A remoção (falhada) da estátua “pornográfica” de Camilo




“A beleza é o nome que dou às coisas em troca do agrado que elas me dão”
– Alberto Caeiro

Não é preciso ser especialista em arte para reagir a uma obra. Assim aconteceu com a estátua de Camilo, colocada há 11 anos em frente da antiga Cadeia da Relação. Pouco faltou para que fosse parar ao sótão das coisas inúteis, à guarda da Câmara Municipal do Porto. Nada que nos espante, pois já antes tinha acontecido o mesmo com O Cubo da Ribeira, do escultor José Rodrigues, cercado pelas intensas labaredas da polémica.

No trabalho escultórico de Francisco Simões, Camilo está vestido dos pés à cabeça e abraça uma mulher nua. Uma petição de 37 figuras das artes, da política e da cultura (entre elas o administrador Artur Santos Silva, o escritor Mário Cláudio e os políticos António Lobo Xavier e Ilda Figueiredo) veio exigir a remoção da estátua. Na origem estão razões de ordem estética e de ordem moral. Passo ao lado das razões de ordem estética, atenta a reconhecida subjectividade da arte, que sendo intemporal não tem de agradar a todos e não existe apenas para o deleite de nossos olhos. A arte expressa as nossas ambivalências e leva-nos a reflectir sobre os conceitos de beleza e fealdade, ordem e caos, além de cumprir a função de transferir ideias e provocar pensamentos.

Deixemos então de lado as apreciações de natureza estética. Falemos em questões de ordem temporal, moral e de legitimidade política.

Ordem temporal: o que leva 37 cidadãos a reagir 11 anos depois da estátua ter sido exposta na baixa portuense? Só agora se deram conta do incómodo?  Só agora despertaram para o “desgosto estético” e para a “reprovação moral”? Ou será que estas oscilações do gosto andam atreladas a preconceitos acumulados ao longo dos anos?

Estátua de Eça de Queirós  (Lisboa)

Legitimidade política: como é que  uma petição assinada por 37 pessoas tem representatividade suficiente para conseguir revogar uma deliberação municipal de 2012 que aprovou, por unanimidade, a doação e a implantação da escultura naquele local? Será que esses 37 “cidadãos ilustres”, acantonados numa espécie de casulo elitista, são detentores da verdade e capazes de decidir o melhor em nome de todos? A pergunta não é inocente: remete para a natureza íntima do poder e para as diferentes formas da sua legitimação. Rui Moreira parece recuar – na decisão inicial que tomou – aos tempos em que o liberal Herculano desconfiava das maiorias ignaras, ou a um tempo mais recente em que o Integralismo Lusitano classificava a democracia como o triunfo da mediocridade.

Questões morais. Alguns signatários confessam que aquilo que os move é a defesa da memória de Ana Plácido,  que partilhou com Camilo um romance de amor que os levaria à prisão, condenados por adultério. Má sorte a deles, menos afortunados que D. João V, que no século anterior escapou ileso à “escandalosa mancebia” com as freiras do convento de Odivelas. Ficariam juntos entre 1861, ano de saída da cadeia, e 1890, ano fatídico em que Camilo resolve estoirar os miolos em São Miguel de Seide.

Acontece que o argumento dos zelosos defensores da honra de Ana Plácido cai por terra a partir do momento em que o escultor Francisco Simões afirma que a mulher nua abraçada a Camilo é uma  mulher simbólica, em homenagem às várias figuras femininas que atravessaram a vida atribulada do escritor. Para uns, se a mulher está nua, Camilo também devia estar (11 penosos anos ao relento e ao frio, coitada da rapariga…). Para outros, o melhor seria ficarem ambos vestidos. Curiosamente, ninguém equacionou a possibilidade de a mulher ficar vestida e Camilo despido, com as nádegas ao léu. Que comentários fariam? Diriam que o escritor estava exposto à humilhação?

Estátua de Alves Redol (Vila Franca de Xira)

Ilda Figueiredo (é comovente a sintonia da vereadora da CDU com António Lobo Xavier em questões morais e de costumes) fala em “subalternização inaceitável” e em menorização da mulher. Entretanto, após ouvir as explicações do autor da obra… já recuou! Não se tratando de Ana Plácido nua – a petição fala de “um exemplar mais ou menos pornográfico” – mas de uma mulher simbólica, a coisa muda de figura. A mudança de opinião de Ilda Figueiredo assenta numa lógica de ferro, para não dizer da batata: se a imagem representa uma mulher nua em concreto, existe subalternização e humilhação feminina; se a imagem for “simbólica”, representativa das mulheres que tiveram influência na vida e na obra de Camilo, “já não faz sentido esta polémica”. Camilo com mulher nua, tudo bem; com Ana Plácido nua, nem pensar. Isto é: Camilo está autorizado a colocar a mão direita naquelas formas redondas e suculentas – ao mesmo tempo que hesita num título para o livro: Amor de Perdição ou Rabo de Salvação? – porque elas não pertencem a Ana Plácido, são de todas as mulheres com quem ele se relacionou. Dir-se-ia que a pornografia e o escândalo se diluem à medida que caminhamos do particular para o geral e do concreto para o abstracto.

É neste tipo de paradoxos (ou os 2 nus ou os 2 vestidos, vistam a mulher ou dispam Camilo) que muitas vezes incorre um certo discurso woke e politicamente correcto: por detrás do radicalismo verbal esconde-se, não raras vezes, uma inegável opção puritana e conservadora. A representação de uma mulher nua ainda incomoda muita gente, quase cinquenta anos depois da revolução de Abril. Provam-no os argumentos morais de “nudez”, “assédio” e “pornografia” em que assenta o pedido de remoção da estátua.

Respeitando a subjectividade inerente à apreciação de qualquer obra de arte, não prescindo de deixar aqui exarada a minha opinião: Camilo está vestido dos pés à cabeça porque era inverno e soprava um gélido vento. A mulher está nua porque, mesmo sendo inverno, se viu obrigada a prescindir da roupa para não sucumbir aos calores que dela se apoderavam. Outra hipótese, talvez menos verosímil: Camilo deambulava por aquelas bandas e, sem saber como nem porquê, aquela mulher nua corre para ele cai-lhe nos braços, à procura de agasalho. Nua, talvez por ter sido apanhada em flagrante delito e sem tempo para repor as vestes que lhe tapassem as vergonhas.

