Natália Correia: Feiticeira, Cotovia, Pitonisa

Ilustração: Vasco Gargalo

“Não Antero meu santo não me mato.
Antes me zango até ficar um cacto.
Quem me tocar (maldito!) que se pique”
(Epístola aos Iamitas)

 “Só se defende fanaticamente aquilo de que se duvida”.
(O Armistício)

Natália Correia (NC) nasceu na ilha açoriana de S. Miguel a 13 de Setembro de 1923.  A sua voz calou-se 69 anos depois, cansada de combater as trevas do provincianismo e de muito sondar os domínios do sagrado. Ficcionista, poetisa, editora, deputada, dramaturga, ensaísta e “às vezes fêmea, às vezes monja”. Divulgou poesia no mítico Botequim, junto ao miradouro da Graça, um dos últimos redutos das tertúlias de Lisboa, ponto de encontro de políticos e jornalistas, artistas e escritores, amantes da madrugada.  Entre o tinir dos copos e as notas do piano, o Botequim era o regaço onde a anfitriã de boquilha e gesto largo acolhia e promovia debates, exposições, concertos, ceias poéticas, lançamentos de livros.

Na intervenção política – que acreditava ser uma “obrigação dos poetas” – procurou imprimir uma feição vincadamente cultural. Ao contrário dos que gostam de planar nas nuvens e costumam tropeçar e cair de borco na realidade, ela tanto vivia imersa num mundo imaginário como se movimentava no da razão. Em harmonia e dissonância, desafiando deuses e humanos. Como gostava de lembrar, “a minha causa é combater a extinção das causas”. Um combate com língua de fogo e cóleras sagradas contra a obediência civil da manada: “Político nocturno é personagem que não vislumbro; porque o nocturno é uma situação lunar da alma que a abre ao sonho e os políticos são a brigada anti-sonho” (…). Pode dar-se o caso de vermos por aí, na noite, indivíduos da classe política não ainda hospedados nos graus supremos do poder (…). Conheci muitos desta casta que até recitavam o Fernando Pessoa às 3 da manhã, hora em que agora ressonam, no leito de uma glória enganadora. Paz às suas almas”.

Se a coerência tem um preço, a poetisa pagou-lhe o tributo ao ver-se censurada durante o Estado Novo e depois da revolução de Abril de 1974. Já tinha livros de poesia e de teatro proibidos quando foi editada, nos anos 60, a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica. Uma obra que provocou escândalo, por conter textos de “carácter pornográfico” (segundo o veredicto oficial) e por essa escolha recair numa mulher cujo desassombro ajudava a derrubar os interditos sexistas da época. A obra seria apreendida pela PIDE, retirada do mercado e os responsáveis julgados em Tribunal Plenário. Ficou célebre o violento poema “A Defesa do Poeta”, saído da pena de NC, para ser lido durante o julgamento, que termina com estes versos “Sou uma impudência a mesa posta / de um verso onde o possa escrever / ó subalimentados do sonho / a poesia é para comer”.

Nem mesmo os ventos de mudança trazidos pela revolução de Abril a livraram da fúria censória. Começou por ser afastada do jornal A Capital, que lhe colou o rótulo de “direitista”. Em 1976 criou o suplemento de O Século, que também foi censurado. Em 1980 aconteceu a proibição da peça Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente. Responsável pela proibição: Vasco Pulido Valente, à data secretário de Estado da Cultura. A fúria de NC não deixou de apontar o dedo acusador àquele “que tem asco no nome”. E acabaria também censurada pelo partido em que militou. Impaciente com qualquer tipo de menoridade dos seus pares – chegou a classificar alguns de “vampiros de Sá Carneiro” – recusou hipotecar ou trocar a coerência pela disciplina partidária. Nunca desarmou, também, na luta pela crescente qualidade do Parlamento, que via indissociável da intervenção das mulheres na vida política, num país que sempre as educou para aceitarem, com resignação, ser representadas por homens.

Ano de 1982. A Assembleia da República debatia a despenalização do aborto. O deputado João Morgado proclamou:  “O acto sexual é para ter filhos”. A musa da provocação não se conteve e, pouco tempo depois, distribuía nos corredores um poema de escárnio contra as barreiras morais e religiosas.

O Coito do Morgado

Já que o coito – diz Morgado –
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.

Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou – parca ração! –
uma vez. E se a função
faz o órgão – diz o ditado –
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.

Em O Armistício, escreve: “Não jurarei que qualquer deus exista. Só sei que é grosseiro viver sem deuses”. Talvez porque lhe corria nas veias um fogo secreto, invoca os anjos, os deuses e as fadas. Manuel Alegre disse habitar nela “aquele duende de que fala Lorca, o duende que ama a tentação do poço” (a luta de um poeta não é com o anjo que guia, nem com a musa que inspira, mas com o duende que ama a tentação do poço: um duende que fere e que é preciso enfrentar, na busca incessante de perfeição da obra poética). Curioso é que também acredite “na ocupação do mundo pelas rosas”. Rosas de esperança contra a submissão que avilta, a indiferença que paralisa, o silêncio que compromete.

CREDO

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes;

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen.

A poesia de NC continua a ser, para citar o título de um livro de Alberto Pimenta, a magia que tira os pecados do mundo. Foi esse rasto de beleza que nos legou e que vai perdurar por muito tempo. “A queixa das almas jovens censuradas” continuará a ser escutada enquanto alguém acreditar “num céu futuro que houve dantes”.

A autora de Sonetos Românticos é muito maior do que as histórias que sobre ela se contam, talvez por irradiar um brilho que nem todos conseguiam suportar. Ela era o elogio da noite, da boémia e dos amores. Misto de sibila e feiticeira, livre e insubmissa, prestou relevantes serviços à causa da cultura e da liberdade em Portugal. Foi, no dizer de Torcato Sepúlveda, “um meteoro que atravessou o céu negro da cultura portuguesa do século XX”.

(texto publicado em NERVO/19 – colectivo de poesia, Setembro-Dezembro 2023)

Consultas:
Fernando Dacosta, O Botequim da Liberdade, Casa das Letras, 2013.
Filipa Martins, O Dever de Deslumbrar, Contraponto, Março 2023.
Manuel Alegre, “Natália, ou a Feiticeita Cotovia”, Uma Outra Memória, D. Quixote, 2016.
Natália Correia, Epístola aos Iamitas, D. Quixote, 1976.
Idem, A Noite e os Políticos”, O Jornal, 03.02.1984.
Idem, O Armistício, Publicações D. Quixote, 1985.
Nuno Costa Santos, “Há 50 anos a indecência de Natália Correia libertou-nos”.
Observador, 28.12.2016.
Torcato Sepúlveda, “A deusa e os homens”, Público, 17.03.1993.

Mário Cesariny (1923-2006) – Surrealista, Pintor e Poeta

“Eu acho que se se é surrealista, não é porque se pinta uma ave, ou um porco de pernas para o ar. É-se surrealista porque se é surrealista”

Nascido em Lisboa a 9 de Agosto de 1923, Mário Cesariny frequentou a Academia de Amadores de Música, na altura orientada pelo maestro e compositor Fernando Lopes Graça. Seria na Escola de Artes Decorativas António Arroio que na década de 1940 se viria a cruzar com os que viriam a ser seus companheiros surrealistas. As primeiras intervenções do grupo de surrealistas portugueses acontecem nos anos 40. O ponto de encontro eram os cafés de Lisboa, com destaque para o Café Gelo.

O surrealismo português é um movimento tardio. Apenas em 1947 se dá uma aproximação mais formal com o movimento surrealista internacional, nascido no início dos anos 20 e que por essa altura já vivia uma segunda fase. É em 1947 que Cesariny conhece em Paris André Breton, o autor de conhecido Manifesto Surrealista e que viria a influenciar de forma decisiva a sua obra, sobretudo no que se refere à recusa do racionalismo e à valorização do inconsciente. Mas mais do que tributário dos surrealistas franceses, há quem sustente que a obra de Cesariny, até por o ter traduzido de forma particularmente inventiva, é sobretudo devedora do modernismo de Rimbaud. É assim que pensa António Carlos Cortez quando se refere à obra de Cesariny: “o espelho de um percurso de vida (…) ao longo do qual se perseguiu sempre mais a ‘liberdade livre’, honrando Rimbaud, que a liberdade artificial das sociedades ditas democráticas”.

