, há também o EL do empenhamento político. Data de 1958 o primeiro texto onde manifesta a sua oposição ao Estado Novo, com o título “O Exército ou a Cortina da Ordem”. Nos dois anos seguintes volta a publicar em jornais brasileiros textos de carácter político e a favor da instauração de um regime democrático em Portugal. A seguir à revolução de Abril de 1974, quando a liberdade se instala com a queda do império, tenta compreender e pensar Portugal em textos de intervenção política dispersos por jornais e revistas. A residir em França, pensou com olhar distanciado o complexo e contraditório processo revolucionário que haveria de nos conduzir à democracia e à integração na União Europeia. Derramou esse olhar distanciado em páginas da imprensa, mas também em livros como Os Militares e o Poder, Ocasionais, A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História?, O Complexo de Marx, Do Colonialismo como Nosso Impensado, O Fascismo Nunca Existiu e Nós e a Europa, ou as duas razões.

Finalmente, encontramos também em EL a vincada faceta do esteta. Ora em textos publicados em O Tempo e o Modo e Colóquio/Artes ou reflectida em livros como O Espelho Imaginário – Pintura, Anti-Pintura, Não Pintura (1961), Tempo da Música, Música do Tempo (2012), Da Pintura (2017) e  Segundo Paraíso: Do Cinema como Ficção do nosso Sobrenatural, uma recolha de ensaios, artigos, recensões, notas de agenda e manuscritos que se encontravam dispersos, com títulos como estes: “Edgar Morin ou o Homem como Cinema”, “Marilyn no Céu”, “Charlot, Mito Ambíguo ou Mito Nefasto?”, “Bergman e a Entropia”, “Insólito João de Deus”, ou “A Paixão (Portuguesa) segundo Manoel de Oliveira”.

Estamos a falar de alguém que sempre insistiu em querer compreender  as imagens que os portugueses foram historicamente construindo de si mesmos, o país que somos, o “navio-nação a que chamamos Portugal”, mas com uma visão desencantada e pessimista dos tempos que aí vêm, como transparece da leitura de Nós como Futuro: ao afirmar que “nenhuma barca europeia é mais carregada de passado do que a nossa” e que “simbolicamente nenhum povo vive no passado como Portugal”, EL quer-nos dizer que Portugal vive o presente em função de imagens do passado, imagens essas construídas com a finalidade de perpetuar as ortodoxias reinantes. E será essa nossa maneira tão peculiar de incorporar e viver o passado que acaba por constituir “um sério obstáculo para conceber o futuro”. Um futuro de Portugal que foi desde cedo “o lá fora, a distância nossa ou alheia”.

O consabido pessimismo deste dissidente da sua própria geração e “fascinado escalpelizador da nossa pequenez” (Eugénio Lisboa dixit) também é reconhecível em O Esplendor do Caos, ao sublinhar que “assistimos, sem nenhuma espécie de espanto e ainda menos pânico intelectual, ao sucesso e à glorificação do conceito de caos”. Ou quando afirma: “Nós incorporámos o inferno no quotidiano do mais fascinante e atroz dos séculos (…) num mundo onde o horror se tornou invisível, consumido como pura virtualidade”. José Gil e Fernando Catroga, dois especialistas em história das ideias, classificam este recuo do inteligível, esta forma de EL perscrutar o futuro, de “ensaísmo trágico”. Um olhar trágico sobre a época que lhe foi dado viver, sobre o desencanto do mundo patente no desmoronar da racionalidade programática, em que se assiste ao enfraquecimento da ideia religiosa e metafísica da verdade.

Galardoado com os Prémios Camões e Pessoa, dois dos poetas que mais admirava, consagrado à esquerda e à direita, o autor de O Labirinto da Saudade não morria de amores por um certo anel de ferro do unanimismo que se foi apertando – seguramente com alguns equívocos e alguma ignorância da sua obra à mistura – em torno do seu nome. Aquando do seu desaparecimento o Jornal de Letras dedicou-lhe um número especial onde praticamente todos os textos afinavam pelo diapasão do consenso laudatório. Bastou um texto não alinhado, saído da pena de Eugénio Lisboa, para o verniz estalar. Sentindo-se visado pelas farpas lançadas no editorial, bateu com a porta e acrescentou, na carta de despedida: “José Carlos de Vasconcelos, quero comunicar-lhe que não volto a colaborar no JL. Enquanto o fiz, procurei sempre dizer (…) aquilo que penso: com admiração, quando ela é devida, mas sem idolatrias próprias de ditaduras de terceiro mundo”.