Fotografia de Ana Plácido

E digo mais: nunca me passou pela cabeça que a mulher nua da estátua fosse Ana Plácido (diz-se que era avançada para aquela época de beijos castos, que fumava charutos e vestia calças, embora duvide que estivesse disposta a servir de modelo e a mostrar o corpinho como Deus a trouxe ao mundo). Não a conheci pessoalmente, mas bastam-me as fotografias. Embora vestida, consigo despi-la com o olhar, um olhar que não deixa de ser uma incursão na intimidade. E não há comparação possível: uma viola é uma viola e um armário é um armário.

Sejamos claros: não é a defesa da mulher independente que está em causa, como referem os moralistas de argumentação pífia. O que assusta é a confrangedora incapacidade que os impede de distinguir o erotismo da pornografia e os leva a enfiar no mesmo saco da apreciação estética a Vénus do Milo ou um qualquer Zé das Caldas.

Entretanto, depois de ter dito que a estátua é “feia” e de “mau gosto” – um direito que lhe assiste, partilhado também por alguns dos que se opõem a que a obra seja removida – Rui Moreira já recuou. A decisão foi revertida, embora admita que mais tarde possa ser reapreciada. O mesmo é dizer, não podemos dormir descansados. O ovo da serpente não foi enterrado (vale a pena lembrar que foi a partir da serpente, filmada no ovo e que a indiferença social deixou crescer, que nos anos 30 do século XX alguém de má memória se lembrou de retirar dos museus a «arte degenerada»).

"A Melhor Casta" (Alpiarça)
“A Melhor Casta” (Alpiarça)

Esta deriva moralista dos que parecem desconhecer que  na arte também existe uma estética do feio e dos que censuram o feio e o mal em nome do belo e do bem, não vai abrandar. Ou continuamos vigilantes, ou não será apenas a estátua de Camilo que nos podem subtrair do olhar. Outras correm o mesmo risco: a de Eça em Lisboa, “A Melhor Casta” em Alpiarça, a de Redol em Vila Franca de Xira, ou a de José Rodrigues que simboliza “Os Poetas”, em Barcelos.

A Arte, seja ela qual for, deve interpelar-nos mas não nos deve chocar. Já o mesmo não se poderá dizer da vulgaridade.

Contra o declínio da cultura clássica

Na estimulante entrevista que concedeu ao semanário Expresso, o filósofo alemão Peter Sloterdijk afirma:

“O meu pressuposto é que os seres humanos do futuro serão muito menos moldados pelas artes e pelas letras, como era habitual nos tempos da educação humanística, mas sobretudo pelos dispositivos do nosso novo meio ambiente digitalizado (…). A inclinação para a filosofia é — sempre foi — uma espécie de doença rara. E está ligada a uma alergia específica contra as explicações simples e as conversas repetitivas. A repetição é legítima, mas não pode substituir o esforço de pensar. No fundo, filosofa-se graças a uma condição alérgica contra tudo o que está automatizado — mental, emocional e politicamente. A proposição central e última (e primeira) da filosofia é: “Isto não pode ser assim tão simples.”

Jean-Léon Gérôme, “A Verdade saindo do poço”

E não pode ser assim tão simples porque o mundo e o pensamento são complexos. Ao pensamento repetitivo, previsível como o mecanismo da roda dentada, a filosofia deve contrapor, na busca incessante da verdade (Aletheia, entre os gregos) as aporias do debate de ideias, as categorias do pensamento, a fecundidade argumentativa, a substituição do agir mecânico pelo reflexivo. Neste tempo em que os poetas não passam de sonhadores desfasados das realidades terrenas e a filosofia é para muitos mera conversa fiada, tempo de utilitarismo, de modernidade cínica (Sloterdijk) ou de modernidade líquida (Bauman), de comportamentos fluidas que não convidam ao pensamento – o tempo da inteligência artificial, das notícias falsas e das mentiras transformadas em rotina no quotidiano – é reconfortante ler também A Utilidade do Inútil, do filósofo italiano e professor de literatura Nuccio Ordine: Continuar a ler →

Frantz, de François Ozon

 

Frantz (de François Ozon)

(depois de ver, no passado dia 10 de Janeiro, na RTP2, um filme belíssimo, que considero fazer parte dos filmes da minha vida)

Se há filmes – e o mesmo acontece com os livros – que têm o dom de nos agarrar logo de início, este é um deles, porque mergulha, com mestria, nas memórias e fantasmas da guerra. Um tempo em que se ama e que é o mesmo em que se morre. A guerra que um dia Paul Valéry definiu ironicamente como “um massacre entre pessoas que não se conhecem, para proveito de pessoas que se conhecem, mas não se massacram”.

Ozon conta-nos a história da frente para trás (que é também frente, a da batalha, onde descobrimos ter sido Adrien quem abateu Frantz, quando este apenas o olhava, desarmado, paralisado pelo medo, sem constituir qualquer ameaça). A mola do remorso que o impele a encontrar Anna, a noiva alemã de Frantz, e a visitar a campa onde este foi sepultado, revela-nos também uma verdadeira arqueologia do desconforto e do sofrimento psíquico. Um dia, porque o passado continuava a doer, rebentou o dique das emoções e ele contou-lhe a verdade.

A memória desse momento fatídico morde Adrien como um cão raivoso. E que dizer quando vemos Anna, mais tarde, a queimar no fogão de sala a carta que ele lhe manda – e na qual confessa aos pais de Frantz que foi ele que o matou – e a ler depois, aos sogros, o contrário daquilo que a carta dizia? Sim, às vezes mentir por amor é que é falar verdade. Às vezes, durante e depois do luto, é possível amar sem destilar vinganças, trocar o ódio pelo perdão e a compaixão.

