Poesia da guerra colonial

A notícia vinha no Diário de Coimbra de 30 de Março de 2009. Há milhares de poemas dispersos, muitos deles de autores anónimos, alusivos à guerra colonial. O projecto, a cargo do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, já tem nome: “Poesia da Guerra Colonial: uma ontologia do “eu” estilhaçado”. Estarão reunidos já cerca de 10 000 poemas. Tratando-se da construção de uma memória nacional, os investigadores referem que este tipo de poesia representou “um veículo importante para a mobilização e para a sensibilização”, aludindo também a uma “dimensão terapêutica da literatura de guerra, que permite afastar traumas e emoções que advêm do conflito”.

O que me leva a trazer aqui este tema é o facto de saber que não foram apenas só alguns nomes consagrados pelo cânone literário que derramaram em poesia as suas experiências de guerra. Na região da Bairrada há certamente gente que tendo passado pelos cenários da guerra de África expressou poeticamente os sentimentos que lhe iam na alma, perguntando-se muitas vezes, quando o perigo rondava: que estou eu a fazer aqui?

A partir dos anos 60 do século passado e até ao 25 de Abril de 1974, aos jovens com 20 anos deparava-se o dilema de ir para a guerra. As alternativas de lhe fugir – que venha o diabo e escolha… – eram a emigração clandestina, normalmente para França, “a salto”, como então se dizia, com recurso ao célebre “passaporte de coelho”; ou então optar pela pesca do bacalhau à linha, nos mares longínquos e gelados da Gronelândia e Terra Nova. Eram estes os cenários de sonho que se deparavam à juventude daquele tempo.

Ir à guerra foi uma experiência traumática para muita gente. Ver morrer amigos despedaçados por uma mina, ou sentir-se só no meio do mato, de um momento para o outro, durante uma emboscada, com a vida no fio da navalha, são coisas que deixam sulcos fundos e imperecíveis na memória e na alma. Mas também não seria mais agradável, para um jovem de 20 anos , sair do lugre estacionado no meio do mar, meter-se sozinho num frágil dóri e rumar aos bancos de pesca, à força de remos ou vela. Afastar-se do barco principal e desaparecer na bruma do amanhecer, enfrentando mil perigos, cercado de nevoeiro cerrado, de frio e de mau tempo, sem recurso a previsões meteorológicas. À hora de voltar, com o pequeno barco carregado, quantos se perdiam e afundavam. Com a bruma cada vez mais cerrada, ecoavam os chamamentos, os assobios, as imprecações, na imensidão do oceano. Cansados da faina, os pescadores recolhiam ao apetecido lugre, onde outros trabalhos árduos os aguardavam: “a degola, destripação, abertura, limpeza e salga do pescado até altas horas da noite, para só depois se poder saborear o caldo quente do rancho e o merecido descanso na estreita enxerga do beliche” (1).

Na guerra em África, nem só os que desertavam eram considerados traidores. Traidores eram também, para o regime de Salazar, aqueles que se rendiam, na certeza de que continuar a lutar, em certos momentos, significava perecer. Aconteceu isso com os ex-prisioneiros da guerra da Índia. Regressados a Portugal, havia ordens para não lhes dar emprego. A ordem era “Morrer pela Pátria” e o governo de então preparava-se já para celebrar a glória póstuma dos soldados sacrificados, pois preferia heróis mortos a prisioneiros vivos. Muitas feridas de guerra continuam por sarar e a poesia vertida da pena de quem a viveu por dentro pode ser uma forma de catarse, de exorcizar fantasmas.

A poesia da guerra colonial, além de acrescentar mais documentos e massa informativa ao acervo já existente, pode dar-nos ângulos de análise até agora pouco conhecidos: a vida no mato a dois passos da morte, o absurdo, o baptismo-de-fogo em época de chuvas, o correio que tarda em chegar, embrulhado em saudade e palavras de conforto da família, da namorada, ou da “madrinha de guerra”, a fome e a sede, o medo frio dos soldados que partem como guerreiros e esperam regressar como heróis e entretanto acabam dizimados num planalto longínquo, a rezar para que alguém os resgate daquele inferno. Gente decepada pelas minas ou desorientada pelo terreno que não conhece. Homens que a guerra, de um momento para o outro, transformou em heróis ou cobardes, farrapos humanos ou criminosos.

Muita gente, na região da Bairrada, esteve na guerra de África. Alguns dos seus filhos acabaram tragados por ela. Quantos dos que sobreviveram e ainda pertencem ao mundo dos vivos não terão escrito algum relato, uma ou outra poesia, ou um diário de guerra? Assim de repente, afloram-me ao pensamento apenas dois autores bairradinos que expressaram os seus sentimentos sobre a guerra de uma forma poética: Carlos Luzio, de Bustos, falecido prematuramente em 2004, e Armor Pires Mota. Bom seria que os seus poemas de guerra chegassem ao conhecimento dos investigadores do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra que lideram este projecto, pois têm qualidade para estar representados nessa compilação, o que não deixaria de dignificar a Bairrada.

De Carlos Luzio, de quem os amigos publicaram em 2005 uma edição póstuma intitulada Pescador de Sonhos, transcrevo este poema em memória de um camarada caído: (2)

Uma mina fez crescer a minha revolta
ao ver-te morto ali mesmo a meu lado
Um bom amigo, mas outro pobre soldado
que é obrigado a ir e que não volta
O fumo era muito mas deu para ver a tua dor
O ar tinha o aroma ácido do trotil
embaciava o teu olhar sem vida a dizer adeus
O teu sangue a borbotar, sem nada poder fazer
E senti ódio, sim, ódio, raiva, rancor,
ao ver a tua mão trémula a acariciar o fusil
De que lado estavas tu, Deus
que deixaste que nos treinassem para morrer?

Também Armor Pires Mota nos dá a conhecer as emoções da guerra em Baga-Baga, livro de poemas editado em 1967, fruto da sua descida aos infernos em terras da Guiné. Aqui fica o poema SANGUE:

Carne retalhada de feridas em revolta
E nuvens de poeira.

Caminho (é vermelho o céu, é vermelho o chão)
onde a morte nos rouba, de armas na mão,
sorrateira,
como se fôssemos ladrões ou gentes
sem pátria nem bandeira.

Caminho que conheço, de sangue e raiva nos dentes,
do princípio ao fim
donde irromperão sempre bichos e serpentes…

Sinto medo. E, de arma na mão, fujo de mim.

Esta poesia ajuda-nos, para lá da crueza da guerra, a descobrir os sentimentos por detrás das armas e das boinas militares. Aguarda-se com expectativa a conclusão e divulgação deste projecto de compilação. Há já muita coisa em prosa sobre o assunto. De poesia há muito pouco, pois já se sabe que vende mal. Mas a poesia também pode ajudar – e de que maneira – a escrever a crónica de um adeus português em África.


(1) Boletim da ADERAV, n.º 13, Maio de 1985, p. 9.

(2) Bustos – do passado e do presente, 06.10.2004 (post de Óscar Santos).

Nos quarenta anos do 25 de Abril de 1974

1. Os abalos do regime durante o Estado Novo

Não é possível contextualizar o fim do Estado Novo em Portugal sem falar dos movimentos e intervenções políticas, sociais e culturais que se lhe opuseram e o enfraqueceram. As eleições presidenciais de 1958, nas quais participou Humberto Delgado, representam um dos primeiros abalos sérios do regime. Se ganhasse, Salazar teria o destino marcado: “obviamente demito-o” – sentenciou o “general sem medo”. A recepção apoteótica que teve no Porto, cidade-símbolo de tantas lutas pela liberdade, significou um primeiro momento de viragem na arrancada democrática que viria a desaguar na revolução de 1974.

40 anos de Abril-60Na década de 60 as lutas académicas e associativas de 1962 (Lisboa) e 1969 (Coimbra) mostram que os estudantes tinham perdido o medo e o respeito pelos mitos do regime. A guerra de África ajudava a isolar uma ditadura que escapara à democratização europeia do pós-guerra e à sua dinâmica descolonizadora. O ano de 1961 não dá descanso a Salazar: em Goa surgem problemas com a União Indiana; os movimentos rebeldes africanos encetam acções de guerrilha e manobram no campo diplomático. A reacção de Salazar não se faz esperar: rapidamente e em força para as colónias. Assim se fez à guerra, com partida do cais de Alcântara, o primeiro contingente de tropas para Angola. Muitos não regressariam. Outros sim, só que alguns vinham diferentes.

O Movimento das Forças Armadas (MFA) foi um produto dessas circunstâncias. As suas origens históricas situam-se no teatro de guerra da Guiné-Bissau, onde a derrota militar estaria iminente nas vésperas da revolução. Foi nesse contexto militar específico que António de Spínola, ex-governador e comandante militar da Guiné entre 1969 e 1973, viria a formular as suas conclusões e a estabelecer os seus alicerces políticos.[1] Os militares seriam o motor da mudança, derrubando o regime de que tinham sido o principal esteio.

Quando Marcelo Caetano tomou posse como Presidente do Conselho em 1968, houve quem embarcasse na ilusão de que poderia democratizar o país. O problema é que nunca acreditou que a democracia pudesse vingar em Portugal. Justificava-se, entre outros argumentos, com o “temperamento latino” e com a crença – partilhada por Salazar – de que a democracia era um regime que se adaptava à natureza de certos povos mas não se adaptava a outros. É certo que falou em restaurar algumas liberdades, o que foi interpretado, erradamente, como intenção de restaurar a democracia. A liberdade que defendia era a liberdade possível, a qual não poderia colocar nunca em causa a ordem política e social estabelecida com a Constituição de 1933. E assim se criou uma imagem equívoca de herói perdedor: para uns, não teria tido coragem para enfrentar os conservadores do regime, ou seja,  para anular os ultras e prescindir de Américo Tomaz; para estes, não a teria tido para se aliar francamente “à esquerda” (leia-se ala liberal do próprio regime).[2]

A 14 de Janeiro de 1974, no próprio dia em que toma posse como vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, Spínola informa Marcelo Caetano da sua intenção em publicar Portugal e o Futuro. Dito de outro modo: no preciso momento em que acaba por merecer um voto de confiança do governo, o nomeado atenta contra ele. Entre as teses do livro avulta a de que a guerra não podia continuar. Na verdade o livro de Spínola “declarava a falência da política africana”.[3] Marcelo Caetano não concordava. Acusava Spínola de ver o mundo pela “fresta” da Guiné.[4] Eis o dilema: como poderia um militar que não acreditava na vitória militar portuguesa em África ficar à frente das Forças Armadas? A partir daqui tudo se precipita.

Spínola e Costa Gomes (então CEMGFA e também crítico do regime) são exonerados dos cargos a 14 de Março. Tinham recusado participar numa cerimónia de vassalagem promovida pela “brigada do reumático” a Marcello Caetano. No dia 16 de Março dá-se o levantamento militar fracassado que ficou conhecido por golpe das Caldas. A 31 de Março o Presidente do Conselho recebia, sem o saber, a sua última grande ovação num estádio de futebol. Três dias antes, em mais uma Conversa em Família, justificaria a falta de liberdade de imprensa com a guerra. No mês seguinte acontecia o 25 de Abril.

2. 25 de Abril de 1974 – 25 de Novembro de 1975: o princípio e o fim da festa

Com a chamada “revolução dos cravos” assistimos ao fim tardio do império colonial português (outros países europeus descolonizaram bem mais cedo) e ao desabar de um regime político, o Estado Novo, que soube, governando em ditadura, consolidar-se nos anos 30, sobreviver à 2.ª guerra mundial, suportar uma guerra em várias frentes durante 13 anos e ter a arte de saber durar até 1974, paredes-meias com a Espanha franquista.

A adesão popular ao que começou por ser um golpe militar foi espontânea e no mínimo inesperada para os jovens revoltosos. Ao mesmo tempo que vitoriava os militares, a população funcionava como um escudo humano e dificultava qualquer veleidade de reacção pela força. Quando, no quartel do Carmo, Marcelo Caetano se rende a Salgueiro Maia, o país entra em enorme euforia. Libertam-se os presos políticos e do exílio regressam, entre outros, Mário Soares e Álvaro Cunhal. Fundam-se partidos políticos que se juntam ao Partido Comunista Português – já então com 53 anos de existência – e ao Partido Socialista, fundado em 1973 na Alemanha.

O 1.º de Maio em liberdade foi uma festa irrepetível. De unidade e esperança. De crença num futuro melhor para todos, como se tal maná estivesse ali à mão, pronto a ser servido na bandeja generosa dos novos senhores do poder. Redondo e ingénuo engano. Não tardaria muito que a revolução perdesse o norte, atolada em contradições e intolerâncias, numa altura em que os cravos ainda floriam e as utopias continuavam ao rubro.

