Eça de Queirós e as polémicas – do local de nascimento ao Panteão Nacional

A possível trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós para o Panteão continua a gerar polémica. Há posições para todos os gostos e nem a família se entende. Uns querem vê-lo no Panteão, porque julgam ser a melhor forma de perpetuar o nome do escritor. Outros preferem, após ter repousado no Alto de S. João,  que continue onde se encontra desde 1989: no cemitério da freguesia de Santa Cruz do Douro (Baião), perto de Tormes, a quinta que podemos encontrar em A Cidade e as Serras.

Talvez Eça tivesse preferido – ousamos dizê-lo – ficar onde está,  ou mesmo descansar junto do avô, perto de Aveiro, onde mergulham as raízes dos seus antepassados. É certo que as gentes de Aveiro assistiram à trasladação dos restos mortais de Lisboa para Santa Cruz do Douro com a apatia do costume e sem um estremecimento de alma, como se o grande escritor nada tivesse a ver com a cidade dos canais e esta nada devesse a esse passado.  Certo, também, é que o solar de Verdemilho onde Eça viveu na infância não foi preservado. Em vez de ser acolhido e protegido no regaço do poder municipal, cedeu de forma inglória ao camartelo, para dar lugar, na altura… a um armazém de botijas de gás! Um verdadeiro gaseamento da memória e da cultura, apetece dizer. A propriedade onde o solar estava implantado era a chamada quinta da Torre. Curiosamente, num estudo em que se debruça sobre as raízes do escritor, Jorge Campos Henriques conclui que o solar é A Ilustre Casa de Ramires, anotando que Eça deu ao solar de Gonçalo Ramires o mesmo nome da quinta dos avós: A Torre.

A apatia geral dos aveirenses apenas seria quebrada em 1949, quando uma comissão constituída por Acácio Rosa, Alberto Souto e António Lebre resolveu homenageá-lo em Verdemilho, quatro anos depois do centenário do nascimento. Apetece dizer que os aveirenses de gema e os que começaram a comer os ovos moles em idades mais avançadas  talvez não mereçam a afeição que Eça lhes dedicou e que de algum modo nos comove, nesta prosa endereçada a Oliveira Martins:

“Filho de Aveiro, educado na Costa Nova, quase peixe da Ria, eu não preciso que mandem ao meu encontro caleches e barcaças. Eu sei ir por meu próprio pé ao velho e conhecido palheiro do José Estêvão.”

Fachada do Solar de Verdemilho (demolido)

Na verdade, entre os 3 e os 10 anos e sem beneficiar dos carinhos maternos, Eça terá vivido no solar de Verdemilho os melhores tempos da sua infância. Na companhia do avô José Joaquim de Queirós e do criado Mateus – que o conselheiro liberal trouxera do Brasil – sentado nos seus joelhos a ouvir as aventuras de João de Calais. Não admira que mais tarde tenha manifestado o desejo de ser sepultado em terras de Aveiro, a fazer fé  na sua viúva, que em carta de 17 de Dezembro de 1932 escreveu a Luís de Magalhães, filho do tribuno José Estevão e grande amigo da família Queirós, admitindo a possibilidade de transladar os restos mortais para Aradas (Aveiro):

Palheiro de José Estêvão, na Costa Nova (aspecto actual)

“Eu desejava muito reunir o meu marido e o meu filho, foi o que me fez pensar no jazigo já existente ao pé de Verdemilho (…)”. Em carta de 15 de Agosto de 1933, Luís Magalhães escreve: “V. Exa. é que nos podia dar o prazer de ir passar  uns dias à Costa Nova (…). Seria ocasião para irmos a Verdemilho e resolver-se, no próprio local, aquele assunto que tanto a preocupa”.

O próprio local de nascimento do escritor tem gerado polémica e continua envolto em mistério. Póvoa do Varzim? Vila do Conde? Pedro Calheiros, professor da Universidade de Aveiro, referiu em entrevista ao Público que o autor de Os Maias “pode, de facto, ter nascido em casa do avô paterno, em Verdemilho”.  E acrescenta: “Há bastantes razões para duvidar da tese sobre o nascimento de Eça de Queirós que a Póvoa de Varzim conseguiu impor, em concorrência muito séria com Vila do Conde, onde o escritor foi baptizado”. Esta teoria é explicada com detalhe no “Suplemento ao Dicionário de Eça de Queirós”, coordenado por A. Campos Matos (Editorial Caminho).

O principal argumento a favor de Verdemilho é precisamente o excerto acima transcrito da carta de Eça de Queirós a Oliveira Martins, que Pedro Calheiros considera uma declaração de amor à “terra natal”, acrescentando também que Aveiro é o lugar de nascimento declarado na certidão de óbito do escritor: “É como se tivesse havido a vontade de repor a verdade [na certidão de óbito], numa situação de descontrolo emocional ou numa altura em que já não havia uma necessidade tão grande de fazer concordar os documentos oficiais com aquele que servia de termo de partida e de comparação, o assento de baptismo”. De facto, como explicar, aquando do falecimento do escritor, que de Paris se informe Portugal que ele seria enterrado em Aveiro? Dificilmente isso seria possível se a questão não tivesse sido ventilada antes e merecido a sua concordância.

Como escreveu Eugénio Lisboa, o Panteão de um escritor são os seus leitores: “Eça está, há muito e para sempre, no seu feliz Panteão: os leitores que o admiram e, na sua afiada e inovadora língua, se banham. Uma das grandes forças da visão e da estilística de Eça foi sempre uma elegante e nobre distanciação da pompa, que considerava cómica e apenas bom material para uma desenfastiada chacota.”

Desenho de Rafael Bordalo Pinheiro

Ironia das ironias: Os Maias (não vá algum aluno perguntar ao professor o que é o incesto…) e A Ilustre Casa de Ramires deixaram de ser leitura obrigatória no ensino secundário, apesar de Eça  de Queirós ter por aí estátuas, nome de ruas e de prémios (e não sei se de escolas e bibliotecas). O retrato que fez da segunda metade do século XIX – como Camilo fez da primeira – deixou de ser uma narrativa legítima, como se nada tivesse a ver connosco. E assim se privam as novas gerações das tiradas do teatral e poseur Tomás de Alencar e do demagogo e incoerente João da Ega, neste Portugal onde floresce cada vez mais a sabedoria balofa de Acácios e Gouvarinhos.

Não é preciso ser um profundo conhecedor da obra queirosiana para intuir que a decisão de transferir os restos mortais do escritor para o Panteão talvez não merecesse o seu consentimento. A  contundente ironia queirosiana – uma estética da ironia lhe chamou Mário Sacramento – sempre  se abateu e demoliu em farpas tudo o que era artifício, demagogia política, pompa e circunstância de uma certa burguesia da decadente sociedade oitocentista.

Deixem-se de argumentos baseados na pretensa “superioridade intelectual” para impor pontos de vista, de guerras estéreis entre a cidade e o campo, a capital e a província. Deixem que cada um pense pela sua cabeça. Deixem as ossadas do Eça em paz.  Ao arrepio de opções diferentes e não menos legítimas, penso que estão bem onde estão, mais perto da placidez rural e dos ares do campo. Longe da pompa citadina e da vacuidade que a sua ironia sempre fustigou. Mais perto, também, do frango alourado com arroz de favas, prato incontornável da gastronomia do Marão.

Eça de Queirós continuará a ser um nome maior das letras portuguesas. No Panteão Nacional ou fora dele.


Consultas:
Eça de Queirós, Correspondência, Lello & Irmão Editores, Porto, 1978.
Eugénio Lisboa, “O Panteão de um escritor são os seus leitores” https://dererummundi.blogspot.com/2023/09/o-panteao-de-um-escritor-sao-os-seus.htm
Jorge Campos Henriques, Eça em Aveiro. Raízes e outras histórias. Edição da Câmara Municipal de Aveiro, 2001.
Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 1382, 20.09 a 03.10.2023
Litoral (semanário de Aveiro), n.ºs 1549, 1576 e 2013.
Pedro Calheiros, “Verdemilho, Berço de Eça?”, in folhas – letras & outros ofícios, n.º 7.
Público (edição de 17 de Fevereiro de 2001), p. 46.
Vértice, n.º 76, Dezembro 1949.