Há uma espécie de monismo ideológico, de um pensamento mecanicista, previsível, segundo o qual uma guerra é sempre culpa do outro, do inimigo que não conhecemos, do que está no outro lado da barricada. Ozon procura (e consegue) subverter estes clichés: em qualquer guerra – e todas as guerras são absurdas, porque nelas só aparentemente há vencidos e vencedores – luta-se pelo mesmo em ambos os lados: pela vitória e pela sobrevivência, pela vontade de fragilizar ou eliminar o outro, para quem nós também somos “o outro” (vontade de poder, lhe chamou Nietzsche).

Frantz, de François Ozon (fotograma)Este filme de Ozon parece apontar para outro tipo de pensamento: já não o mecânico, mas o fragmentário, aquele que podemos encontrar, em doses mais ou menos generosas, em autores portugueses como Rui Nunes, Herberto Helder (onde é possível identificar caos e contínuo) e, sobretudo, em Maria Gabriela Llansol. Há mudanças subtis, imperceptíveis, a germinar todos os dias, à margem da contabilidade fria e calculista da História e do poder: será aquilo a que Llansol chama “a restante vida”; ou talvez, porque as utopias estão sempre a acontecer, a “comunidade que vem” de que fala Agamben. E aqui, estamos a falar de outra coisa: de pequenas erupções, que acontecem no mais recôndito do nosso ser, filiadas no domínio da ética e já não no da política.

Um filme casto. Só quase no final, na derradeira despedida de Anna e Adrien junto ao comboio, há o esboço de um beijo sempre reprimido. De um sobressalto. Naquele momento, ambos desejam que o tempo pare, para se despojarem de todos os artifícios do fingimento, lavarem a alma e serem autênticos e talvez felizes. Desejam suspender o tempo, porque o tempo, enquanto corria, suprimia inexoravelmente o prazer de estarem juntos.

 

Fotografia e censura: Mapplethorpe, Serralves e a liberdade artística

 

Mapplethorpe

“Que ninguém se iluda. Os cobardes não têm acesso à Beleza”

Rui Chafes – Entre o Céu e a Terra

De tempos a tempos rebenta a polémica sobre a censura às obras de arte. A que agora alimenta as labaredas da discórdia foi ateada pela exposição do fotógrafo norte-americano Robert Mapplethorpe em Serralves, o que mostra que a representação do prazer ou do desejo (que continua a ser predominantemente um olhar masculino de homens sobre mulheres, embora cada vez mais também de homens sobre homens) incomoda muita gente.

É dos livros e também é isso que nos ensina a experiência da vida: a censura a qualquer tipo de arte costuma preceder outras formas insidiosas de censura. Basta lembrar o que se passou com aquilo a que o nazismo chamava “arte degenerada”: foram mandadas retirar dos museus as obras de artistas da vanguarda alemã dos anos 20 e 30 e os livros “degenerados” passaram a alimentar as grandes fogueiras da intolerância. O termo degenerado abarcava, entre outros, os domínios da pintura, da escultura e da música, que os nazis queriam ver expurgada da africanização musical e até da influência do jazz.

No Portugal de Salazar as coisas não se passaram de forma muito diferente. O pequeno ditador santacombadense costumava dizer coisas do género: “politicamente só existe o que o público sabe que existe”, ou “o jornal é o alimento espiritual do povo e por isso deve ser fiscalizado, como todos os alimentos”[1]. Assim se explica a extensão dos atropelos censórios durante a sua governação: da imprensa ao cinema, do teatro à música e à literatura, nenhum domínio da informação e da criação artística era descurado pelo Estado Novo.

Triste é verificar que o chamado mundo livre está a ser atravessado por uma perigosa deriva moralista e puritana, que a censura não anda apenas de braço dado com as ditaduras, mas também marca presença nos chás dançantes e artísticos das democracias. Vejamos alguns exemplos recentes:

Thérèse-Dreaming-1938 (Balthus)
Thérèse-Dreaming-1938 (Balthus)

1 – Nos Estados Unidos, milhares de nova-iorquinos assinaram uma petição para que o pintor francês Balthus fosse retirado de uma exposição permanente a decorrer no Met – Museu Metropolitano de Arte. Motivo: as pessoas não estariam preparadas para apreciar um quadro que retratava “uma rapariga em pose sugestiva e revelando roupa interior”. O Museu recusou a chantagem e manteve o quadro em exposição. Ao que parece, não veio daí mal nenhum ao mundo.

2 – No Brasil também houve polémica da grossa em 2017, quando foi encerrada de forma prematura uma exposição sobre arte queer brasileira. Esse seria o rastilho para outras tensões artísticas, nomeadamente quando foi inaugurada em Porto Alegre a exposição Histórias da Sexualidade. Aqui não houve manifestações contra a exposição, mas contra a censura às artes, no caso concreto contra o facto de a entrada na exposição ser proibida a menores de 18 anos. A controversa decisão do Museu foi vista como uma cedência à pressão pública, que via na exposição uma ameaça à “família brasileira”[2].

3 – Por cá, tivemos há uns anos a apreensão de alguns livros que reproduziam na capa o quadro A Origem do Mundo, de Courbet, datado de 1866. Aconteceu na cidade de Braga, a “idolátrica” e “episcopal”, como lhe chamou um dia Luiz Pacheco. A PSP encheu-se de brios, irrompeu feira do livro adentro e confiscou vários exemplares. O quadro mostra-nos um close up, o grande plano realista de um sexo feminino.  Em nome de valores diferentes que cada um pode reclamar em democracia, devemos aceitar que uns se choquem com imagens como esta e outros não. Mas uma coisa é estarmos dispostos a respeitar a opinião dos outros; outra, bem diferente, é alguém, em nome desses outros, suprimir ou censurar aquilo a que também nos achamos com direito de fruir esteticamente. Ora o quadro até está exposto em Paris, no museu d’Orsay. Aquilo que lá se afigura como normal e pode ser visto por toda a gente, é por cá entendido como sendo pornografia mais grosseira. Aos que assim pensam, apetece dizer que deixem em paz os que não pensam como eles, e que a grande virtude não consiste em suprimir as tentações, mas em saber resistir-lhes…