2.1. O período revolucionário

Após a revolta militar do 25 de Abril o processo de consolidação da democracia portuguesa conheceu várias fases evolutivas. A primeira fase coincide com o processo revolucionário e situa-se entre o golpe militar propriamente dito e a promulgação da Constituição em 1976. Trata-se de um período de “conjuntura política fluida”, de “conjuntura crítica” ou de “incerteza estrutural”,[5] caracterizado por situações de excepção e de confrontação aberta entre novas gramáticas políticas pretensamente legitimadoras, cada uma delas procurando impor um conjunto coerente de significações.[6] Como lembra Hannah Arendt, todas as revoluções – qualquer que seja o sentido para que apontem – se decidem pela intervenção material e simbólica da violência.

Nesse tempo turbulento de fluxos e refluxos, deu-se a substituição de António de Spínola por Costa Gomes na Junta de Salvação Nacional e na Presidência da República após o golpe de 28 de Setembro de 1974. A mudança de protagonistas acelerou o processo de descolonização e procurou transformar radicalmente instituições políticas e estruturas sociais. Bem tentou Spínola estancar a torrente revolucionária em 11 de Março de 1975. O fracasso da iniciativa não se saldou apenas no exílio do mítico homem do monóculo e do pingalim. Acabou também por facilitar o reforço do papel do Estado e a nacionalização acelerada de importantes sectores da economia.

No Verão quente de 1975 – ou, para sermos mais precisos, entre 11 de Março e 25 de Novembro – Portugal atravessa um dos períodos mais conturbados da sua história recente. Tempos apaixonantes para uns, assustadores para outros. A unidade popular nascida de forma espontânea em 1974 estava estilhaçada. Não havia dia sem manifestações e comícios, bombas e barricadas, fogo ateado por ideologias e modelos de sociedade diferentes. Facções militares de sinal contrário agitavam os quartéis. Contavam-se espingardas. As greves paralisavam o país. As sedes dos partidos de esquerda foram assaltadas e saqueadas. Os chamados retornados das ex-colónias regressavam em massa, de mãos a abanar ou com os parcos haveres que tinham conseguido salvar. Alguns partidos políticos são ilegalizados. Começam as nacionalizações e a ocupação de grandes herdades no Ribatejo e no Alentejo. Dá-se o assalto à embaixada de Espanha, o cerco da Assembleia Constituinte e o sequestro dos deputados. As mocas de Rio Maior delimitavam simbolicamente o Norte mais conservador do Sul mais revolucionário. Um melting pot político verdadeiramente explosivo.

Em 25 de Novembro de 1975 a guerra civil esteve por um fio. O triunfo da corrente moderada do Movimento das Forças Armadas sobre os militares revolucionários – numa altura em que o processo de descolonização estava já concluído – acabou de vez com os sonhos românticos de revolução no extremo de uma Europa onde, com raras excepções, pontificavam as democracias. Portugal dava os primeiros passos na institucionalização de uma democracia parlamentar.[7] Para uns sobreveio a amargaura da revolução perdida. Para outros triunfou a democracia de tipo ocidental e foi reposta a pureza original do 25 de Abril, “o dia inicial inteiro e limpo” cantado por Sophia.

Uma segunda fase de evolução da democracia portuguesa é a que pode designar-se de transição constitucional, onde continua presente a tutela do MFA através do Conselho da Revolução. Compreende o período que medeia entre a promulgação da Constituição de 1976 e a sua revisão de 1982, que consagra a extinção desse mesmo órgão. Estamos a falar de um período de conflitos entre governos e Parlamento, que em termos partidários se pode caracterizar por uma “tensão entre forças mais defensoras da legitimidade eleitoral e forças mais propensas para a afirmação da legitimidade revolucionária”.[8]

Uma terceira fase da evolução do sistema democrático português tem como marcos fundamentais a revisão constitucional de 1982, a eleição do primeiro civil (Mário Soares) para a Presidência da República em 1986 e a obtenção de uma maioria absoluta por um só partido – o PSD – em 1987.  É o tempo da desmilitarização plena da vida política. Tempo também de instabilidade partidária e de crise económica, mas igualmente um tempo de mudança: em 1985 dá-se o acto de adesão de Portugal às Comunidades.

A partir de 1987, com a primeira maioria absoluta do Partido Social Democrata de Cavaco Silva e o afluxo dos fundos comunitários, inicia-se uma nova fase de estabilidade política, crescimento económico e incremento de várias reformas. Em 1995 o Partido Socialista fica no limiar da maioria absoluta e  quatro anos depois obtém metade dos lugares no Parlamento. Consolidava-se a estabilidade governativa. Mas a par das transformações ocorridas muitas outras dificuldades e constrangimentos permanecem.

3. Factores de perturbação na sociedade portuguesa contemporânea

O nosso país conheceu nestes últimos 40 anos significativos processos de mudança. E no meio de tantas convulsões e dificuldades também mostrou alguns méritos, como sublinha Nancy Bermeo: “A habilidade com que Portugal soube responder aos desafios simultâneos da descolonização e da democratização constitui, sem dúvida, um dos factos políticos mais destacados entre os Estados europeus da segunda metade do século XX”.[9]

Hoje em dia é a própria organização da sociedade que está em causa, bem como os seus fundamentos e valores. Basta citar as alterações demográficas e o alargamento da esperança média de vida, a persistência do desemprego (de curta e longa duração), o crescimento exponencial de gastos com a saúde, o alastrar de novas formas de pobreza e exclusão social, o flagelo da toxicodependência e da sida, ou os problemas associados à criminalidade e à insegurança. Tudo isso representa uma enorme pressão sobre o volume dos gastos a suportar pelo Estado.

Assistimos a mutações tecnológicas constantes. Temos sistemas financeiros extremamente voláteis, mercados hipercompetitivos e redes empresariais globais; enfraquecimento dos laços familiares; emergência de novos grupos de pressão (ambientalistas, consumidores) com os quais o poder político é obrigado a negociar e a estabelecer consensos. Enfrentamos, por assim dizer, uma mudança de paradigma, se tivermos em conta a existência de uma nova dinâmica na relação da economia com a sociedade. A incerteza e o medo em relação ao futuro são uma verdadeira espada de Dâmocles a rodopiar sobre a cabeça dos portugueses. Os sentimentos crescentes de insegurança concorrem para a descredibilização do sistema político e das respostas que este consegue dar. Quanto mais for capaz de minimizar os riscos e garantir a segurança dos cidadãos, mais fiável e credível será o Estado.

Há hoje uma lógica de crescimento económico que parece dissociar-se do desenvolvimento social. Os excluídos não são vítimas por estarem inseridos no mercado de trabalho, mas fora dele. São os «normais inúteis» de que falava Donzelet: ou porque são puramente excedentários face às necessidades do mercado, ou tão só porque os seus níveis de qualificação não estão em sintonia com os interesses e a lógica desse mesmo mercado. São o resultado de uma política de liberalização do mercado e de maximização dos lucros, que se coloca à margem dos problemas sociais daí resultantes.

A desregulação da esfera salarial e as fragilidades daí decorrentes, ao não encontrarem respostas adequadas no modelo clássico do Estado-Providência, abalaram também os mecanismos de funcionamento do sistema político democrático. A instância do político perdeu a capacidade que detinha para arbitrar os conflitos entre a esfera económica e a social, porque cada vez mais se subordina aos interesses económicos e cada vez menos responde com eficácia aos novos problemas sociais emergentes. Tudo isto acontece num tempo em que a ideologia do mercado incutiu um conceito de felicidade baseada no consumo. Quem não tem dinheiro não pode consumir, e quem não pode consumir não é feliz…

É pois cada vez mais na resolução da aporia exclusão/inclusão que assenta a credibilidade do sistema político de representação. E essa inserção passa por conferir crescente centralidade ao sujeito, enquanto ser individual e não enquanto homem-massa – para utilizar uma expressão de Ortega Y Gasset – subsumido na esfera social. A quem governa pede-se que seja capaz de assumir a convicção de que «a equidade social tem primazia ética sobre a eficiência económica».[10]

Em matéria de cidadania, a participação e o escrutínio dos cidadãos nas escolhas políticas – dentro e fora dos partidos – ainda deixa muito a desejar.  As pessoas não se sentem representadas. Desconfiam cada vez mais da capacidade das organizações partidárias, dos sindicatos e das instituições para resolver os seus problemas. É sabido que sem partidos políticos não há democracia. Mas esta só melhora quando os mais preparados da sociedade são capazes de abandonar a sua zona de conforto e participar civicamente.

A crise severa que estamos a atravessar, com a desvalorização da cultura e a erosão dos valores, com o desemprego a atingir níveis alarmantes, com escândalos públicos e privados a crescer como cogumelos, ou até com uma austeridade desigualmente repartida, são sintomas de um mal estar profundo em tudo semelhante à crise da democracia liberal que viria a desembocar nos anos 20 do século passado nos diferentes autoritarismos e fascismos europeus.

Por isso há de novo um clamor geral de descontentamento. Não foram certamente estas as portas da esperança que Abril abriu. Sejamos capazes de acreditar que para salvar o país não é preciso destruir parte dele. E que só a qualidade da democracia, que é um que fazer constante e por isso sempre inacabado, permite valorizar o presente e interiorizar uma ideia de futuro não apenas como progresso mas também como possibilidade de catástrofe. A democracia não é o fim da história. Pode desabar a qualquer momento. Seguir um ou outro caminho depende dos actores políticos. São eles que definem as estratégias que podem conduzir à estabilidade da democracia ou a novas formas de autoritarismo.

Muitos sonhos e ilusões de Abril tombaram como andorinhas na lama. Nem sempre colhemos os desejados frutos maduros. Sabemos disso, às vezes de forma bem amarga. Resta-nos protestar contra o que nos agride e nos consome e manter os desafios sempre acesos. Na certeza de que as novas formas de protesto não passam já por revoluções armadas, mesmo que só de cravos a florir na ponta das espingardas ou de conversas cordatas. Do que andamos verdadeiramente carecidos – é o que pensa o embaixador e escritor alemão Stéphane Hessel – é de “uma verdadeira insurreição pacífica”.

(Texto inserido em 40 Anos de Abril – Memórias de Oliveira do Bairro, Edição do Município de Oliveira do Bairro, Abril de 2015, pp. 11-17).


[1] Philippe C. Schmitter, Portugal: do Autoritarismo à Democracia, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1999, pp. 188-189

[2] Vasco Pulido Valente, Portugal. Ensaios de História e de Política. Lisboa, Alêtheia Editores, 2009, pp. 223 e 235.

[3] Idem, p. 265.

[4] Idem, p. 261.

[5] Michel Dobry, Sociologie des Crises Politiques, Paris, Presses de la Fundation Nationale des Sciences Politiques, 1992, pp. 40 e 150.

[6] Idem, p. 150 e seguintes. Ver também Maria Madalena Guibentif Matos, La démocracie au Portugal. Analyse du débat politique entre 1974 et 1976. Dissertação de doutoramento [dactilografada], Biblioteca do ISCTE, 1991, p. 34.

[7] Manuel Braga da Cruz, “A evolução da Democracia Portuguesa”, in Portugal Contemporâneo, AA.VV., António Costa Pinto (coord.), Edições Sequitur, Madrid, 2000, p. 122.

[8] Idem, p. 123.

[9] Nancy Bermeo, “Lições da experiência portuguesa. Algumas conclusões provisórias a propósito de um longo processo”, in Portugal Contemporâneo, obra citada, p. 309.

[10] Manuel Villaverde Cabral, «Governar à Esquerda (III)», Diário de Notícias, 06.02.98.

Courbet e A Origem do Mundo: censura, erotismo, pornografia

Espreitar maniacamente os outros sempre foi uma tentação dos moralistas mais tacanhos, para os quais qualquer alusão à sexualidade é “pornografia”. E a hipocrisia também não costuma andar arredada de tais gestos, como nos mostra Jorge de Sena na descrição desta breve mas deliciosa história: um cavalheiro, pai de família, que tinha várias filhas e vivia numa cidade de província, foi um dia queixar-se à Câmara contra a construção de um urinol no extremo oposto da praça pública onde estava a sua casa. O presidente da Câmara observou-lhe que era absurda a queixa, dado que, sendo a praça muito grande, a casa dele estava muito longe do urinol. Ao que ele respondeu dignamente: – Mas é que as minhas filhas usam o binóculo (1).

Vem isto a propósito da recente apreensão de alguns livros que reproduziam na capa o quadro A Origem do Mundo, de Courbet. Aconteceu na cidade de Braga, a “idolátrica” e “episcopal”, como lhe chamou um dia Luís Pacheco. A PSP encheu-se de brios, irrompeu feira do livro adentro e confiscou vários exemplares. A pintura é de 1866, o que prova que alguns mortos-vivos do século XIX ainda incomodam alguns vivos-mortos do século XXI, sempre dispostos a praticar atávicos actos censórios. Apetece dizer que não defendem “os bons costumes”, ou a “ordem pública” – como gostam de referir – mas o próprio passado que são.