Eduardo Lourenço – “mestre da dúvida” e da interrogação permanente

Gostaria de viver num convento onde o superior fosse Álvaro de Campos

“No plano do conhecer ou no plano do agir, na filosofia ou na política, o homem é uma realidade dividida. O respeito pela sua divisão é Heterodoxia”

Eduardo Lourenço

Assinala-se a 23 de Maio o centenário de nascimento de Eduardo Lourenço. A Fundação Calouste Gulbenkian já lhe prestou merecida homenagem, ao organizar um colóquio no dia 28 de Março. Outras iniciativas estão programadas, na cidade da Guarda, onde o Congresso Leituras de Eduardo Lourenço vai revisitar as diferentes facetas da vasta obra daquele que a si próprio se intitulava um “místico sem fé”, ou – atrevemo-nos a dizer – alguém que é portador de uma fé heterodoxa.

Eduardo Lourenço de Faria (doravante designado por EL) nasceu em S. Pedro do Rio Seco, pequena aldeia do concelho de Almeida, distrito da Guarda. Fez a escola primária na terra natal e os estudos secundários na Guarda. Mais tarde rumaria à Universidade de Coimbra, onde encontra um ambiente propício à reflexão cultural, concluindo o curso de Ciências Histórico-Filosóficas. Nos anos 50 foi leitor de português em universidades alemãs e francesas, acabando por se fixar primeiro em Nice e depois em Vence (sul de França) como professor de Filosofia. Não é fácil classificar uma personalidade tão rica e multifacetada, alguém que foi ao mesmo tempo filósofo, pensador, crítico literário e ensaísta penetrante, ensaísmo esse entendido enquanto experiência do questionamento e de busca de sentido capazes de rasgar clareiras para domínios inexplorados.

No plano da filosofia merecem destaque dois dos seus primeiros e mais citados livros, Heterodoxia I (1949) e II (1967) e ainda os estudos sobre António Sérgio ou sobre a filosofia em Antero de Quental, reunidos em Antero ou a Noite Intacta (2007). Sobre Heterodoxia I, obra em que o então jovem EL assume pela primeira vez a sua condição de pensador solitário, é ele mesmo que nos esclarece ter o livro nascido do seu desejo de se demarcar das duas ortodoxias que por essa altura monopolizavam os meios intelectuais portugueses: o catolicismo e o marxismo. Era esta a polarização fundamental da vida cultural portuguesa nos anos 40. Essa dicotomia, tantas vezes extremada no debate político, era para EL a responsável pelo estreitar do caminho onde deviam circular e fluir livremente a cultura e o pensamento.

Chegou a confessar, numa entrevista, que este livro lhe provocou vários dissabores entre os antigos camaradas já entretanto ligados ao núcleo coimbrão da geração neo-realista, “uma audácia” que o deixou “isolado” e “sem família”. O heterodoxo que recusou tanto a leitura racional e positiva dos acontecimentos como a tentação de explicar o mundo que nos rodeia com recurso exclusivo aos mitos, disse em Heterodoxia I, no prólogo, que “a heterodoxia é a consciência absoluta da pluralidade histórica das ortodoxias” (p. 6). Anos mais tarde, no segundo prólogo sobre o espírito da heterodoxia, empenhou-.se em clarificar – e de algum modo também corrigir – ainda mais o conceito: “Recusar a verdade dos outros ou o espírito com que eles a vivem não é o mesmo que encontrar a sua” (Heterodoxia II, p. 90). EL assumiu que em 1949 teria cometido o equívoco de pensar que um ortodoxo não pode ser um homem livre e que a heterodoxia seria a única forma de exercitar a liberdade. Irresistível não pensar no poeta Joaquim Namorado, com quem privou em Coimbra e de quem foi colega nas páginas da Vértice, que um dia proclamou aos quatro ventos que “só a ortodoxia é uma aventura”.

Nas décadas de 50 e 60 avulta sobretudo o crítico literário, embora já na anterior apareçam as primeiras recensões de EL em revistas como Vértice ou Seara Nova. Em 1955 dá a estampa O Desespero Humanista de Miguel Torga e o das Novas Gerações, inaugurando com esse e outros textos sobre poesia, no dizer de Miguel Real, “uma crítica de tipo novo” em Portugal. A consagração desta sua faceta de crítico literário – depois de abandonar, quase por completo, a reflexão filosófica – acontece com a publicação do célebre e polémico ensaio “Presença ou a contra-revolução do modernismo português”? sedimentada, anos depois, com a edição de Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista (1968), as fulgurantes análises de Fernando Pessoa Revisitado (1973) ou Fernando, Rei da Nossa Baviera (1986), Tempo e Poesia (1974), Poesia e Metafísica (1983) ou O Canto do Signo, Existência e Literatura (1994).

O ensaio “Presença ou a contra-revolução do modernismo português?” foi publicado inicialmente em 1960, no suplemento quinzenal Cultura e Arte do jornal O Comércio do Porto e tornou-se desde então um texto incontornável, apesar da poda feita pela censura, nomeadamente com a supressão de referências a Adolfo Casais Monteiro. Num tempo pautado pela quase inexistência de sentido crítico no árido panorama das letras em Portugal, a ninguém foi indiferente esta publicação, que acabou por merecer o aplauso de uns e o melindre de outros – sobretudo os presencistas convictos – e ateou polémicas cujas labaredas ainda perduram. Este ensaio – que Miguel Real considera o “artigo de crítica literária possivelmente mais famoso do século XX em Portugal” – contra as ideias feitas e uma certa unanimidade instalada na crítica literária da época, não podia deixar indiferentes os que sustentavam ser o espírito da Presença o continuador cultural do Orpheu e não a contra-revolução do modernismo, como sustenta EL

O texto acabaria por gerar uma fecunda controvérsia, que se prolongou até aos nossos dias. De entre os presencistas mais convictos, aquele que se terá sentido mais agredido com a tese da contra-revolução do modernismo foi João Gaspar Simões, o “guarda-mor das nossas letras”, como lhe chama EL (Tempo e Poesia, p. 19). Ao lado de EL colocou-se, entre outros, Jorge de Sena, que apesar de não subscrever na íntegra a tese da contra-revolução, considera não existir continuidade na poesia dos dois modernismos.

O Labirinto da Saudade, Psicanálise Mítica do Destino Português (1978) é, porventura, o seu mais conhecido e celebrado livro. Nele encontramos ensaios que traçam o retrato da mentalidade portuguesa e onde se procura uma resposta sobre que é, afinal, isto de ser português. Num desses ensaios, escreve: “a mais sumária autópsia da nossa historiografia revela o irrealismo prodigioso da imagem que os Portugueses fazem de si mesmos” (p. 17).  Uma das obras fundamentais do século XX sobre a nossa identidade, que ajudou a outorgar-lhe o estatuto de incontornável teórico da cultura portuguesa, reconhecido nacional e internacionalmente. Grande parte da sua vida foi passada a sondar os mitos da nossa cultura, nomeadamente o diálogo que os mitos estabelecem com as várias épocas. O ensaio principal desta obra foi escrito para a revista Raiz e Utopia (n.º 5-6, 1978).

Para lá das facetas já aqui abordadas, há também o EL do empenhamento político. Data de 1958 o primeiro texto onde manifesta a sua oposição ao Estado Novo, com o título “O Exército ou a Cortina da Ordem”. Nos dois anos seguintes volta a publicar em jornais brasileiros textos de carácter político e a favor da instauração de um regime democrático em Portugal. A seguir à revolução de Abril de 1974, quando a liberdade se instala com a queda do império, tenta compreender e pensar Portugal em textos de intervenção política dispersos por jornais e revistas. A residir em França, pensou com olhar distanciado o complexo e contraditório processo revolucionário que haveria de nos conduzir à democracia e à integração na União Europeia. Derramou esse olhar distanciado em páginas da imprensa, mas também em livros como Os Militares e o Poder, Ocasionais, A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História?, O Complexo de Marx, Do Colonialismo como Nosso Impensado, O Fascismo Nunca Existiu e Nós e a Europa, ou as duas razões.

