Da vida dos livros e de um alfarrabista “pas comme les autres”

Alfarrabista Manuseado

1 – Há dias assim, raros, como o de hoje, em que de forma imprevista nos chega a casa um livro que não pedimos, mas que desejávamos. O livro é Os Futuristas Russos e falei dele no último texto que coloquei no blogue e disponibilizei no Facebook, onde desvendei as razões pelas quais não o adquiri em leilão. A prenda, de todo inesperada, que me deixou sem palavras, foi remetida por João Méndez Fernandes, alfarrabista de MANUSEADO. A sua área de negócio é precisamente a comercialização de livros manuseados, expressão bem mais feliz que o vulgar termo “usados”, que atribui aos livros o sentido de gastos, delidos pela corrosão do tempo, mercadoria sem interesse. No seu mural pode ler-se: “amamos o antigo e o manuseado, como se dessa forma prolongássemos no tempo a memória do seu primeiro manuseador”.

João Mendez FernandesEm João Méndez Fernandes há consciência do que vale um livro, mesmo que já manuseado. E há princípios. Antes desta preciosa oferta – que para mim tem sobretudo valor de signo, mais que valor de uso – já eu tinha dado conta estar na presença de uma pessoa diferente, na forma como se relaciona com os seus potenciais clientes. Na verdade, não é vulgar encontrarmos nas redes sociais alfarrabistas ou vendedores de livros que passem recibo sem o pedirmos. Ora João Méndez Fernandes faz isso. E faz mais: dá a conhecer o dia da remessa dos livros e até acrescenta fotografia da encomenda. E mostra uma sensibilidade fora do comum, patente na generosidade da oferta que me fez, acompanhada de um cartão pessoal onde escreveu para quem nem sequer conhece pessoalmente: “Pelo seu texto Memória de João Tomaz Parreira, o amigo que não conheci. Boas leituras”. Ora isto quer dizer que João Méndez Fernandes, além de alfarrabista, procura ser um leitor atento de quem lhe compra livros. Leu esse meu texto, onde a dado passo manifesto interesse no livro Os Futuristas Russos e explicito as razões de o não ter licitado. Leu, interiorizou e ofereceu-mo, naquele verdadeiro sentido de partilha de quem dá – dando-se.

Fotografia da encomenda

Registo com agrado este gesto tão revelador de desprendimento material e nobreza de carácter. Gesto raro de encontrar nesta selva digital onde as fraudes são mais que muitas. Há quem diga haver por aí licitantes fantasmas, uma espécie de lebres que apenas servem para fazer aumentar o preço dos livros; e há quem afirme ser possível licitar pelo preço mais elevado, proceder à transferência do valor do livro e acabar por não o receber porque, entretanto, um telefonema de última hora ou uma mensagem privada o desviaram da rota com a proposta de um valor mais elevado. O dinheiro adiantado até pode ser devolvido, mas fica a pairar a fraude no processo de licitação.

Com MANUSEADO estamos nos antípodas deste procedimento. Há uma relação humanizada com o cliente. Serviço de cinco estrelas. Há rapidez no envio, livros em excelente estado, uma boa relação preço-qualidade (livros a preço justo) e uma impecável apresentação das encomendas. Há uma página honrada, responsabilidade e simpatia. Recomendo vivamente, mesmo correndo o risco de doravante esgrimir argumentos com um rol de licitantes bem mais alargado.

2 – O fenómeno livreiro é por demais conhecido: há cada vez mais livrarias a fechar portas. Umas porque têm cada vez menos clientes. Outras porque não aguentam a subida em flecha do preço das rendas, em resultado da pressão do turismo. Outras ainda, apanhadas no vórtice de uma concentração crescente e na concorrência desleal dos grandes grupos editoriais. Como a água que é estancada num lado e irrompe por outros, também hoje há livros a irromper por todos os lados, à venda nos locais mais improváveis. Além das livrarias, podemos comprá-los nas feiras do livro e nas feiras de antiguidades, nas estações de caminho de ferro e nos supermercados, nos correios, nos quiosques de venda de jornais (onde rivalizam com colecções de copos e faqueiros) e nas redes sociais. Noutros tempos, para mostrar a efemeridade das notícias de imprensa, dizia-se que elas morriam no momento em que eram publicadas. As folhas de jornal serviam para embrulhar peixe. Hoje, “embrulham” colecções de livros.

Falta-nos um livro da colecção e temos que o conseguir a qualquer preço. Pouco interessa saber quem é o autor, ou qual o tema central da obra. Importante é ter a colecção completa. Uns metros de estante sempre dão mais lustro à biblioteca caseira. Quem compra “tem a convicção de que alguém selecionou o melhor para ele. Daí que, se lhe falta o número 7, vai a correr adquiri-lo, mesmo que não saiba mais do que isto: é o 7 que me falta”.[1]

Uns não compram livros, com a alegação de que está tudo na Internet. Desvalorizam o livro impresso, as coisas físicas e palpáveis, preferindo o que circula no éter, que é bem mais perecível do que se imagina. Na verdade, de tudo aquilo que se guarda ou arquiva, “não é a mesma coisa o analógico e o digital, o real e o virtual (…). As ameaças à memória, a destruição acelerada dos sinais físicos (…) a pseudomodernidade que reduz tudo o que existe ao que está acessível a um motor de busca são uma praga dos nossos dias”. [2]

Quanto aos que compram livros, às vezes de forma compulsiva, e revestem as paredes de casa com eles, não é garantido que os leiam. Pelo menos não os lêem todos, embora daí não venha mal ao mundo. Importante é não apenas lê-los, mas conviver com eles, saber que está ali o gosto da novidade, o fascínio das ideias escondidas. É também esse o espírito do colecionador: o prazer de folhear, de encontrar uma frase que sublinha ou anota, de apreciar os cuidados postos na edição, de ler o índice, de lhe sentir o cheiro, o fascínio pelo objecto físico, coisa diferente daquilo que é o prazer de ler. Como dizia o Padre António Vieira, o livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive. De certo modo, os livros que temos connosco – os comprados e os oferecidos – dão de nós um retrato, uma autobiografia, mesmo que algo distorcida, do que também somos, porque sem o gosto da leitura dificilmente se forma um pensamento crítico.

A esse propósito, vale a pena recordar o que disse Umberto Eco: “há por aí muita gente estúpida que quando entra no meu apartamento exclama: Oh, tantos livros! Leu-os todos?” Pergunta a que o que o autor de O Nome da Rosa responde: “Há três respostas. A primeira é: Li muitos mais. A segunda é: Não li nenhum, senão porque os guardaria? E a terceira é: Não, mas tenho de os ler na próxima semana. Uma biblioteca não é um repositório dos livros que já lemos. É também o lugar onde guardamos os livros que iremos ler.[3]

Eis como ler pode ser uma outra forma de subir na vida, num tempo em que o capitalismo transforma a cultura em comércio e só parece ter valor aquilo que é convertível em dinheiro.


 

[1] Eduardo Prado Coelho, “Os Brindes”, Público, 23.02.2004.

[2] José Pacheco Pereira, “Para que é preciso guardar esse papel? Está tudo na Internet… Não. Não está e não é a mesma coisa”, Público, 20.01.208.

[3] Luciana Leiderfarb, “Umberto Eco. O regresso do grande conspirador” [entrevista], Revista do Expresso, edição 2216, 18.04.2015, p. 28.

Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto

Sete dias, sete livros (7)

Sétimo dia, sétimo livro de um desafio lançado por Maria Pereira Alves: Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, Edições Afrodite, 1975.

Peregrinação1Quantos portugueses já leram a Peregrinação? Certamente muito poucos. Bastaria um inquérito para termos resultados pouco animadores. Por mim, confesso: também estaria no rol dos que ignoram esta obra de peripécias tão empolgantes, a que Aquilino Ribeiro chamou “formoso livro de aventuras, como não há segundo na língua portuguesa”, se não tivesse beneficiado da inteira amizade de quem um dia me despertou os sentidos e iluminou o caminho para tão fascinante aventura.

A vida e a obra de Fernão Mendes Pinto continuam envoltas em mistério. Uns dizem que nasceu em Montemor-o-Velho, filho de gente pobre. Outros adiantam que nasceu no seio de gente nobre e que era natural de Almada. Já quanto à Peregrinação, livro de viagens escrito na segunda metade de Quinhentos, há quem defenda que a versão que hoje conhecemos não é a original: depois de passar pelos filtros do Santo Ofício e do Ordinário (Igreja), viria a encalhar durante dez anos no Desembargo do Paço. A publicação seria finalmente aprovada em 1613, embora se desconheçam as alterações dos censores ao texto inicial.[1] Poucas dúvidas restam de que a obra foi “limada” ou “arranjada” antes de ser tornada pública.