Antes de avançar, convém referir o seguinte: a simples representação do nu na pintura, na fotografia, no desenho, ou noutras artes, como o teatro ou o cinema, tem sido ao longo do tempo objecto da maior controvérsia. Neste caso concreto, o quadro mostra-nos um close up, o grande plano realista de um sexo feminino. Isto, por si, levanta desde logo questões importantes: o estatuto de obra de arte retira-lhe, à partida, o eventual conteúdo pornográfico? Essa obra pode ser vista sem reservas? Onde acaba o erotismo e começa a pornografia? Na cabeça de quem produz a obra (seja ela uma pintura, um livro, ou um filme), ou na cabeça da pessoa que a lê ou vê? Ou quando o que se produz é anti-estético e rejeita o envolvimento da inteligência? Não assiste ao cidadão comum o direito de se sentir agredido por uma imagem como esta?

Parece-me que a cultura, a abordagem que cada um faz do que deve ser o objecto artístico e a própria sensibilidade individual são decisivas na abordagem desta matéria. Como decisiva é a noção de liberdade que lhe é inerente. Quem não se choca com imagens como esta, deve no entanto admitir que em democracia as pessoas podem reclamar valores diferentes, como forma de recusar a unificação das consciências. Trata-se de exercitar a tolerância, que para Voltaire significava podermos estar totalmente em desacordo com a opinião de outrem e, ao mesmo tempo, dispostos a combater pelo direito do outro a perfilhar essa opinião. Cumpre a uma sociedade verdadeiramente pluralista garantir que nenhum grupo infrinja as liberdades dos outros.

Como refere Miguel Sousa Tavares no Expresso desta semana, a liberdade não consiste em fazer tudo o que se quer. Pois não, acrescento eu. Mas uma coisa é estarmos dispostos a respeitar a opinião dos outros; outra, bem diferente, é alguém, em nome desses outros, suprimir ou censurar aquilo a que também nos achamos com direito de fruir esteticamente. Ora o quadro até está exposto em Paris, no museu d’Orsay. Aquilo que lá se afigura como normal e pode ser visto por toda a gente, é por cá entendido como sendo pornografia mais grosseira.

Sejamos claros: muito do que aqui está em causa passa pelo uso dos tais binóculos a que recorriam as meninas de que falava Jorge de Sena. Abro a televisão e deparo com um filme que me choca? É tão fácil mudar de canal… Passeio na feira do livro e deparo com a capa de um livro que me perturba? Viro a cara e passo à frente… Fará sentido que qualquer coisa que me escandaliza tenha de ser imediatamente suprimida, sem levar em conta a opinião dos outros? Quantos pais dos que se queixaram à PSP não farão também uso dos binóculos? Quantos deles se preocupam, verdadeiramente, com o que por aí circula na Internet ou até pendurado em alguns quiosques de jornais e revistas? Se calhar, em vez de falarmos de “bons costumes” dominantes, devemos antes falar de hipocrisia dominante. Que nome dar ao que se passa em certos Estados americanos, onde é crime que marido e esposa pratiquem, na intimidade conjugal, actos sexuais que se afastem da posição aprovada por teólogos e moralistas para fins reprodutivos?…

Sempre que no passado se agitou o papão da pornografia, isso correspondeu a inconfessados desejos de restrição das liberdades e abuso das regras normais de policiamento de uma sociedade. Já lá vai o tempo – embora ainda haja quem se lembre – em que, no Portugal de Salazar, um simples beijo mais apaixonado num filme era suficiente para que a censura dissesse: “corta!”. Livro que ousasse incluir nus de pintores famosos (Rembrandt, Velásquez, Goya ou Picasso) era coisa que os censores não perdoavam, considerando essas obras-primas um produto de mentes ordinárias. Em 1966, ano em que foi publicada a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, escritores e poetas da estirpe de Natália Correia, Ary dos Santos, Mário Cesariny de Vasconcelos e Herberto Hélder, para só citar alguns dos mais conceituados, foram acusados de pornografia, obscenidade e atentado à moral pública e obrigados a prestar contas à Justiça. É a esse tempo que se quer regressar?

Aos que gostam de subtrair aos outros o prazer que a si incomoda, apetece dizer que não metam o nariz na vida alheia, que deixem em paz os que não pensam como eles, e que a grande virtude não consiste em suprimir as tentações, mas em saber resistir-lhes…


(1) Jorge de Sena, Dialécticas Teóricas da Literatura, Lisboa, Edições 70, p. 284.

Coisas de que ainda me lembro (III)

Dizem que amigos são os da infância. Que ao caminhar-se para a velhice escasseia o tu-cá-tu-lá das farras e cumplicidades. Entre os que tive e ainda conservo, há um com quem nunca mais falei: o Arrais (1). Morava em frente à Escola e trauteava canções a torto e a direito. Uma delas, muito curiosa, versava sobre pessoas da nossa terra e respectivas profissões. Está incompleta e não sei quem poderá ajudar a recuperá-la por inteiro. Começava assim:

O doutor é Presidente, (2)
Arquitecto, o Manuel Vicente, (3)
O Justino é carpinteiro,
O Mandato faz caixões, (4)
O Zé Feijão é barbeiro,  (5)
Faz a barba a dois tostões.

O Camilo assa leitões, (6)
A Aida coze enguias, (7)
O Artur tira fotografias (…) (8)

O Arrais cantarolava uma outra, muito engraçada, de sátira social às sogras, de que também retenho algumas passagens:

Certa noite à média luz,
P’ra jantar fui convidado,
Em casa de minha sogra, (bis)
Era dia de feriado…

Ela era muito minha amiga,
Fez tudo p’ra me agradar,
É por isso que hoje me lembro, (bis)
Daquele famoso jantar…

Comi canja de galinha,
E arroz de cabidela,
Cebolas à cafreal, (bis)
Com rabinho de vitela…

Fricassé de amendoim,
Com miolos de toupeira,
Uma lagosta a suar, (bis)
Com conhaque da Malveira…

Fumei depois um havano,
E já no fim do jantar,
Comi fruta para um ano, (bis)
Mas faltava terminar…

Bebi café de alcatrão,
Comi torta e fiquei torto,
E depois duma soneca, (bis)
Quando acordei estava morto!

Lembro-me de, na década de 1960, a PIDE – polícia política do Estado Novo – fazer das suas na Palhaça. Fechou tudo quanto era entrada e saída da aldeia e avançou para o Café Capri. Encontrou o que queria, a denúncia não era falsa. Para apanhar o tresmalhado do rebanho – que se disse, depois, ser de Salgueiro –  partiu tudo o que encontrou pela frente. À saída, enquanto era arrastado e espancado pela polícia, com gente da terra a assistir, uns no largo e outros à janela das próprias casas, o detido gritava, a plenos pulmões: Ó povo da Palhaça! Acudam-me, que eu sou democrata e eles são da Pide! Ninguém acudiu, ninguém esboçou um gesto de revolta. Quando tudo passou, só se ouvia murmurar: era gente muito educada. Partiram vidros e cadeiras, mas perguntaram quanto era e pagaram tudo…

A Pide, que não brincava em serviço, incomodou também pessoas da Palhaça, que chegaram a estar detidas. Histórias por contar, a merecer que alguém apanhe o fio à meada. Não era preciso muito para se ser preso. Um dos detidos foi César Barreto, dono do café que funcionava onde está hoje o Ponto Final. Em Março de 1951, o Presidente da Junta responde a um pedido de esclarecimento do Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro: “sou a responder que de facto o Snr. César Augusto Barreto, desta freguesia, foi preso pela então PVDE, por hostilidades à Casa do Povo”(9). Esta detenção terá ocorrido até 1945 e nunca depois dessa data. Isto porque foi nesse ano que a PVDE [Polícia de Vigilância e Defesa do Estado] passou a chamar-se PIDE [Polícia Internacional de Defesa do Estado].

Outros nomes devem acrescentar-se ao de César Barreto. Aqui vos deixo, para memória futura, os de José Colchete (Areeiro), Fabiano (Albergue), Silvério Cura (Vila Nova) e Manuel Tomé (Roque). Foram todos presos ao mesmo tempo, e como se tratava de gente séria e honrada, a freguesia ficou envolta num manto de profunda tristeza. Era tempo de Páscoa, a anunciar promessas de videiras a abrir pequeninos olhos verdes e viçosos; era o tempo em que os soalhos das salas onde se beijava o Senhor se esfregavam à mão com sabão amarelo e onde havia sempre, sobre a mesa, um cesto com rendinha branca que servia para transportar as ofertas, às vezes uma simples maçã ou laranja com uma moeda de cinco tostões em cima, que se dizia ser para o sermão.

No salão da velha Casa do Povo, onde mais tarde havia bailes, vimos nascer a televisão a preto e branco. Lá, e no café do Sr. César Barreto – feito na cafeteira e com máquina a petróleo – moravam as duas únicas televisões que a Palhaça se orgulhava de ter. Os sábados à noite eram verdadeiros dias de festa. Que saudades do convívio semanal com o Rintintin e a Lassie, mas sobretudo do Bonanza: dos quatro heróis desta série de culto, o bom gigante dos murros demolidores, Hoss de seu nome, era o meu favorito. E havia ainda o Mascarilha, a cavalgar na pradaria com o fiel amigo índio, o Tonto. Às vezes, a seguir às barrigadas de western, sucediam-se as barrigadas de ameixas, pela calada da noite, no interior dos muros da Escola, que ficava ali mesmo ao lado.

Aqui fui crescendo, Palhaça, alimentando-me da tua seiva. Deste-me a conhecer um léxico próprio, que chamava “camoecas” às bebedeiras, “alveitar” ao veterinário caseiro, “apaijar” a aturar, “burra” à bicicleta”, “bernicoques” aos maneirismos, “choninha” aos sonsos, “corrilhas” às rugas da cara, “enjorcar” a inventar, “endrominar” a mentir, “moinante” ao que não quer trabalhar, “zangarilhar” ao que tremia ou oscilava para os lados, a puxar pela bicicleta. E outras coisas mais, como um “trancanaz” de broa (um grande pedaço), ou um prato cheio “ao caramulo”, por alusão à serra que te vigia e contempla a nascente.

Tudo mudou, Palhaça. Já ninguém acredita em ti se disseres que os sapos podem cegar uma pessoa, esguichando para os olhos a urina venenosa. Aliás, já não há sapos de boca cosida a anunciar feitiçarias. Vão rir-se de ti se disseres que os cabelos de mulher, mergulhados na água, se transformam em cobras. Já ninguém manda miúdos à farmácia comprar pó de Maio, electricidade em pó, ou “pòzinhos de alembradura”. Já ninguém acredita em ti, se disseres que é pecado apontar o dedo ao céu e que o Senhor ralha…

Já não há cântaros à cabeça nem bilhas de barro a encher ou a quebrar-se na fonte. Desapareceu o ranger da nora sob o peso dos alcatruzes. Ninguém convida os carteiros a matar a sede, ou para dois dedos de conversa, na frescura das adegas, em horas de calor de fornalha (escorropichavam-se sempre dois copos, pois era mau agoiro ficar-se manco).  Mal se sente o cheiro que sobrava da fermentação rebelde do mosto, corre pouco o bagaço no alambique. Já não se prova o vinho novo, a onze de Novembro. “Pelo São Martinho, fura-se o vinho” – rezava o adágio popular, que tinha uma outra variante: “Pelo São Martinho, vai à adega e prova o vinho”. O provérbio era levado a preceito, num corrupio de adega em adega, já com as faces a denotar a exaltação do vinho novo. Assim se cumpriam os oito mandamentos da lei de Baco: “o primeiro bebe-se inteiro; o segundo até ao fundo; o terceiro como o primeiro e o quarto como o segundo; o quinto bebe-se todo; o sexto do mesmo modo; o sétimo bebe-se cheio e o oitavo duas vezes meio”.