Finalmente, encontramos também em EL a vincada faceta do esteta. Ora em textos publicados em O Tempo e o Modo e Colóquio/Artes ou reflectida em livros como O Espelho Imaginário – Pintura, Anti-Pintura, Não Pintura (1961), Tempo da Música, Música do Tempo (2012), Da Pintura (2017) e  Segundo Paraíso: Do Cinema como Ficção do nosso Sobrenatural, uma recolha de ensaios, artigos, recensões, notas de agenda e manuscritos que se encontravam dispersos, com títulos como estes: “Edgar Morin ou o Homem como Cinema”, “Marilyn no Céu”, “Charlot, Mito Ambíguo ou Mito Nefasto?”, “Bergman e a Entropia”, “Insólito João de Deus”, ou “A Paixão (Portuguesa) segundo Manoel de Oliveira”.

Estamos a falar de alguém que sempre insistiu em querer compreender  as imagens que os portugueses foram historicamente construindo de si mesmos, o país que somos, o “navio-nação a que chamamos Portugal”, mas com uma visão desencantada e pessimista dos tempos que aí vêm, como transparece da leitura de Nós como Futuro: ao afirmar que “nenhuma barca europeia é mais carregada de passado do que a nossa” e que “simbolicamente nenhum povo vive no passado como Portugal”, EL quer-nos dizer que Portugal vive o presente em função de imagens do passado, imagens essas construídas com a finalidade de perpetuar as ortodoxias reinantes. E será essa nossa maneira tão peculiar de incorporar e viver o passado que acaba por constituir “um sério obstáculo para conceber o futuro”. Um futuro de Portugal que foi desde cedo “o lá fora, a distância nossa ou alheia”.

O consabido pessimismo deste dissidente da sua própria geração e “fascinado escalpelizador da nossa pequenez” (Eugénio Lisboa dixit) também é reconhecível em O Esplendor do Caos, ao sublinhar que “assistimos, sem nenhuma espécie de espanto e ainda menos pânico intelectual, ao sucesso e à glorificação do conceito de caos”. Ou quando afirma: “Nós incorporámos o inferno no quotidiano do mais fascinante e atroz dos séculos (…) num mundo onde o horror se tornou invisível, consumido como pura virtualidade”. José Gil e Fernando Catroga, dois especialistas em história das ideias, classificam este recuo do inteligível, esta forma de EL perscrutar o futuro, de “ensaísmo trágico”. Um olhar trágico sobre a época que lhe foi dado viver, sobre o desencanto do mundo patente no desmoronar da racionalidade programática, em que se assiste ao enfraquecimento da ideia religiosa e metafísica da verdade.

Galardoado com os Prémios Camões e Pessoa, dois dos poetas que mais admirava, consagrado à esquerda e à direita, o autor de O Labirinto da Saudade não morria de amores por um certo anel de ferro do unanimismo que se foi apertando – seguramente com alguns equívocos e alguma ignorância da sua obra à mistura – em torno do seu nome. Aquando do seu desaparecimento o Jornal de Letras dedicou-lhe um número especial onde praticamente todos os textos afinavam pelo diapasão do consenso laudatório. Bastou um texto não alinhado, saído da pena de Eugénio Lisboa, para o verniz estalar. Sentindo-se visado pelas farpas lançadas no editorial, bateu com a porta e acrescentou, na carta de despedida: “José Carlos de Vasconcelos, quero comunicar-lhe que não volto a colaborar no JL. Enquanto o fiz, procurei sempre dizer (…) aquilo que penso: com admiração, quando ela é devida, mas sem idolatrias próprias de ditaduras de terceiro mundo”.

No essencial, o texto de Eugénio Lisboa limitava-se a assinalar uma evidência na prosa de EL: um certo culto da obscuridade, tributário da moderna escola francesa com a qual estava familiarizado. A isso contrapunha Eugénio Lisboa autores como António Sérgio ou José Régio, que nos oferecem “uma prosa limpa, intrepidamente descascada, alheia a floretti e a maneirismos gongorizantes, que só servem para atravancar o fluir asseado das ideias”. Esta crítica em nada abala a consideração que EL lhe merece, apesar de sabermos que não partilha algumas das suas teses. Essa consideração intelectual está bem patente num texto publicado em Maio de 1984 na revista Prelo, onde podemos ler, a propósito de Heterodoxia I, que “aquele jovem inquieto, inteligente e autónomo” teve o mérito de “tentar rasgar a cortina triunfalista e monolítica dos asfixiantes anos 40 (…) os monolíticos centros de decisão que faziam e desfaziam as reputações, em função de bom comportamento ideológico do candidato à glória” (p. 23).

Não será temerário afirmar que talvez ninguém como EL tenha construído uma obra ensaística tão livre de imposições, que tenha abalado tanto, nas décadas de 60 e 70, as consciências da crítica literária portuguesa. Muito poucos terão pensado, de forma tão arguta e profunda, a cultura portuguesa da segunda metade do século XX, cruzando os planos da literatura, da filosofia, do simbólico e do mítico. A vasta e sólida cultura que connosco partilhou foi sempre mais um cais de partida que um ponto de chegada. Ninguém como ele terá ajudado a desconstruir o discurso ortodoxo que é o estrume de todos os mitos, apesar de saber que os manes tutelares da certeza se ofendem com a dúvida e não deixariam de descarregar sobre ele a sua fúria, apostados que sempre estiveram em expurgar heterodoxias.

Ora o debate sobre a vasta obra que EL nos legou, profunda, complexa e provocatória, nada terá a ganhar com o unanimismo acrítico das claques aquiescentes que hoje o veneram. Do que verdadeiramente a sua obra anda carecida não é da sociedade de corte que a idolatra nos habituais espaços de hagiografia. É de crítica construtiva. É que sobre ela recaia a atenção dos que de algum modo o continuam, fascinados com a dúvida e a interrogação permanente.


Consultas:
Ana Cristina Ferreira Assunção Marrucho, “Presença ou a Contra-Revolução do Modernismo Português”. Dissertação de Mestrado, Lisboa, 2008 (consulta electrónica)
António Guerreiro, “O espírito da heterodoxia”, Actual (Expresso), 17.12.2011, p. 30
Eduardo Lourenço, Heterodoxia, Ed. Assírio & Alvim, 1987
Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, (Relógio D’Água, s/d)
Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, Publicações Dom Quixote, 1988
José Gil/Fernando Catroga, O Ensaísmo Trágico de Eduardo Lourenço (Relógio D’Água)
Miguel Real, Eduardo Lourenço. Os Anos da Formação (1945-1958), IN-CM, 2003
Miguel Real, O Essencial sobre Eduardo Lourenço (IN-CM)
PRELO (Número especial sobre Eduardo Lourenço), Maio, 1984

Natal – contos, poesia e o maravilhoso infantil

Uma das mais apreciadas obras de Ruben A. (Ruben Alfredo Andresen Leitão) é O Mundo à minha procura, livro autobiográfico onde se descarna e auto-flagela, numa exigência de sinceridade que não faz qualquer tipo de concessões ao medalhão ou ao elogio fácil. É nesta obra que o originalíssimo escritor nos dá a conhecer como era o Natal no Porto nos anos 30 do século XX, na Quinta do Campo Alegre, onde hoje se encontra instalado o Jardim Botânico. Foi lá que passou boa parte da infância. Aqui ficam alguns trechos que espelham a forma como interiorizou essas noites de Natal, tempos felizes vividos no seio de uma abastada burguesia portuense.

“Se pensar bem, vejo que nada encontrei na vida que se compare ao Natal do Campo Alegre. Era um Natal nórdico, alimentado pela combustão germânica e dinamarquesa da família de meus avós, aperfeiçoado pelos requintes trazidos ao seu brilho pelas minhas tias que, através do casamento ou por feitio, capricharam mais em festejar a data do nascimento de Cristo sob a forma tradicional das antigas lendas do Reno, do que segundo os cânones da consoada portuguesa (…).