Os surrealistas afrontaram a escolástica racionalista, dando aso a que os pensamentos mais obscuros pudessem estar reflectidos nas suas telas. Propunham-se libertar a imaginação, o que levou Mário Cesariny a escrever, em 1949: “Só a imaginação transforma. Só a imaginação transtorna”. Tratava-se de subverter a realidade através do desejo e do inconsciente. Uma corrente criadora que recusava impor uma doutrina estética. Artaud falava do surrealismo como “o escoicinhar do ser contra toda e qualquer coerção”, o mesmo é dizer, uma atitude de rebeldia contra tudo o que oprime a actividade humana. O surrealismo, se não promoveu uma verdadeira revolução – segundo Carlos de Oliveira não será lícito falar-se em revolução em poesia, mesmo que apenas no plano simbólico – teve pelo menos o mérito de rasgar clareiras e traçar novos rumos de descoberta e aventura para a poesia portuguesa.

É também em 1947 que se forma o Grupo Surrealista Português, no qual pontificavam, além de Cesariny, Alexandre O’Neill e António Pedro. Mário Cesariny viria a demarcar-se deste grupo inicial. Formaria outro – Os Surrealistas – a que se associam nomes como os de António Maria Lisboa, Mário-Henrique Leiria, Carlos Calvet e Pedro Oom. Nos anos de 1949 e 1950 têm lugar as primeiras exposições surrealistas, nas quais Cesariny dá a conhecer algumas das suas obras.

Houve querelas na formação dos grupos. Houve escândalos e dissidências, questiúnculas pessoais, grupos e grupinhos: o Grupo Surrealista de Lisboa deu lugar, um ano depois, ao Grupo Surrealista (que viria a extinguir-se em 1952, formado por dissidência do primeiro – do qual Cesariny havia sido expulso – e mais orientado para a poesia do que para a pintura). Também menos alinhado com o sacerdote-mor Breton e mais próximo dos dadaístas. Mas para lá destas dissidências, pelo menos duas coisas os uniam: a transversalidade das técnicas e o repúdio pela situação política que se vivia em Portugal. Para muitos acabou aqui (em 1952) o surrealismo português. Para outros, permanece e está vivo, porque como defendeu Cesariny, “aquilo a que se chamou Surrealismo existiu sempre”.

Há um esclarecedor episódio que espelha bem estas divergências entre surrealistas: aquando da exposição “O Surrealismo em Portugal”, patente no Museu do Chiado e que devia transitar para Madrid, Cruzeiro Seixas ameaçou retirar as suas obras. Porquê? Porque não aceitava estar representado em Espanha se o formato da exposição reproduzisse o do Museu do Chiado. Fazia finca-pé em manter a versão apresentada em Vila Nova de Famalicão, da qual tinham sido retirados três trabalhos de António Pedro e acrescentados os de outros pintores, onde se incluíam Paula Rego e Mário Botas. E parece que Cesariny também se recusou inicialmente a participar nessa exposição que incluía quadros da “fase fascista” de António Pedro, embora na carta enviada ao Museu do Chiado se tenha limitado a referir que as suas obras não podiam figurar na exposição, mas sem adiantar qualquer explicação para essa sua atitude, a qual, como a de Cruzeiro Seixas, pode radicar no facto de sentirem que ao grupo ao qual ambos pertenciam (os Surrealistas) estaria a ser dado um papel subalterno na exposição, ficando o palco principal para António Pedro e para o Grupo Surrealista de Lisboa.

Cesariny seguiria o seu percurso individual de artista plástico, que inclui pinturas, colagens – através das quais recria a visão onírica do mundo através das vias abertas da imaginação criadora –  “soprografias” e “cadavres-exquis”, mas foi na pintura e na poesia que se destacou e atingiu maior projecção. Muitos dos seus trabalhos associam texto e imagem ou incluem palavras recortadas, num permanente recurso a formas experimentais.

É sabido que Cesariny preferia Pascoaes – seu hipotético mestre – a Pessoa, o poeta da heteronímia a quem parodiava e chamava “o Virgem Negra”. Di-lo abertamente numa entrevista ao suplemento Mil Folhas, do Público (19.01.2002): “O Pascoaes é o grande poeta, não tenho nada contra o Pessoa, mas para mim o Pascoaes é o velho da montanha, o mágico”.