4 – E para concluir estes exemplos, falemos de Espanha. Da Marina de Valência, onde se instalou recentemente a polémica por causa de uma exposição de esculturas metálicas da autoria de Antoni Miró. Para uns, trata-se simplesmente da recriação da história de etruscos e gregos, da exaltação do sexo divulgado em pranchas, de uma forma natural. Já outros tendem a ver nessa exposição uma invasão do erotismo ou até da pornografia no espaço público, por onde passa gente a pé ou de bicicleta, um lugar de lazer frequentado por todas as idades. Mais uma vez se extremam as opiniões sobre um trabalho que para uns tem dignidade para ser qualificado e visto como arte e para outros não é aceitável que esteja exposto no espaço público, onde as crianças, como é bom de ver, são o argumento que os aspirantes a censores esgrimem de forma recorrente. Ora isto levanta desde logo questões importantes: o estatuto de obra de arte retira-lhe, à partida, o eventual conteúdo pornográfico? Arte e pornografia são, ou não, coisas distintas? Esta obra pode ser vista por todos, sem reservas? Onde acaba o erotismo e começa a pornografia? Na cabeça de quem produz a obra (seja ela uma escultura, uma pintura, um livro, ou um filme), ou na cabeça da pessoa que a lê ou vê? Não assiste ao cidadão comum o direito de se sentir agredido por imagens como estas? E se outros apenas sentem nestas formas de expressão artística prazer e fruição estética, como proceder? Retirar ou manter as esculturas no espaço público?

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Antoni Miró (Escultura na Marina de Valência)

Regressemos a Serralves, a Mapplethorpe e a uma polémica que já motivou a demissão do director artístico João Ribas, depois da administração do Museu ter limitado a maiores de 18 anos uma parte da exposição e ter imposto que se retirassem algumas obras que considerou de conteúdo sexualmente explícito, como se uma imagem, depois de captada e fixada, pudesse ser definitivamente apagada, banida sem deixar rasto. Eis a prova provada de como às vezes a censura nos apresenta diferentes formas de condicionar o acesso às obras que considera incómodas: ora envereda pela restrição etária, ora procede à ocultação de conteúdos, ora cruza as duas decisões numa mesma exposição.

Sendo certo que a beleza depende sempre do juízo de quem observa – qualquer um de nós pode ver sublime onde outro só vê grotesco – é preciso denunciar os que não gostam que a obra de arte interrogue o mundo concreto em que vivemos. Ou os que, desavindos com a estética, tudo fazem para construir uma memória futura bacteriologicamente pura, rasurando a torto e a direito aquilo que não lhes agrado ou abala os alicerces do seu moralismo preconceituoso. Ao dar visibilidade ao corpo enquanto lugar matricial de transformação operada pela arte, ao homoerotismo, à cultura gay e a diferentes formas de transgressão sexual nas décadas de 70 e 80, Mapplethorpe teria sempre à perna os modernos inquisidores com complexos de Torquemada.

Para mal dos pecados dessa gente, há obras de arte que, ao contrário de outras, por nos vermos reflectidos nelas, resistem ao juízo moral e por isso se tornam intemporais. Se cabe ao futuro escolher a arte do nosso tempo, então relativamente à arte de Robert Mapplethorpe, porque interfere com o nosso presente, o futuro já lhe granjeou essa aura de perenidade, porque se trata de uma arte capaz de espelhar as nossas ambivalências e nos obriga a reflectir sobre conceitos, como os de beleza, pureza, ordem e caos. Porque, enfim, é uma arte que ultrapassa o efémero a que se opõe.

Tirésias, o profeta de Tebas que era cego, confessa no Rei-Édipo que o saber pode ser uma coisa terrível quando de nada serve a quem o detém. Assim penso dos que colocam objecções à leitura que a arte faz do seu tempo; dos que não entendem que os limites éticos da arte só podem ser definidos por cada artista; dos que, enfim, se estão nas tintas para tentar compreender como é que a arte, que aparentemente não tem qualquer utilidade, pode ser tão decisiva e essencial para as nossas vidas.


[1] Entrevista de António Ferro a Oliveira Salazar, in Palavras no Tempo (vol.1. Política), Edição Diário de Notícias/Imprensa-Nacional-Casa da Moeda, 1990, p. 59.

[2] Ípsilon [suplemento do Público], 05.01.2018.

Do Paleo-Cartaz ao Cartaz Camaleónico: breve história da comunicação visual

Cartaz camaleónicoQuatro anos depois de nos ter brindado com Comunicação Visual, Design e Publicidade, Francisco Mesquita publica agora um novo trabalho: Do Paleo-Cartaz ao Cartaz Camaleónico: Design, Criatividade, Inovação e Tecnologia. Em qualquer dos livros encontramos áreas disciplinares que o autor bem conhece e nas quais se especializou ao longo dos anos. Doutorado em Engenharia Têxtil, com um mestrado em Design e Marketing e licenciatura em Engenharia Publicitária, este professor da Universidade Fernando Pessoa move-se com natural à-vontade nestes domínios específicos do saber.

Vivemos na civilização da imagem, em que o cartaz, meio de comunicação por excelência, ocupa um lugar especial enquanto elemento gráfico. Na base deste novo trabalho, onde se cruzam áreas distintas como o Design, a Poesia e a Tecnologia, está a comunicação visual, nomeadamente a que irradia do cartaz. Falar de tecnologia, no caso em apreço, tem a ver com a “utilização de pigmentos reativos a determinados impulsos ambientais, produtos que se inserem nos chamados materiais inteligentes”. São estes “materiais inteligentes” que ajudam a diferenciar o cartaz camaleónico – que muda de cor mediante determinadas condições ambientais – de todos os que o precederam. Esse salto qualitativo reside na capacidade que evidencia para “mudar a mensagem que emite durante o tempo de exposição”.[1]

Nesta obra de carácter eminentemente pedagógico o leitor viaja, como uma fita no tempo, pela história do cartaz desde a antiguidade aos nossos dias. O livro realça os contributos fundamentais e decisivos para o desenvolvimento do cartaz moderno, convocando grandes cartazistas como Jules Chéret, Eugène Grasset, Toulouse-Lautrec ou Alphonse Mucha (nome cimeiro do movimento Arte Nova) entre outros.