Em terra de vindimas e adegas só às vezes fartas, com tonéis a estalar prenhes de vinho e agricultores redondos de alegria, todos conheciam os Dez Mandamentos do Vinho, que no fundo se resumiam a dois: comer bem e beber melhor. A saber:

1.º – Amarás o vinho de Portugal, água não lhe deitarás para que não te faça mal;
2.º – Não jurarás pela folha da laranjeira, que é ofensa que fazes à sua prima parreira;
3.º – Guardarás pão e vinho na algibeira e com ele beberás quando te der na goteira;
4.º – Honrarás o odre de vinho, o chapéu lhe tirarás se o encontrares no caminho;
5.º – Não matarás, só se for cabra ou bode, a carne lhe comerás e da pele farás um odre;
6.º – Não entornarás, só se for bilha grossa, a boca lhe apararás para que verter se não possa;
7.º – Não furtarás, só se for para beber, porque, se te fores confessar, sempre te hão-de absolver;
8.º – Não levantarás odre deitado, antes te deitarás do outro lado;
9.º – Não desejarás beber por vasilha pequena, desta que bota a espuma fora e lhe fica a cor morena;
10.º – Não cobiçarás a salada do pepino: é muito fresca no verão e muito contrária ao vinho

Quase não se ouve o cuco, ou o canto vespertino e mavioso do rouxinol a trinar entre os salgueirais. Verdelhões, poupas e tentilhões, alvéolas, calhandras, toutinegras e ferreirinhas, quase tudo isso levou sumiço, a golpes de adubos químicos, pesticidas e herbicidas. Já não se destrava a língua aos gaios, que eram os nossos papagaios caseiros. Onde, a massa a levedar na gamela, com a cruz traçada para proteger do mau olhado? Onde, os teus cabanais para secar milhos e pastos? Quantos ainda restam, para nos proteger do sol a pique em tardes esbraseadas, ou para encontros furtivos, quando os simples arremedos de namoro eram rigorosamente vigiados? Tinha razão o Cesário (9), quando, montado na bicicleta, se cruzava com um cabanal situado ali para os lados do Bebe-e-Vai-te e costumava dizer: Ah!, se este cabanal falasse…

Não há duas maneiras de te amar, Palhaça, assim como não há duas maneiras de amar a liberdade. Quero-te mais aldeia do que vila – sim, que ganhaste, até agora, em ser vila? – quero-te mais vila que cidade. Não deites fora os ares plácidos e lavados que bordaram o teu rosto de menina. Se puderes, conserva campos de cultivo,  o verde-amarelo e o verde-escuro de algumas vinhas e pinhais, umas tantas fontes e carreiros. Não deixes que as silvas cerquem a enxertia. Resiste às investidas galopantes do eucalipto. Evita que os teus cafés virem espaços onde se trocam letras e influências, esgrimem cifrões e taxas de juro. Renega a construção em altura, ao menos no teu largo primitivo. Não coqueteies com arquitectos ou engenheiros a perda do teu carácter: nada pode substituir a beleza de um céu de anil encaixilhado no teu coreto singelo, encimado pela sentinela cívica que é o nosso padroeiro.

Agora é tudo tão rápido, Palhaça. Foram-se os abraços e beijos das escarpeladelas, sempre que alguém, mais afortunado, encontrava uma espiga vermelha. Desapareceram os bailes da “mi-careme”, tolerados na terceira semana da Quaresma para aliviar os rigores e a abstinência que ela nos impunha. Deixo-te aqui, e agora, onde cresci e apesar de tudo fui feliz, mesmo sem ter conhecido a tua Banda Filarmónica – regida por Adelino Ferreira Pinhal – ou a tua Troupe Dramática; mesmo sem ter assistido a festividades em honra do apóstolo Santo André, já no estertor da Monarquia, com jantar de bacalhau com baratas às 4 da tarde e sobremesa de castanhas e nozes. O vinho, esse, era tirado do cântaro de 20 litros, servindo de copo a medida de 5 litros (3). Malhavam-lhe bem, os teus homens de antanho. As minhas festas são já as do Mártir S. Sebastião e de Nossa Senhora da Memória. Ajoelhei à passagem dos teus andores e integrei as tuas procissões. Lembro-me bem: numa delas – era dia de comunhão solene –  fiz o percurso com as mãos em prece, mas ao chegar à zona dos cafés, apinhada de gente, deu-me a vergonha e coloquei-as atrás das costas. Sei que me perdoas esse vacilar duma fé que parecia indestrutível.

Deixo-te agora (está a custar, sabes?). É preciso voltar a página. Talvez saudades do futuro. Talvez. Agora, pelo menos, já não morre ninguém à sacholada, por causa da mudança dos marcos, ou do desvio de um veio de água. Entre aquilo que de melhor e pior já foste, e o que de melhor e pior possas ainda vir a ser, mon coeur balance.


 

(1) António Martins Pereira Arrais, filho de Augusto e Rosa Arrais. Morava ao lado do edifício das antigas Escolas Primárias, na estrada que da Palhaça sai para Sosa.

(2) O Presidente de Junta era o médico Manuel Ferreira Rebolo, formado na Universidade de Coimbra em 1935.

(3) Manuel Ferreira Vicente Júnior construtor civil, que construiu o edifício das Escolas Primárias.

(4) Manuel Mandato. Apenas construía caixões pequenos, para os “anjinhos”.

(5) José do Nascimento Marques Moura.

(6) Camilo Jacinto, casado com Mabília Cerveira da Silva e pai de António da Silva Jacinto (Camilo), Joaquim Cerveira da Silva, Fernando, Raul e Mabília (Bila).

(7) Conhecida por Aida Feijoa. Vivia, à época, numa casa situada ao lado (para nascente) do actual café Ponto Final. Irmã de Joaquim (alfaiate e com casa de pasto aberta aos dias de feira) e José Feijão.

(8) Artur Lemos Silva, também conhecido por Artur Calcinhas. Chegou a integrar (era “caixa”, como então se dizia) a Banda da Mamarrosa.

(9) Ofício n.º 13/51, de 8 de Março de 1951, endereçado pelo Presidente de Junta de Freguesia da Palhaça ao Presidente da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro.

Coisas de que ainda me lembro (II)

Revejo-te Palhaça, e quase não sei quem és. A mais antiga memória que de ti guardo é talvez a do pacato ambiente da tua hoje embelezada sala de visitas. O largo em terra batida, o coreto enegrecido e exposto à incúria dos que deviam tratar-te com esmero. A chiadeira arrastada dos carros de bois, as bosteiras quentes que os animais largavam na estrada esburacada e que um ou outro carro mais ronceiro calcava, salpicando as paredes das casas mais próximas.

Aqui cresci e aprendi a reconhecer a natureza lírica das tuas fontes, a saborear a frescura dos tanques de água fresca, a rebolar-me no coradouro dos Carregais: lugar ameno, ladeado de vergueiros e regatos mansos, circundado por manchas de pinhais a bordar o horizonte, onde, pelo Natal, ia apanhar tufos de musgo verde-claro para o presépio. Local idílico de paragem obrigatória no regresso a casa, mal terminava a missa de domingo na igreja de Vila Nova.

Aqui percorri as tuas ruas breves, sem nome ou com nomes improváveis; calcorreei as tuas vinhas à procura de ninhos e rebusco; saboreei o tempo das amoras; devassei o interior dos teus campos de milho a armar costelos; aprendi nomes de pássaros, alguns não dicionarizados, que conhecia pelo tamanho e a plumagem. Uns “caíam” nos costelos, outros não: sombrias (as mais apetecidas) boeiras, taralhões, cagachins, rêchêchês, vale-de-abóboras, landriscas, felosas, pardais, melros, calhandras, codornizes (nunca soube porquê, mas as que se apanhavam era quase sempre nos campos semeados de azevém), piscos, narcejas (es)torninhos, sarrazinas, pintarroxos e carriças.

Muito antes disso, deste-me a conhecer, inadvertidamente, a violência da morte dos animais: bovinos a tombar com fragor no matadouro do Sr. José Marques, que ficava ao fundo do talho, rios de sangue a escorrer pelo chão de cimento, a seguir à estocada, de um só golpe, com um ferro de dois gumes a que chamavam choupa; porcos sangrados ao alvorecer, nos rigores do frio e no tempo das salgadeiras, uma grande algazarra de gente e azáfama de alguidares, e eu na cama, tolhido de medo, com os dois indicadores espetados por longos minutos nos ouvidos, à espera que o estertor do animal esvaído em sangue calasse de vez os guinchos lancinantes; carneiros imolados pelo Zé Teixeira, a céu aberto, nas vésperas da Páscoa, num espaço onde se situa hoje o snack-bar S. Pedro. Parecia pedir-lhes desculpa, pois afagava-os mansamente – talvez à procura do ponto mais vulnerável – antes de os abater, abandonando-os, já sem vida, com olhos redondos e abertos de espanto.

Compreenderás agora, Palhaça, porque não estou presente no ritual antropológico que em tua honra se celebra todos os anos no largo das Escolas: a matança do porco à moda antiga, o rancho folclórico a tocar, néons, padarias e instituições bancárias a espreitar. A goela hiante do tempo tudo devora à sua passagem; devagar ou mais depressa, a vida é perda: vamos perdendo tudo, aos poucos. Sei que me desculpas a ausência em cenário tão artificial e diferente do antigo. Ausência não pelo cenário, mas pelo espectáculo que encerra. Sabes que tento honrar as tuas tradições por outras formas, e isso me basta.

Prefiro lembrar o som inconfundível do repicar dos teus sinos ou o toque das trindades. Ou a obrigação instituída de ficar em jejum três horas antes de comungar. Em tempo de comunhões – fiz todas: a primeira, a segunda, a terceira e a quarta, mais a profissão de fé – abalava do largo de S. Pedro com minha Mãe, às cinco ou seis da manhã, calcorreava a rua de Vila Nova no mais opaco e espesso silêncio – ainda ouço, às vezes, os passos apressados que ela me devolvia – entrava na igreja, assistia à missa, fazia a genuflexão – joelhos nus contra o lajedo frio situado em frente do altar, lugar reservado aos homens, as mulheres ficavam na retaguarda – enfim, cumpria regras que ajudavam a definir a tua identidade. Respeitava-te, pois. À saída da igreja lá estava a recompensa: numas bancas improvisadas, meia pada de pão, sem nada dentro, e uns tremoços, para combater o jejum e não deixar que o estômago continuasse colado às costas.

E também me lembro de, pela Páscoa, cumprir outro preceito, uma espécie de estreita aliança entre os desígnios de Deus e os de César: ia confessar-me e logo a seguir tinha que passar pela sacristia, para “desarriscar” o nome. Era uma das tuas muitas formas de nos controlar, avisando-nos que só está bem integrado num meio quem lhe aceita as regras e as limitações.

Aqui te deixo por agora, após relembrar pedaços soltos de um tempo em que a garotada se sentia agasalhada de ternura quando o dia fechava sem qualquer tareia de verga, cinto, cordas ou adival. Miúdos que também sucumbiam, muito mais do que hoje, às doença e à miséria e não propriamente por gostarem de viajar até ao céu. Um tempo em que homens e mulheres suavam camarinhas nas terras de pão, ou enchiam açafates de canseiras, substituindo-se, quando era preciso, aos animais de tracção à frente de charruas e arados.

Encerro esta espécie de balada de uma infância antiga, a um tempo difícil mas feliz,  povoada de medos do escuro, de ir ao alpendre mal iluminado procurar achas para a fogueira, ou à adega encher a pucheira de vinho tirado ao torno. Medo, também, de corujas e mochos de piar agoirento, ou de lobisomens que se dizia aparecerem nas encruzilhadas, podendo assumir diversas formas, como pipas a saltar e a rolar sozinhas.

Melhor que tudo isso era brincar à bilharda ou ao pião, ou até ajudar em pequenas tarefas como tocar o boi em volta do poço de rega, ou reunir uns ramos de gilbardeira que serviam de vassoura para colocar junto ao borralho, onde sabia tão bem adormecer, em tempos de rigorosa invernia, à sonolência da lareira.

Foi aqui, onde crescemos juntos, que tudo aconteceu. Eras então aldeia pequena, perdida nas brumas do passado. Como eu, largaste os calções, engravataste-te, cresceste de forma um tanto desajeitada, às vezes pões moderno onde devia ser antigo e antigo onde devia ser moderno. Dores de crescimento, presumo.

 

Coisas de que ainda me lembro (I)

Tenho seguido, com curiosidade e particular agrado, esta espécie de romagem ao passado que gente mais nova e dinâmica, com ponto de encontro marcado no blog Palhaça Cívica, resolveu empreender. Bem hajam por isso, sobretudo por trazerem à cena gente de carne e osso, que uma vez desaparecida do nosso convívio tem permanecido no limbo – bem sei que já não existe limbo… – do esquecimento.  É um meritório exercício de memória e de retorno à infância que não esconde algumas saudades daquilo que já não há.

Diz bem o Sérgio Pelicano: “Façamos de conta que todos vivemos tempos de felicidade na Palhaça. Façamos de conta que todos queremos (re)viver esses momentos.” Sejamos então claros: nem todos viveram no passado – refiro-me a muitos dos que neste cantinho têm sido evocados – tempos de felicidade. Há traços característicos dessa época que não podem deixar saudades. Pobreza e miséria eram coisas que abundavam e cresciam como cogumelos. Quase toda a gente vivia curvada ao peso da terra, num tempo em que a agricultura era vista como a arte de empobrecer alegremente.

Do passado que tem sido evocado, há alusão a algumas pessoas  com um traço comum, uma espécie de paisagem humana com tonalidades sem contraste: o da miséria extrema. Confesso-vos que a princípio senti alguma relutância em acrescentar mais nomes a esses que também conheci. Porquê? Talvez por me parecer doloroso recordar a via sacra que foi a sua vida terrena. Talvez por escrupuloso respeito por essa gente sem eira nem beira, desprovida das mais elementares rações de afecto, seres humanos para quem a vida foi madrasta e até cruel, sobre a qual ouvi, por uma ou outra vez, juízos menos benevolentes, coisa que me desagrada, por não gostar que se escarneça da miséria. Gente a quem faltou sempre qualquer coisa em pequena: amparo ou berço, escola ou amor.