Numa narrativa onde se entrelaçam o romanesco e o maravilhoso, o que não tem faltado por aí são as almas de S. Tomé deste mundo (ver para crer, pois claro!) a agitar a estafada expressão: “Fernão Mentes? Minto”. Ora é preciso dizer que se alguém mentiu foi a censura religiosa do século XVII, que não deixou de retocar, deturpar ou até mutilar a Peregrinação. As aventuras e desventuras de quem fugia da fome metropolitana, de quem era capaz de sulcar os mares e mais tarde narrar a verdade dos traficantes, dos fanáticos do catolicismo, os medos e a miséria, e as diferentes artimanhas de que os homens do povo se serviam para salvar a pele, não podiam agradar ao poder constituído no tempo da grande gesta dos descobrimentos.

Nas suas atribuladas viagens pelo Extremo-Oriente, onde vai negociar, arcabuzar, piratear e sorver os usos e costumes de povos tão diferentes – que mais tarde lhe vão servir de termo de comparação para a sátira social da sociedade portuguesa do seu tempo – Fernão Mendes Pinto foi “treze vezes cativo e dezassete vendido por mouros, chins e outras gentes”. Nessas andanças orientais, “conviveu com capitães e reis, príncipes e plebeus; foi escravo, soldado, negociante, embaixador, missionário – e a lista não fica ainda completa”.[2]

Rebecca CatzA Peregrinação é, a par de Os Lusíadas e da História Trágico-Marítima, uma das três obras literárias fundamentais para a compreensão dos traços dominantes da expansão portuguesa no mundo. Só que em Fernão Mendes Pinto a epopeia está ausente e, no seu lugar, foram colocadas as proezas e desventuras dos marinheiros portugueses, verdadeiros saltimbancos do destino. Foi esse pendor dos portugueses para a aventura e a traficância, para o contrabando e o roubo, que levou o rei da ilha dos Léquios a recusar receber os náufragos desembarcados na sua terra e a defini-los deste modo: “gente que, conhecendo muito de Deus, usa pouco da sua lei, tendo por costume roubar o alheio”.

O baptismo de fogo do nosso herói pícaro – que é um anti-herói, em tudo contrário ao herói dos romances de cavalaria – acontece numa viagem ao estreito de Meca: recebidos de forma hostil por um barco onde desejavam recolher informações sobre os turcos, mataram 64 dos 80 tripulantes. E como o capitão do barco abalroado se recusou a aderir ao cristianismo, foi atado de pés e mãos e lançado vivo ao mar. Procedimento em tudo semelhante ao que se passava em Portugal com os cristãos-novos – os falsos conversos – que não eram supliciados por afogamento, mas pelo fogo, o argumento dos inquisidores.

Para António José Saraiva, mais do que indagar se os factos geográficos ou etnográficos descritos na obra são verdadeiros ou imaginários, interessa conhecer a intenção da narrativa, “o que ela exprime sobre a posição pessoal do autor perante o mundo em que vivia”. Face a uma obra de arte, a alternativa não se coloca entre a verdade e a ficção, já que o artista recorre à ficção para explicar a verdade: “a ficção não é o oposto da verdade, mas o instrumento dela”. No caso desta obra, estamos perante “um esboço em que se acusa poderosamente o pensamento dominante”.[3]

Fernão Mendes PintoPodemos encontrar na sátira de Fernão Mendes Pinto dois planos diferenciados: um tem a ver com a narração das aventuras de que o autor é protagonista; o outro, com o facto de os juízos morais serem proferidos por interpostas pessoas. Em vez de criticar abertamente os valores e os conceitos de justiça da civilização ocidental, a estratégia narrativa consiste em valorizar – através de outras pessoas, já que na obra picaresca a enunciação dos juízos não cabe ao narrador – os valores da caridade, da justiça e da ordem que regem esse mundo exótico que a Peregrinação descreve. As civilizações orientais servem “de espelho ou de contraste”[4] com o que se passa em Portugal nos tempos da Inquisição. Apesar disso, Fernão Mendes Pinto não deixa de descrever preconceitos religiosos do oriente, como aquele em que um gentio não consente que três portugueses sejam sepultados, “dando por razão que ficaria a terra maldita e incapaz de criar coisa alguma, porquanto aqueles defuntos não iam lavados do muito porco que tinham comido, que era o mais grave e enorme pecado de quantos na vida se podiam imaginar”.[5]

Neste tempo que é o nosso, em que tanto se fala de “fatwa” e de fundamentalismo religioso, nada mais oportuno do que ler a Peregrinação, que é também um espelho do que somos e do que já fomos, quando partíamos para longes terras, a fim de dilatar a fé e o império, procurando impor a lei cristã pelo fio da espada sempre que a persuasão falhava. E falhava tantas vezes…


[1] Alexandra Carita, “Verdade ou Mentira”, Actual (revista do Expresso), 22.11.2014, pp. 24-25.

[2] Rebecca Catz, A sátira social de Fernão Mendes Pinto – análise crítica da Peregrinação, Lisboa, Prelo, 1978.

[3] António José Saraiva, “Fernão Mendes Pinto e o Romance Picaresco”, in Para a História da Cultura em Portugal(vol. II), Publicações Europa-América, 1972, p. 122.

[4] Idem, p. 128.

[5] Idem, ibidem.

Fronteiras: as literárias e as outras

GRANTAFronteiras, linhas de demarcação, baias, barreiras físicas ou psicológicas, há muitas e para todos os gostos: as visíveis e as invisíveis, as civilizacionais e as culturais, as políticas e as ideológicas, as fechadas e as de cooperação, as económicas e as demográficas, as das trevas e as do conhecimento. As que se deixam galgar e as que nos obrigam a ficar do lado de cá. As terrestres e as marítimas. As que separam a dignidade da abjecção, distinguem o amor do ódio, demarcam o prazer do sofrimento, apartam a esperança da desilusão.

As fronteiras delimitam espaços onde se condensam manifestações sociais e culturais que conferem traços identitários a quem neles habita, aquilo que nos une e distingue dos demais. Só que, num mundo em permanente mudança e a deslizar cada vez mais para o cosmopolitismo, as fronteiras que definem um limite de vizinhança entre entidades diferenciadas não podem ser estanques, apenas voltadas para si próprias, graníticas, à prova de bala. Têm de ser porosas, precisam de se deixar contaminar, porque os sentimentos de pertença ou de diferença (cuja afirmação pode ser positiva ou meramente ressentida) não podem constituir um entrave à percepção ou à fruição do que de bom se espraia para lá do lugar em que habitamos. Devem ser permeáveis à troca de bens culturais, ao intercâmbio de pessoas e à partilha de ideias.

A cultura, por exemplo, não pode estar emparedada ou acantonada em espaços exíguos, bacteriologicamente puros. A hemoglobina cultural precisa de circular, de esbarrondar fronteiras, de iluminar em vez de obscurecer, de acrescentar em vez de substituir, de projectar uma nova luz na tela dos conhecimentos que já existem, porque a história da cultura não é linear, mas cumulativa. Só assim é possível valorizar o lugar matricial, evitando que enquiste, ou definhe para sempre. A fronteira tem de ser cada vez mais lugar de cooperação e enriquecimento, de inclusão e não de exclusão.

Traçar uma fronteira é definir, e definir é sempre limitar. O último número da revista Granta apresenta como tema de capa as fronteiras e quer dar a volta a essa limitação. A revista pretende ser transatlântica, ao reconhecer distâncias e manifestar desejos de aproximação literária com o que está do outro lado do mar. Ler os outros é vencer barreiras e ultrapassar fronteiras.

Como refere Carlos Vaz Marques na nota de abertura, numa alusão ao que considera um dos paradoxos admiráveis da literatura, “sou mais eu sendo outro”. Palavras que nos remetem, procurando animar este novo espírito de aproximação e de encontro com o outro – e já que não podemos engolir o Atlântico – para o incontornável pequeno-grande poema onde Mário de Sá-Carneiro, na sua ânsia de Infinito, parece estar a meio caminho entre o que é (“o pilar da ponte do tédio”) e o que aspira a ser.

Ponte (ver poema de Mário Sá-CarneiroEu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

 

Mário de Sá-Carneiro, Indícios de Oiro
(Publicado no nº1 da Revista Orpheu, em 1915).