Já na parte final do livro, é o estudo aprofundado sobre o cartaz camaleónico que deixa marcas mais impressivas, nomeadamente quando aborda as várias questões que o mesmo suscita, os campos de intervenção que nele desaguam ou para ele convergem, ou até á forma como esses campos se imbricam, para lá da dimensão plástica do cartaz propriamente dito.

Anota o autor, referindo-se às condições de emergência do cartaz moderno em finais do século XIX, que ele viria a atingir nas décadas seguintes “um protagonismo de visibilidade que apenas a televisão (meados do século XX) e mais tarde a internet (finais do século XX) tentaram ofuscar”.[2] Ora talvez se possa dizer, com mais propriedade, que a televisão e a internet, considerando o poder que irradiam, se perfilaram como uma ameaça ao cartaz. Na verdade, o que a história dos media nos ensina é que os diferentes meios de comunicação são mais complementares que conflituantes.

Não é de hoje, nem de ontem, a resistência ao que é novo e inovador. Vale a pena lembrar que o aparecimento da escrita não se fez sem inquietação. Enquanto representação do saber, ela afectou profundamente o mundo grego, a sua filosofia e a sua cultura. Por isso assistimos, com Sócrates, à condenação da escrita, por recear que ela acabasse de vez com o ideal socrático da “palavra plena”. Mais tarde, com o livro impresso, aconteceu a mesma coisa. Quando apareceu, gerou à sua volta um ambiente de grande euforia. Primeiro médium de massas nascido da impressão, acabaria por tornar obsoletos os anteriores livros manuscritos. Acontece que a introdução do livro no ensino foi ocasião de grande escândalo. Argumentava-se que o livro não podia ter a autoridade dos mestres, sobretudo quando estes falavam directamente com os alunos.

A seguir ao livro seria o audiovisual a ficar sob suspeita. A eficácia da imagem tudo parecia querer cilindrar, conferindo ao real uma autenticidade nova que o carácter polissémico e ambíguo da palavra impressa não conseguia transmitir. Mas o que hoje sabemos é que o futuro do livro impresso não está assim tão ameaçado pela civilização da imagem. Para sobreviver, o livro foi capaz de se adaptar, substituindo a homogeneidade das folhas sempre iguais – em resultado da repetibilidade mecânica – por uma forma mais atraente de combinar a imagem gráfica com o texto. O livro digital aí está para nos demonstrar essa capacidade de adaptação: também o podemos folhear, fazer voltar atrás, ou mesmo, com a introdução de sons e imagens, alargar as nossas capacidades de compreensão e memorização, ao apelar a vários sentidos em simultâneo. A obra do historiador Georges Duby, O Tempo das Catedrais, foi uma das primeiras a ser transposta para documento audiovisual. Um êxito retumbante, já que a câmara dava a ver as obras de arte de ângulos e planos inteiramente novos, que o texto impresso jamais conseguiria descrever. Também a música de acompanhamento, produzida na época de construção das catedrais, transmitia uma envolvência que nenhum silêncio de leitura pode dar.

Sabemos hoje que o livro soube resistir ao audiovisual, a imprensa à rádio, a rádio à televisão e ao cinema. Tudo leva, pois, a crer que também o cartaz saberá resistir à televisão e à internet. Como refere Francisco Mesquita, “ainda hoje o cartaz continua muito presente. As ruas, avenidas e praças das nossas grandes cidades espelham bem a importância do grande cartaz no espaço público”. E quando aborda o cartaz hodierno, acrescenta: “o cartaz, que com a banalização da televisão e mais recentemente da internet parecia estar em declínio, surge aqui em toda a sua forma e esplendor”.[3]

O cartaz está vivo e recomenda-se. Razão para falarmos daquele que muitos consideram ser o pai do cartaz moderno: Jules Chéret (1836-1932). Não deixando de conferir à imagem um papel central no cartaz, Chéret acreditava que ela era indesligável do texto, que funcionaria como uma espécie de chave que a decifrava. Mas outros pintores dariam igualmente contributos relevantes para o desenvolvimento do cartaz. É o caso de Toulouse-Lautrec, que não deixando de valorizar o binómio imagem-texto, “conferiu ao cartaz uma função narrativa imediata e metafórica”.[4]

La Goulue
Toulouse-Lautrec (Moulin Rouge- La Goulue, 1891)

Sobre o seu primeiro cartaz, disse Toulouse-Lautrec: “Diverti-me imenso. Senti uma sensação nova para mim, de autoridade sobre a oficina inteira”. Curiosamente, não seria esse primeiro cartaz, mas um dos primeiros, a constituir um verdadeiro sucesso. Chéret tinha entregue um projecto para o Moulin Rouge, inaugurado a 5 de Outubro de 1889. Toulouse-Lautrec avança com um projecto alternativo, de sua autoria, que se distingue claramente dos cartazes anteriores através do “M” maiúsculo que abarca uma tripla repetição do nome em letras vermelhas”. Para além deste grafismo, o pintor e litógrafo francês fez avançar para o primeiro plano do cartaz duas estrelas do Moulin Rouge. Foi tudo isso que conferiu a esta composição uma inovação radical: “o escalonamento de três silhuetas estilizadas que produziam, ainda mais do que a pintura, um redemoinho visual que arrasta o observador consigo”.[5]

Alude Francisco Mesquita, abonando a favor da inovação em Toulouse Lautrec, ao “tratamento gráfico com fundo de silhuetas negras para destacar um plano intermédio, influências claras da xilogravura japonesa”. E acrescenta: “Os cartazes de Lautrec assumem quase que uma perspectiva da arte do retrato, na medida em que a imagem é apresentada em várias camadas, umas mais próximas, outras mais afastadas”.[6]Ora são precisamente essas características de distanciamento e aproximação que encontramos bem patentes no cartaz de Lautrec acima referenciado – uma litografia a quatro cores – que tem por título Moulin Rouge – La Goulue (1891). Quanto às influências da xilogravura japonesa nos pintores franceses, refira-se que elas tiveram impacto não apenas nos impressionistas mas também em tendências artísticas posteriores. Essa arte, que ficou conhecida pelo nome de japonismo, contaminou não apenas a pintura mas também a arquitectura e as artes decorativas na Europa e nos Estados Unidos da América, em finais do século XIX e inícios do século XX.