Era uma festa de mil cores, pantagruélica, ampliada de generosidade que começava no dia em que a tia Teodora ia à mata com o Sezé escolher cuidadosamente qual seria o pinheiro a deitar abaixo para se colocar no centro do átrio do Campo Alegre (…). O pinheiro, aquela devoção da árvore, fazia muita confusão ao Sezé. O Natal para ele era uma rija bacalhoada, missa do galo e filhós bem encharcadas numa calde de açúcar com canela (…).

Havia açafates de fruta cristalizada, castanhas, nozes, amêndoas, uvas passas habitando as taças do estupendo serviço azul e branco de Sèvres, fruta do Douro colocadas para natureza-morta em fruteiras de cristal (…). A mesa grande da casa de jantar sentava uns quarenta e oito (…). Estabelecia-se o silêncio e o bacalhau era servido em segunda edição. E bacalhau assado como aquele nunca mais comi. Dá-me a lembrança que começava a perder sal uns quatro a cinco dias. Revelava—se em posta do alto, julgo que uma mão travessa de espessura, bacalhau do autêntico da Noruega. Coberto a seguir com uma camada de cebola às rodelas e coroado por broa de milho, tudo isto mergulhado até meia altura em banho de azeite, com batatas novas a rodear, ia ao forno e saía tostado de encantar um morto. Ao lado uns grelos e uma penca do Douro coloriam de verdura este monstro gastronómico que se servia em silêncio de grande ocasião. Ao mesmo tempo – e isto é extraordinário – do outro lado da mesa, os criados apresentavam o célebre bacalhau esfiado com um creme no meio que fazia as delícias aos mais desdentados da família”.

O que não falta na literatura são belos contos de Natal. Na estrangeira, entre tantos outros, os de Dickens – que nos dá a conhecer Scrooge, personagem da época vitoriana que só a muito custo recupera a humanidade perdida – e os de Agatha Christie. Na portuguesa, basta pegar na antologia de Vasco Graça Moura, Gloria in Excelsis, para saborear, entre a trama religiosa e a laicidade, suculentos nacos de prosa natalícia. Contos de Jorge de Sena, José Régio, Miguel Torga, Aquilino Ribeiro, Vitorino Nemésio, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, José Saramago, Manuel da Fonseca, Urbano Tavares Rodrigues, Raul Brandão e outros. Segundo Vasco Graça Moura, “praticamente nenhum dos grandes nomes da nossa ficção deixou de abordar o tema”, reconhecendo também que “há um tom de desgraça nalguns contos de Natal portugueses”. Apetece acrescentar: Pudera! Nem todos os lares conheciam pelo Natal – e fora dele – a abastança da Quinta do Campo Alegre descrita por Ruben A. Sempre houve e haverá Natais de ricos e de pobres.

Não é só na prosa portuguesa sobre o Natal que deparamos com amargura ou desalento. Na poesia esses elementos também estão presentes, ou não fossem os poetas sensíveis à pobreza, à miséria e aos azares de tantas existências viúvas de alegrias. É desses estados de alma que resultam da oposição profana entre tempo feliz e tempo de amargura que nos fala este tocante poema “Noite de Natal”, de António Feijó:

Bairro elegante, – e que miséria!
Roto e faminto, à luz sidérea,
O pequenito adormeceu…

Morto de frio e de cansaço,
As mãos no seio, erguido o braço
Sobre os jornais, que não vendeu.

A noite é fria; a geada cresta;
Em cada lar, sinais de festa!
E o pobrezinho não tem lar…

Todas as portas já cerradas!
Ó almas puras, bem formadas,
Vede as estrelas a chorar!

Morto de frio e de cansaço,
As mãos no seio, erguido o braço
Sobre os jornais, que não vendeu,

Em plena rua, que miséria!
Roto e faminto, à luz sidérea,
O pequenito adormeceu…

Sonha talvez, pobre inocente!
Ao frio, à neve, ao luar mordente,
Com o presépio de Belém…

Do céu azul, às horas mortas,
Nossa Senhora abriu-lhe as portas
E aos orfãozinhos sem ninguém…

E todo o céu se lhe apresenta
Numa grande Árvore que ostenta
Coisas dum vívido esplendor,

Onde Jesus, o Deus Menino,
Ao som dum cântico divino,
Colhe as estrelas do Senhor…

E o pequenito extasiado,
Naquele sonho iluminado
De tantas coisas imortais,

– No céu azul, pobre criança!
Pensa talvez, cheio de esp’rança,
Vender melhor os seus jornais…

Regresso à literatura estrangeira e a um livro que também já serviu de inspiração a uma belíssima série televisiva. Refiro-me a Reviver o Passado em Brideshead, do escritor britânico Evelyn Waugh. Há nesta obra um momento inesquecível, quando Charles Ryder pergunta ao católico Sebastian como pode acreditar no nascimento de Cristo, nos Reis Magos e até na Estrela de Belém que terá anunciado a chegada do Messias. A resposta de Sebastian é surpreendente: “- Oh, mas acredito! É uma ideia maravilhosa”.

Por respostas destas e por outras é que não devemos retirar a crença no Pai Natal ao imaginário infantil. Dizer às crianças que o Pai Natal não existe, como o Peter Pan não existe, é cortar-lhes o fio do sonho, impedi-las de caminhar nas veredas do imaginário. Um dia vão fingir que não sabem que ele não existe, porque não é fácil mergulhar no poço de desencantamento do mundo nem renunciar ao mundo mágico da fantasia da infância. Também nesse momento nos cabe fingir que não sabemos que já eles sabem. Mentir por amor é que é falar verdade.

É preciso continuar a alimentar o imaginário dos mais pequenos, recusando a morte dos mitos da infância. Pouco importa saber se havia burro ou vaca no Presépio ou o dia certo em que Jesus nasceu, ou se a celebração antiga do Natal foi uma forma de combate às celebrações pagãs. É preciso respeitar esse mundo mágico a que têm direito e tentar mantê-lo intocado. Isso requer de nós que valorizemos mais a maravilha da ideia do que o verosímil da história. É isso que faz o poeta David-Mourão Ferreira em “Surdina de Natal para os meus netos”:

Ó David Ó Inês
vamos ver o Menino
inda mais pequenino
que vocês

Vamos vê-lo tapado
sob o céu do futuro
com a sombra de um muro
a seu lado

Vamos vê-lo nós três
novamente a nascer
Vamos ver se vai ser
Desta vez

Meu querido Pai Natal, vou confessar-te uma coisa: tenho setenta anos e gostava tanto de receber uma prenda tua. Como no tempo em que tudo fazia para manter-me acordado, para não adormecer à noite, com o calor a amornar os corpos, à sonolência da lareira. Dava tudo para te ver chegar, receber e agradecer as prendas. Sempre te esquivaste ao tão ansiado encontro. Acordar cedo, alvoroçado, levantar-me de um pulo, sentir qualquer coisa a cintilar dentro de mim e correr para a lareira, ver o que tinha no sapatinho. E como era feliz com uns simples rebuçados coloridos. Ainda mais com uma pomba de chocolate, por mais oca que fosse. Sempre ficava mais barato, como dizia o O’Neill a propósito das três sílabas de plástico…

Vinte e cinco anos sem David Mourão-Ferreira

Apartou-se do nosso convívio num dia 16 de Junho, há precisamente vinte e cinco anos. Poeta, romancista, crítico literário e ensaísta, considerava-se sobretudo poeta do amor e dos sentidos. Mestre de vários géneros literários, manteve sempre uma relação muito próxima com as mulheres, a quem olhava como arte e como música, talvez como reacção à ameaça constante do informe. A imagem do sedutor colou-se-lhe à pele. Ele ripostava, dizendo que não, que os homens não seduzem, acabam sempre seduzidos.

Muitos viram nele o poeta do amor e da sensibilidade, como acontece neste poema magistral sobre a mulher:

ILHA

Deitada és uma ilha E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente

promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente

Deitada és uma ilha Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro

ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias

In Cem Sonetos Portugueses.
Edição Terramar, 2002.