Mais do que semelhanças, talvez possamos falar de uma tensão entre a heteronímia (arte do desdobramento) e o surrealismo (enquanto arte de montagem). O que Cesariny faz é muito mais do que subverter a imitação, esse princípio básico da estética clássica que se mostrou incapaz de resistir ao advento do Romantismo, que acabaria por o derrubar de forma inapelável. Fernando Cabral Martins, na contracapa do livro Mário Cesariny e o Virgem Negra, deixa exaradas estas palavras: “não é Pessoa que é atacado (nem as suas obras maiores, pois nunca o considerou medíocre ou desprezível), mas o mito que dele se criou e, sobretudo, certos persistentes lugares-comuns da sua leitura”. Talvez uma reacção de Cesariny ao boom pessoano dos anos 80 que desembocaria na conhecida rima “tanto Pessoa já enjoa”, ou uma resposta ao exercício sacralizante dos que por essa altura desenvolviam um aturado trabalho de decifração – depois de muito remexer na arca do poeta –  e de edição sistemática dessas supostas descobertas.

Vejamos este exemplo – que os mais incautos podem entender como plágio, intertextualidade, ou nem uma coisa nem outra. Cesariny, a pretexto do centenário de nascimento de Fernando Pessoa, subverte alguns dos seus textos recorrendo àquilo a que chama “chocalhar a metafísica fernandina tentando simplificá-la”. Comecemos pelo texto de Pessoa, inserido em Cancioneiro:

Não: não Digas Nada!
Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.

Agora o poema de Cesariny, inserido em O Virgem Negra:

Faz-me o favor
Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.

É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das caras e dos dias.

Tu és melhor — muito melhor!
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.

Para melhor se compreender o humor e o sarcasmo ao serviço do surrealismo, sugiro aos interessados, entre outros possíveis exemplos de alteração radical do sentido original dos textos pessoanos,  a comparação entre o conhecido poema de Álvaro de Campos “Vem, Noite antiquíssima e idêntica” e  a reescrita em forma de paródia  do poema de Cesariny inserido em O Virgem Negra, “Vem, Vulva antiquíssima e idêntica”. Para António Carlos Cortez, trata-se da “destruição do poder simbólico de Fernando Pessoa enquanto ‘mestre’ ou fundador da modernidade poética” (Relâmpago, n.º 26, pp. 62-63).

Cesariny e João Perry no dia 25 Abril de 1974

Da vasta obra desta figura maior do surrealismo português – poeta, autor dramático, ficcionista, crítico, ensaísta, tradutor e artista plástico – destacamos Corpo Visível (1950), Poesia: Discursos sobre o Real Quotidiano (1952), Louvor e Simplificação a Álvaro de Campos (1953), Manual de Prestidigitação (1956), Pena Capital (1957), Alguns Mitos Maiores Alguns Mitos Menores Postos à Circulação pelo Autor (1958) Nobilíssima Visão (1959), Planisfério e Outros Poemas(1961), Titânia e a Cidade Queimada (1965), Burlescas Teóricas e Sentimentais (1972), As mãos na água a cabeça no mar (1972), Primavera Autónoma das Estradas (1980) e O Virgem Negra. Fernando Pessoa Explicado às Criancinhas Naturais & Estrangeiras (1989).

No Manual de Prestidigitação, dado à estampa pela Contraponto quando Mário Cesariny dava os primeiros passos na sua surreal caminhada, podemos encontrar, entre outras, esta relíquia:

A Imaculada Concepção

Um pássaro
a pino sobre as rochas
um pássaro jamais visto
um pássaro só pássaro
um pequeno pássaro enorme
fascinante
gelado

Um pequeno pássaro vivo
sobre as coisas
como um lado do mar
brilhante impalpável
seguro
e apesar disso impossível
terrível
obsidiante

Foi quando me voltei
para dizer-te: ‘Repara!’
que ele passou

No poema que começa com os versos da antítese “Em todas as ruas te encontro/ em todas as ruas te perco”, inserido em Pena Capital (1982), somos transportados para o possível reencontro de dois amantes. O ser apaixonado tende a ver em tudo o que o rodeia o “objecto” da sua paixão. É tal o desejo de reencontro que o “vê” mesmo onde ele não existe. Sonhos que se desmoronam e a seguir se reconstroem. Podem ser ressonâncias de sombras, de corpos que se cruzam nas ruas, de muros e paredes que o ser apaixonado encontra no percurso, de aves a esvoaçar no horizonte. Ressonâncias que lhe chegam, também, da água que contempla ou bebe, ou até do ar que respira e dos aromas que esse ar transporta consigo: “bebo a água e sorvo o ar/ que te atravessou a cintura.”