No essencial, o texto de Eugénio Lisboa limitava-se a assinalar uma evidência na prosa de EL: um certo culto da obscuridade, tributário da moderna escola francesa com a qual estava familiarizado. A isso contrapunha Eugénio Lisboa autores como António Sérgio ou José Régio, que nos oferecem “uma prosa limpa, intrepidamente descascada, alheia a floretti e a maneirismos gongorizantes, que só servem para atravancar o fluir asseado das ideias”. Esta crítica em nada abala a consideração que EL lhe merece, apesar de sabermos que não partilha algumas das suas teses. Essa consideração intelectual está bem patente num texto publicado em Maio de 1984 na revista Prelo, onde podemos ler, a propósito de Heterodoxia I, que “aquele jovem inquieto, inteligente e autónomo” teve o mérito de “tentar rasgar a cortina triunfalista e monolítica dos asfixiantes anos 40 (…) os monolíticos centros de decisão que faziam e desfaziam as reputações, em função de bom comportamento ideológico do candidato à glória” (p. 23).

Não será temerário afirmar que talvez ninguém como EL tenha construído uma obra ensaística tão livre de imposições, que tenha abalado tanto, nas décadas de 60 e 70, as consciências da crítica literária portuguesa. Muito poucos terão pensado, de forma tão arguta e profunda, a cultura portuguesa da segunda metade do século XX, cruzando os planos da literatura, da filosofia, do simbólico e do mítico. A vasta e sólida cultura que connosco partilhou foi sempre mais um cais de partida que um ponto de chegada. Ninguém como ele terá ajudado a desconstruir o discurso ortodoxo que é o estrume de todos os mitos, apesar de saber que os manes tutelares da certeza se ofendem com a dúvida e não deixariam de descarregar sobre ele a sua fúria, apostados que sempre estiveram em expurgar heterodoxias.

Ora o debate sobre a vasta obra que EL nos legou, profunda, complexa e provocatória, nada terá a ganhar com o unanimismo acrítico das claques aquiescentes que hoje o veneram. Do que verdadeiramente a sua obra anda carecida não é da sociedade de corte que a idolatra nos habituais espaços de hagiografia. É de crítica construtiva. É que sobre ela recaia a atenção dos que de algum modo o continuam, fascinados com a dúvida e a interrogação permanente.


Consultas:
Ana Cristina Ferreira Assunção Marrucho, “Presença ou a Contra-Revolução do Modernismo Português”. Dissertação de Mestrado, Lisboa, 2008 (consulta electrónica)
António Guerreiro, “O espírito da heterodoxia”, Actual (Expresso), 17.12.2011, p. 30
Eduardo Lourenço, Heterodoxia, Ed. Assírio & Alvim, 1987
Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, (Relógio D’Água, s/d)
Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Publicações Dom Quixote, 1988
José Gil/Fernando Catroga, O Ensaísmo Trágico de Eduardo Lourenço (Relógio D’Água)
Miguel Real, Eduardo Lourenço. Os Anos da Formação (1945-1958), IN-CM, 2003
Miguel Real, O Essencial sobre Eduardo Lourenço (IN-CM)
PRELO (Número especial sobre Eduardo Lourenço), Maio, 1984

Da poesia (versão “prosa fatiada”)

Na revista Sábado escreveu Susana Lúcio, no dia 30 de Janeiro:

“Uma sobrevivente não uma vítima/ E viva para contar a história real”. Foi assim, com um poema, que Pamela Anderson anunciou a sua autobiografia”.

“Com um poema” – enfatizou a jornalista. Afinal, ser poeta não é assim tão difícil como parece. Não é preciso “ser mais alto” (pode ser gente de baixa estatura, desde que se coloque em bicos de pés) nem ter “asas de condor” (pode ser gente que voa baixinho, como as andorinhas em voo rasante à procura dos insectos de que se alimentam). Qualquer um, mesmo com asas de granito, pode ser poeta. Ou pelo menos poetastro, se não for capaz de sair dos andaimes da construção poética.

Essa ideia de Adorno, segundo a qual não é possível escrever poesia depois de Auschwitz, tem muito que se lhe diga. É como acreditar, por absurdo, que podemos proibir os pássaros de cantar. Continuar a escrever e a fazer poesia depois de Auschwitz talvez seja a melhor forma de derrotar a sobranceria do pensamento.