Após breve hesitação pensei melhor: não, esta gente não foi propriamente marginalizada pelas pessoas da nossa terra. No meio da desgraça teve sempre algum amparo, uma mão amiga, um caldo para aquecer o estômago. Há exemplos até, muito exaltantes e de dimensão humana inquestionável, de quem lhes tenha dado verdadeira protecção, a troco de nada e de coisa nenhuma. Pelo simples gosto de praticar o bem, apenas isso. Pura dádiva aos outros, pois dar é dar-se. E daí concluí: esta gente merece ser lembrada como qualquer outra. Respeitosamente, como o tem sido até agora. Sem ser preciso apagar registos antigos. Para o bem e para o mal, foi gente da nossa gente. Pobre, às vezes muito pobre, mas séria e digna.

Juntar à morte física uma segunda morte, a do esquecimento e do anonimato destas pessoas, seria, isso sim, ocasião de escândalo. “Eu estive aqui e ninguém contará a minha história”, gravou alguém, talvez em apelo lancinante, na superfície de uma pedra do campo de extermínio nazi de Bergen Belsen.

Decido-me então a acrescentar mais alguns pormenores a pessoas da nossa terra que têm desfilado nos últimos textos, gente que também quis ser feliz, teve sonhos, anseios e ambições. Fecho este primeiro texto com elas, é a minha singela homenagem. Pena que só hoje consiga carregar nos pedais da memória e puxar alguns fios soltos de remotas e às vezes delidas lembranças. Então aí vai.

Conheci obviamente a Sofia e o Zé Pequeno. De ambos retenho gratas recordações. Ela cumprimentava-me sempre (ou eu a ela) quando nos cruzávamos na rua. Raramente parava. Quando o fazia, naquele seu jeito muito peculiar de arrastar a perna, dirigia-se a  mim, de forma repentina, e dizia: Olá Carlos!, e pespegava-me dois beijos. Acontecia sempre assim quando decilitrava em demasia. Mas nunca foi inconveniente, ou faltou ao respeito a quem quer que fosse, que eu saiba.

O Zé Pequeno, esse, mantive com ele longas e demoradas conversas, quase sempre junto à taberna dos meus tios, na esquina do largo de S. Pedro. Era de uma educação esmerada, valores que lhe tinham sido inculcados na Casa Pia. Orgulhava-se de ter sido um “ganso”, contou-me algumas histórias desse seu tempo juvenil que infelizmente não retive. Mas do que não me esqueço é da enorme resistência que se desprendia daquele corpo aparentemente tão frágil. Vi-o algumas vezes com sacos de batatas às costas, até o camião estar completamente carregado, sem nunca desfalecer. A ele e ao Pompeu, também franzino mas resistente, ambos de boina basca. Ao Pompeu, já em fase decadente, vi-o algumas vezes correr os miúdos à pedrada. Era a resposta que dava aos que, abeirando-se dele e logo fugindo, gritavam: pum, pum! Do Zé Pequeno guardo ainda a memória de o ver fumar “mata-ratos”, ao mesmo tempo que desenhava, com traço firme e preciso,  balizas e guarda-redes a voar para o esférico. Era o publicista de serviço, quando se tratava de anunciar jogos de futebol entre a Palhaça e qualquer outra equipa. Como não havia fotocopiadoras, o Zé Pequeno lá tinha que executar dois ou três esboços muito idênticos, com assinalável qualidade estética, normalmente em papel pardo. Os anúncios eram afixados nas tabernas ou mercearias mais visitadas da freguesia. Eeram, por assim dizer, os cartazes publicitários da época.

Conheci também a mãe do Pompeu, a Maria Zé Caixas. E o António dos Pardais, que vivia isolado e cercado de silêncios. Dele disse a Dra. Dulce Vieira: “As ovelhas eram suas irmãs, suas amigas as pombas, os gorjeios dos pardais, a música de fundo de uma existência viúva de alegrias” [1]. Recordo o Arlindo Gamelas, proveniente não sei bem de que colónia de África, que vivia de esmolas e sempre que me encontrava esboçava um sorriso de dentes bastos e me chamava “menino”, mesmo quando já era crescidote. Lembro, finalmente, a Maria Pita dos meus medos de infância. Morava na Chousa e ao que parece não fazia mal a ninguém, mas os miúdos temiam-na, atribuindo-lhe dotes de bruxaria. Era de tez morena, vestia saias até ao chão e usava, em vez de brincos, alfinetes de segurança a baloiçar-lhe nas orelhas.


[1] Freguesia da Palhaça. Contribuição para a sua Monografia. Publicação do Centro Paroquial da Palhaça, 1977, pp. 58-59.

Cértima, a Grande Guerra (1914-1918) e os Anos 20 em Portugal

1. Contexto internacional e política externa portuguesa

As origens do primeiro conflito mundial são inseparáveis de um cenário europeu em acelerada desagregação. A paz na Europa esteve permanentemente ameaçada pela intensificação das rivalidades internacionais, pela crescente corrida aos armamentos e pelo nacionalismo exacerbado de algumas potências: a França acalentava o sonho de reaver a Alsácia-Lorena; o pangermanismo procla­mava insistentemente a superioridade da raça germânica, ao mesmo tempo que a Rússia fomentava o pan-eslavismo nas pequenas nações balcânicas dominadas pela Áustria-Hungria e pela Turquia.

Também a hostilidade gerada pela concorrência económica entre as potên­cias industriais, mormente entre a Inglaterra e a Alemanha, ameaçava esse clima de paz. A política de alianças, por sua vez, tinha contribuído para o rompimento do equilíbrio internacional: à formação da Tríplice Aliança de 1882 – que incluía a Alemanha, a Áustria-Hungria e a Itália – responderam a Inglaterra, a França e a Rússia com a Entente Cordiale, concluída em 1907.

Neste clima de paz armada, qualquer incidente entre dois Estados podia re­dundar em grave conflito internacional. Assim aconteceu em Junho de 1914, com o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, príncipe herdeiro da coroa da Áustria-Hungria. Foi esse incidente que fez detonar um conflito que muitos an­teviam, erradamente, de curta duração, e que só acabaria em finais de 1918.

Quando eclode a guerra, o regime republicano português não estava ainda consolidado. Confrontava-se com pronunciamentos militares monárquicos, com acesas querelas entre partidos, e debatia-se com uma incerteza estrutural que resultava da dificuldade em obter uma maioria parlamentar estável para governar.

Em termos de política externa, a posição portuguesa podia definir-se deste modo: “oscilava num espaço triangular tendo por vértices Lisboa, Londres e Ma­drid e por objectivos não ser tutelada pela Espanha nem banalizada pela Grã-Bretanha, surgindo esta como o principal garante internacional da manutenção do im­pério colonial”.[1]

É este equilíbrio precário e instável de Portugal, balanceado entre a pressão do perigo espanhol e o apoio da sua aliança com a Inglaterra, que nos ajuda a entender as razões da participação na guerra, servindo também para iluminar a com­plexidade da polémica travada pelos republicanos democráticos contra os adversários da sua campanha intervencionista.

2. Posicionamento dos diferentes partidos e actores

Mal o conflito alastra à escala europeia e envolve todas as grandes potências, a opinião pública portuguesa ganha consciência do quanto ele poderia afectar os interesses nacionais. Sobre isso há um consenso generalizado, mas a controvérsia instala-se quando se discute a melhor forma de defender esses interesses. O que criou fracturas políticas permanentes em Lisboa foi a forma de garantir o envol­vimento da Inglaterra. As opiniões dividiram-se muito antes de a Alemanha decla­rar guerra a Portugal, em 9 de Março de 1916.

Para a maioria dos portugueses não restava qualquer dúvida de que o ini­migo principal era a Alemanha. Só que a “velha aliada” não lhes merecia inteira confiança. Se a dependência nacional em relação à Inglaterra era quase completa – ao reconhecimento inglês se devia a aceitação internacional da República – não é menos certo que a simples existência da aliança não dava garantias seguras de pre­servação do património colonial.

Participar ou não na guerra foi o grande pomo de discórdia da I República. Por razões que se prendiam sobretudo com a defi­ciente preparação militar portuguesa, a Inglaterra colocava objecções à entrada de Portugal no conflito. Logo em Agosto de 1914 o governo britânico solicita a Por­tugal que se abstenha de declarar a sua neutralidade. A estratégia britânica passava por manter Portugal numa posição que não era de neutralidade nem de beligerân­cia activa.

Contudo, em Fevereiro de 1916 o governo inglês, invocando a aliança, solicita a Portugal a requisição dos navios alemães que desde o início da guerra se haviam refugiado na neutralidade dos por­tos portugueses. Em resposta, a 9 de Março de 1916, a Alemanha declara guerra a Portugal, ao mesmo tempo que incita a Espanha a invadir o seu vizinho ibérico.

Vejamos agora, de relance, como reagem os diferentes partidos políticos e organizações sociais à complexa e delicada situação internacional de Portugal e à ambiguidade manifesta dos governos nacionais quando se trata de definir o seu ali­nhamento perante a guerra. A intensa polémica atravessou toda a sociedade portu­guesa, agravou as clivagens já existentes e acabou por comprometer o futuro do regime republicano.

Entre os muitos oposi­tores à entrada na Guerra e aos preparativos bélicos que a antecederam contavam-se os unionistas de Brito Camacho, grande maioria dos monárquicos, sindicalistas, católicos e amplos sectores do exército. Mas as fronteiras não eram rígidas: os unionistas perfilhavam soluções de neutralidade: batiam-se contra a beligerância na Europa, embora fossem favoráveis ao esforço da defesa militar das colónias; o movimento operário e sindicalista, os socialistas e os anarquistas assumiam-se quer como pacifistas quer como patriotas; entre os monárquicos também não reinava a unanimidade: se uns eram abertamente germanófilos era igualmente possível en­contrar monárquicos aliadófilos. Como dizia Churchill, há momentos em que “o ver­dadeiro patriotismo exige às vezes dos homens que atuem, em determinado pe­ríodo, ao contrário do que atuam noutro”.[2]

Guerra
Panfleto contra a guerra (1916)

Os que apoiavam a Alemanha faziam-no por duas ordens de razões: ou por se convencerem que o seu triunfo representava a restauração imediata da Monarquia, ou por verem no triunfo dos Aliados a vitória da França demagógica, ateia e ma­çónica e da Inglaterra protestante e responsável pela secular humilhação de Portu­gal.

Entre os republicanos intervencionistas contavam-se os democráticos e os evolucionistas. Os argumentos aliadófilos centravam-se na situação externa do país: era necessário quebrar o isolamento de Portugal, adquirir prestígio interna­cional e reanimar a velha aliança com a Inglaterra. Aos democráticos interessava sobretudo transmitir à Europa uma imagem diferente da que a República dera até então. Já para os monárquicos a estratégia belicista de Afonso Costa não era inocente. Para lá da preservação dos interesses coloniais tinha em vista pacificar os conflitos políticos internos, envolver, em nome da salvação do país, a oposição republicana na política democrática e fortalecer a República, coisa em que obviamente não estavam interessados.

A rejeição da Alemanha deve entender-se no quadro da justifi­cação republicana para a participação de Portugal na guerra. Ela assentava na de­fesa das colónias, que representavam, para os nacionalistas, um elemento essencial da identidade portuguesa. Ora como a Alemanha vinha insistindo com a Inglaterra para a divisão desses territórios, dificilmente abdicaria deles caso triunfasse na guerra europeia.

Resta dizer que a opinião pública, em geral, apoiava de bom grado a intervenção em África.

Para a grande maioria da população não existiam razões atendí­veis que justificassem a entrada de Portugal no teatro de guerra europeu. A de­fesa das colónias era, aliás, o único ponto em que monárquicos e republicanos con­vergiam, por considerarem a sua posse fundamental para a sobrevivência do país. Também por isso, e porque os germanófilos representavam uma pequena mi­noria,[3] o grande confronto travava-se entre aliados e anti-intervencionistas.