 

 

Academia Nobel, assédio e literatura

sexual-harassment-work-sleazy-businessman-harassing-shocked-female-coworker-eps-vector-illustration-no-transparencies-70960868Este ano não vamos ter Nobel da Literatura. Tudo por causa de escândalos sexuais que abalam a Academia Sueca. Negócios de saias, a avaliar pelas autoras da denúncia. Uma tragédia, já que pelo menos desde Shakespeare, sem mulheres – mas quase sempre com um rei… – não há tragédia que vingue.

Confesso o meu alívio, à mistura com alguma ignorância. Pelo menos em 2018 não vou correr o risco de ver anunciado um Nobel de quem nunca tinha ouvido falar, como já aconteceu com os casos recentes de Patrick Mondiano e Alice Munro. Já agora, digam lá se conhecem ou já leram algum destes escritores: Sully Prudhomme (não, não tem nada a ver com Michel Preud’homme, o que voava entre os postes das balizas de futebol), Giosuè Carducci, Rudolf Eucken, Henrik Pontoppidan, Carl Spitteler ou Ivan Bunin. Não conhecem? Eu também não, mas desde já informo que receberam o Nobel da Literatura no século XX.

É mais provável que conheçam alguns destes, diria mesmo todos: Marcel Proust, James Joyce, Kafka, Zola, Tolstoi, Nabokov, Graham Greene, Jorge Luis Borges, ou Philip Roth. O que têm em comum estes nomes é que nenhum deles mereceu os favores dos sapientes jurados. Se isto tem algum significado, talvez seja o de a academia sueca se enganar algumas vezes em relação às obras que avalia. Tantos nomes galardoados que acabaram por não resistir à pátina do tempo! Se neles fosse reconhecível a excelência literária, por certo não teriam caído no alçapão sem fundo do anonimato. Não se teriam dissolvido, ao fim de alguns anos, na indiferença generalizada dos amantes da leitura.

A academia sueca, fragilizada com algumas demissões, pretende agora envolver mais pessoas no processo de escolha do Nobel da Literatura. Ora parece-me que o que esta gente está mesmo a precisar é de ser dinamitada (prestemos justiça ao seu fundador). Assim sendo, avanço com o meu modesto contributo: arranjem um lugar no júri, o mais rápido possível, para António Lobo Antunes. Se bem se lembram, ele disse há tempos numa entrevista, respondendo à pergunta “Preocupa-o como vai ser lembrado daqui a 20 ou 50 anos?”, esta coisa extraordinária: “Tenho a certeza de que serei lido para sempre”.  Não é coisa pouca. Este dom profético, muito diferente dos palpites erráticos das pitonisas da academia, iria ajudar a diminuir de forma considerável a margem de erro em relação a escritores galardoados, que alguns anos depois se perdem em denso nevoeiro ou mergulham para sempre no rio tortuoso do esquecimento.

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Temos, por agora, a academia enrodilhada em silêncio. Tudo por causa de um escândalo que mistura violação de confidencialidade (divulgação antecipada de nomes premiados) com uso indevido de fundos e assédio sexual. Olha os tais do Norte, racionais, certinhos e alinhados, sempre prontos a apontar o dedo aos preguiçosos do Sul, a quem acusam de só quererem copos e mulheres, putas e vinho verde. Atrevo-me a dizer que este desvio à norma (e nem é preciso calcular, com rigor estatístico, o desvio padrão ou a variância) só pode estar relacionado com leituras que lhes contaminaram e baralharam os miolos: talvez os Sonetos Luxuriosos de Pietro Aretino, algumas histórias eróticas de Boccacio, outras tantas do Divino Marquês, os Escritos Pornográficos de Boris Vian, Hombres, de Paul Verlaine, As Proezas Amorosa de um Jovem D. Juan, de Apollinaire, o Manual de Civilidade para Meninas, de Pierre-Félix Louys, porventura Alfred de Musset, uns trópicos do Henry Miller, ou até mesmo uma ou outra incursão na literatura portuguesa do género: a poesia erótica e satírica de Bocage, outra tanta do Abade de Jazente ou, para alardear conhecimentos mais actuais, alguma produção de poesia sobre o corpo, de Natália Correia ou Maria Teresa Horta.

Sugiro aos ilustres membros da academia sueca, sobretudo aos mais propensos a colocar as mãos onde não devem (fala-se em senhoras apalpadas, por se aproximarem, de forma imprevidente, de certas mãos atrevidas) que leiam com proveito e tirem as devidas conclusões deste poema de Vasco Graça Moura:

FANNY

fanny, a grande
amiga de minha mãe,
ossuda, esgalgada,
de cabelo escuro e curto,
e filha de uma inglesa,

tinha um sentido prático
extraordinário e era
muito emancipada, para
os costumes da foz
daquele tempo.

uma vez, estando
sozinha no cinema, sentiu
a mão do homem a
seu lado deslizar-lhe
pela coxa. prestou-se a isso e

deixou-a estar assim,
com toda a placidez. mas abriu
discretamente a carteira de pelica,
tirou a tesourinha das unhas
e quando a mão no escuro

se imobilizou mais tépida,
apunhalou-a num gesto
seco, enérgico, cirúrgico.
o homem deu um salto
por sobre os assentos e

fugiu num súbito
relincho da
mão furada.
fanny foi sempre
de um grande despacho,

na sua solidão muito
ocupada num escritório. um dia
atirou-se da janela
do quinto andar
e pronto.

Vasco Graça Moura,
Poemas com Pessoas (1997)
in Poesia 1997/2000,
Lisboa, Quetzal, 2000.

 

Diálogo imaginário entre Fernando Pessoa e sua mãe

Acho este trecho de diálogo ficcionado, entre Fernando Pessoa e sua mãe, uma delícia. Pertence ao excelente romance de António Breda Carvalho, Morrer Na Outra Margem.

Ler isto fez-me recuar à adolescência, a um tempo em que estudava pouco. Ler por obrigação, eis a maçada. Bom mesmo era ler coisas que davam asas ao pensamento. Então lia à noite, num quarto colado ao de minha Mãe. Para a iludir, munia-me de um foco de iluminar, que colocava debaixo das mantas. Uma ginástica danada, segurar ao mesmo tempo no foco, no livro e nas mantas, de modo a poder ler, a respirar e não permitir que a luz se esgueirasse para o exterior. A Mãe adormecia. Eu desfalecia, braços cansados de tanto procurar aquele equilíbrio instável do foco, do livro e das mantas. Continuava a ler, agora com a luz do quarto ligada. Às tantas a Mãe acordava, apercebia-se da claridade, espreitava os ponteiros do relógio e dizia (quase) sempre a mesma coisa: – Parece impossível, Carlos! Já viste que horas são? Daqui a um bocado são horas de levantar, de apanhar a camioneta para Aveiro. Ou queres faltar às aulas?… Aí, desistia da leitura, apagava a luz e procurava engatar no sono. Mal podia imaginar, ignorando o que eram os heterónimos pessoanos, que ao contrário dele, não arrastava comigo tantas vidas interiores e tantas pessoas que tanto baralhavam a cabeça de sua mãe.Morrer na Outra Margem

– Estás doente, filho?

– De quê, mãe?

– Sei lá, da cabeça. Escreves e pensas tanto, embora disfarces sem conseguir enganar-me.

– Se penso, então estou doente dos olhos.

– Não percebo o que queres dizer, filho. Como é isso possível? Pensar é estar doente dos olhos? Pensar como tu pensas é estar doente da cabeça, foi sempre assim. Deixa-te de doidices, ou de filosofias, se preferes, que ainda agora acordaste.

– O Alberto é que dizia que pensar é estar doente dos olhos.

– Qual Alberto?

– O Caeiro.

– É médico?

– Médico é o Ricardo Reis, mas este está no Brasil. O Alberto foi pastor.

– De almas? – Coloca a mão sobre a testa tépida do filho, desconfiada.

– De rebanhos.

– Rebanhos na cidade…. Estás mesmo doente dos olhos… ou dos pensamentos. – E condescendente, aconselha: – Acho que o melhor é ficares na cama. O teu mal é sono.

– Mãe, o meu mal é falta de dinheiro para realizar os meus sonhos literários.

– A literatura, meu filho, é que é a tua verdadeira doença.

(António Breda Carvalho, Morrer Na Outra Margem, pp.23-24).

Laureano Barros e Luiz Pacheco: o bibliófilo e o libertino

O Grilo na VarandaVi há dias na RTP-2, com particular agrado, o anunciado documentário sobre a vida e obra do grande bibliófilo que foi Laureano Barros, que em vida reuniu uma das mais importantes bibliotecas privadas portuguesas da segunda metade do século XX. Entre outras coisas com interesse, muito curiosa é a correspondência que trocou com Luiz Pacheco, o editor e escritor libertino que colecionava escândalos.