A poesia sobreviveu aos campos de extermínio, como tinha sobrevivido antes ao gás mostarda e aos morteiros da I Guerra Mundial. Se assim não fosse, não teríamos hoje uma poesia de experiência e testemunho da guerra em África, uma memória poética da guerra colonial. A poesia não descreve – longe disso – realidades cor-de-rosa envoltas em bons sentimentos (qualquer idiota é capaz de sentir, se lhe calcarmos um pé). A poesia não rasura a dor, antes lhe dá sentido. É para isso que nos remete esta belíssima definição de Paul Celan, para quem a poesia nos provoca com uma voz diferente: “A poesia é qualquer coisa que pode significar uma mudança na respiração”.

Ouçam o que eu vos digo: seguindo o exemplo de Pamela, hoje em dia só não é poeta quem não quer. Aliás, é comum ouvirmos dizer: “És um poeta!”. A mim já mo disseram algumas vezes, já me colaram esse impiedoso rótulo quando pressentem que ando desligado da realidade ou digo coisas – sobretudo no domínio da política – com as quais não concordam. Como “o poema ensina a cair”, querem derrubar-me com esse labéu de falta de sentido prático da vida.

Para ser poeta basta fazer como a Pamela, mesmo que aquilo que ela escreve seja destituído da mais elementar graciosidade poética. O certo é que estamos a falar de uma poesia que aos poucos vai tomando conta do mundo (sobretudo o das redes sociais), indiferente à pandemia e à invasão da Ucrânia, ao caos e à destruição. Embora o segredo seja a alma do negócio, hoje sinto-me alagado em generosidade e desvendo-vos o truque:

Eu a ler “prosa fatiada” (Almada Negreiros, “Prazeres da leitura”)

Pega-se num naco de prosa (não precisa de ser generoso), envolve-se numa dose q.b. de banalidade a puxar à lágrima furtiva e acrescentam-se uns salpicos de sentimentalismo bacoco. Deixa-se a marinar durante algum tempo. Depois, aquece-se tudo no lume brando da vulgaridade. Quando o molho desta mistela começa a engrossar, retira-se a prosa do lume. Deixa-se esfriar. A seguir, corta-se em fatias de versinhos de água doce e serve-se nos murais do Facebook.

Aqui fica um exemplo, entre tantos outros possíveis, deste acto criativo que consiste em fatiar prosa e transformá-la em versos capazes de agradar a gregos e a troianos:

Prosa minha, não publicada, com data de 03.02.2004:

Conflito

Os dias passam. Mas não passa a refrega moral entre o poder criativo e o dever paternal. Chegar a casa com o fogo criativo esgotado. Angústias, sarilhos existenciais. É este o meu fado.

Poesia minha (prosa fatiada):

Conflito

Os dias passam.

Mas não passa
a refrega moral
entre o poder criativo
e o dever paternal.

Chegar a casa
com o fogo criativo
esgotado.

Angústias
sarilhos existenciais.

É este o meu fado.

Agora digam lá se não estou ao nível da Pamela Anderson. Comparem apenas o fulgor poético. Nada de surfar ondas em marés vivas, muito menos de comparações abusivas entre curvas e contracurvas capazes de endireitar um segmento de recta.

António Manuel Couto Viana (24.01.1923 – 08.06.2010) – no centenário de nascimento do “avestruz lírico”

 

António Manuel Couto Viana nasceu em Viana do Castelo, em 24 de Janeiro de 1923. Professor do ensino liceal, foi também encenador, dramaturgo e tradutor, contista e figurinista, ensaísta e gastrónomo, poeta. Era isto tudo ao mesmo tempo, mas foi sobretudo como poeta que se notabilizou no panorama cultural português, e também como pessoa com fortes ligações ao teatro: inicialmente como actor, pela mão de David Mourão-Ferreira, e mais tarde como empresário e director. A esta sua inclinação para o teatro não terá sido alheia a herança que recebeu do avô: o teatro Sá de Miranda, em Viana do Castelo.

Com 25 anos, publicou o primeiro livro de poemas em 1948, O Avestruz Lírico, título que concentra, segundo Fernando Pinto do Amaral, “a ressonância simbólica associada ao avestruz – animal que, como se sabe, opta por enterrar a cabeça na areia diante das dificuldades – neste caso suplementada com o adjectivo lírico e implicando, por isso, uma resposta aos problemas da vida através da simples entrega ao canto ou à poesia [sendo que] o avestruz simboliza também a profunda frustração do sujeito, que, tal como acontecia no famoso ‘albatroz de Baudelaire’, se identifica com um ser portador de uma insolúvel ambivalência, dado que, sendo uma ave e possuindo naturalmente um par de asas, não consegue elevar-se do solo e voar livremente pelo céu”.