No meio deste ambiente de intrigas políticas permanentes havia quem defendesse que a eclosão da guerra representava a “sorte grande” para Portugal. Tanto a independência do país como a preservação das colónias se encon­travam seriamente ameaçadas antes de 1 de Agosto de 1914. Essa “sorte grande” ter-nos-ia saído por três lados: um residia na possibilidade de manter o império colonial depois da guerra, a que se somariam, provavelmente, outras vantagens; o outro permitia afastar os sonhos hegemónicos da Espanha: se não tivesse irrompido a guerra, as nossas colónias teriam sido partilhadas, pois entre a ameaça alemã e os interesses de Portugal os ingleses não optariam por afrontar o militarismo germâ­nico e, nesse caso, as ambições espanholas cresceriam na proporção do enfraque­cimento nacional; um terceiro, finalmente, assentava na crença de que a política interna portuguesa inflectiria num outro rumo, já que a guerra iria “criar novas forças e abrir novos horizontes”.[4]

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Ilustração Portuguesa, n.º 582, 16.04.1917

Em Julho de 1916 tinha-se constituído, em Tancos, o Corpo Expedicionário Português. Boa ou má para Portugal, a guerra tornou-se uma inevitabilidade. Devíamos mar­char para ela, com Monarquia ou República, porque se tratava de uma condição necessária ao triunfo dos princípios democráticos. João Chagas acredi­tava que da Guerra sairia um mundo novo e que ela era “um acto necessário, reden­tor da humanidade, um imperativo dos valores da liberdade e da democracia e, afi­nal, da própria paz”.[5]

Para muitos, a guerra era a única saída para um mundo que “abafava sob o peso dos armamentos”, onde se consumiam enormes somas com os preparativos bélicos e em que o militarismo “não cedia nem uma polegada”.[6] Também António Feijó tem este aviso premonitório logo após o desencadear da Guerra de 1914-1918: “A luta contudo será tremenda e longa. Qualquer porém que seja o seu resultado, esta guerra é o fim dum mundo, o desaparecimento duma civilização que já começava a desconjuntar-se”.[7]

3. António de Cértima: a Guerra, a Pátria e o regime

António de Cértima tinha a percepção que a Guerra iniciada em 1914 era especial, talvez a última das guerras antigas e a primeira das modernas. Enquanto guerra total, não estava a ser travada com intuitos imperialistas, à procura de um espaço vital, mas por mero amor à pátria que tinha sofrido qualquer ultraje ou agressão.

Logo nos primeiros meses de 1916 vemos o escritor bairradino atraído por uma significação estética da guerra, com a sua violência “cinzelante e rítmica” que se desprendia dos combates corpo a corpo da antiguidade. A partir da provável leitura de uma obra de Robert de la Sizeranne sobre os combates emotivos da guerra moderna e da antiguidade, Cértima compara a guerra antiga com a moderna, considerando a primeira “inteiramente escultórica [e por isso bela], de relevos viris e apolíneos”, enquanto a do seu tempo seria “apenas esteticamente auditiva” [ prenunciando o ruído metálico das descargas, as tempestades de aço que iriam abater-se nas trincheiras da batalha da Flandres, o estampido das minas, a explosão das granadas, ou o eco dos canhoeiros navais].

A introdução das armas de fogo tinha provocado uma transformação nos combates, ao acabar com os antigos “contornos varonis”. A conflagração mundial do seu tempo, ao matar “quimicamente”, ao tornar-se “veloz como o relâmpago” – já existia o telégrafo, que possibilitava rápidas informações, e o comboio, que acelerava a movimentação das tropas –  deixou de ser “escultórica e pictural” e passou a ser sobretudo “fotográfica”.[8] Marcaria o início de uma carnificina tecnológica sem qualquer sopro ético.

Como se vê, a apurada sensibilidade do autor de Epopeia Maldita leva-o a abordar a guerra de um ponto de vista artístico, introduzindo-lhe, diríamos, uma verdadeira estética da violência. Para Cértima, que cultivava e procurava preservar a perfeição como um valor, o principal motivo da guerra seria a imperfeição. A guerra seria “a luta da Perfeição, o combate contra o irregular, o disforme, e, enfim, o desforço pelo Belo”.[9]

Esta significação estética da guerra tem como ingredientes uma irreprimível vontade de ação, o pendor do esteta que havia em António de Cértima, o culto da força e até um certo fascínio pela violência. De facto, em nota preambular a Discurso à Geração Lusitana, publicado em 1934, quando se encontrava em Sevilha, escreve: “o meu espírito, educado no gosto da violência e insubmissão das ideias, teve apenas como objectivo criar um movimento violento de consciência na geração lusitana”.[10] A temática da estetização da guerra, que como vimos o atraiu em 1916, seria retomada numa palestra que proferiu em 1919 e vertida posteriormente no artigo intitulado “A significação estética da guerra europeia”, publicado em vários números da revista mensal A Guerra, órgão da Liga dos Combatentes da Grande Guerra.[11]

Em Maio de 1916 António de Cértima é mobilizado para Moçambique, após prestar serviço militar em Mafra. Dá conta disso em carta que dirige ao amigo Armando Esteves e na qual espelha bem o seu fervor patriótico: “Sou português. A Pátria chamou-me. E indo de joelhos até ela, servi-la-ei depois, armado o braço até Deus, como a tem servido os guerreiros da mesma Raça. Em breve vou partir […], creio que Portugal revive hoje as grandes épocas da História que o Infante iniciou em Sagres […]. E destas núpcias de sangue e de sonho um novo Lusíada surgirá. E por isso eu parto feliz de mim mesmo”.[12]

Carta a Armando Esteves-60
Bairrada Elegante, Ano I, n.º 5, Maio de 1916

Animado de convicções nacionalistas, o futuro autor de Epopeia Maldita terçava armas por um Portugal que acabou a 25 de Abril de 1974. Há, em Cértima, uma ideia de história de Portugal que passava pela exortação da guerra e era vivida de modo exaltado, a lembrar feitos gloriosos como os de Aljubarrota e dos descobrimentos. Há também, nele, uma espécie de amor e também horror viril pela guerra. Não era propriamente um belicista, mas também não era um pacifista: dir-se-ia que oscilava, tal como Homero e Tolstoï “entre a humanidade ardente que rebenta na alegria da agressividade e o desprendimento do sacrifício onde se consome o regresso ao Uno.[13]

É imbuído deste espírito que parte para Moçambique a 24 de Junho. Num derradeiro postal escrito poucas horas antes, Cértima despede-se do seu íntimo amigo, padre Acúrcio Correia da Silva, e da Bairrada que tanto amava: “Acúrcio: Parto para Moçambique daqui a alguns momentos. Adeus! Sim, por S. Jorge e por Portugal! Sê tu o portador do meu adeus à Bairrada, – terra minha bendita!”

Acúrcio responde: “O teu adeus aqui fica, meu grande amigo – a dizer a esta luminosa terra dos roseirais e dos pâmpanos o muito amor que lhe tens, e as saudades por ela que tu levas […]. Bairrada, Bairrada! Terra minha bendita… – Sim, ela ouviu o teu adeus, António”.[14]

Carta a Sálcio-60
Bairrada Elegante, Ano I, n.ºs 6-7, Junho-Julho 1916

Parece notória, nestas mensagens de despedida  de António de Cértima, se não já a consolidação de uma ideologia nacionalista autoritária, pelo menos a definição de uma “essência eterna”, a alusão à herança da tradição portuguesa, ao recorrer a factos simbólicos [a epopeia das Descobertas] e a personagens que de algum modo encarnavam valores messiânicos.[15]

A perspectiva da guerra tinha operado em Cértima uma autêntica transformação mental. As energias que anteriormente canalizava para uma miríade de interesses estavam agora concentradas no apelo da Pátria: “deixei de ser o indivíduo de ontem. Todas as atribuições espirituais que noutro tempo me preocupavam entre os homens, em contacto com o infinito da natureza e das coisas, congregam-se agora numa concentração total, vassala dum só pensamento, duma única vontade: a de bem cumprir um dever nacional.[16] Procurava assim esquecer as preocupações que o absorviam e fervilhavam na sua cabeça. Importante, naquele momento, era aperfeiçoar uma energia nova que lhe circulava no sangue como “um cachão de lava febril”. Era o fervor patriótico que o levava a denunciar o estado de alma a Armando Esteves: o meu amigo não calcula quanto me seduz este momento.[17]

O jornal republicano Bairrada Livre, onde o escritor colaborava há algum tempo, também é brindado com calorosas e sentidas palavras de despedida: “À hora grandiosamente histórica em que vai partir para a defesa acrisolada desta Pátria bendita em Moçambique, entregando-lhe, orgulhoso, o seu valor de homem e de português, envia a essa Redação as mais íntimas despedidas – o amigo, António de Cértima”.[18]

A decisão inabalável que o levou a partir para África não pode desligar-se da questão de se saber quem defende, e como se defende, durante a guerra, o interesse nacional. A sua posição perante o conflito – contrária à dos monárquicos e integralistas –  coincidia com a dos que se mostravam capazes de abdicar dos interesses partidários e colocar, acima deles, o interesse nacional. Por isso se condenava, também, toda e qualquer tentativa para derrubar a República durante o esforço de guerra.

Cértima não combateu pela República durante a Primeira Grande Guerra. O que verdadeiramente o animava era Portugal e a manutenção da integridade das colónias, que ajudou a preservar de armas na mão, numa verdadeira odisseia de companheirismo, idealismo e heroísmo. Por isso sobrepunha a ideia de Pátria à questão do regime. Ele próprio se encarregou de o confirmar, quando proclamou: “Pela ideia de Pátria, defendida pela pena e pela palavra, fui eu até aos inóspitos sertões de Moçambique”.[19]

Não deixa até de ser curioso anotar, nesta linha de raciocínio, que no próprio dia do embarque, a bordo do vapor Zaire, se interrogue ao mirar a multidão no cais: “perguntei comigo próprio se acaso estava ali, naquela manifestação que nos faziam, a falada alma nacional ou a alma dum ministério político”.[20]

Cértima terá percebido, desde muito cedo, que o principal objectivo de política interna era transformar os cidadãos nacionais em republicanos leais e convictos. Dito de outro modo, transformar a causa da guerra na causa da República. Segundo Vasco Pulido Valente, havia uma “lógica oculta” na política democrática: envolver e mobilizar o país inteiro, a pretexto da guerra. A intervenção ativa de Portugal no teatro de guerra europeu seria “o método perfeito para disciplinar o País e o converter à República”.[21] Não admira, assim, que em Março de 1916 se tenha constituído um governo de União Sagrada, formado por democráticos e evolucionistas e presidido por António José de Almeida.

A ideia era promover a unidade de todos os republicanos sobre a chefia dos democráticos. O problema é que a União Sagrada, possível e tardia, só teoricamente significou o abater das bandeiras partidárias perante o esforço de guerra. Não contava com os unionistas de Brito Camacho, nem com os intransigentes de Machado Santos, nem com os socialistas e muito menos com os monárquicos. Machado Santos, o “herói da Rotunda”, acabaria mesmo por encabeçar uma revolta, em 13 de Dezembro de 1916, contra um sistema de recrutamento que alistava no corpo expedicionário recrutas e oficiais milicianos e deixava de fora o corpo permanente de oficiais que colocava sérias reservas à política de intervenção.[22] Gente mais conservadora em quem a República pouco confiava.

A manipulação dos sentimentos patrióticos através do recurso argumentativo aos problemas internos do próprio regime não colheria sucesso. À estratégia de mobilização montada pelo partido democrático correspondeu uma forte contra mobilização travada pelos seus inimigos, alguns deles inimigos declarados do próprio regime. As dificuldades eram de monta: agudização da crise económica e social, falhas nos abastecimentos, subidas de preço dos géneros de primeira necessidade, violência e instabilidade política interna, atraso militar, ausência de um consenso mínimo entre os próprios partidos republicanos e, até, a ambiguidade inglesa quanto à participação de Portugal no conflito europeu. 

4. Cértima e o pós-guerra: fragmentos de um discurso nacionalista autoritário

Regressado à sua Bairrada no final da guerra, António de Cértima viria a colaborar em Gente Nova, título dum jornal que foi órgão e porta-voz das ideias da Plêiade Bairradina, com sede em Oliveira do Bairro, e no qual aparecia como redactor no cabeçalho, ao lado de Manuel Correia da Silva. O primeiro número viu a luz do dia em 22 de Maio de 1919 e o último, o número 37, tem data de 28 de Fevereiro de 1920.

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O jornal anunciava-se, pois, num tempo de impetuoso tumulto da vida pública que caracterizou o pós-guerra. O Presidente da República Sidónio Pais fora assassinado a 14 de Dezembro do ano anterior, na estação do Rossio, em Lisboa. Em Janeiro de 1919 é restaurada a Monarquia no Porto através de um movimento liderado por Paiva Couceiro. Nesse mesmo mês a Monarquia é também proclamada em Espinho, Vila Real e Estarreja.

A 27 de Janeiro de 1919 dá-se o célebre combate das Barreiras em Águeda – mais concretamente entre Recardães e Serém – entre os realistas da Monarquia do Norte e as forças republicanas. A 29 combate-se rijamente em Angeja, com as tropas republicanas a infligir sérios revezes nos revolucionários monárquicos.[23]

Em Fevereiro continuam os confrontos entre republicanos e monárquicos em áreas geográficas a norte da Bairrada, nomeadamente Estarreja, Pinheiro da Bemposta e Oliveira de Azeméis. O jornal Gente Nova vê a luz do dia pouco tempo depois de ter sido levantado o estado de sítio decretado na sequência da revolta monárquica de Monsanto e pouco tempo antes da demissão colectiva do efémero governo chefiado por José Relvas, que tomara posse dois meses antes.