O Grilo na Varanda reúne essa correspondência de 35 anos. Foi o primeiro livro que levei para a praia e li no Verão passado. A obra assemelha-se a um verdadeiro recife de corais, onde em cada toca se alojam a ironia e a mordacidade, o látego com que Luiz Pacheco fustiga o meio literário português. Depois de tanto insistirem para que escrevesse um romance, qualquer coisa de grande fôlego, é com refinada ironia que ele desabafa ao amigo Laureano: “Andavam a pedir-me há que tempos uma obra de fôlego, esquecendo-se que sou asmático hereditário”.[1] Talvez um dia tenha sonhado escrever esse romance, para se afirmar de vez no silvedo que era o meio literário do seu tempo. A urgência do dia a dia nunca lho terá permitido. Às vezes o homem sonha. A obra é que nem sempre nasce.

Sempre me perguntei como foi possível esta relação improvável, esta deliciosa troca epistolar entre duas pessoas tão diferentes: dum lado, um proprietário abastado, um homem organizado, que apreciava o conforto material; do outro, o editor eternamente falido, um escriba  desalinhado, ácido e irreverente, a pernoitar em tugúrios, prisões e hospitais, sem um chavo na carteira, a viver de cravanços e expedientes (para comer, para pagar a renda da casa, ou até para tirar a máquina de escrever do prego), a praticar o rude ofício da escrita nas piores e mais precárias condições, o crítico literário mais dado a demolir do que a construir, como o são todos os panfletários.

O traço de união para tamanha empatia, capaz de criar laços entre duas personalidades tão distantes e tão distintas, só pode ser este: o amor e a paixão que ambos nutrem pelos livros e pela literatura. Como seria de esperar, as cartas que integram o livro são apenas as de Pacheco para Laureano. As que deste recebeu o autor de Comunidade terão levado sumiço, perdidas na voragem de uma vida aos repelões, como o próprio nómada impenitente confessa: “Há anos, desde que deixei Massamá, que fazia de saltimbanco, por vários poisos em Lisboa, Montijo, Lagos, Condeixa-a-Nova, etc.”.[2]   Numa outra carta, acrescenta: “Em Setúbal, deixei eu muita papelada. E na Parede, há anos, uma caminheta cheia de livros e papéis, entre os quais todo o espólio que salvara do António Maria Lisboa”.[3] Tudo isso e mais a consabida falta de saúde, as fugas e fintas à autoridade dos costumes, à justiça e aos credores, fizeram o resto. Uma vida a tocar as raias do abjeccionismo, que também cultivou.

Ao espírito do matemático que colecionava raridades bibliográficas ficamos a dever o conhecimento de grande parte dos manuscritos de Luiz Pacheco, de que foi fiel depositário. E também o conhecimento da sua compulsão epistolar, da sua existência precária e da sua vida atribulada. Tanto basta para que lhe fiquemos gratos para sempre.

Falemos, então, um pouco mais do homem que ousou viver sem rede de segurança, com filhos dispersos ou entregues à Casa Pia. Do iconoclasta em equilíbrio precário no fio da navalha que foi a sua vida itinerante, passada quase toda ela em quartos alugados: “Somos cinco numa cama. Para a cabeceira, eu, a rapariga, o bebé de dias; para os pés, o miúdo e a miúda mais pequena. Toco com o pé numa rosca de carne meiga e macia: é a pernita da Lina, que dorme à minha frente. Apago a luz, cansado de ler parvoíces que só em português é possível ler”.[4]

Assumiu fraquezas e fracassos, a bissexualidade, a atracção por ninfetas e efebos. O Pacheco de costela maldizente desceu aos infernos e ao fundo da noite, tudo fez para os habitar e nada para os evitar, embora capaz de resistir, por largo tempo, ao caruncho do corpo e dos dias. Nada disso o impediu de escrever Comunidade, um dos textos mais perturbantes da nossa literatura. Apesar do feitio arrevesado não lhe granjear muitos amigos, não deixava de ser uma figura de culto. Saramago apreciava-o. Ao ler Teodolito, comenta: “Por que bulas infernais não está este homem traduzido em Espanha?” (Cadernos de Lanzarote – Diário II, pp. 186-187).

Entrevistado quando já vivia num lar, Luiz Pacheco disse coisas desassombradas, mas tão verdadeiras como estas: “Vais no corredor e vês um gajo numa cadeira de rodas ou um gajo com um passinho assim assim e tens de fazer um passinho também assim (…). Um gajo chega à mesa e a conversa é: 13-7, 14-9, que são as tensões arteriais; o da frente não caga há quatro dias, sete dias, dêem-lhe um purgante ou um clister; o outro está com a dentadura na mão, estou a comer a sopa e vejo ao lado um gajo a olhar para a dentadura. Que horas são?”[5]. Eis a lucidez, por mais fria, crua e dura que seja, a contrastar com a hipocrisia de uma sociedade habitada cada vez mais por idosos, mas que os esconde, quase não os vê, ou mal dá por eles.

Diário RemendadoApesar disso, Luiz Pacheco não se considerava um escritor maldito. É isso que nos diz no Diário Remendado: “Quando rebati a idiotice do escritor maldito estava a atacar frontalmente (…) um modus vivendi em que a maioria se deleitava: viver a melhor vidinha possível, considerando a Literatura não um acto de conhecimento e afirmação (desafio, contestação, intervenção, criação pura, total) mas uma mercadoria mais na sociedade de consumo”.[6]

Era assim “o Pacheco”, nome por que era conhecido nas tertúlias das letras: dava-nos páginas impiedosas, daquelas que abanam e abalam. Literatura do mais fino quilate. A aura de libertino que continua colada ao seu nome, assim como a de escritor maldito, continuam a seduzir muita gente. Gente que o admira, mas incapaz de trilhar um só que seja dos ínvios caminhos que percorreu. Todos gostaríamos de ser um pouco “malditos”, não é? O problema é que nos falta a coragem para desafiar as patrulhas da moral e dos bons costumes, para arrostar com as consequências. Salvo raríssimas excepções, somos mais dados ao aconchego conformista, ao não fazer ondas, nada dados à heresia e muito menos à apostasia. Ou, vamos lá, a um grãozinho de loucura. Portanto: pragmatismo resignado, normalizados quanto baste, assim como quem sai de uma cadeia de produção em série. Umas vezes deprimidos, outras nítidos nulos, para tomar de empréstimo um título de Vergílio Ferreira.

Do homem que fazia da insubmissão um estilo literário, do provocador escandaloso e do adversário impiedoso da moral social dominante, há quem diga o melhor e quem diga o pior. Quem o incense e quem o recrimine. Por mim, revejo-me nesta bela síntese de João Pedro George, na introdução a O Crocodilo que Voa: “Era rude? Era torcido? Era cruel? Talvez. Era inconveniente? Rompia em excessos? Descambava nas indelicadezas? Dava respostas chulas? Melhor! Quando à nossa volta o clima mental é lúgubre e estéril; quando o meio literário em que vegetamos não promove o espírito crítico, antes o comércio escuro e as mútuas mesuras (…) abençoado Pacheco!”[7]


[1] O Grilo na Varanda. Luiz Pacheco para Laureano Barros. Correspondência, 1966-2001. Lisboa, Tinta da China, 2017, p. 98.

[2] Idem, p. 185.

[3] Idem, p. 69.

[4] Luiz Pacheco, “Comunidade”, in Exercícios de Estilo. Lisboa, Editorial Estampa, 1973, p. 128.

[5] Entrevista de Anabela Mota Ribeiro a Luiz Pacheco, Diário de Notícias [DNa], n.º 108, 19.12.1998.

[6] Luiz Pacheco, Diário Remendado (1971-1975). Lisboa, edições Dom Quixote, 2005, p. 182.

[7] O Crocodilo que Voa. Entrevistas a Luiz Pacheco. Lisboa, Tinta da China, (João Pedro George, Introdução), 2015, pp. 12-13.

Pernil de porco e crimes (quase) perfeitos

A rocambolesca história das toneladas de pernil de porco, destinadas a alimentar a revolução bolivariana da Venezuela na época natalícia, continua a dar que falar. Da cabecinha pensadora de um maduro onde costumam poisar passarinhos que estabelecem ligação com o Além e lhe permitem falar com Hugo Chávez, podem sair coisas extraordinárias. Primeiro, teria sido Portugal a sabotar o pernil. Agora, parece que o pernil está na Colômbia. Que ventos, que correntes marítimas adversas, terão desviado da rota original tão apetecível encomenda?  Não sabemos se o presidente da Venezuela alguma vez leu Quem Mexeu no Meu Queijo?, um livro que fornece pistas para lidar com um mundo em acelerada mudança. Se leu, talvez colha ensinamentos para escrever Quem Mexeu no Meu Pernil?, podendo vir a rivalizar – sabe-se lá… – com o prestígio que levou o seu conterrâneo Rómulo Gallegos à ribalta da novelística mundial.