Depois destas primícias literárias, a sua obra viria a avolumar-se com mais de uma centena de livros de diferentes géneros. A obra poética foi traduzida para o inglês, o francês, o espanhol, o alemão, o russo e até o chinês, a que não terá sido alheia a sua permanência em Macau, onde viveu entre 1986 e 1988, exercendo funções docentes no Instituto Cultural daquele antigo território português.

Na década de 1950-1960 empenhou-se na direcção e publicação de algumas revistas literárias e culturais. Entre elas contam-se os cadernos de poesia Graal e também a revista Távola Redonda (“folhas de poesia” que não enjeitavam a influência presencista e da qual se distanciavam tanto o surrealismo como o neo-realismo), que ajudou a fundar em 1950, de parceria com David Mourão-Ferreira, Ruy Cinatti, Fernanda Botelho e Alberto de Lacerda. Estamos a falar de publicações conotadas com a direita intelectual portuguesa da 2.ª metade do século XX.

Numa espécie de reacção a alguma poesia programática do neo-realismo, num evidente menosprezo pelas suas propostas de intervenção social, Couto Viana manifestava nestes oito versos a crença numa identidade muito peculiar e, como acentua Fernando Pinto do Amaral, a sua “faceta indubitavelmente solipsista”:

Podem pedir-me, em vão,
Poemas sociais,
Amor de irmão pra irmão
E outras coisas mais:

Falo de mim – só falo
Daquilo que conheço.

O resto… calo
E esqueço.

Como escreveu Manuel de Freitas: “a obra de Couto Viana nunca deixou de acreditar na biografia enquanto fundamento poético. Poder-se-ia mesmo dizer que o autor tem procurado levar às últimas consequências um conselho sábio de Montaigne: Falo de mim. Só falo/ daquilo que conheço (…). A procura de um ‘efeito de realidade’ poderá inclusivamente explicar, pelo menos em parte, o coloquialismo e a ligeireza aparente de alguns dos melhores versos de Couto Viana”. Digamos que o poeta contrapunha ao canto do social o canto de si mesmo.

Há, na obra de Couto Viana, uma patente exaltação nacionalista e patriótica de Portugal e da História. O poeta simpatizava com o Estado Novo, ao ponto de ter sido convidado pela Mocidade Portuguesa, depois de publicado O Avestruz Lírico, para suceder a Baltazar Rebelo de Sousa na direcção da revista juvenil Camarada.  Não admira, assim, que depois da revolução de Abril de 1974 tenha dado mostras de profunda desilusão por aquilo que considerava ser uma evidente decadência da pátria portuguesa. Num texto intitulado “Portugal”, esboça desta forma cáustica e amarga o fim do império português:

Este mendigo, outrora, era um menino d’oiro,
Teve um Império seu, mas deixou-se roubar.
Hoje, não sabe já́ se é castelhano ou moiro
E vai às praias ver se ainda lhe resta o mar!

É esse mesmo desencanto com uma “pátria doente” e aviltada, amputada dos seus territórios, que transparece em “De Profundis”, poema de A Face Nua e incluído posteriormente na antologia Sou Quem Fui, p. 130:

 

Agora, o meu país são dois palmos de chão
Para uma cova estreita e resignada.
Tem o formato exacto de um caixão.
Agora, o meu país é pó, é cinza, é nada.
Reduziram-no assim para caber na mão
Fechada.

 

A silicose do esquecimento que se abateu sobre o seu nome, de forma mais notória nos últimos anos de vida, terá mais a ver com a declarada ideologia conservadora, monárquica e imperialista, do que com a qualidade da vasta obra que nos legou. É isso que acontece quando, para afirmar ideologias, se embrulha no mais denso esquecimento uma obra que justifica, retrospectivamente, a vida de quem a produziu. Uma obra que algumas escolas literárias procuraram refutar ou desvalorizar, recusando-se a ver nele um poeta digno desse nome.