Interessante é também a abordagem que o autor faz ao factores estéticos (para além dos tecnológicos, socioeconómicos e socioculturais) que determinaram o aparecimento do cartaz moderno. São arrolados autores como Monet (impressionista) Van Gogh (pós-impressionista) ou Seurat (pontilhista), para nos dizer que uma exposição de gravuras japonesas em Paris viria a operar neles, a partir de 1867, uma renovação de conceitos e opções estéticas até então marcadamente realistas, e que passaram a contemplar uma maior subjectividade. Todos eles encontraram na arte japonesa a possibilidade de utilizar novas formas, motivos ou sugestões. Algumas características do movimento Arte Nova não seriam inteligíveis sem a alusão aos modelos japoneses.

É conhecida, nas primeiras décadas do século XX, a estreita cumplicidade do cartaz moderno com a pintura. Como é sabido, a história da arte é a história da cor, pois até as pinturas das cavernas tinham cores. Mas não são apenas os pintores que concorrem para o desenvolvimento do cartaz moderno nos seus primórdios. Também os movimentos artísticos são importantes. É o caso da Arte Nova, sobretudo pelo facto “dos artistas publicitários serem também artistas pintores”.[7]O esteticismo teve influência na Arte Nova, através do uso de motivos retirados da Natureza, sendo que a partir de finais do século XIX falar de esteticismo passa a ser o mesmo que falar de “arte pela arte”: uma teoria que postula a autonomia da arte, a noção de que esta deve ter como objectivo proporcionar prazer estético, alheando-se de quaisquer outros fins ou valores. Influência decisiva no cartaz teve também a Stijl, com a sua relação ao suprematismo de Malevitch. E a Bauhaus, até se chegar à utilização de técnicas fotográficas, com os Estados Unidos a afirmarem o seu pioneirismo. Todos estes pintores ou movimentos artísticos influenciaram as diferentes expressões visuais do cartaz.

As condições para a emergência do cartaz digital surgem nos anos 90, coincidindo com o aparecimento do computador pessoal, com a miscigenação das imagens e com o esbatimento das diferenças entre fotografia, ilustração e pintura. Assim como o computador, a internet e as redes sociais protagonizam uma verdadeira revolução digital e introduzem alterações profundas na sociedade actual, também o cartaz sofre alterações profundas, desdobrando-se a partir de então em formatos distintos. É o tempo dos aparelhos digitais, que com a sua mobilidade transformam qualquer lugar num posto de trabalho e fazem de todo o tempo um tempo de trabalho. Para utilizar as palavras de Byung-Chul Han, entramos na era em que se assiste à formação de uma nova “massa”, a do “enxame digital”, muito diferente das “massas clássicas” estudadas por Marx ou Elias Canetti.[8]

O momento de transição do cartaz convencional – onde não deve incluir-se o cartaz digital interactivo – para o cartaz camaleónico, assinala uma verdadeira ruptura. No cartaz convencional, quaisquer que sejam os seus suportes e independentemente das evoluções gráficas ou cromáticas, o que temos é apenas uma única mensagem disponível para o receptor durante o seu tempo de vida.

O livro fecha com uma abordagem do cartaz camaleónico, que o autor caracteriza como “um trabalho de cruzamento entre várias áreas, que tem na utilização dos pigmentos “inteligentes” o factor de diferenciação e de inovação, na medida em que eles permitem que a obra possa emitir diferentes mensagens num certo período de tempo”.[9] São, pois, as características mutantes destes pigmentos – activados por uma fonte de calor ou por raios UV – que abrem caminho a um cartaz verdadeiramente revolucionário e de tipo novo, ao transmitir aos seus destinatários não uma, mas várias mensagens.

É muito curiosa a forma como Francisco Mesquita nos dá a ver, no seu projecto de cariz experimental, esse desdobramento da mensagem publicitária, recorrendo a uma fonte de calor “artificial” (secadores de cabelo) para criar obras visuais com mensagens poéticas de autores como Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade ou Corsino Fortes. O poeta dos heterónimos assenta que nem uma luva no que se pretende transmitir, na medida em que é possível estabelecer uma analogia entre o desdobramento do “eu” do poeta em várias personalidades e o desdobramento de uma mensagem publicitária em outras mensagens carregadas de diferentes sentidos. Estamos a falar de uma “imagem múltipla”, ou mutante, que se move em diferentes lugares do espaço gráfico.

Lisboa revisitada
Lisboa Revisitada, de Álvaro de Campos (extracto)

A multiplicidade de significados que é possível apreender ao visualizar o cartaz camaleónico é comparável à ambiguidade de sentimentos e estados de alma que se desprendem destes versos do engenheiro naval Álvaro de Campos, no poema Ao Volante do Chevrolet pela Estrada de Sintra, que nos mostra a inconstância do poeta que não se sente bem em sítio nenhum: “vou passar a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa / Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa”. O mesmo acontece em Lisboa Revisitada, um dos poemas de Álvaro de Campos seleccionados para ilustrar o trabalho sobre o cartaz camaleónico: assim como o sujeito poético já não reconhece aquela Lisboa que tem diante dos olhos e anseia pelo retorno mítico à Lisboa da sua infância, também no cartaz camaleónico o receptor deixa de ter acesso à imagem primitiva, entretanto alterada pelos “pigmentos inteligentes”.

O que o poeta e o destinatário da mensagem observam já não é a mesma coisa que tinham visto antes: assistem à metamorfose do real que têm diante dos olhos (e o papel da visão é essencial enquanto órgão de testemunho poético e de meditação do mundo). Dir-se-á, então, que Álvaro de Campos olha para uma Lisboa transfigurada do mesmo modo que um transeunte vê transformar-se, à sua frente, a imagem publicitária que o cartaz camaleónico difunde.

Eis um livro sedutor e que vivamente se recomenda, não apenas para os interessados na história da evolução do cartaz e da comunicação visual, mas também para os amantes das artes e dos movimentos artísticos em geral.


[1]Francisco Mesquita, Do Paleo-Cartaz ao Cartaz Camaleónico: Design, Criatividade, Inovação e Tecnologia, editora Adverte (1.ª edição), 2018, p. 13.