Como tudo o que é sólido se dissolve no ar, pode até dar-se o caso de os famintos venezuelanos nunca chegarem a saborear tão delicioso pitéu. E aí, da cabeça do seu presidente até pode soltar-se a peregrina ideia de que a armada com os pernis foi ao fundo, vitimada por mais um atentado do fundamentalismo islâmico. O que nem seria de espantar, já que em vários capítulos do Corão se proíbe o consumo de carne de porco, tendo por base o que Maomé disse do toucinho. E se em vez de carne de porco estivesse em causa carne de javali, poderiam muito bem os acusados de sabotagem ser os irredutíveis gauleses que dão pelo nome de Astérix e Obélix.

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Se méritos há neste verdadeiro enredo porcino, um deles é a possibilidade que nos oferece de desaguar no romance policial e de questionar a existência, ou não, de crimes perfeitos. Esta história do pernil sabotado fez-me lembrar, de imediato, o livro do escritor galês Roald Dahl, “Borrego para a Matança”, obra de 1953 que cinco anos depois Hitchcock iria transpor para o cinema com o título Lamb to the Slaughter. O livro revela-nos como uma esposa dedicada se pode transfigurar por completo ao tomar conhecimento da infidelidade do marido, mesmo que seja este a revelá-la. Neste caso não havia pernil de porco, mas sim uma perna de borrego congelada, que acabou por se transformar numa arma mortífera:

“Mary Maloney limitou-se a aproximar-se dele e sem parar levantou a perna de borrego congelada bem alto e bateu com ela com toda a força na nuca dele. Era como se lhe tivesse dado com uma moca de aço”.[1]

Consumado o homicídio, a viúva tem artes para dar de repasto, aos quatro polícias que investigam o caso, a própria arma do crime, o borrego entretanto descongelado e assado no forno. Assim digeriram os investigadores, com evidente proveito das papilas gustativas, a prova que serviria para sustentarem a acusação. Digamos que nem tudo foi mau para os venezuelanos. Podem, é certo, desfalecer à fome; mas livraram-se – seguramente alguns – de sucumbir à força de uma violenta pancada desferida na nuca com essa perigosa arma de arremesso em que se pode transformar um pernil congelado.

Este tipo de crimes (quase) perfeitos também está presente na literatura portuguesa. Todos conhecem inícios de livros marcantes e por isso mesmo inesquecíveis. Não resisto a dar-vos conta da minha preferência, no que toca a autores nacionais. Ela vai por inteiro para Fernando Assis Pacheco, escritor, poeta e jornalista cultural. Reparem como abre, de forma magistral, o livro Trabalhos e Paixões de Benito Prada, obra em que pretende esboçar a biografia de um avô da província de Ourense que governou a vida em Portugal a deambular por tudo quanto era feira ou mercado da Beira Litoral:

“Quando o Padeiro Velho de Casdemundo teve a certeza de que Manolo Cabra lhe desfeiteara a irmã, em dois segundos decidiu tudo. Nessa mesma noite matou-o de emboscada, arrastou o cadáver para o palheiro e foi acender o forno com umas vides que comprara para as empanadas da festa de San Bartolomé. O irmão do meio encarregou-se de cortar a cabeça ao morto. O Padeiro Velho amanhou-o e depois chamuscou-o bem chamuscado. Às duas da manhã untou o Cabra de alto a baixo com o tempero, enfiando-lhe um espeto pelas nalgas. Às cinco estava assado (…). Entretanto o mais novo, regressado já do Pereiro, aonde fora avisar o Padre Mestre, manifestou desejos de capar Manolo Cabra. O do meio olhou muito sério para o Padeiro Velho. Este cuspiu enojado e decretou: “É tudo para os cães. E agora tragam-me lá a roupa do fiel defunto, que já não tem préstimo senão no inferno”. Se perguntassem ao Padeiro Velho o que mais queria naquele momento, teria respondido: “Assar-lhe até a memória”.[2]

Que coisa macabra! Que murro no estômago, logo nos primeiros dias do ano – dirão alguns amigos leitores. Talvez tenham razão. Mas é bom recordar o discutido e controverso comentário de André Gide: “É com bons sentimentos que se faz má literatura”.

O que não quer dizer – acrescento eu – que a boa literatura ande atrelada a maus sentimentos. Aqui, o talento de quem escreve é decisivo. Nem os sentimentos mais sublimes explicam os maus romances, nem os mais sórdidos explicam os bons. Importante é ter a capacidade de representar as pulsões essenciais, é atingir a dimensão profunda das coisas, aquele lugar onde o bem e o mal não podem nunca ter o mesmo peso, ou a mesma cotação.


[1] Roald Dahl, “Borrego para a Matança”, Contos do Imprevisto, Vol. 3 (tradução Mariana Pardal Monteiro), Lisboa, Teorema, 1986, pp. 203-204.

[2] Fernando Assis Pacheco, Trabalhos e Paixões de Benito Prada, Porto, Edições Asa, 1997, pp. 9-10.

Paulo Sarmento, pesquisador de palavras e imagens

“Ofereço-vos o texto que escrevo, ignoro se o entendem”

“Está escuro, diz Elvira, acenda o texto, respondo-lhe”

Maria Gabriela LLansol

Paulo CarvalhoDe uma assentada, Paulo Sarmento (pseudónimo de Paulo Carvalho) brinda-nos com dois livros: Limalhas e As Ruas de Saibro Estão Vazias. Não são as suas primícias literárias, pois o autor já vem derramando, há alguns anos, artigos e crónicas e poesia na imprensa regional, a que se devem acrescentar alguns prémios literários com que foi distinguido.

É preciso dizer que nenhum destes livros é de leitura fácil. Lidamos com diferentes camadas de leitura, que nos obrigam a escavar a epiderme dos textos. Além disso, entrecruzam-se, nas duas obras, uma sólida formação religiosa, uma segura reflexão filosófica e uma evidente leitura e assimilação dos clássicos – alguns textos revelam mesmo um óbvio carácter subsidiário da mitologia grega e das tragédias (Limalhas, pp. 72-77). Também algumas sonoridades, ao que parece, da poesia moderna e até certos laivos do pensamento surrealista. Está lá tudo, mesmo quando o autor recorre à ironia, ou à sátira dos discursos de aproximação ao real: o da literatura, o da filosofia, o da invenção e o da reflexão. Um verdadeiro rio da escrita, cujo caudal engrossa à custa de afluentes culturais variados.

Vamos fornecer algumas pistas de leitura, procurando não obscurecer o que carece de ser iluminado. Fazer incidir alguma luz nestes textos é de certo modo ter presente as advertências do próprio autor a propósito dos que “dissecam, esquartejam a mancha, para criar outras manchas, em geral muito mais extensas e densas do que a mancha original” (Limalhas, pp. 118-119).

Ensaiemos, pois. Para dizer que Paulo Sarmento não faz concessões à escrita suave e calmante que se vai produzindo por aí (e vendendo bem!). Com o pretexto de que a agitação da vida moderna subtrai tempo e espaço à leitura e à reflexão, e fazendo jus à ideia segundo a qual só se assimila o que é fácil e não requer esforço, abundam por aí produtos a roçar a mediocridade, quase um atentado ao comezinho acto de pensar. Não é esse o halo que se desprende da sua prosa. Não se descortina, nestes dois livros, qualquer arremedo de simplificação barata, qualquer estratégia oportunista, do tipo facilitar para vender melhor. Se há complexidade, ela é fruto de uma dimensão interior rica e multifacetada, não obedecendo à vontade deliberada do autor em complicar ou obscurecer o seu pensamento, ou as vivências que pretende retratar.

LimalhasOs textos de Paulo Sarmento são difíceis de classificar enquanto género literário. Se calhar o autor nem está preocupado com isso. Mais que deixar impresso um estilo de escrita, pressente-se que o que mais lhe importa é talvez surpreender-nos com o que é possível retirar das palavras que burila e manipula com evidente deleite, um pouco como o artesão que procura atingir a limpidez do cristal. Em rigor, estes textos não são contos, embora sejam curtos. Serão comentários, pedaços de reflexões, jogos de palavras, fragmentos de imagens, tudo colado e esculpido em letra de forma, tudo amalgamado no cadinho da imaginação e das vivências estéticas. Coisas que se desprendem de um corpo, quando raspadas sensorialmente. Limalhas.