Da extensa obra em prosa e verso destacamos, para lá de O Avestruz Lírico (1948), também títulos como Pátria Exausta (1971), Coração Arquivista (1977), o volume Uma vez, uma voz (de 1983, que reúne a sua obra poética quase completa), Café de Subúrbio (1991), Prefiro Pátria às Rosas (1998) e Sou Quem Fui (2000), a antologia de uma obra que então se estendia já por cinco décadas, onde deparamos, segundo Manuel de Freitas, com a “delicada rememoração da infância e das suas personagens centrais [que] vai cedendo lugar às artes poéticas, aos anos da Távola Redonda e, finalmente, aos poemas sobre Macau e a melancólicas reflexões sobre a velhice”. Como acontece neste “Madrigal da terceira idade para afastar a solidão” fiel à nossa tradição lírica, que integra Disse e Repito (Averno, Lisboa, 2008), onde podemos detectar a necessidade afectiva de uma vida em idade avançada, evadida do mundo exterior e embrulhada em espessa melancolia:

É um amor discreto,
Ignorado, até.
Só um gesto de afecto,
Um sorriso secreto,
Desfeito, se alguém vê.

É um amor tranquilo,
De alguém que quer alguém
Prá solidão do asilo.
— Coração, ao senti-lo,
Nem aceleras, nem…

É um amor-amizade.
Um amor-simpatia.
Mas, mesmo assim, ele há-de
Deixar dor e saudade
E gerar poesia.

Nos últimos anos de vida o poeta viveu recluído na Casa do Artista, onde continuou a escrever e a publicar os seus trabalhos, numa espécie de combate da memória contra o esquecimento do seu nome e da sua estética, contra o esquecimento de alguém que nunca despertou consensos. Segundo Fernando Pinto do Amaral, importa avaliar a sua obra para lá das conotações políticas e ideológicas do tempo que lhe foi dado viver. Para lá disso, a sua escrita encerra virtualidades: há, nela, “uma reacção positiva que a reconcilia com o mundo (…), a atenção a um quotidiano banal e sereno, observado, por exemplo, no ambiente urbano e rotineiro de um pequeno e anónimo café/esplanada”. É essa atenção ao banal e ao rotineiro que este belo poema ilustra:

Ela está só, em mesa separada.
Bebe uma água mineral.
A aliança no dedo, a dizer que é casada.
Tem, todavia, um tique de mulher fatal.

Ele está só. Solteiro? Não tem nada
No anelar esquerdo. Bebe uma «imperial».
A mesma idade, aproximada.
A mesma classe social.

Ele encara-a, descarado. Ela, indignada,
Volta-lhe a cara, num parece-mal.
Mas, quando se levanta e abandona a esplanada,
Passa por ele num passo lento e sensual.

Ele vai-lhe, de pronto, na peugada.
E uma hora depois, numa esplanada igual,
Vejo-os à mesma mesa, de mão dada,
Como um feliz casal.

Parece ter chegado o tempo de inventariar com o rigor possível – aplacados que estão alguns ódios de estimação e algumas paixões políticas – a vasta obra, necessariamente desigual, deste poeta menorizado pela instituição literária. Uma obra com méritos e defeitos no singular panorama poético português, que sempre recusou o valor social da poesia e optou por “inflamadas versões de tipo nacionalista” (Pedro Sena-Lino). Alguma arrogância do autor – em entrevistas e até derramada num ou noutro verso, não terão ajudado ao necessário distanciamento crítico: “É estéril e seco o horizonte/ de quem ignora a minha poesia” (in Sou Quem Fui, p. 116).

Para se aferir a qualidade de uma obra não são necessárias afinidades ideológicas. É o que nos diz David Mourão-Ferreira quando se refere a Couto Viana: “Tanto no poeta como no crítico são por demais evidentes – têm-mo sido sempre com coerência admirável – determinadas opções ideológicas que, justamente porque muito distintas e distantes das minhas, nunca deixei de compreender e de respeitar”.

Se a responsabilidade do poeta consiste em escrever versos capazes de sobreviver às circunstâncias históricas do seu tempo, então precisamos de nos libertar da crosta dos preconceitos para reconhecer o talento e os méritos dos que prestam relevantes serviços à causa pública, sempre que for caso disso. Assim acontece com este poeta que muitos preferem manter arquivado.


Consultas:

Manuel de Freitas, “O avestruz lírico”, Expresso (n.º e data não identificados).
Blog “Vício da Poesia (https://viciodapoesia.com)
A.M. Couto Viana, 60 Anos de Poesia (prefácio de Fernando Pinto do Amaral)
A.M. Couto Viana, “O artista transversal”, Visão, 17.06.2010, p. 26
Pedro Sena-Lino, “A lira do real pergunta”, Público, 01.05. 2004 (Livros-Poesia, p. 14).
A.M. Couto Viana, Coração Arquivista (prefácio de David Mourão Ferreira).