[2]Idem, p. 33.

[3]Idem, pp. 33 e 55-56.

[4]Idem, p. 40.

[5]Henri de Toulouse-Lautrec. Vida e Obra. Miniguia de Arte, 2001, p. 42.

[6]Francisco Mesquita, obra citada, p. 41.

[7]Idem, p. 36.

[8]Byung-Chul Han, No Enxame: reflexões sobre o digital, Lisboa, Relógio D’Água, 2016.

[9]Francisco Mesquita, obra citada, p. 61.

Sobre o filme “A Vida de Adèle”

A vida de AdèleHá dias revi, creio que pela terceira vez em televisão, o belíssimo filme “A Vida de Adèle”. Kechiche, o realizador franco-tunisino que também nos brindou com “O Segredo de um Cuscuz”, concebeu este filme a partir da adaptação cinematográfica da novela gráfica “O amarelo é uma cor quente”.

Adèle, nos seus esplendorosos 15 anos, é uma estudante de literatura que namora com rapazes. Pressionada pelas amigas a ter uma primeira experiência amorosa com um deles, o resultado não a entusiasma. Após um beijo ocasional trocado com uma amiga de estudo, tudo muda quando o seu olhar de rio manso se cruza com o de Emma, a rapariga de cabelo azul, universitária de belas-artes que vive a sua sexualidade de forma descomplexada. Assim começa uma história de encontros, de amor e descobertas.

Sublime história de amor entre duas mulheres, o filme é também um murro no estômago dos preconceitos. Filme avassalador, onde o amor está para lá do género e se passeia de braço dado com referências artísticas, filosóficas e até gastronómicas. Há alusões a Picasso, comparações sobre obscuridade e luz em Egon Schiele e Gustav Klimt, à mistura com alusões filosóficas a Sartre, ao escritor “engagé” e à célebre máxima de que a existência precede a essência (Adèle dirá metaforicamente a Emma, que a ajudava nos caminhos da filosofia, que o orgasmo precede a essência).

Um filme a que não se resiste – mesmo que já o tenhamos visto antes – que se nos cola à pele e dificilmente se esquece. A história de uma atracção fatal e instintiva, a que é impossível renunciar. Uma relação amorosa de intimidades sufocantes, com altos e baixos, como o são todas as relações amorosas. A vida de Adèle é o amor em estado puro. Está lá tudo aquilo com que a vida nos brinda: amor e ciúme, sedução e manipulação, prazer e sofrimento, aproximação e ruptura, alegria e choro convulso.

A realidade nua e crua vista a partir da ficção. Um hino de amor à liberdade. Um filme soberbo, porque autêntico. Do nosso tempo, porque oportuno e desafiante.

O Balouço de Fragonard, num poema de Jorge de Sena

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Fragonard, O baloiço, 1767

Analisemos a pintura, para depois falar do poema. O que vemos? Uma jovem que cruza os ares, sentada num baloiço, cena que corresponde à parte iluminada do quadro. Um sapato que se desprende do pé e que voa. Um homem mais velho, à direita (o marido?) que a empurra. Um jovem, à esquerda, protegido por um arbusto, que a contempla. O cenário completa-se com uma vegetação abundante, duas estátuas e um muro. O quadro mostra-nos como a pintura, estática por natureza, é capaz de nos transmitir a ideia de movimento. Através dele, o pintor dá-nos a ver o espírito libertino da aristocracia parisiense da segunda metade do século XVIII. Uma pintura narrativa, que assim convida à efabulação. Veremos, já a seguir, como esta pintura despertou em Jorge de Sena a imaginação do voyeur.

Este poema de Jorge de Sena mostra a rara beleza do diálogo íntimo que ele estabelece com o quadro de Fragonard. Aqui, é o sujeito poético que se fixa na figura feminina, acompanhando o movimento pendular do próprio baloiço para descrever a forma sensual como ela baloiça e se descontrai para separar as pernas. Neste belíssimo poema até a Natureza se antropomorfiza e humaniza. Basta citar os versos: “entre arvoredo que tremula”, “Que estátuas e que muros se balouçam”, ou até “do palpitar de entranhas na folhagem”. O poema projecta desejos e sentimentos tipicamente humanos naquilo que no quadro pertence ao domínio do inanimado.

Por outro lado, o poema explicita o erotismo que na pintura apenas se insinua. Assim acontece no jogo (prazenteiro) de esconder e mostrar. A efabulação prolonga, no poema, o jogo erótico mais ou menos subliminar que podemos entrever nesta pintura. Estamos, claro está, a falar de uma interpretação pessoal do quadro de Fragonard. Pessoal, mas magistral na forma como consegue o casamento feliz entre o poema e a pintura que o precede. Mais do que descrever o quadro, o poema recria-o, especula para além do que ele dá a ver. Podemos aqui falar de pintura enquanto poesia muda e de poesia enquanto pintura que fala. Jorge de Sena apropria-se das figuras representadas no quadro e transfigura-as, faz delas personagens de um enredo. O poema amplifica o tema do quadro, que assim extravasa das próprias molduras.

(Consultas: Jorge Fazenda Lourenço, A Poesia de Jorge de Sena. Testemunho, Metamorfose, Peregrinação; Alexandre Dias Pinto, “Movimento Pendular: o Balouço de Fragonard, de Jorge de Sena”).


Como balouça pelos ares no espaço
entre arvoredo que tremula e saias
que lânguidas esvoaçam indiscretas!
Que pernas se entrevêem, e que mais
não se vê o que indiscreto se reclina
no gozo de escondido se mostrar!
Que olhar e que sapato pelos ares,
na luz difusa como névoa ardente
do palpitar de entranhas na folhagem!
Como um jardim se emprenha de volúpia,
torcendo-se nos ramos e nos gestos,
nos dedos que se afilam, e nas sombras!
Que roupas se demoram e constrangem
o sexo e os seios que avolumam presos,
e adivinhados na malícia tensa!
Que estátuas e que muros se balouçam
nessa vertigem de que as cordas são
tão córnea a graça de um feliz marido!
Como balouça, como adeja, como
é galanteio o gesto com que, obsceno,
o amante se deleita olhando apenas!
Como ele a despe e como ela resiste
no olhar que pousa enviesado e arguto
sabendo quantas rendas a rasgar!
Como do mundo nada importa mais!