Curioso, ao percorrer alguns textos de Limalhas, é verificarmos a relação íntima que o autor estabelece com as palavras, a forma como as molda e manipula (pelo recurso ao semantismo e ao grafismo), fazendo lembrar autores como José Palla e Carmo e Mia Couto. É esse o excitante jogo semântico a que Paulo Sarmento se entrega. À sua maneira, partilha igualmente desta sensibilidade com as palavras, do manifesto prazer que lhe provoca o convívio íntimo com a língua: “as palavras têm curvas arquejantes, redondas como o mistério, e nas suas copas há frutos verdadeiros” (As Ruas de Saibro Estão Vazias, p. 53).

E parece querer trilhar este caminho a um tempo exigente e aliciante: “o corpo é um copo com um cubo de gelo lá dentro (E assim fica sabendo que o R é antárctico)”. A associação do corpo ao gelo e até a alusão ao machado que “continua a desferir golpes” (Limalhas, p. 114 remete-nos para a feliz metáfora de Kafka acerca do papel da escrita: um machado que tem por função quebrar o mar gelado que há em nós.

O mesmo se passa em Colagem (Impossível), texto construído a partir de palavras quebradas (Limalhas, p. 125). Textos de carácter lúdico e irónico, no sentido em que jogam com a linguagem – a matéria do espírito. E por isso mesmo textos que propendem para o poético, enquanto forma de organizar e tratar amorosamente as palavras.

Outras reflexões suscita a leitura destes livros, verdadeiros baús de propostas e associações. O texto que o autor intitula, ironicamente, de Justificativa do Plagiato (Limalhas, pp. 70-71) aflora o problema da originalidade da obra de arte. Para Paulo Sarmento, se há originalidade ela é tão só o resultado da reutilização de materiais pré-existentes, nos quais o “criador” interfere, ao imprimir-lhes um cunho e uma personalidade próprios. É a forma como reorganiza o que já existe que personaliza o artista e o diferencia dos demais.

Também não é por acaso que certos textos se entrelaçam: “Que raio de mania esta, a da arte. Querer dominar os materiais e a sua plasticidade – e ser material e plástico” (Limalhas, p. 126). Eis uma crítica ao fechamento hermético e elitista de certas vanguardas. Como não é por acaso que o título de um dos livros é também o título de um dos textos do outro. Ou que a epígrafe de Limalhas remeta para Rodin, por Rodin (p. 97) ou apele à associação com A Aurora de Ariadne: “O escultor queria esculpir a perfeição na pedra (…). Pôs-se, então, a pulverizar cada pedaço, no pleno desespero da procura do símbolo incorpóreo” (As Ruas de Saibro, p. 50).

Diferentes momentos (imagens?) que pretendem retratar a busca da perfeição artística. Busca por vezes obsessiva da Beleza, que leva certos criadores a adoptar gestos demenciais (ou de excessiva lucidez?) que conduzem à destruição das próprias obras.

E que dizer da intrigante coincidência, ou acaso, de temáticas que nos reconduzem a esse magnífico contador de histórias que é Luís Sepúlveda? Em As Ruas de Saibro Estão Vazias “assistimos” à execução de Frederic Berg. E enquanto a vida se esvai, assoma no rosto do condenado “um sorriso que não constará dos anais” (p. 41). Também o escritor chileno partilha a mesma preocupação com a memória. Numa visita ao campo de concentração de Bergen Belsen depara com uma frase inscrita numa pedra: “Eu estive aqui e ninguém contará a minha história”. Verdadeiro murro no estômago, que o levou a escrever As Rosas de Atacama, um mural de resistência contra o esquecimento de amigos que foi encontrando na sua vida de andarilho – amigos de uma hora ou de sempre, que tanto podem ser humanos como gatos, ou até barcos. Histórias condenadas ao olvido, se ninguém as contasse.

Ruas de SaibroAmbos parecem igualmente traçar uma idêntica cartografia dos afectos, ou enveredar por uma mesma estética de superação do sofrimento. Em As Ruas de Saibro, lê-se: “com o amor que o vaqueiro tem quando arranca a vida a seu cavalo minado pela doença, deu-lhe a morte” (p. 14). Sepúlveda conta-nos o destino do gato Zorbas, também ele minado, de forma irremediável, pela doença. Diz-nos que o amor “não consiste apenas em assegurar a felicidade do ser que amamos, mas também em evitar-lhe sofrimentos e preservar a sua dignidade”. É comovente a descrição do momento em que reúne os filhos e os convence que Zorbas teria de levar “aquela injecção que o faria dormir”. O amor que nutriam pelo felino levara-os “à mais dolorosa das determinações” (As Rosas de Atacama, pp. 92-95).

Há em Paulo Sarmento muito de dispersão, fragmentação e errância. Cabe, pois, ao leitor a tentativa (que se espera lúdica) de reunir tantas limalhas dispersas. Sem se preocupar com o sentido que o autor possa atribuir ao que escreve. Cada leitor reorganiza um texto outro em função do que lê e do como se lê. Se a literatura serve para produzir sentido, o autor deve preocupar-se mais em ser lido do que em ser compreendido, ou não fossem os leitores a razão de ser dos autores.

A Paulo Sarmento apelamos para que continue a apostar na criação do novo, pois a experimentação é consubstancial ao espaço de liberdade que a literatura deve ser. Que no seu percurso singular continue a urdir as teias que tecem a vida e a morte das palavras. Se possível, refinando (sem obscurecer) o leque de possibilidades que se abrem a quem o lê. Afinal, com algum cuidado e labor, tudo aquilo que é denso e meditado talvez possa ser vertido numa escrita mais clara e acessível, facilitando ao leitor a insubstituível tarefa de “acender” os textos, de abrir neles as desejáveis clareiras de compreensão.


(Texto publicado no Jornal da Bairrada, 28.06.2001, p. 9. A versão refundida que aqui se apresenta foi publicada na revista Escritor (Leiamos), pp. 41-44).

Memória de Idalécio Cação — adeus ao Amigo, não à Gândara

Idalécio 3

A notícia que nunca gostaria de receber chegou rente ao final do ano, a 28 de Dezembro: o Idalécio tinha-nos deixado, quase sem avisar. Se a morte de um amigo é sempre uma mágoa, saibamos ao menos celebrar aquilo que connosco partilhou, para lá da inteira amizade: a obra literária, onde ressuma em cada página a Gândara que o viu nascer. O que resta é agarrarmo-nos às frágeis palavras. São elas a ressurreição possível de tudo quanto nos legou.

Idalécio Cação nasceu em 1933 em Lafrana, freguesia de Alhadas, concelho da Figueira da Foz. Descendente de gente de humilde, habituada ao trabalho árduo nas terras de pão, aos 21 anos passou a residir nos arredores de Aveiro, no pacato lugar da Póvoa do Paço, em Cacia. Desde novo se apaixonou pela literatura, inspirado, talvez, na pequena mas valiosa biblioteca do avô materno, carteiro de profissão. Nos anos 60 aparece ligado ao CETA – Círculo Experimental de Teatro de Aveiro.

São de 1961 as suas primícias literárias, com o livro de poemas Nas Fronteiras do Tédio. Dois anos depois, publica novo livro de poesia, As Evidências e o Prisma. Na recensão a esta obra, o então jovem Vasco Graça Moura mostra saber já distinguir a tarefa crítica da reverência provinciana: atribui ao autor “razoáveis qualidades” mas não deixa de dizer que o livro, de “inspiração acentuadamente neo-realista, não traz nada de novo ao panorama da actual poesia portuguesa”.[1] Embora abespinhado com a crítica, Idalécio Cação acabou por recebê-la com a elegância que sempre o caracterizou: “é nas críticas contrárias mas elucidativas que o poeta irrealizado que ainda sou se penitencia e tenta redimir dos seus pecados líricos”.[2]

Vinte e dois anos depois, numa entrevista concedida ao Jornal de Notícias, ao obter o segundo prémio no concurso de contos com “A outra margem do sonho”, o futuro grande escritor da Gândara assumiria essa sua menor inclinação para a poesia: “Na prosa estou muito mais à vontade, enquanto na poesia reina uma grande confusão. Há mais de uma centena de estilos diferentes. Na prosa consegue criar-se um estilo próprio, como eu já consegui criar o meu”.[3] Essa preferência pela prosa ficaria derramada em diversas publicações, sobretudo em páginas e suplementos literários de jornais como Diário Popular, Litoral, Libertação, Independência de Cantanhede, entre outros. Fundou e coordenou os suplementos literários Sal Gema, do Jornal do Oeste (Rio Maior) e Diálogo, do jornal Beira-Vouga (Albergaria-a-Velha). Manteve ligação estreita com a dinamização dos encontros da imprensa cultural durante o Estado Novo. Era sócio da Associação Portuguesa de Escritores, da extinta Associação de Jornalistas e Escritores da Bairrada (AJEB) e da Associação Cultural Sol XXI. Licenciado aos 44 anos em Filologia Românica, acabaria a leccionar na Universidade de Aveiro.Os_Sitios_nossos_conhecidos

Se na poesia não conseguiu tomar grande altura, a prosa viria a reconhecê-lo como “mestre das letras gandaresas”. Publicou Raízes na Areia (1968), Os Sítios Nossos Conhecidos (1990), Daqui Ouve-se o Mar (1991), O Chão e a Voz (1998), Glossário de Termos Gandareses (2002), Memória de João Garcia Bacelar (2005), Crónicas Gandaresas (2006) e Do Alto Destas Ameias (2008).