No meio deste “trágico cachão de paixões excessivas”, Cértima entende que a missão do jornal, o seu mais elevado fim intelectual, é “manter-se alheio a interesses de facção, a utilitarismos e benesses de seita”. De preferência o mais longe possível do “aversivo pandemónio político”, fazendo, isso sim, a política da Pátria, que consistia em “contar as galhardias da raça, procurando formar um “austero carácter lusíada que quatro séculos de fatalidade deformaram horrivelmente”. Para Cértima, o período áureo de Portugal foi o dos Descobrimentos. Depois dessa gesta heroica instalara-se a decadência nacional. Era preciso retomar o culto da grandeza imperial portuguesa, assente na fé das grandes realizações humanas.

O primeiro número do jornal insere um soneto seu, intitulado “Horas de Portugal”, que o autor dizia pertencer aos “Sonetos da Minha Raça”. O último terceto é deveras elucidativo quanto ao carácter messiânico que o animava:

“Noite. E ouve-se uma voz chamar ao povo:
-Nun’Álvares! Nun’Álvares! de novo
Oh! Vem salvar a Terra Portuguesa!”.

Tenha-se em conta que este apelo ao Condestável pode configurar uma estreita afinidade de Cértima com o ideário da Cruzada D. Nuno Álvares Pereira, agrupamento elitista conservador formado em 1918, e que foi lugar de convergência de várias tradições políticas e morais nacionalistas e de formação de importantes sectores da elite do regime do Estado Novo. Convergem na Cruzada elites nacionais e notabilidades locais, cujo traço de união é a resistência ao jacobinismo republicano.

Na verdade, como refere Manuel Villaverde Cabral, “o oficial de pequena patente, humilhado em África e na Flandres, mal pago e ressabiado contra os “políticos”, será o cerne militante da Cruzada Nun’Álvares desde 1918”. Não deixa de ser curioso notar, também, que Gomes da Costa –  líder dos revoltosos contra a República em 28 de Maio de 1926 – figurava entre os patronos da Cruzada. O mesmo acontecia com Salazar e Gonçalves Cerejeira, que integravam a direcção provincial de Coimbra deste primeiro movimento que, a partir da queda do sidonismo e do fim das ilusões de restauração monárquica, organizou “militantemente a recomposição política dos possidentes a partir das províncias”. [24]

A invocação da exemplaridade de Nuno Álvares Pereira procura ressuscitar os ideais do misticismo heroico de outras eras. Ao reciclar a velha e mitológica ambição de grandiosidade nacional, Cértima esboça também a necessidade de uma organização alternativa aos partidos tradicionais. É notório o apelo à submissão ou sedução das massas a um salvador ou redentor da Pátria portuguesa. Tratava-se, também, de restaurar a tradição e de repor a história nacional “no trilho autêntico dos nautas, santos e cavaleiros”.[25] Portanto, uma exaltação conservadora das grandezas patrióticas, em que a Pátria é quase exclusivamente encarada enquanto “galeria edificante das personalidades extraordinárias, crónica exaltante dos grandes feitos individuais, ou epopeia revivificante das gestas colectivas inseridas num destino providencial”.[26]

António de Cértima mostra-se tributário de uma concepção de história com altos e baixos, em que os períodos de esplendor correspondem ao aparecimento de chefes carismáticos que se erguem acima dos outros homens para os guiar. Com dificuldade em aceitar e integrar aquilo a que Max Weber chamava o “desencantamento do mundo” – no caso português a decadência acelerada da I República –  o culto de personagens como Nuno Álvares Pereira, normalmente transformadas em heróis nacionais, assenta na crença de que elas são seres superiores, homens que receberam um dom, ou uma graça, características de comando que lhes conferem qualidades que roçam o domínio do sagrado. E sabe-se como em tempos de crise os mitos dos heróis providenciais se alojam na memória coletiva, onde encontram o húmus para se desenvolver.

É próprio de certos nacionalismos promover práticas discursivas sobre o “homem providencial”, alguém que nos “resgataria da decadência provocada por sucessivos naufrágios, favorecendo deste modo vários deslumbramentos de messianismo político”.[27] Cértima exalta uma personalidade carismática da vida nacional, imbuído da crença que tende a sobrevalorizar o papel dos “grandes homens” no rumo dos acontecimentos políticos e sociais. Como é sabido, o messianismo enquanto corrente teórica alimenta-se na descrença das fórmulas políticas, costuma vibrar “ao sabor das ondas do irracionalismo” e desenvolve-se num “clima de instabilidade política, económica, social e mental”.[28]

5. António de Cértima: um itinerário político nos anos 20

Nem a figura nem a intervenção política de António de Cértima nos anos vinte do século passado foram até hoje suficientemente estudadas e valorizadas. Esta faceta importante da sua vida, talvez mesmo a que lhe granjeou mais prestígio entre os portugueses, esteve praticamente ausente das comemorações do centenário do seu nascimento, promovidas pela Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, em 1994. Tal homenagem centrou-se preferentemente na produção literária, nas filiações estéticas, na poesia, nas suas raízes bairradinas, no pensamento religioso ou no enquadramento das suas crónicas de guerra no contexto da literatura colonial.[29]  Faltou encaixar algumas peças para a construção do puzzle da personalidade multifacetada deste escritor nascido na Bairrada.

Praticamente nada se disse sobre a estruturação do seu pensamento político nos anos que viriam a culminar na queda da I República e a abrir caminho ao Estado Novo de Salazar. Apenas Arsénio Mota, num oportuno e pioneiro trabalho que lhe dedicou, não se furta a anotar a adesão de Cértima ao golpe militar de 28 de Maio de 1926, o apoio ao general Gomes da Costa, a colaboração no jornal A Ditadura ou mesmo o culto de relações estreitas com figuras gradas da Falange, movimento que apoiava o general Franco.[30]

Não valorizar esta faceta crucial da sua vida ajuda até a perceber que Cértima nos apareça hoje como uma personalidade fortemente marginalizada no discurso político e literário sobre o tempo que lhe foi dado viver. Por isso se procura aqui fazer incidir alguma luz no trajeto e na teorização política que animaram a vida de Cértima no período que medeia entre o fim do consulado de Sidónio Pais (1918) e a emergência da ditadura militar que a partir de 1926 escancarou as portas ao Estado Novo. Esta tentativa de lhe reconstituir o itinerário político nos anos vinte do século passado pode desvendar-nos até que ponto ele é influenciado e exprime a sua época. E permite avaliar, também, de que forma o seu engajamento no curso dos acontecimentos “é exemplar ou representativo, por conter em si a concentração de muitos destinos ou comportamentos”.[31]

Espera-se que esta análise possa fazer saltar “os cadeados do esquecimento e as crostas dos preconceitos”.[32] De certo modo, trata-se de sondar e tentar compreender as opiniões que perfilhou, remexendo no baú dos princípios e valores que defendeu e em que acreditava. Embora tal análise possa provocar algum desconforto em espíritos mais preconceituosos, com receio de que ela possa vir a beliscar ou a ensombrar um inegável talento literário e artístico, passar uma esponja pelo papel de relevo nacional que o autor de Discurso à Geração Lusitana assumiu no campo da teorização política dos anos vinte em Portugal seria, essa sim, a pior forma de lhe prestar a devida homenagem.

Nesse período de fragmentação crescente e de desgaste acentuado dos partidos e do próprio sistema político liberal, o escritor bairradino era visto como um dos novos. José Relvas, em entrevista concedida ao próprio Cértima em 1927, quando este colaborava no jornal Portugal, retratava do seguinte modo essa geração: “artistas e intelectuais, desertaram da República visto que esta não os tratou como devia e ainda porque viveram numa época em que se abria a decadência da Democracia. A ideia cultural que absorveram foi, por conseguinte, mais conservadora do que radical”.[33]

Este era o tempo em que Ramalho Ortigão, na célebre Carta de um Velho a um Novo – dirigida a João do Amaral e publicada no diário A Restauração, de Homem Cristo Filho – obrigava “a elite dos velhos a curvar-se rendidamente perante a elite dos novos”, que definia como uma “nova ala de namorados”, jovens que quotidianamente “arriscam os seus interesses, a sua liberdade e a sua vida”, uma plêiade estudiosa que sente a necessidade da “reeducação integral do povo português”, num país onde “combater apenas o analfabetismo do povo por meio de escolas primárias e de escolas infantis sem religião e sem Deus” não era salvar uma civilização, mas sim “derruí-la pela base por meio do […] envenenamento das ideias”.[34]

5.1. Da colaboração n’A Ditadura à Epopeia Maldita

Nos anos 20 Cértima colabora n’A Ditadura, jornal que a si mesmo se intitulava periódico do fascismo português. Escreve também no Portugal, órgão da Ação Nacionalista, onde colaboram sidonistas e radicais de direita, de formação integralista. Era o tempo em que António Ferro escrevia bilhetes de pêsames à república gagá e titubeante. No discurso político de A Ditadura estão presentes dois elementos do apelo fascista do pós-guerra: são eles a juventude e o antigo combatente. Será no apelo ao ex-combatente que Cértima se vai destacar.

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Quando se aborda a influência dos fundamentos imperiais, “africanos”, do fascismo em Portugal, é inevitável falar de António de Cértima, “personagem que vem da guerra de África (Epopeia Maldita, Legenda Dolorosa do Soldado Desconhecido de África) através do modernismo literário, até ao nacionalismo fascizante”.[35]

epopeiamaldita-100A experiência da guerra em África levaria António de Cértima a apelar ao antigo combatente, procurando catalisar para a sua causa os soldados desiludidos. Chama ao ex-combatente “um produtor da força heroica (…), o homem de maior autoridade nacional”. E acrescenta: “Não erraremos ao afirmar que a legião dos Combatentes da Grande Guerra está em massa com a Ditadura Militar (…). Porque o programa político da Revolução tem raízes fortes e sagradas na epopeia reflexiva das trincheiras. A libertação moral operada na consciência do País com o 28 de Maio realiza ostensivamente as aspirações mais secretas de algumas dezenas de milhares de homens que fizeram a Guerra. Nós fomos para os campos de batalha, em 1914, todos enganados (…), pois a Guerra só serviu os interesses dos políticos”.[36]

Não admira, por isso, que quando em Junho de 1926 Gomes da Costa apresenta em Conselho de Ministros um “plano de providências do Governo”, que reflectia o pensamento de uma das facções do movimento militar “ideologicamente influenciada por sectores nacionalistas próximos do Integralismo Lusitano”,[37] Cértima o acolha com entusiasmo, por ver nele uma “reorganização da propriedade nacional”, a partir da qual seria possível “efectuar-se sem discrepância a reforma constitucional”.[38] Uma reforma – entenda-se – que procurava evitar qualquer regresso à “normalidade constitucional” que prevalecia antes da queda da República.

6. A queda da República: Cértima à procura do Ditador

A tentativa de golpe de estado promovido pela direita autoritária em 18 de Abril de 1925, protagonizada por vários militares que no ano seguinte estariam à cabeça do 28 de Maio, foi apoiada por António de Cértima e também, de forma resoluta, pelo republicano conservador que era Homem Cristo. A Ditadura transcreve O De Aveiro, onde o jornalista e panfletário aveirense saúda calorosamente Mendes Cabeçadas, Sinel de Cordes, Raul Esteves, Filomeno da Câmara e “todos aqueles que se bateram pela redenção desta infeliz pátria […] contra os infamíssimos correcionais que encheram a terra em que nasci de ruína e opróbrio”.[39] Era o tempo em que o aventureirismo das elites militares comprometia a instituição castrense e o próprio sistema político republicano, o que levava Raul Proença a dizer que “os militares batem o pé aos homens do governo, como a galuchos”.[40]

Nos meses finais do regime, o Partido Democrático, embora com maioria absoluta e um Presidente da República por si eleito, está mais fragilizado do que nunca. Praticamente já não manda. Apenas se limita a ganhar tempo e procura sobreviver a qualquer preço. De modo que quando a República cai não há praticamente quem a defenda. O governo sai de cena e deixa o Presidente da República, antes de se retirar, nomear tranquilamente Mendes Cabeçadas. Nem os próprios sindicatos, que de forma evidente defenderam o regime em crises anteriores, mexeram uma palha. O tempo era já outro e os problemas também eram de diversa natureza. Prisioneira das suas clientelas e incapaz de inovar e reformar, a República tinha-se divorciado irremediavelmente do país. Desaba sem que ninguém levante um dedo para a defender, com um suspiro de alívio de toda a gente, talvez mesmo de muitos dos seus próprios defensores.

O Ditador, obra de1926, reeditada no ano seguinte e que ostenta no frontispício uma frase de Napoleão – “aquele que salva a sua pátria não viola nenhuma lei” – é a todos os títulos um texto cristalino. Nele, Cértima teoriza a necessidade de um ditador para Portugal, intuindo a necessidade de uma chefia carismática, de um salvador, uma espécie de grande árbitro acima das classes, dos partidos e da política em geral.