No regresso à realidade – uma realidade por vezes mais estranha que a própria ficção – o apaixonado deixa de “ver” aquele que ama e talvez por isso o verso “em todas as ruas te perco”. É o amor que sente, mas já não vê; que persiste, mas já não (re) encontra. Talvez por isso Cesariny não gostasse do “real quotidiano”, explicando-se deste modo : “porque não presta. Porque é o que menos interessa. Eu sempre desejei ir além, ir para dentro. O que presta é o amor, a liberdade, a poesia”. A realidade, nestes versos de Cesariny, pode ser vista como a fatalidade de quem perde aquilo que um dia encontrou (e em que acabou por se perder). Perda dolorosa, na exacta medida em que só quem um dia ganhou sabe o que é perder. Sobre este “real quotidiano” escreveu Pedro Mexia: “ O Cesariny visionário é notabilíssimo, majestoso até, mas nada me entusiasma tanto quanto a sua “reabilitação do real quotidiano”, até pela noção de que aquilo que salva o quotidiano são os grandes encontros, os grandes acasos, os grandes deslumbramentos”. Cesariny tinha de facto essa invulgar capacidade de desconstruir o “real quotidiano”, que procurava reabilitar através da linguagem poética.

Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura

e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

Nos últimos anos de vida, o homem livre e luminoso que foi Cesariny já não escreve poesia e afasta-se da vida pública. Como dizia Torga, existir é ir perdendo. Neste caso, os amigos da aventura surrealista e os cafés que acolhiam essas tertúlias e funcionavam como espaços privilegiados de convivialidade. Cesariny sente-se tributário desses espaços em acelerada extinção onde se aspirava o cheiro forte do café torrado, quando escreve: “Voltei à esplanada mas tinha gente a mais. Procuro outro café, outra esplanada próxima: não consigo escrever” (in Titânia e a Cidade Queimada, D. Quixote, 1977).

Censura a “Um Auto Para Jerusalém”

O poeta da insurreição permanente contra as convenções morais ou estéticas da época – mais do que da escola ou do método surrealista – aceitaria mesmo assim, em 2005, o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores e também ser condecorado pelo Presidente da República com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade. Homenagens justas e merecidas a quem, nos tempos de privação da liberdade, ergueu a voz em haste de coragem e foi capaz de recorrer a metáforas e a simbolismos para exprimir desalento pelo quotidiano sombrio do nacional-saudosismo que pautava e alagava a vida dos portugueses. Essa poética contra as convenções e  os servilismos rastejantes era a sua forma de exorcizar o medo, de transgredir e afrontar o sistema, ou não soubesse ele que na vida…

“Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!”

(excerto de “Pastelaria”, in Nobilíssima Visão)

Consultas:
Bernardo Pinto de Almeida, Mário Cesariny. Editorial Caminho, 2005.
Fernando Cabral Martins, Mário Cesariny e o Virgem Negra, Sistema Solar, 2016
Maria de Fátima Martinho, O Surrealismo em Portugal, IN-CM, 1987
Pedro Mexia, “O jovem centenário”, Expresso Revista, 07.07.2023)
Relâmpago (Revista de Poesia), n.º 26, evocativa de Mário Cesariny.
https://cesariny.blogs.sapo.pt

Da poesia (versão “prosa fatiada”)

Na revista Sábado escreveu Susana Lúcio, no dia 30 de Janeiro:

“Uma sobrevivente não uma vítima/ E viva para contar a história real”. Foi assim, com um poema, que Pamela Anderson anunciou a sua autobiografia”.

“Com um poema” – enfatizou a jornalista. Afinal, ser poeta não é assim tão difícil como parece. Não é preciso “ser mais alto” (pode ser gente de baixa estatura, desde que se coloque em bicos de pés) nem ter “asas de condor” (pode ser gente que voa baixinho, como as andorinhas em voo rasante à procura dos insectos de que se alimentam). Qualquer um, mesmo com asas de granito, pode ser poeta. Ou pelo menos poetastro, se não for capaz de sair dos andaimes da construção poética.

Essa ideia de Adorno, segundo a qual não é possível escrever poesia depois de Auschwitz, tem muito que se lhe diga. É como acreditar, por absurdo, que podemos proibir os pássaros de cantar. Continuar a escrever e a fazer poesia depois de Auschwitz talvez seja a melhor forma de derrotar a sobranceria do pensamento.