Em boa hora Agostinho da Silva o encaminhou para a Literatura, pela qual viria a sentir uma avassaladora paixão e um genuíno amor, num tempo em que o pai desejava que optasse por Direito. Um eterno sedutor, com o prazer constante de ensinar: “Há duas coisas que não dispenso – estar com uma mulher e ensinar”.

Lisboeta dos quatro costados e poeta de Lisboa, era também um viajante inveterado, capaz de voar para as sete partes do mundo. Nos lugares por onde passou captou ritmos e imagens, exprimiu emoções, engendrou metáforas. Amantíssimo dos clássicos, cultivava no poema a divina proporção, num virtuosismo sem falhas. Uma poesia capaz de triunfar sobre a desordem e de impor regras ao caos precário da existência. Uma poesia capaz de transformar o caos em cais de aventuras sempre renovadas.

“Um Amor Feliz”, título do seu último romance que venceu o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores, assim se poderia condensar a sua vida. Um amante da vida e dos seus prazeres: “o que acho cada vez mais extraordinário é a vida, a maravilha que é estarmos vivos”.

CASA

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão…

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.

In Antologia Poética.
Publicações D. Quixote, 1983, p. 97.

Poeta em viagem sem regresso há vinte e cinco anos, continuamos a reter no écran da memória, para lá da sua obra, também aquela presença envolta numa nuvem branca de tabaco de cachimbo. Uma vida que ele desejou reduzida a um monumento de palavras. Escasseiam as palavras para exprimir a vida e a falta que David Mourão-Ferreira ainda hoje nos faz.

Memória e louvor da editora Cotovia

Há pelo menos duas editoras que sempre associei a pássaros: A Minerva, que nos remete para a coruja, e a Cotovia. Mas os pássaros são imprevisíveis: uns regressam, como as andorinhas em seus voos rasantes. Outros desaparecem de vez, como aconteceu agora a esta prestigiada editora.

A coruja de Minerva está associada à sabedoria. O filósofo idealista Hegel, de quem Marx é tributário, escreveu que a coruja de Minerva só voa à noitinha. Queria com isto dizer que uma civilização só atinge a sabedoria quando se aproxima do crepúsculo. A sabedoria necessária para a salvar aparece, por assim dizer, tarde de mais. Mas a coruja de Minerva também pode ser vista, como acontecia no antigo folclore romano, como arauta da morte.

Harper Lee tem um livro com um título premonitório: Não Matem a Cotovia, que trata da desigualdade racial nos anos 30, no sul dos Estados Unidos, e pode funcionar aqui como metáfora do desigual tratamento entre editores e livreiros no preciso momento em que a Cotovia deixou de entoar o mavioso canto. Já voava baixinho desde Fevereiro, altura em que ficou amputada do seu espaço físico. À meia-noite de 30 de Novembro – o dia da morte de Fernando Pessoa – finou-se de vez. 

A cultura e as artes sofrem mais um rude golpe com o desaparecimento desta apreciada editora de autores clássicos, de livros de teatro, de poesia contemporânea e de outras preciosidades. Porque os livros continuam a ser um bem cultural insubstituível. A visão de uma utopia generosa foi apagada pelas cataratas da indiferença de quem poderia ter feito alguma coisa para a salvar. Nunca por nunca os dinossáurios que gerem a seu bel-prazer os grandes grupos editoriais estariam dispostos a franquear as portas do seu Parque Jurássico a editoras independentes como a Cotovia. Nas capelinhas do elogio mútuo – onde pontificam os que tiveram a sorte de não ser excluídos dessa coisa a um tempo ambígua e complexa que é o cânone literário, uma escolha de autores condenada a discussões intermináveis – prevalecem as afinidades políticas e as amizades pessoais.

Num país em que poucos compram, lêem ou oferecem livros e onde parece que se gasta mais dinheiro em cápsulas Nespresso do que em livros;  em que outros tantos tudo fazem para transformar a cultura em mercadoria e comércio; em que para muitos “as letras são tretas”, incapazes de perceberem “a utilidade do inútil”, pois só vêem útil no que gera lucro; em que ainda temos gente que frequentou a universidade a dizer que o familiar ou amigo que estuda “anda em românticas” (em vez de românicas) ou “anda em antigas” (numa alusão à literatura clássica), as corujas e cotovias da cultura tendem a desaparecer de vez do nosso convívio, ameaçadas pelos pesticidas da ignorância generalizada.

Vivemos cada vez mais imersos na era do vazio e no império do efémero de que fala Lipovetsky. Vivemos um tempo de suposta relação objectiva entre a felicidade e o consumo, de hedonismo generalizado, mas onde – estranho paradoxo – nunca foi tão grande como hoje a corrida às farmácias para comprar antidepressivos. Também sociedade do cansaço, do desaparecimento dos rituais e da expulsão do outro, como nos mostra o filósofo germano-coreano Byung-Chul Han. Um tempo em que quem manda nas televisões domésticas substitui, em generosos tempos de antena, escritores e poetas por cozinheiros, fazendo tábua-rasa dos ensinamentos de Natália Correia, que n’A defesa do poeta lembra aos subalimentados do sonho que a poesia é para comer.

Relembro que a Poetria, a primeira livraria de poesia do País, foi em tempos notificada do encerramento das Galerias Lumière, no Porto, onde se encontra instalada desde 2003. Cada vez mais editoras fecham portas. Cada vez menos livrarias, menos cinemas, menos espaços afectivos de pensamento, sociabilidade e convívio com a cultura. Sobre a cabeça dos pequenos e médios editores e livreiros rodopia, ameaçador, o cutelo da devastação iminente. Os ditos grandes editores asfixiam de forma insidiosa os mais pequenos, fazendo lembrar o Sermão de Santo António aos Peixes onde, no dizer do Padre António Vieira, um peixe grande se alimenta de muitos pequenos, quando o contrário é que estaria mais conforme com as leis da Natureza. 

É frágil o nosso ecossistema cultural, assente em pequenas tiragens. A paisagem literária e cultural encolhe e afunila a cada dia que passa. Até quando, esta apagada e vil tristeza? Agora, é tempo de os abutres rondarem os despojos da Cotovia. Foi isso que disse Fernanda Mira Barros, a gerente da editora: “os urubus dos espólios, desde Agosto (se não antes) que os avistamos”. Restam as edições cuidadas. Fica a sobriedade na textura das capas, a qualidade do grafismo, o bom gosto da escolha dos autores.

Resta-me o (fraco) consolo de continuar a ter a Cotovia aqui pelas estantes, em merecido repouso ou a saltitar de umas prateleiras para as outras.

Treze anos sem Eduardo Prado Coelho (1944-2007)

A falta que nos faz o Eduardo, sempre pronto a lançar-nos o dardo da interrogação permanente, na sua recusa obstinada de tudo quanto cheire a nacionalismo ideológico, militarismo, fascismo ou totalitarismo. O crítico e ensaísta de reconhecida erudição. O professor universitário que não gostava de dar notas nem de realizar exames, preferindo valorizar uma certa concepção anarquista da pedagogia literária. O autor de livros incontornáveis como A Mecânica dos FluidosO Reino FlutuanteOs Universos da Crítica ou A poesia ensina a cair, título tributário de “O poema ensina a cair”, de Luiza Neto Jorge.

Atento aos pormenores, a escrever sobre tudo e mais alguma coisa. Um hedonista da cultura e um esteta do visível. A prática da escrita por fragmentos: a literatura, a fotografia, o cinema, o teatro, a pintura, a música, a fina análise política, a escrita sobre as trivialidades do quotidiano. A lembrar Terêncio: nada do que é humano me é indiferente. Ou, mais próximo de nós, Roland Barthes, de cuja obra era um dos mais atentos leitores, ou não partilhasse com ele o prazer e a diferença contra os puritanismos da verdade e da ciência. Um sismógrafo do quotidiano, o divulgador fascinado pela novidade do que de melhor acontecia e se publicava lá fora. Uma presença constante, e cúmplice, com o “ar do tempo”.