Eugénio de Andrade (1923-2005) – luz, rigor, clareza

Eugénio de Andrade (retrato de Emerenciano)

Toda a poesia é luminosa,
até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar

Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede, 2001

 Nasceu com o nome de baptismo José Fontinhas (19 de Janeiro de 1923, Póvoa da Atalaia-Fundão), mas usou o pseudónimo Eugénio de Andrade pela primeira vez, de forma impressa, em Adolescente (1942). Foi por esse nome que ficou conhecido um dos poetas portugueses do século XX mais lidos, estudados e traduzidos. Apartou-se do nosso convívio em 2005, aos 82 anos, na sua casa da Foz do Douro, sede da Fundação com o seu nome. Decorria o mês de Junho e parece haver nisso uma premonição, um instinto visionário, pois havia escrito: “Pela manhã de Junho é que eu iria/ pela última vez. / Iria sem saber onde a estrada leva” (O Comum da Terra, 1980).

Os primeiros poetas com quem viria a familiarizar-se foram Guerra Junqueiro e António Botto, mas de nenhum deles sentiu que a sua poesia fosse tributária. Foi ao tropeçar em Camilo Pessanha que verdadeiramente sentiu as influência do poeta de Clepsidra, um dos poucos a quem viria a reconhecer o papel de “mestre”. Fez das palavras o ofício de uma vida e da poesia uma «arte de música». António Ramos Rosa chamou-lhe rei Midas do verbo: palavra que tocasse virava ouro de lei. Assim o dizem estas palavras enxutas e cristalinas: “Colhe/ todo o oiro do dia/ na haste mais alta/ da melancolia” (Despedida, in Ostinato Rigore, 1984).

As Mãos e s Frutos (1948) é considerado um dos livros fundadores da poesia portuguesa contemporânea. Para o autor, então com 25 anos, esta é a sua verdadeira obra de estreia, apesar de já ter publicado outras: viria a excluir Adolescentes (1942) da sua bibliografia, e a renegar também Pureza (1945), recuperando destas obras apenas dez Primeiros Poemas, que funcionou como lançamento de uma primeira pedra da sua obra. Personalidades literárias como Vitorino Nemésio, Óscar Lopes, Jorge de Sena ou Eduardo Lourenço perceberam de imediato que As Mãos e os Frutos, o grande livro da exaltação do corpo físico e do desejo – ambos vulneráveis à passagem do tempo – anunciava o nascimento de um grande e luminoso poeta português.

Para Luis Miguel Nava, “as mãos são as partes do corpo de que nos servimos para colher os frutos e os levar à boca (e também) susceptíveis de ser tocadas, acariciadas”. Eugénio de Andrade deleitava-se com a celebração pagã do esplendor do corpo e fez dele o centro da sua poesia. Ficaria reconhecido como “poeta do corpo”, do erotismo e da natureza, na exacta medida em que a beleza dos corpos se aproxima da natureza dos deuses. Também lhe chamaram “poeta dos elementos” (ar, água, terra e fogo), alguém capaz de sacrificar tudo pela construção obsessiva e enxuta de um verso, numa dedicação quase monástica ao labor poético. Luz, concisão e clareza caracterizam a poesia que nos legou, depois de a despir de tudo o que é supérfluo. Idioma rigoroso que apenas consente o que se afeiçoa à pureza da língua e da gramática: “Toda a manhã procurei uma sílaba/ É pouca coisa, é certo: uma vogal”.

Alguém que burilava de forma paciente as palavras, na rigorosa busca da linguagem exacta, até se tornarem nuas de impureza, para assim atingirem a limpidez do cristal. Desse ofício de paciência nos dá conta, na abertura de Os Amantes Sem Dinheiro:

Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.

Uma verdadeira estética da simplicidade, de fidelidade à terra, de desprezo pelo enfático e da presença melódica da palavra. Sílabas leves de um poeta fascinado pela transparência. Assim o confessou a Eduardo Lourenço: “Tu sabes, Eduardo, do meu horror às rimas previstas, à cantilena, à banalidade sentimental (detestando igualmente as cintilações ‘para raros’) e sabes também como amo excessivamente (não sei amar sem excesso!) a claridade, a sobriedade expressiva, a palavra exacta, se possível unívocas”.