A poesia sobreviveu aos campos de extermínio, como tinha sobrevivido antes ao gás mostarda e aos morteiros da I Guerra Mundial. Se assim não fosse, não teríamos hoje uma poesia de experiência e testemunho da guerra em África, uma memória poética da guerra colonial. A poesia não descreve – longe disso – realidades cor-de-rosa envoltas em bons sentimentos (qualquer idiota é capaz de sentir, se lhe calcarmos um pé). A poesia não rasura a dor, antes lhe dá sentido. É para isso que nos remete esta belíssima definição de Paul Celan, para quem a poesia nos provoca com uma voz diferente: “A poesia é qualquer coisa que pode significar uma mudança na respiração”.

Ouçam o que eu vos digo: seguindo o exemplo de Pamela, hoje em dia só não é poeta quem não quer. Aliás, é comum ouvirmos dizer: “És um poeta!”. A mim já mo disseram algumas vezes, já me colaram esse impiedoso rótulo quando pressentem que ando desligado da realidade ou digo coisas – sobretudo no domínio da política – com as quais não concordam. Como “o poema ensina a cair”, querem derrubar-me com esse labéu de falta de sentido prático da vida.

Para ser poeta basta fazer como a Pamela, mesmo que aquilo que ela escreve seja destituído da mais elementar graciosidade poética. O certo é que estamos a falar de uma poesia que aos poucos vai tomando conta do mundo (sobretudo o das redes sociais), indiferente à pandemia e à invasão da Ucrânia, ao caos e à destruição. Embora o segredo seja a alma do negócio, hoje sinto-me alagado em generosidade e desvendo-vos o truque:

Eu a ler “prosa fatiada” (Almada Negreiros, “Prazeres da leitura”)

Pega-se num naco de prosa (não precisa de ser generoso), envolve-se numa dose q.b. de banalidade a puxar à lágrima furtiva e acrescentam-se uns salpicos de sentimentalismo bacoco. Deixa-se a marinar durante algum tempo. Depois, aquece-se tudo no lume brando da vulgaridade. Quando o molho desta mistela começa a engrossar, retira-se a prosa do lume. Deixa-se esfriar. A seguir, corta-se em fatias de versinhos de água doce e serve-se nos murais do Facebook.

Aqui fica um exemplo, entre tantos outros possíveis, deste acto criativo que consiste em fatiar prosa e transformá-la em versos capazes de agradar a gregos e a troianos:

Prosa minha, não publicada, com data de 03.02.2004:

Conflito

Os dias passam. Mas não passa a refrega moral entre o poder criativo e o dever paternal. Chegar a casa com o fogo criativo esgotado. Angústias, sarilhos existenciais. É este o meu fado.

Poesia minha (prosa fatiada):

Conflito

Os dias passam.

Mas não passa
a refrega moral
entre o poder criativo
e o dever paternal.

Chegar a casa
com o fogo criativo
esgotado.

Angústias
sarilhos existenciais.

É este o meu fado.

Agora digam lá se não estou ao nível da Pamela Anderson. Comparem apenas o fulgor poético. Nada de surfar ondas em marés vivas, muito menos de comparações abusivas entre curvas e contracurvas capazes de endireitar um segmento de recta.

António Manuel Couto Viana (24.01.1923 – 08.06.2010) – no centenário de nascimento do “avestruz lírico”

 

António Manuel Couto Viana nasceu em Viana do Castelo, em 24 de Janeiro de 1923. Professor do ensino liceal, foi também encenador, dramaturgo e tradutor, contista e figurinista, ensaísta e gastrónomo, poeta. Era isto tudo ao mesmo tempo, mas foi sobretudo como poeta que se notabilizou no panorama cultural português, e também como pessoa com fortes ligações ao teatro: inicialmente como actor, pela mão de David Mourão-Ferreira, e mais tarde como empresário e director. A esta sua inclinação para o teatro não terá sido alheia a herança que recebeu do avô: o teatro Sá de Miranda, em Viana do Castelo.