Assis, 8/4/1961

Jorge de Sena, Antologia Poética

 

Courbet e A Origem do Mundo: censura, erotismo, pornografia

Espreitar maniacamente os outros sempre foi uma tentação dos moralistas mais tacanhos, para os quais qualquer alusão à sexualidade é “pornografia”. E a hipocrisia também não costuma andar arredada de tais gestos, como nos mostra Jorge de Sena na descrição desta breve mas deliciosa história: um cavalheiro, pai de família, que tinha várias filhas e vivia numa cidade de província, foi um dia queixar-se à Câmara contra a construção de um urinol no extremo oposto da praça pública onde estava a sua casa. O presidente da Câmara observou-lhe que era absurda a queixa, dado que, sendo a praça muito grande, a casa dele estava muito longe do urinol. Ao que ele respondeu dignamente: – Mas é que as minhas filhas usam o binóculo (1).

Vem isto a propósito da recente apreensão de alguns livros que reproduziam na capa o quadro A Origem do Mundo, de Courbet. Aconteceu na cidade de Braga, a “idolátrica” e “episcopal”, como lhe chamou um dia Luís Pacheco. A PSP encheu-se de brios, irrompeu feira do livro adentro e confiscou vários exemplares. A pintura é de 1866, o que prova que alguns mortos-vivos do século XIX ainda incomodam alguns vivos-mortos do século XXI, sempre dispostos a praticar atávicos actos censórios. Apetece dizer que não defendem “os bons costumes”, ou a “ordem pública” – como gostam de referir – mas o próprio passado que são.

Antes de avançar, convém referir o seguinte: a simples representação do nu na pintura, na fotografia, no desenho, ou noutras artes, como o teatro ou o cinema, tem sido ao longo do tempo objecto da maior controvérsia. Neste caso concreto, o quadro mostra-nos um close up, o grande plano realista de um sexo feminino. Isto, por si, levanta desde logo questões importantes: o estatuto de obra de arte retira-lhe, à partida, o eventual conteúdo pornográfico? Essa obra pode ser vista sem reservas? Onde acaba o erotismo e começa a pornografia? Na cabeça de quem produz a obra (seja ela uma pintura, um livro, ou um filme), ou na cabeça da pessoa que a lê ou vê? Ou quando o que se produz é anti-estético e rejeita o envolvimento da inteligência? Não assiste ao cidadão comum o direito de se sentir agredido por uma imagem como esta?

Parece-me que a cultura, a abordagem que cada um faz do que deve ser o objecto artístico e a própria sensibilidade individual são decisivas na abordagem desta matéria. Como decisiva é a noção de liberdade que lhe é inerente. Quem não se choca com imagens como esta, deve no entanto admitir que em democracia as pessoas podem reclamar valores diferentes, como forma de recusar a unificação das consciências. Trata-se de exercitar a tolerância, que para Voltaire significava podermos estar totalmente em desacordo com a opinião de outrem e, ao mesmo tempo, dispostos a combater pelo direito do outro a perfilhar essa opinião. Cumpre a uma sociedade verdadeiramente pluralista garantir que nenhum grupo infrinja as liberdades dos outros.

Como refere Miguel Sousa Tavares no Expresso desta semana, a liberdade não consiste em fazer tudo o que se quer. Pois não, acrescento eu. Mas uma coisa é estarmos dispostos a respeitar a opinião dos outros; outra, bem diferente, é alguém, em nome desses outros, suprimir ou censurar aquilo a que também nos achamos com direito de fruir esteticamente. Ora o quadro até está exposto em Paris, no museu d’Orsay. Aquilo que lá se afigura como normal e pode ser visto por toda a gente, é por cá entendido como sendo pornografia mais grosseira.

Sejamos claros: muito do que aqui está em causa passa pelo uso dos tais binóculos a que recorriam as meninas de que falava Jorge de Sena. Abro a televisão e deparo com um filme que me choca? É tão fácil mudar de canal… Passeio na feira do livro e deparo com a capa de um livro que me perturba? Viro a cara e passo à frente… Fará sentido que qualquer coisa que me escandaliza tenha de ser imediatamente suprimida, sem levar em conta a opinião dos outros? Quantos pais dos que se queixaram à PSP não farão também uso dos binóculos? Quantos deles se preocupam, verdadeiramente, com o que por aí circula na Internet ou até pendurado em alguns quiosques de jornais e revistas? Se calhar, em vez de falarmos de “bons costumes” dominantes, devemos antes falar de hipocrisia dominante. Que nome dar ao que se passa em certos Estados americanos, onde é crime que marido e esposa pratiquem, na intimidade conjugal, actos sexuais que se afastem da posição aprovada por teólogos e moralistas para fins reprodutivos?…

Sempre que no passado se agitou o papão da pornografia, isso correspondeu a inconfessados desejos de restrição das liberdades e abuso das regras normais de policiamento de uma sociedade. Já lá vai o tempo – embora ainda haja quem se lembre – em que, no Portugal de Salazar, um simples beijo mais apaixonado num filme era suficiente para que a censura dissesse: “corta!”. Livro que ousasse incluir nus de pintores famosos (Rembrandt, Velásquez, Goya ou Picasso) era coisa que os censores não perdoavam, considerando essas obras-primas um produto de mentes ordinárias. Em 1966, ano em que foi publicada a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, escritores e poetas da estirpe de Natália Correia, Ary dos Santos, Mário Cesariny de Vasconcelos e Herberto Hélder, para só citar alguns dos mais conceituados, foram acusados de pornografia, obscenidade e atentado à moral pública e obrigados a prestar contas à Justiça. É a esse tempo que se quer regressar?

Aos que gostam de subtrair aos outros o prazer que a si incomoda, apetece dizer que não metam o nariz na vida alheia, que deixem em paz os que não pensam como eles, e que a grande virtude não consiste em suprimir as tentações, mas em saber resistir-lhes…


(1) Jorge de Sena, Dialécticas Teóricas da Literatura, Lisboa, Edições 70, p. 284.