É nesta obra que “o ideólogo fascizante”[41] António de Cértima reconhece, com argúcia, ter a ditadura de Pimenta de Castro, em 1915, estado longe de patentear o carácter “nacional” de que se revestiu a ditadura sidonista de 1918, ao observar que o primeiro era ainda “um produto partidário e não com características nacionais. A sua acção voltou-se por isso mesmo mais contra um partido do que contra um estado precário da nação”.[42] Ao invés, o projeto sidonista integra-supera os ódios ao exclusivismo político do Partido Democrático, funcionando como uma importante tentativa, autoritária e moderna, de criar um “partido nacional” contra a rotina dos partidos da República.

Se o ano de 1924 tinha sido pródigo na apologia do messianismo e na proposta de vários candidatos a “chefe nacional”, em 1927 António de Cértima continuava à procura do perfil ideal desse homem carismático. Na verdade, logo a seguir ao pronunciamento militar de 28 de Maio de 1926, seriam eliminadas as facções militares cujas figuras de proa eram o almirante Mendes Cabeçadas e o general Gomes da Costa. Cértima apreciava este último, não deixando de lamentar o seu afastamento, mas já admitia pacificamente o afastamento de Cabeçadas.

Quando Óscar Fragoso Carmona aparece à frente da ditadura, Cértima não esconde a sua evidente frustração: “O general Carmona (…) não fez mais do que obedecer a uma imposição unânime do exército (…) não se julga por este facto investido nas excepcionais funções de Ditador”. Dito de outro modo: havia ditadura – aceite desde o indivíduo até à multidão, asseverava Cértima –  mas faltava o ditador, “o Homem que corresponda ao presente estado de consciência política, produzido espontaneamente pela sociedade”.[43] Em alternativa, Cértima colocava a possibilidade do tal chefe carismático de que andava à procura poder ser o coronel Passos e Sousa, vencedor da abortada tentativa de revolta de 7 de Fevereiro de 1927 contra a ditadura militar. Alguém com as características dos líderes dos fascismos europeus, um chefe capaz de manipular as massas de modo a que estas caucionassem, sem pestanejar, a sua política.

Texto em actualização (Publicado originalmente em http://antonio-certima.blogspot.pt/ )


[1] José Medeiros Ferreira, Portugal na Conferência da Paz, Lisboa, Quetzal Editores, 1992, p. 86.

[2] Robert Nisbet, O Conservadorismo, Lisboa, Editorial Estampa, 1987, p. 11.

[3] Alfredo Pimenta foi dos poucos que «chegaram a pôr em causa a tradicional aliança com a Inglaterra e a ostentar uma atitude germanófila». Manuel Villaverde Cabral, «A Grande Guerra e o sidonismo (esboço interpretativo)», Análise Social, vol. XV [58], 1979, 2º., p. 375.

[4] Homem Cristo, Portugal na Guerra, Aveiro, Edição da Tipografia Nacional, 1917, pp. 69-70 e 77.

[5] João B. Serra [Prefácio], in João Chagas, Diário I, (1914), Lisboa, Edições Rolim, 1986, p. XIX.

[6] Homem Cristo, Portugal na Guerra, p. 30.

[7] António Feijó, Cartas a Luís de Magalhães, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, vol. II, p. 479.

[8] António de Cértima, “A significação estética da guerra”, Bairrada Livre, n.º 267, 12.02.1916, pp. 1-2.

[9] Idem, ibidem.

[10] António de Cértima, Discurso à Geração Lusitana, Sevilha, 1934.

[11] Arsénio Mota, António de Cértima – Vida. Obra. Inéditos. Porto, Livraria Figueirinhas,  1994, p. 38.

[12] Bairrada Elegante, Ano I, n.º 5, Maio de 1916.

[13] Rachel Bespaloff, Sobre a Ilíada, Lisboa, Edições Cotovia, 2005, p. 43.

[14] Bairrada Elegante, Ano I, n.º 6-7, Junho-Julho, 1916.

[15] Hermínio Martins, Classe, Status e Poder e outros ensaios sobre o Portugal contemporâneo, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 1998, p. 25.

[16] António de Cértima, “De algures… Carta ao Armando Esteves”, Bairrada Livre, n.º 282, 27.05.1916, pp. 1-2.

[17] Idem, ibidem.

[18] Bairrada Livre, n.º 287, 01.07.1916, p. 1.

[19] António de Cértima, “A propósito da Independência D’Águeda”, Gente Nova, n.º 4, 12.04.1919.

[20] António de Cértima, Epopeia Maldita. O drama da guerra de África, Lisboa, 1924, p. 25.

[21] Vasco Pulido Valente, A “República Velha”, pp. 80 e 87.

[22] João Bonifácio Serra, “Do 5 de Outubro ao 28 de Maio (…)”, p. 53.

[23] Fernando de Castro Brandão, A I República Portuguesa. Uma cronologia, Lisboa, Livros Horizonte, 1991, pp. 130-131.

[24] Manuel Villaverde Cabral, “Sobre o fascismo e o seu advento em Portugal: ensaio de interpretação a pretexto de alguns livros recentes”, Análise Social, vol. XII (48), 1976-4.º. pp. 900, 902 e 908.

[25] AAVV, História da Primeira República Portuguesa (Fernando Rosa e Maria Fernanda Rolo, coord.), Lisboa, Tinta-da-China, 2009, p. 10.

[26] José Carlos Seabra Pereira, “Tempo neo-romântico (contributo para o estudo das relações entre a literatura e a sociedade no primeiro quartel do século XX), Análise Social, vol. XIX, (77-78-79), 1983 – 3.º, 4.º. 5.º, p. 865.

[27] Ernesto Castro Leal, “A Cruzada D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado Novo”, Análise Social, vol. XXXIII, (148), 1998 (4.º), pp. 825-826.

[28] Cecília Barreira, “Messianismos, Poder e submissão”, Diário de Notícias (Suplemento), 15.02.1983.

[29] AA.VV., António de Cértima – Colectânea de Estudos no Centenário do seu Nascimento (Arsénio Mota, org.), Edição da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro, 1994.

[30] Arsénio Mota, António de Cértima – Vida. Obra. Inéditos. Porto, Livraria Figueirinhas, 1994.

[31] José Mattoso, “Breves reflexões sobre o individual e o colectivo em História”, A Escrita da História. Teoria e métodos, Editorial Estampa, Lisboa, 1988, p. 62.

[32] Jean Orieux, “A Arte do Biógrafo”, História e Nova História, Lisboa, Teorema, 1986, p. 41.

[33] Portugal, Ano I, n.º 154, 03.03.1927, p. 2, citado por Ernesto Castro Leal, “Heroísmo em António de Cértima: Psicologia e Sociedade”, in Estudos em Homenagem a Jorge Borges de Macedo, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1992, p. 505.

[34] Ramalho Ortigão, Últimas Farpas (1911-1914), Lisboa, Clássica Editora, 1993, pp. 159-160.

[35] Manuel Villaverde Cabral, artigo citado, p. 891.

[36] António de Cértima, O Ditador, As Crises – O Homem – A Nova Ordem, Lisboa, Editores Livraria Rodrigues & C.ª, s.d. (1926), pp. 167-177. A obra será reeditada em 1927.

[37] Luís Bigotte Chorão, A crise da República e a Ditadura Militar, Sextante Editora, 2009, p. 93.

[38] António de Cértima, O Ditador, p. 129.

[39] A Ditadura, 17.08.1925, p. 1.

[40] Raul Proença, citado por João Bonifácio Serra, “Um Modelo de Análise Política do Sistema Liberal Republicano – Raul Proença na Seara, 1921-1931”, Ler História, n.º 7, 1986, p. 57.

[41] Fernando Farelo Lopes, “A 1.ª República: da “ditadura” democrática à violação das regras do jogo”, revista Risco, n.º 2, Verão de 1985, p. 127.

[42] António de Cértima, O Ditador, p. 39.

[43] Idem, p. 144 e ss.

Tempo de mudança — singela homenagem aos amigos do serviço e do comboio

Hoje deu-me para isto. Para recordar os amigos que deixei em Coimbra, amarrados às angústias do presente e às incertezas do futuro. Enredados na moral da competição desenfreada, tantas vezes sem ética. A todos devo muito: o companheirismo, a fraternidade aberta, o apoio nas horas difíceis, as lições de vida. Tanto que aprendi com eles! Alguma timidez e não menor emoção, na hora da despedida, impediram que lhes dissesse o que mereciam ouvir. Talvez porque a generosidade é mais para retribuir que para agradecer, se para tanto chega o coração. Quantas vezes temos amizades à boca do coração mas não sabemos como as cultivar com desvelo. Somos desleixados com os afectos, o que não quer dizer que os desprezemos A melhor forma que encontrei para retribuir foi dizê-lo agora, por escrito. Porque o que deveras nos toca e cativa só ex-corde se transmite. Obrigado por esse bálsamo de todos os dias e de todas as horas.

Uma palavra, também, para os amigos do comboio. As diferenças políticas, religiosas ou clubísticas nunca impediram uma boa conversa ou o melhor convívio espiritual. Essas diferenças nunca nos destruíram. Apenas nos distinguem. Por isso nos realizávamos – dialogando! Irreverentes e alegres, ajudaram a suavizar alguns dias cinzentos (e outros contos…). As saudáveis picardias da bola ou da política derrotavam sempre os mangas de alpaca do cinzentismo que nos vigiam à distância, os gestores dos pequenos poderes do centralismo burocrático que nos infernizam a vida e envenenam o dia a dia com o amianto das suas frustrações e da sua pequenez. Sem o saber, promovem o conceito de “inoperância” introduzido pelo filósofo Giorgio Agambem: a inoperância não como passividade mas como actividade que torna inoperativas as operações económicas e sociais. É um tipo de trabalho que não nos realiza: apenas cansa e desespera.

Agora é tempo de mais serenidade. Tempo de usar o tempo em proveito próprio e de forma aprazível. De fazer aquilo que mais gosto, para lá do convívio: sentir o cheiro da terra fresca, inebriar-me com os aromas que rescendem por todo o lado; percorrer o areal da praia, sentir a brisa marítima, embebedar-me de azul e infinito; ler e escrever, ouvir música, ver filmes, apreciar a tranquilidade e até o silêncio. Às vezes, o inteiro silêncio.

Não comecem a pensar que digo adeus ao trabalho, sentado no sofá a ver televisão – essa grande ladra do tempo – com as pantufas fofas que os amigos do comboio me ofereceram. Não é nada disso. Além de um direito (por enquanto…), a reforma é a possibilidade que temos de trabalhar folgadamente, sem pilhas eléctricas acumuladas nos nervos. Sem pressão, nem pressas aturdidas.

Não quero só a liberdade para procurar ser mais feliz. Reclamo também algumas parcelas de felicidade para me sentir mais livre. A felicidade está muito para lá do conforto material. Para mim, passa igualmente pela partilha com os outros – mesmo que esporádica – daquilo que sentimos e expressamos. É o que sinto quando a escrita se apodera de mim como um incêndio interior, onde se queima a alma toda no holocausto à beleza da vida e às suas seduções.

Quero cultivar o gosto de ter com quem conversar, mesmo que apenas através do éter. Porque todo o homem tem o dever de dar aos outros não o que lhe resta, mas o que ainda lhe faz falta. A vida será sempre um esforço para alcançarmos o que ainda não temos. Ou não será assim?

Bem sei que em relação a vós a ausência que agora começa é mais amarga. Rebobino, silencioso, ajudado com os pedais da memória, alguns momentos marcantes na vossa companhia. O silêncio das palavras não consegue parar o tropel do pensamento. Se tenho saudades? Sim, tenho, ou não sentisse já a hera da saudade a enroscar-se na garganta. Mas sei – como dizia Mário Sacramento –  que a saudade é uma força quando projecta no futuro uma esperança. Estou feliz com a partida? Sim, estou. Creio que não podia sentir-me melhor. E isso dá-me o alento de saber que os meus amigos ficam felizes por mim, também.

O nosso tempo de vida é a nossa única fortuna. E esse tempo não tem que ser um museu de silêncio. A todos os meus amigos – os do comboio e os do serviço – aqui deixo, escancarado, o tamanho da amizade que lhes tenho.

 

Em Abril, um gesto

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Do teu corpo floriu o gesto inesperado:
deste-me cravos rubros
de Abril
colhidos em qualquer sementeira.

Lembrei a clara madrugada
em que começou a tecer-se a liberdade
de dizer não à mordaça
e à cegueira.

Nesse dia, tinha vinte e um anos.
Não podia ficar em casa,
amor,
aquartelado em cobardias.

De arma na mão
 fui afinar o coração
ao compasso das mais belas melodias.

Trinta anos depois, os cravos que me deste
rescendem a frutos maduros
e queimam
como desafios sempre acesos.

No gesto anunciaste mais
que a própria liberdade,
driblaste silêncios e medos…

A dizer-me que para o amor não há degredos,
mas sim a redentora claridade.

25.04.2004