Com 25 anos, publicou o primeiro livro de poemas em 1948, O Avestruz Lírico, título que concentra, segundo Fernando Pinto do Amaral, “a ressonância simbólica associada ao avestruz – animal que, como se sabe, opta por enterrar a cabeça na areia diante das dificuldades – neste caso suplementada com o adjectivo lírico e implicando, por isso, uma resposta aos problemas da vida através da simples entrega ao canto ou à poesia [sendo que] o avestruz simboliza também a profunda frustração do sujeito, que, tal como acontecia no famoso ‘albatroz de Baudelaire’, se identifica com um ser portador de uma insolúvel ambivalência, dado que, sendo uma ave e possuindo naturalmente um par de asas, não consegue elevar-se do solo e voar livremente pelo céu”.

Depois destas primícias literárias, a sua obra viria a avolumar-se com mais de uma centena de livros de diferentes géneros. A obra poética foi traduzida para o inglês, o francês, o espanhol, o alemão, o russo e até o chinês, a que não terá sido alheia a sua permanência em Macau, onde viveu entre 1986 e 1988, exercendo funções docentes no Instituto Cultural daquele antigo território português.

Na década de 1950-1960 empenhou-se na direcção e publicação de algumas revistas literárias e culturais. Entre elas contam-se os cadernos de poesia Graal e também a revista Távola Redonda (“folhas de poesia” que não enjeitavam a influência presencista e da qual se distanciavam tanto o surrealismo como o neo-realismo), que ajudou a fundar em 1950, de parceria com David Mourão-Ferreira, Ruy Cinatti, Fernanda Botelho e Alberto de Lacerda. Estamos a falar de publicações conotadas com a direita intelectual portuguesa da 2.ª metade do século XX.

Numa espécie de reacção a alguma poesia programática do neo-realismo, num evidente menosprezo pelas suas propostas de intervenção social, Couto Viana manifestava nestes oito versos a crença numa identidade muito peculiar e, como acentua Fernando Pinto do Amaral, a sua “faceta indubitavelmente solipsista”:

Podem pedir-me, em vão,
Poemas sociais,
Amor de irmão pra irmão
E outras coisas mais:

Falo de mim – só falo
Daquilo que conheço.

O resto… calo
E esqueço.

Como escreveu Manuel de Freitas: “a obra de Couto Viana nunca deixou de acreditar na biografia enquanto fundamento poético. Poder-se-ia mesmo dizer que o autor tem procurado levar às últimas consequências um conselho sábio de Montaigne: Falo de mim. Só falo/ daquilo que conheço (…). A procura de um ‘efeito de realidade’ poderá inclusivamente explicar, pelo menos em parte, o coloquialismo e a ligeireza aparente de alguns dos melhores versos de Couto Viana”. Digamos que o poeta contrapunha ao canto do social o canto de si mesmo.

Há, na obra de Couto Viana, uma patente exaltação nacionalista e patriótica de Portugal e da História. O poeta simpatizava com o Estado Novo, ao ponto de ter sido convidado pela Mocidade Portuguesa, depois de publicado O Avestruz Lírico, para suceder a Baltazar Rebelo de Sousa na direcção da revista juvenil Camarada.  Não admira, assim, que depois da revolução de Abril de 1974 tenha dado mostras de profunda desilusão por aquilo que considerava ser uma evidente decadência da pátria portuguesa. Num texto intitulado “Portugal”, esboça desta forma cáustica e amarga o fim do império português:

Este mendigo, outrora, era um menino d’oiro,
Teve um Império seu, mas deixou-se roubar.
Hoje, não sabe já́ se é castelhano ou moiro
E vai às praias ver se ainda lhe resta o mar!

É esse mesmo desencanto com uma “pátria doente” e aviltada, amputada dos seus territórios, que transparece em “De Profundis”, poema de A Face Nua e incluído posteriormente na antologia Sou Quem Fui, p. 130:

 

Agora, o meu país são dois palmos de chão
Para uma cova estreita e resignada.
Tem o formato exacto de um caixão.
Agora, o meu país é pó, é cinza, é nada.
Reduziram-no assim para caber na mão
Fechada.

 

A silicose do esquecimento que se abateu sobre o seu nome, de forma mais notória nos últimos anos de vida, terá mais a ver com a declarada ideologia conservadora, monárquica e imperialista, do que com a qualidade da vasta obra que nos legou. É isso que acontece quando, para afirmar ideologias, se embrulha no mais denso esquecimento uma obra que justifica, retrospectivamente, a vida de quem a produziu. Uma obra que algumas escolas literárias procuraram refutar ou desvalorizar, recusando-se a ver nele um poeta digno desse nome.