Carrego nos pedais da memória, em busca de remotíssimas lembranças. Recordo o prazer de assistir, em 24 de Outubro de 1990, à apresentação de Os Sítios Nossos Conhecidos e de ouvir as palavras que o Dr. Joaquim Correia então proferiu:

“Para quem tem acompanhado o labor literário de Idalécio, não é novidade dizer que a terra é o grande tema das suas narrativas de ficção. A terra ou talvez, se o preferirmos, a aldeia. Mas a aldeia a partir da sua própria experiência de filho dos areais gandareses, onde, como ele confessou ainda recentemente numa entrevista, aprendeu a fazer todos os trabalhos que dizem respeito ao amanho da terra e do pão. A nossa literatura é particularmente rica na temática ruralista. Mas o que é de salientar desde já é que nenhum dos escritores portugueses que abordaram esta temática partiram da experiência singular a que as circunstâncias da vida submeteram Idalécio Cação. É importante reproduzir o que ele dizia nessa entrevista: “eu sei o que custa um bocado de pão, que o trabalhei em todas as suas fases; quando como um prato de arroz, não esqueço que também o ajudei a amanhar nos campos do Mondego, onde o meu pai era seareiro duma courela de doze alqueires de semeadura”.

Esta experiência espelha-se na sua obra e por isso também a autenticidade do seu ruralismo, se nada tem a ver com o ruralismo idílico da tradição pastoril ou mesmo do romantismo de Júlio Dinis ou de Trindade Coelho, também não se limita a ser o ruralismo realista de Aquilino ou Torga, nem mesmo o do neo-realismo ideologicamente programado de Alves Redol ou de Manuel da Fonseca, ou de Fernando Namora, ou de outros. Como escreveu Mário Sacramento, mesmo os neo-realistas mais preocupados com a sorte do povo explorado não foram capazes de o exprimir por dentro, limitando-se a ser a “voz que ouve”, na paradigmática expressão de Políbio Gomes dos Santos, voz sem dúvida condoída, mas sem a experiência verdadeiramente vivida que era necessária para o exprimir por dentro.

É curioso como Idalécio Cação, já em Raízes na Areia, embora utilizando em todos os contos a voz da terceira pessoa, raramente dá a impressão de distanciamento em relação à acção e às personagens, de tal modo se faz a narração empática do narrador com elas, de tal modo a linguagem do narrador, sem perder em fulgor literário (pelo contrário, ganhando-o), se identifica com a das personagens, não só em termos vocabulares, mas até em particularismos sintáticos e em entoações peculiares, sendo assim a sua voz, não a do narrador distanciado do seu objecto mas sim a do aedo, que é a voz do próprio mundo a que dá forma narrativa”.Daqui_Ouve_se_o_mar

Após ler Os Sítios Nossos Conhecidos e Daqui Ouve-se o Mar também concluí estarmos em presença de um grande escritor da Gândara. Um homem de palavra e de palavras. Um homem ouro de lei, que sabia tudo sobre o amanho da terra, do semear e colher em tempo certo, do trato das videiras e da poda das árvores. Parafraseando Carlos de Oliveira em Pequenos Burgueses, apetece dizer, sem favor, que a obra de Idalécio Cação é “uma chuva de luz a encharcar a Gândara do céu à terra”.

 

(Texto publicado no Jornal da Bairrada, 05.01.2017, p. 18).


[1] Independência Literária [suplemento cultural de Independência de Águeda], n.º 23, Agosto, 1963.

[2] Idem, n.º 24, Setembro, 1963.

[3] Jornal de Notícias, 10.06.1985.

Quase Tudo Nada — livro de Arsénio Mota

«Harmonia e Vitalidade, duas constantes em que assenta a Natureza e a Arte, ou, se quisermos, duas regras do amplo ritmo cósmico. Quem lhes escapa?                               Júlio Resende

 

Galardoado com o prémio literário Carlos de Oliveira, este livro de Arsénio Mota [AM] é em tudo diferente dos que anteriormente publicou. Depois de o ler, e ao senti-lo tão luminoso e carregado de sinais, apetece, para o resumir, recorrer a palavras suas: «Depois de longamente viver e aprender, ou seja, depois de muito possuir e experienciar, é possível que ao indivíduo em maré de balanço no final da existência reste apenas a sensação lúcida de que ao homem despido de ilusões somente cabe guardar palavras e pouco mais na sua passagem».[1]

Quase Tudo Nada 1Em Quase Tudo Nada, a narrativa de ficção ocupa-se a desocultar os percursos de uma existência. Assim como quem pretende revisitar o que foi perdendo e não tanto celebrar o que (ainda) tem. A narração é feita na terceira pessoa. É através de Tumim, a personagem central, embora paralela à do autor – contracção de «Tu» (leitor) e «mim» (sujeito escrevente) – que se evoca a passagem do tempo e dos lugares e marcas que ele foi imprimindo em tudo o que o rodeia. Marcas que também talhou em Tumim, uma espécie de diplomas de tudo o que viveu. Marcas e não cicatrizes, porque estas são «monumentos à dor»[2] e o que este livro nos oferece é acima de tudo um hino à vida e não ao sofrimento.

Importa dizer que o mundo em que o narrador se move não o seduz. Ele vai contemplando, do solitário posto de observação, «as lutas vulgares pela conquista de riqueza, poder ou fama como se estivesse colocado num longínquo planeta […] a ver simples micróbios a devorar-se às cegas» (p. 123). Vive cercado cada vez mais de sombras e de silêncios, pois como dizia Torga, «a vida não passa de um progressivo distanciamento de tudo e de todos, que a morte remata. Existir é ir perdendo».[3] Mas, embora cada vez mais apartado do tumulto da vida social, do fervilhar dos interesses mesquinhos e interesseiros, não corta em definitivo as amarras que o ligam ao mundo. É sobretudo através da palavra escrita que mantém o fio de ligação a ele.

Tal como a vida dá muitas voltas e é feita de partidas e regressos, diásporas e peregrinações interiores, assim este livro, para ser digerido e apreciado, nos compele a manuseá-lo em permanentes avanços e recuos. Tarefa que não requer esforço, antes o gesto lúdico de manipular um objecto estético. Afinal, uma outra fisiologia da leitura, que aguça a curiosidade na busca do que vem a seguir e em que o leitor é chamado a conviver de perto com o itinerário de vida do autor, «um fio singelo a desenrolar-se, saindo do novelo, entre todos os outros que com ele se entrelaçaram na vida» (p. 121). A desordem dos capítulos pode aqui ser vista como um equivalente literário do desconcerto do mundo. Ordená-los, dar-lhes uma sequência lógica, é de algum modo porfiar em busca da «harmonia», uma palavra-chave que percorre todo o livro.

O seu conceito de harmonia – cuja busca parece sondar incessantemente, como quem responde ao apelo de um chamamento vital – tem como condições básicas a paz (estar de bem consigo próprio, para poder estar de bem com os outros) e uma «aspiração veemente à liberdade». Devolver à humanidade a liberdade pressupõe coisas tão comezinhas como trabalhar, meditar, pacificar-se interiormente e até alimentar-se de maneira correcta. Tumim insurge-se contra os que comem e bebem o que sabem que lhes faz mal, gostando ele apenas do que lhe faz bem (p. 55). Esta sua consabida frugalidade à mesa assenta numa procura moderada dos prazeres, no sentido mais epicurista do termo. É princípio de sabedoria o homem contentar-se com prazeres simples e naturais, que ao evitarem a dor contribuem para a ausência de problemas (ataraxia).