Palavras do corpo e da alma, redondas como frutos maduros com sabor a sol e laranjas.  Diz-nos António Guerreiro: “quando, em poemas diferentes, se fala de uma cabra, de uma laranja ou de um limoeiro (três exemplos escolhidos quase arbitrariamente, entre tantos outros), esses elementos surgem desde logo associados a uma linguagem onde se dá o triunfo da perfeição da arte – da poesia – sobre a contingência da realidade”.

Para lá destes frutos também encontramos, no jardim perfumado do poeta nascido no ambiente campestre das Beiras, jacarandás, figueiras, girassóis, palmeiras, rosas e amoras. Ao analisar a influência intertextual de autores como Byron, Keats, Shelley e Whitman na obra de Eugénio de Andrade, o poeta e escritor João de Mancelos anota: “As experiências do escritor reflectidas pelo seu imaginário levam-no a encontrar sentidos pessoais para a figueira e para a amora (…). Em verdade, o pólen e as sementes de escritores antigos encontraram nos versos de Eugénio um solo fértil, sempre aberto ao sopro de antigas vozes, à luz de outras leituras, e às águas mais puras da inspiração”.

As amoras
O meu país sabe às amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.
(O Outro Nome da Terra, 1988)

Outras obras merecem destaque: Os Amantes Sem Dinheiro (1950), As Palavras Interditas (1951), Mar de Setembro (1961), Ostinato Rigore (1964), Os Afluentes do Silêncio (1968) Obscuro Domínio (1971), Véspera da Água (1973), Escrito da Terra (1974), Limiar dos Pássaros (1976), Memória doutro Rio (1978), Rosto Precário (1979), Matéria Solar (1980), O Peso da Sombra (1982), Branco no Branco (1984), Vertentes do Olhar (1986), Rente ao dizer (1992), À Sombra da Memória (1993), Ofício de Paciência (1994), O Sal na Língua (1995), Os lugares do lume (1998).

Em todas elas encontramos belíssimos poemas, que mais não são do que a respiração e o pulsar natural das coisas; ou prosa de fino quilate, limpa e sem atalhos, que lhe permitia uma respiração diferente dos versos e onde a fidelidade temática e essa espécie de música a que aludem Óscar Lopes e Eduardo Lourenço estão sempre presentes. Há um trabalho de filigrana por detrás de cada poema, até que as metáforas pousem na folha de papel. Poeta que fez do rigor a sua norma, ao ponto de lhe dedicar um livro, precisamente Ostinato Rigore. Poesia depurada, onde se manifesta o amor pela exactidão. Assim desejava o poeta que fossem os seus livros: “aspiram a uma simplicidade natural, cujo modelo supremo é a música de Bach”. Bernardo Pinto do Amaral, aquando da reedição de O Outro Nome da Terra, dá-nos um esboço da sua poética ao falar de uma realidade acessível, uma beleza concreta, uma tendência para o silêncio, um amor do mundo.

O ano de 1956 é uma data marcante na vida do poeta. Assinala a morte da mãe, a confidente de uma dedicação sem intervalos, a figura incontornável da sua vida e também da sua obra:

Poema à mãe
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal…

Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.
(Eugénio de Andrade, Os Amantes Sem Dinheiro, 1950)

É este o património que fica. Do poeta com uma tão aguda inteligência da alma (Lobo Antunes dixit) sobrevivem as palavras, afinal o que nos resta quando o corpo se degrada. Alguns dos melhores poemas escritos em português, mas também prosa, livros infantis, antologias (de Lorca, Safo e Borges, entre outras) e traduções que organizou. Tudo com posteridade garantida, capaz de devolver ao poeta a parcela de eternidade a que tem direito e a que de algum modo todos aspiram. O poeta sobrevive na obra que deixa. É dos livros: na morte, como na vida, os poetas arranjam sempre maneira de se salvar. E em Eugénio de Andrade o essencialismo verbal nunca deixou de andar atrelado à ideia de salvação.

Era avesso a poderes, luxos e honrarias. Detestava concursos, fossem eles literários ou outros. Durante 35 anos teve emprego burocrático no Estado, com a categoria de inspector administrativo. Recusou sempre submeter-se a concursos de promoção. No dizer de Agustina, “Eugénio não se rendeu nunca aos medíocres, era uma coisa que acendia a sua cólera”. Mostrou sempre “desprezo pelo luxo, que nas suas múltiplas formas é sempre uma degradação”. Numa entrevista a José Carlos de Vasconcelos (Visão, Novembro de 1998), confessa: “Não tenho, nem quero ter nenhuma relação com o poder, qualquer poder. As coisas mundanas são-me cada vez mais insuportáveis (…) continuo a fugir ao contacto com as coisas públicas, a entrevistas. Sinto-me mal diante de câmaras e microfones, tenho horror ao exibicionismo”.