Também um esteta da ironia, como por aqui se vê:

“Manuel de Lucena (…) escrevia que a vitória de Soares Carneiro (presidenciais de 1980) era extremamente provável, mas que não se podia excluir a hipótese de Eanes vencer, porque às vezes Deus está distraído. Foi o que se viu – uma distracção de Deus. Só nos espanta um pouco que Deus se distraia logo à primeira volta em cinquenta e seis por cento” (Semanário O Jornal, 19.12.1980).

“O caso do Expresso torna os sábados particularmente ginasticados. Porque o jornal (…) é constituído por duas partes perfeitamente distintas: a que se lê e a que se não lê. Nesta última incluo, como é óbvio o “topo de gama” “o imobiliário”, os “transportes”, a lista regular das 100 empresas que mais contam em Portugal e a colecção de electrodomésticos de uma conhecida marca, sem falar nas viagens às Maldivas, nas medalhas nem sei de quê ou num curso rápido para aprender línguas exóticas (…). O problema está em como deixar no café aquela carga de leituras dispensáveis sem que o solícito habitante da mesa ao lado venha atrás de nós a proclamar que esquecemos uma coisa”. (Crónicas no Fio do Horizonte, Edições Asa, 2004, pp. 78-79).

E que dizer deste texto, intitulado “Pré-Queda”, delicioso no que tem de premonição e de ironia corrosiva, quando alude aos telejornais em Portugal?

“Não me espanta nada que um dia destes os telejornais portugueses abram o seu alinhamento informativo com algo do tipo “Devido ao frio, mulher ia caindo de um escadote ao procurar um cachecol na parte de cima de um velho armário. Veremos então toda uma equipa tiritante deslocar-se ao local do não-acontecimento (…) e começar a fazer um inquérito segundo as normas que laboriosamente aprendeu nos cursos de Comunicação Social. Começa-se pela protagonista do sucedido, com a inevitável pergunta: “como se sente neste momento, depois de ter estado quase a cair do escadote”? Pálida, ainda estremunhada, a mulher responde pela quarta vez que se sente confusa, mas está muito grata a uma vizinha que a veio prontamente ajudar. Trata-se então, conclui o sagaz repórter, de ouvir a vizinha: “Como se deu conta de que a Dona Alzira poderia ter caído do escadote?” A entrevistada, feliz por poder comunicar na televisão, dá uma catadupa de pormenores (…). Com isto já passaram dez minutos, seguidos apaixonadamente pelas audiências. Nesse dia Lobo Antunes pode até ter publicado o seu último romance, ou Pedro Tamen reunido uma vida de textos poéticos – podemos estar certos de uma coisa: as nossas televisões não dirão sobre eles uma só palavra” (Crónicas no Fio do Horizonte, pp. 176-177).

Termino, com mais alguns excertos de textos que ajudam a iluminar o pensamento e a dimensão cultural de Eduardo Prado Coelho:

“Eu não escolho um campo entre os campos que já existem, e resisto com todas as minhas forças a todas as intimidações com que pretendem forçar-me a estar com este ou aquele campo. És por A ou por B? — eis o torniquete totalitário, a máquina binária, com que os colectivos e as instituições pretendem extorquir uma escolha. Não, o campo que eu escolho sou eu que o construo — entendido?” (Público)

Comunicação:

“A transparência implica o desarme – mas raramente dois desarmam ao mesmo tempo. E seria um erro pensar que o facto de um se desarmar perante o outro faria que esse outro desarmasse também. Por vezes a situação de vulnerabilidade acicata no outro o desejo de vencer. E assim temos a grande linha de tragédia entre os homens: os estados de iminente transparência transformam-se num jogo de massacre, numa batalha campal.” (Público, 19.09.2005)

Política:

“Hoje em dia a cultura ou a ética tornaram-se argumentos secundários numas eleições”. (Público, 12.04.2006)

Mudança:

“Sempre que pretendemos fazer a felicidade da humanidade sem termos em conta a importância da felicidade de cada um, caminhamos em direcção ao desastre” (Público, 18.05.2004)

“O facto de não ter uma verdadeira experiência da fé não significa que não seja mil vezes mais sensível a uma fé que não perdeu o sentido da dilaceração e do trágico, e que se sustenta sobre o horizonte da própria dúvida, do que a rotina daqueles que mantêm por inércia um conjunto de referências desvitalizadas” (Público, 12.03.2004).

Felicidade

“Há coisas que têm o seu tempo e o seu modo e não vale a pena tentar voltar a lugares onde fomos felizes; é preferível encontrar novos lugares, mesmo que sejam iguais aos anteriores” (Público, 08.01.2004).

No centenário de Ruben A. – o confronto com o neo-realismo

Ruben A. (Centenário)Cumpriu-se, no passado dia 26 de Maio, o centenário de nascimento de Ruben Alfredo Andresen Leitão, conhecido literariamente por Ruben A. O ficcionista, historiador, ensaísta e crítico, primo da poetisa Sophia de Mello Breyner, morreu prematuramente em 1975, num tempo em que as paixões políticas não deixavam qualquer espaço para a reflexão literária e das artes em geral.  Contava apenas 55 anos.

Ruben A. nunca foi um autor canónico, alguém que se deixasse manietar por qualquer corrente literária ou por qualquer estrutura formal de pensamento. O gosto de inovar, de percorrer caminhos novos, tendo sempre a ironia e o humor por companheiros, colidiam frontalmente com o cinzentismo português dos anos 50 e 60 do século passado. Essa faceta independente e heterodoxa – que Eduardo Lourenço associa ao espírito de liberdade e à “recusa de vender a alma em troca de verdades menores”,[1] não agradava aos próceres do regime ditatorial, nem àqueles que então lhe resistiam e o combatiam de forma mais consistente e aguerrida no plano político, literário e artístico em geral, apesar dos seus dogmas e intolerâncias: os neo-realistas.

Salazar comenta deste modo o livro de Ruben A., Páginas II: “O livro, ou é de um louco ou de um sujeito que, tendo dinheiro para pagar um livro de dislates, se propôs rir-se de todos nós (…). As porcarias, obscenidades, palavrões juncam o livro (…). Parece-me que o livro pertence a uma onda modernista, e não é um caso para a Censura e para a polícia dos costumes. Mas se o autor é leitor em Londres, temos nós de ver o que escreve e como escreve. Em conclusão: o Autor não pode representar Portugal nem ensinar português. (…). E já não falo de certas taras morais e sexuais, do livro se vê que o Autor deve pertencer aí a um círculo de pessoas que a polícia persegue”.[2]

No início dos anos 60, os neo-realistas denunciavam com olhar severo o fechamento hermético e elitista do modernismo e de certas vanguardas (do novo romance à poesia experimental, passando pelo concretismo, que é um dos seus ramos). Desconfiavam da arte abstracta e das tendências estéticas que se alimentavam da solidão, do drama individual, do tédio, da fuga ao quotidiano, da náusea e do desespero. A tal estado de coisas contrapunham uma literatura de resistência e de combate, e uma arte interferente, embora, enquanto movimento estético – evitemos interpretações equívocas e redutoras – tenha sido bem mais do que isso. O certo é que a incompreensão e o anátema se abateram sobre os escritores, artistas e intelectuais que, recusando frontalmente o Estado Novo de Salazar, não enfileiravam no movimento neo-realista.