O narrador serve-se de Tumim para, através dele, expressar a sua vida específica na Terra e as suas interrogações sobre a existência. A vida de Tumim tem muitas vidas dentro, mas nem todas elas são desvendadas. O todo, aqui, é maior que a soma das partes, os oito capítulos que compõem esta obra e que podem ser vistos como outras tantas pedradas que o narrador lança, de forma inteligente, no charco da boa consciência de cada leitor. E cada parte é tão só o que resta da decantação dessa vida na retorta da sensibilidade do autor. Fragmentos apenas, embora talvez os mais impressivos.

Todos juntos formam um arco, onde se inscrevem os verdes anos em meio rural de ambiência bairradina; a emigração, uma espécie de carta de alforria que permitiu a Tumim rasgar horizontes, ir em busca de um achamento interior e de uma afirmação que continuava tolhida no berço; as deslocações ao Porto, que de tão repetidas transformaram a cidade em porto de abrigo e criaram laços que nunca mais desataria; o aprumo cívico perante a polícia política da ditadura, que AM nunca nos contou, por saber que às vezes há mais dignidade no silêncio (soubemo-lo agora, através de Tumim, que vemos a viver de pé, se calhar por se ter cumprido a profecia que o pai lhe contara em miúdo, acerca do caça-rabos); a entrada no período da maturidade, os primeiros sonhos conspirativos e as experiências amorosas, onde discreteia sobre a sexualidade, as mulheres, o amor-paixão e o amor-sentimento; finalmente, o belíssimo capítulo VIII, chave de leitura essencial para compreender toda a espiritualidade que se desprende desta obra. Confissão de um homem profundamente religioso, que um dia descobriu em Amiel o conceito de «religião natural» (hoje tão deliberadamente obscurecido) e passou a fazer dele «ancoradoiro poderoso que não mais deixou de aprofundar» (p. 13). Recorrendo talvez a Hume, entre outros autores.

Com efeito, não parece difícil descortinar nalgumas páginas deste livro influências de David Hume e dos seus Diálogos Sobre a Religião Natural. Isso acontece quando Tumim observa a natureza e o «comportamento dos mais humildes bichos conhecidos» (p. 99) ou quando compara a lufa-lufa dos humanos a «micróbios a devorar-se às cegas» (p. 123). Comparem-se estas frases com as palavras de Hume: «Olhai o universo em vosso redor. Que enorme profusão de seres animados e organizados, sensíveis e activos! […] Mas examinai um pouco mais de perto as existências vivas, os únicos seres para os quais merece a pena olhar. […] Quão hostis e destrutivos são uns para os outros!».[4]

Num extremo do arco da sua existência temos assim o poder encantatório da infância, caldeado com os saberes que só uma vivência rural permite adquirir: tocar o boi na atafona ou em volta do poço de rega, conhecer os segredos da cozedura do pão, dominar a arte de plantar e colher no tempo certo, jogar à bilharda e ao pião, armar costelos e capoeiras, saber os nomes dos pássaros e identificá-los pelo gorjeio ou a plumagem, perceber o que fazem as andorinhas em voo rasante pelos caminhos.

Ao contrário da ciência, a arte não pode prescindir do «eu». Por isso o narrador vai desfiando a história pessoal de Tumim, evocando as origens do menino aprisionado na teia espessa dos medos infantis. Medo de ir ao alpendre mal iluminado procurar achas para a fogueira ou vides para o forno; (p. 105); medo de atravessar a horta escura que dava acesso à adega, onde o mandavam encher a caneca de vinho (p. 106); medo de passar, à noite, junto do cemitério, com a cesta de comida para a ceia do pessoal da loja (p. 113). Medo, em suma, da escuridão, onde abundam morcegos e esvoaçam mochos e corujas de piar agoirento. O escuro, sempre o escuro, matéria de que eram feitos todos os monstros que povoavam a sua imaginação.

Para lá dos medos e fantasmas, expressão de temores antigos que o homem rural aceitava sem reservas, há também lendas e mitos, como a dos sapos que se transformam em pessoas e estas em sapos, histórias de gambosinos e raviolas, coisas que espelham a fantasia e a sabedoria de um povo. AM desdobra também, perante nós, uma galeria de personagens do maravilhoso popular, como a bruxa, o lobisomem ou a moira encantada. O lugar onde Tumim nasceu, cercado pelo isolamento da época e por ambientes nocturnos de medo e soturnidade, era favorável à superstição e à construção dos equívocos que ajudam a diluir o real no fantástico.

No outro extremo do arco da sua existência temos a reflexão madura – misto de interrogação e balanço – de quem não se esquiva à responsabilidade de dignificar a vida enquanto única oportunidade cósmica. Pelo meio, a procura constante da harmonia, que também só pode ser cósmica, já que Tumim acredita numa humanidade «feita da matéria das estrelas, sendo por isso uma forma de vida derivada da vida cósmica» (p. 99). O arco completo deve aqui entender-se como o desenho de toda a evolução do autor, simples amadurecimento do qual parece arredada qualquer conversão (ruptura) de valores morais ou ideológicos. Um amadurecimento que se afigura mais a síntese da harmonização dos contrários que o resultado da sua ruptura. É isso que AM nos diz, quando compara a memória do que foi vivendo às fibras concêntricas do tronco de um pinheiro: simples acumulação de experiências que «desenvolveram a matriz sem a negar» (p. 119).

Fixemo-nos então no extremo do arco que representa a etapa actual da sua existência. Eis o homem em serena retrospecção, instalado no seu posto de vigia, envolto na «macia penumbra da casa», a contemplar o mar e o azul dum céu «varrido de nuvens» e com a «brisa em repouso» (p. 119). A solidão pode não ter cura quando é um mal que nos vem de dentro. Mas a beleza e a serenidade que irradiam desta descrição de um fim de tarde decerto que ajudam a aliviá-la. São verdadeiros soporíferos de deslumbramento, misto de paisagens e oceanos que fazem bem a quem tem alma de poeta e alguma sede de infinito.

Quase Tudo Nada: três termos que podem ser entendidos como a síntese derradeira de uma vida. O Quase nada tem a ver com o célebre poema homónimo de Mário Sá-Carneiro. De facto, para AM a «disciplina do quase» permitiu-lhe «chegar à beira de cada posição para a conhecer e se cumprir» (p. 120). O seu Quase parece não tocar o Tudo por mera renúncia voluntária, condição essencial na busca da harmonia, já que a vida lhe ensinou que «o sofrimento se origina na fogueira dos desejos; portanto, desejar o menos possível é regra máxima da sabedoria» (p. 124). Ao invés, o do poeta do Orfeu não toca o Tudo porque lhe falta o golpe de asa.

Neste sentido, Tudo remete-nos para a força da vida, o período de pujança e maturidade do autor, e não para qualquer ambição desmedida. Já o termo Nada parece remeter para um final, para a natureza fugaz de todas as coisas, porque tudo é efémero. Como refere AM, «a verdadeira liberdade do ser começa precisamente aí, no essencial desapego dos objectos da comum cobiça» (pp. 97-98).

Este livro mostra-nos a aprendizagem da vida e a lenta construção de um homem em diferentes contextos geográficos, sociais, morais e psicológicos. Um homem que se deixa viver, um pouco à semelhança de Sinclair, cuja maturação emocional e espiritual Hermann Hesse descreve no seu «Demian». Fala-nos de caminhos éticos e de valores humanos, procurando partilhar com os leitores a interrogação à vida e o sentido da existência. Aborda a questão da tolerância e da compaixão pelos outros, mostra-nos o que é realmente importante e valioso, como o viver discretamente, deixando o destaque para a sabedoria e a rectidão de carácter. Um homem assim não confunde a realização pessoal com o exercício de qualquer poder. Acalenta sonhos em vez de ambições.

Em nenhum outro livro AM nos desvenda os estados de alma e nos franqueia as portas para mostrar os veludos da interioridade, como neste. Em nenhum outro o descobrimos tão fascinado com o pormenor. Observador atento e de fina sensibilidade, revela-se um amante da natureza, invariavelmente sábia e com quem todos aprendem. Por isso acredita que uma vez perdida a vestimenta física há-de dissolver-se plenamente nela.

Tempo de reencontro. E de serenidade.

(Texto publicado no Jornal da Bairrada, 11.10.2006, p. 20).


[1] Arsénio Mota, Letras sob Protesto, Porto, Campo das Letras, 2003, p. 164.

[2] Luís Sepúlveda, As Rosas de Atacama, Porto, Edições Asa, 2001, p. 104.

[3] Miguel Torga, Diário XII [2ª. Edição], Coimbra, 1977, p. 79.

[4] David Hume, Diálogos Sobre a Religião Natural, Lisboa, Edições 70, p. 122.