Dado ao silêncio e ao recato, compreende-se que o poeta tenha confessado viver “forrado em silêncio”. Silêncio quando fala “a propósito de nascentes, de um quadro de Morandi, de duas ou três sílabas, de uma cidade do Sul, de palmeiras, cujo silêncio é hirto, de espelhos, cujo silêncio é baço, da fonte de Pascoaes, do barro ainda quente, da poesia japonesa, dos mortos que nos deixam “sentados no silêncio”, ou dessas casas (e ele sente tanta pena dessas casas) onde não é possível ouvir o silêncio correr” (José Tolentino Mendonça). Avesso ao ruído e ao tumulto do mundo, justificava as raras aparições públicas com “essa debilidade do coração que é a amizade”. Um cultor – digamos assim – do espaço purificado do silêncio.

Assim era aquele que um dia escreveu em Poesia, Terra de Minha Mãe, obra editada no âmbito dos 50 anos de vida literária: “desde pequeno, de abundante só conheci o sol e a água”. Mas como nos diz de forma particularmente lúcida e objectiva Gastão Cruz no estudo introdutório à reedição integral da sua obra pela Assírio & Alvim, nem tudo é transparência e luminosidade na sua obra: “em Eugénio há matéria solar, mas igualmente obscuro domínio; daí encontrarmos várias elegias que lamentam as palavras gastas, o amor volátil”.

Notícias do seu desaparecimento dão conta que morreu tranquilo, de madrugada, durante o sono. Com flores frescas por perto, orquídeas e frésias. E já que falamos de flores, nada melhor do que fechar este texto com uma história deliciosa que a sua grande amiga Agustina Bessa-Luis – parceira de viagens à Grécia e a Maiorca – costumava contar. Quando chegava a casa dela, Eugénio dizia-lhe: Maria Agustina, que flores maravilhosas são aquelas no lago da entrada?  E ela respondia: são nenúfares, Eugénio, e você está farto de os mencionar na sua poesia…

Ler ou reler hoje Eugénio de Andrade, uma poesia que é, ao mesmo tempo, hidrografia do corpo e carta dos afluentes do silêncio, é meio caminho andado para alcançar as verdades primordiais. (Re)visitar cada verso, cada frase, cada palavra, mais do que rasgar clareiras de deslumbramento e do mais puro deleite, é seguramente a melhor forma de o homenagearmos.


Consultas:

  • Luis Miguel Nava, O essencial sobre Eugénio de Andrade
  • Alexandra Lucas Coelho, “Despedida à entrada do Verão”. Público, 14.06.2005, p. 22.
  • “Eugénio de Andrade. O bem-amado”, Sol, 19.01.2017.
  • António Guerreiro, “À distância, tão longe daqui”. Expresso (Cartaz), 12.12.2001, p. 28.
  • João de Mancelos, O Marulhar de Versos Antigos. A intertextualidade em Eugénio de Andrade. Lisboa, Edições Colibri, 2009.
  • Luis Miguel Queirós, “Poeta de um obstinado rigor”, Público, 14.06.2005.
  • Valdemar Cruz, “Eugénio de Andrade”, Expresso (Revista Única), 18.06.2005.
  • Relâmpago (Revista de Poesia), n.º 15, Outubro 2004.
  • Sílvia Souto Cunha, “O silêncio de Eugénio”. Visão, 18.06.2005.
  • Gastão Cruz, “Transparência e sombra em Eugénio de Andrade”. Mil Folhas (suplemento do Público), 25.06.2005.
  • Fernando Assis Pacheco, “Eugénio de Andrade: fogo, claridade, música”.  Suplemento de O Jornal, 29.05.1987.
  • Ana Marques Gastão, “Eugénio de Andrade, o culto do corpo”. Diário de Notícias, 24.12.2000, p. 34.
  • Fernando Pinto do Amaral, “Redescobrir o poeta”. Jornal de Letras, 29.11.2000, p. 14.
  • José Tolentino Mendonça, “Ouvir o silêncio correr”. Mil Folhas (suplemento do Público), 18.11. 2000, p. 4.
  • Carta de Eugénio de Andrade a Eduardo Lourenço, 08.04.1953 (in Colóquio Letras, n.º 171, Maio/Agosto 2009, p. 393).