Ruben A.Sem deixar de reconhecer ao neo-realismo a importância que tem uma literatura de emergência, Artur Portela Filho – que é, com Alfredo Margarido, um dos introdutores em Portugal do Nouveau Roman, “o rasgão que permitirá à literatura portuguesa libertar-se da disciplina neo-realista” –   não deixa de o criticar de forma contundente: “O neo-realismo apoderou-se da maioria das posições-chave da vida literária portuguesa: editoras, páginas literárias, júris. Aí exerce uma vigorosa pressão e organiza uma hierarquia de valores. Aí se negam ou se diminuem cuidadosamente sólidas figuras literárias que escapam à sua disciplina. O destino do escritor português é o neo-realismo ou o anonimato”.[3]

Dessa condenação ao quase desprezo pelas suas obras não se livraram, à época, figuras de proa da vida cultural portuguesa como Jorge de Sena ou Eduardo Lourenço. Ou até Ruben Andresen Leitão, que nos dá conta disso na sua autobiografia: “O Alentejo dava porcos e neo-realismo, e passados mais de vinte anos continuava ainda a dar porcos e neo-realismo, tal o atraso de subdesenvolvimento em que nos encontramos. A cobertura quase total, os críticos mais apaixonados, tudo que não estivesse na defesa do povo, era condenado. Eu estaria para sempre condenado – um apátrida das letras”.[4]

A Torre da BarbelaAlexandre O’Neill expressou de forma eloquente esta faceta irreverente do autor de A Torre de Barbela: “Ao coro de rãs, respondeu Ruben A. com algumas arreliantes dissonâncias, enfim, com o que nele era vivo pressentimento de que uma obra se faz a contrapeso do gosto mediano”.[5]

Ruben A. não se livrou do rótulo de simpatizante monárquico, que de forma expedita lhe colaram para denegrir a sua imagem pública e apoucar o seu nome honrado. Como se não existissem monárquicos – como Carlos Malheiro Dias – bem mais livres e arejados nas ideias que certos republicanos que acabaram acomodados e até assimilados pelo Estado Novo. Assim se condenavam ao anonimato e reduziam ao nada nomes hoje consagrados da ficção portuguesa da época.


[1] Eduardo Lourenço, Heterodoxia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1987, pp. 213-214.

[2] Carta de António de Oliveira Salazar ao ministro da Educação, in O Mundo de Ruben A., citada por José Carlos de Vasconcelos (Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 1295, 20 de Maio de 2020, p. 3).

[3] Jornal de Letras e Artes, n.º 35, 06.06.1962, p. 9.

[4] Ruben A., O Mundo à Minha Procura, II. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1966, p. 156.

[5] Alexandre O’Neill, citado por Guilherme d’ Oliveira Martins, “À procura do mundo” (Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 1295, 20 de Maio de 2020, p. 11).

Maria Velho da Costa (1938-2020)

Ma.Velho da.CostaDizia que andava no mundo para inquietar os outros. Inquietar, perturbar: eis uma das funções da arte. E comparava os escritores aos especialistas de hemodiálise: “tratamos aquilo que absorvemos”.

Corria o ano de 1971 quando Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno publicam Novas Cartas Portuguesas, um marco incontornável do discurso feminista em Portugal. Convém lembrar aos mais novos, aos desatentos – e aos mais velhos de memória curta – que por essa altura as mulheres não podiam votar. Não podiam ocupar lugares de chefia na Administração Pública. Sofriam entraves de toda a ordem para casar, se exercessem a profissão de enfermeiras, hospedeiras da TAP ou professoras primárias. Não podiam viajar sozinhas sem passar pela humilhação prévia de obter autorização escrita do marido, do pai ou do irmão mais velho. As Novas Cartas Portuguesas fizeram ranger de indignação os pilares do Estado Novo marcelista, que viu nelas um livro pornográfico e um atentado à moral e aos bons costumes. Proibido de circular, desapareceu das livrarias e foi destruído.

As três Marias (2)No início dos anos 70 a ditadura portuguesa não suportava que se escrevessem coisas como esta: “Três é o fim da virgindade, o começo da justa história do par” (Segunda Carta V); ou como esta: “de homem gostamos (e muito) mas jamais a esconsas e somente se não marialva (o que é difícil, convenhamos…) e afinal nos rimos”. (Terceira carta última). O processo das “Três Marias” rapidamente galgou fronteiras, transformou-se num caso do feminismo internacional e só não foi a julgamento porque, dois anos depois, aconteceu o 25 de Abril de 1974. Antes do livro vir a público, as “Três Marias” que os portugueses conheciam eram as garrafas de vinho branco que um certo marialvismo lusitano costumava pedir em voz alta, à mesa do café, no tom grosseiro que ainda hoje ressoa nos meus ouvidos: “Saia uma garrafa de seis tetas!”

Leio que algumas obras de Maria Velho da Costa não são de leitura fácil, porque é saudável a distância que as separa da literatura de mero entretenimento. Por isso reclamam, pelo menos, uma segunda leitura, para que possamos atingir a subtileza das camadas mais profundas da sua escrita. Convenhamos: também não é fácil ler outros escritores ou poetas consagrados. Basta citar, no terreno pátrio, Herberto Helder; e, no plano internacional, um Joyce. Talvez por isso os livros da escritora nunca tenham rompido um círculo demasiado restrito de leitores incondicionais.

Para lá das Novas Cartas Portuguesas apenas li, de Maria Velho da Costa, Lucialima. Pecador me confesso. Abro o livro ao acaso, porque sei que em qualquer página é possível tropeçar na riqueza dos recursos linguísticos que de forma tão pródiga colocou ao nosso dispor, e anoto, na página 294 (3.ª edição):

Lucialima“Lima ri-se. Como as lendas da cobra preta que se aninha nas botas e nos esconsos das camaratas fechadas, a grande barata vermelha parece ser o ódio mor deste exército de homens criados a associar a pequena barata negra do Continente com a miséria e com o desleixo. Mesmo cansados, treinam-se a cravá-la no solo batido das tendas ou dos aquartelamentos, das tabancas de empréstimo, com um só golpe da lâmina da baioneta, enojados de as esmagar, tão enormes são. E não há um que se deite numa esteira de amores ou se alivie num feixe de folhas, sem primeiro indagar da presença desses corpos rígidos e sujeitos a correrias de pânico, para mais, horror maior, aladas”.

Romancista maior, a quem foi atribuído o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores – a mais alta distinção literária portuguesa – pela publicação de Irene ou o Contrato Social e o Prémio Camões pelo conjunto da sua obra, Maria Velho da Costa nunca teve, em vida, publicidade bastante que aparasse ou iluminasse o labor da sua escrita. O que teve, de sobejo, foi desamor e desconhecimento em relação ao tanto que nos deixou: Maina Mendes, Casas Pardas, Missa in Albis, Da Rosa Fixa, O Livro do Meio – a meias com Armando Silva Carvalho – e Myra, só para citar alguns títulos mais conhecidos.

Depois de Maria Isabel Barreno nos ter deixado em 2016, ficámos agora privados de outra voz insubmissa que marcou a luta das mulheres em Portugal contra o seu estatuto de menoridade. Acredito que na hora da partida Maria Velho da Costa terá levado, no bornal das memórias, mais afecto do que amargura pelo desamor em relação à sua obra. E terá sentido algum alívio também, pois costumava dizer: “espero que os meus amigos nunca morram todos antes de mim. A pior coisa que pode acontecer a alguém é sobreviver a todos de quem gosta”.

Memória de Luis Sepúlveda e Rubem Fonseca (pessoas por detrás dos números…)

Luis Sepúlveda

Pouca ou nenhuma vontade de sair a terreiro e rabiscar qualquer coisa, enquanto dura este pesadelo. Este rolo compressor da sensibilidade que é a enumeração fastidiosa do número de mortos, infectados e recuperados nas últimas 24 horas de cada dia. Só que a morte de quem gostamos muda tudo: a contabilidade macabra, feita de algarismos para representar seres humanos coisificados, cede o lugar à emoção e ao sentimento e abre caminho às veredas da escrita.

16 de Abril de 2020. Dia aziago, capaz de provocar a ira dos deuses. Apolo anda escondido, talvez embrulhado nas suas vestes de luto. Só Zeus dá sinal de vida, entretido a rasgar o ventre das nuvens, que despejam bátegas de água nas vidraças que me protegem. Pergunto a mim mesmo se a tristeza tem um rosto, sabendo de antemão que hoje está triste o rosto da literatura e dos que a têm por amiga. De uma assentada, perdemos Rubem Fonseca e Luis Sepúlveda.

Dizia Beckett que o dia da morte é como qualquer outro, só que mais curto. Hoje foi o dia mais curto das vidas de Rubem Fonseca e Luis Sepúlveda. Sim, estamos tristes porque a morte de quem gostamos é sempre um rombo no nosso passado. Apesar do rasto luminoso que são os livros que nos legaram, as imagens, as entrevistas, os recortes de imprensa, todas essas coisas parecem destroços quando desaparece o suporte material que as gerou, e por isso também em nós algo fenece.

Romance NegroRubem Fonseca morreu nonagenário, mas ainda assim antes do tempo. Considerado por uns como um dos melhores escritores de língua portuguesa, quase todos os seus livros falam da violência, um dos lados negros do Brasil e de tantas outras sociedades. Outros, como Pedro Mexia, vêem nos seus contos ou histórias curtas um certo gosto pelo bizarro e o grotesco. Se do Prémio Camões 2003 – escritor recatado, que não dava entrevistas – não posso falar com um pingo de propriedade, por só ter lido Romance Negro e Outras Histórias (livro de contos onde não está presente o tal “brutalismo” derramado em obras anteriores) já o chileno Luis Sepúlveda me é bem mais familiar.

Mais novelista que romancista, as suas obras denunciam a violência política, os crimes ambientais e os cultores do pensamento único, sempre prontos a confundir a fé verdadeira com o fanatismo e o extermínio com o patriotismo. Destaco o livro por onde comecei: O Velho que Lia Romances de Amor, onde nos dá a ver a eterna luta que se trava entre os que respeitam a Natureza e os seus recursos e aqueles que os delapidam sem olhar a meios. A luta final entre António José Bolívar Proaño e a fera que acaba derrotada, pode ser vista como a metáfora perfeita da ruptura – alimentada pela cobiça – que dá cabo da harmonia entre o ser humano e a Natureza.

As Rosas de AtacamaAs preocupações ecológicas, o valor da amizade, da honestidade e da solidariedade aparecem também distribuídos de forma generosa em As Rosas de Atacama. O livro tem uma entrada sublime, com Sepúlveda apostado em resgatar das garras do esquecimento todos quantos merecem ser lembrados. Intuiu isso numa deslocação ao campo de concentração de Bergen Belsen, onde descobriu que alguém gravara na superfície de uma pedra, talvez com o auxílio de uma faca ou um prego, o mais lancinante dos apelos: “Eu estive aqui e ninguém contará a minha história” (p. 8).

Ainda neste belíssimo livro, como não recordar “Baleias do Mediterrâneo”? É um texto que fala de encontros com golfinhos despedaçados pelas hélices das embarcações desportivas, no qual o escritor desabafa: “Existem dois frutos do engenho humano que me aborrecem particularmente: a moto-serra e o motor fora de borda. Milhões de hélices remexem as águas do Mediterrâneo como se se tratasse de uma enorme batedora com que se prepara uma beberragem mortal” (p. 59).
E como não recordar, também, “O amor e a morte”, onde confronta (e conforta) os três filhos pequenos com o final anunciado de Zorbas, o gato protagonista de História de Uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar? Zorbas, o gato que dormia a seus pés enquanto escrevia, ia morrer. E Sepúlveda anota: “dependia de nós evitar-lhe uma morte atroz e dolorosa, porque o amor não consiste apenas em conseguir a felicidade do ser que amamos, mas também em evitar-lhe sofrimentos e preservar a sua dignidade” (p. 93).

Outros livros dignos de registo poderiam ser citados, como A Sombra do que Fomos, que alude aos sonhos derrubados e aos ideais desfeitos, a lembrar-nos que também as ilusões que construímos nos podem trair, mesmo quando lhes somos excessivamente fiéis. Mas creio que basta o que fica dito, em relação a histórias que nos deliciam e comovem. Infelizmente não haverá outras, contadas por este “mochileiro” que viajou pelos quatro cantos do planeta. Um vírus insidioso provocou o irremediável naufrágio de Sepúlveda.

Para quem tudo acaba quando o desaparecimento físico acontece, sobrevém um enorme vazio. Mais afortunados são os que receberam o dom que lhes permite associar a razão à esperança, os que acreditam, afinal, que a crisálida precisa de morrer para se transformar em borboleta.

 

 

 

 

Com tanta Agustina, a malta já nem atina

Agustina com gatoE, de repente, todos desatam a falar de Agustina. Tanta Agustina, ontem e hoje, talvez porque o post mortem continue a ser o estado mais propício ao aguçar do reconhecimento público.

Há quem aluda a uma imagem mitificada: uns, dizendo que tem uma escrita difícil, “barroca”; outros, colando-lhe o rótulo apressado de “perversa”. Outros ainda, habituados a contrabandear arte com ideologia – sem aparentemente perceberem que o que a obra de arte tem em si de maravilhoso é o facto de existir por si mesma – a declarar que sim senhora, é uma excelente escritora, mas que não lhe perdoam o ter consentido que um livro seu acabasse por ocupar o lugar de um outro, entretanto censurado. Pouco se importaria ela com estes mimos, pois sempre confessou não se levar muito a sério: “É a melhor maneira de viver. Aquele que se leva a sério está sempre numa situação de inferioridade perante a vida”.

Em 1994, escrevia a observadora de olhos penetrantes, crítica de tudo o que a rodeava, com a ironia corrosiva que a caracterizava: “Decorre a apresentação do livro de Cavaco Silva no salão nobre (do Centro Cultural de Belém), e os carros pretos do ministério sobem a rampa com uma lentidão consular (…). Freitas do Amaral acaba também de escrever um livro e é saudado triunfalmente. Eu escrevi cinquenta e não me prestam tanta atenção. Pelo que fico, por um momento, desencorajada”.

Acontece que, nos doze anos seguintes, Agustina continuou a escrever de forma torrencial. Sem contar, seguramente, com cerca de um milhar de textos na imprensa, terá dado à estampa, entre romances, novelas, teatro, crónicas e biografias, perto de cem livros. Agora que nos deixou de vez – na verdade, já a partir de 2006 que renunciara à escrita e à vida pública e um círculo de silêncio se abatera sobre o seu nome – há quem assevere, aqui no Facebook, ter lido toda a sua obra. Quase cem livros – pasme-se!

Agustina vista por António (1989)
Caricatura de António (1989)

Coisa de espantar, pois ao contrário da poesia, um romance leva tempo a ler, e nós somos, por regra, preguiçosos do corpo e das meninges. Há também quem afiance que a leu desde o princípio, muito antes de estar na moda. Louve-se a precocidade de tão iluminados leitores. Se os conhecesse, Agustina não deixaria de se rir e de ripostar como o fez em relação a um político da nossa praça, que lhe confessou ser grande admirador dela, assim como a própria mulher, que também já tinha lido toda a sua obra: “Ora, eu gostava era de ter a sua opinião, não digo sobre todos, mas ao menos sobre um dos meus livros”.

Receoso de poder sucumbir ao peso esmagador de tanta cultura, li apenas dois dos catorze livros que tenho da autora de Vale Abraão, não contando com mais alguns sobre a sua obra romanesca. Razão de sobra para não me atrever a dissecar – palavra tão ao gosto dos estruturalistas – nenhum dos seus romances.

Contento-me em deixar aqui, pela segunda vez, esta história deliciosa que ela costumava contar quando vinha à baila o nome do grande amigo Eugénio de Andrade, que via nela a grande romancista da aristocracia rural e da burguesia decadente. Ao chegar a sua casa, dizia Eugénio: Maria Agustina, que flores maravilhosas são aquelas no lago da entrada? E ela respondia: são nenúfares, Eugénio, e você está farto de os mencionar na sua poesia…

Agustina por André Carrilho
Caricatura de André Carrilho

Parece que Agustina tinha por hábito beber uma taça de champanhe ao almoço e outra ao jantar. Quem assim tanto gostava de celebrar a vida, merece que brindemos por ela. Não tanto para plantar saudades no passado, mas para reflorir no futuro a majestosa catedral de papel que nos legou.

Gente deliciosa esta, cada vez mais apartada do nosso convívio.