Da extensa obra em prosa e verso destacamos, para lá de O Avestruz Lírico (1948), também títulos como Pátria Exausta (1971), Coração Arquivista (1977), o volume Uma vez, uma voz (de 1983, que reúne a sua obra poética quase completa), Café de Subúrbio (1991), Prefiro Pátria às Rosas (1998) e Sou Quem Fui (2000), a antologia de uma obra que então se estendia já por cinco décadas, onde deparamos, segundo Manuel de Freitas, com a “delicada rememoração da infância e das suas personagens centrais [que] vai cedendo lugar às artes poéticas, aos anos da Távola Redonda e, finalmente, aos poemas sobre Macau e a melancólicas reflexões sobre a velhice”. Como acontece neste “Madrigal da terceira idade para afastar a solidão” fiel à nossa tradição lírica, que integra Disse e Repito (Averno, Lisboa, 2008), onde podemos detectar a necessidade afectiva de uma vida em idade avançada, evadida do mundo exterior e embrulhada em espessa melancolia:

É um amor discreto,
Ignorado, até.
Só um gesto de afecto,
Um sorriso secreto,
Desfeito, se alguém vê.

É um amor tranquilo,
De alguém que quer alguém
Prá solidão do asilo.
— Coração, ao senti-lo,
Nem aceleras, nem…

É um amor-amizade.
Um amor-simpatia.
Mas, mesmo assim, ele há-de
Deixar dor e saudade
E gerar poesia.

Nos últimos anos de vida o poeta viveu recluído na Casa do Artista, onde continuou a escrever e a publicar os seus trabalhos, numa espécie de combate da memória contra o esquecimento do seu nome e da sua estética, contra o esquecimento de alguém que nunca despertou consensos. Segundo Fernando Pinto do Amaral, importa avaliar a sua obra para lá das conotações políticas e ideológicas do tempo que lhe foi dado viver. Para lá disso, a sua escrita encerra virtualidades: há, nela, “uma reacção positiva que a reconcilia com o mundo (…), a atenção a um quotidiano banal e sereno, observado, por exemplo, no ambiente urbano e rotineiro de um pequeno e anónimo café/esplanada”. É essa atenção ao banal e ao rotineiro que este belo poema ilustra:

Ela está só, em mesa separada.
Bebe uma água mineral.
A aliança no dedo, a dizer que é casada.
Tem, todavia, um tique de mulher fatal.

Ele está só. Solteiro? Não tem nada
No anelar esquerdo. Bebe uma «imperial».
A mesma idade, aproximada.
A mesma classe social.

Ele encara-a, descarado. Ela, indignada,
Volta-lhe a cara, num parece-mal.
Mas, quando se levanta e abandona a esplanada,
Passa por ele num passo lento e sensual.

Ele vai-lhe, de pronto, na peugada.
E uma hora depois, numa esplanada igual,
Vejo-os à mesma mesa, de mão dada,
Como um feliz casal.

Parece ter chegado o tempo de inventariar com o rigor possível – aplacados que estão alguns ódios de estimação e algumas paixões políticas – a vasta obra, necessariamente desigual, deste poeta menorizado pela instituição literária. Uma obra com méritos e defeitos no singular panorama poético português, que sempre recusou o valor social da poesia e optou por “inflamadas versões de tipo nacionalista” (Pedro Sena-Lino). Alguma arrogância do autor – em entrevistas e até derramada num ou noutro verso, não terão ajudado ao necessário distanciamento crítico: “É estéril e seco o horizonte/ de quem ignora a minha poesia” (in Sou Quem Fui, p. 116).

Para se aferir a qualidade de uma obra não são necessárias afinidades ideológicas. É o que nos diz David Mourão-Ferreira quando se refere a Couto Viana: “Tanto no poeta como no crítico são por demais evidentes – têm-mo sido sempre com coerência admirável – determinadas opções ideológicas que, justamente porque muito distintas e distantes das minhas, nunca deixei de compreender e de respeitar”.

Se a responsabilidade do poeta consiste em escrever versos capazes de sobreviver às circunstâncias históricas do seu tempo, então precisamos de nos libertar da crosta dos preconceitos para reconhecer o talento e os méritos dos que prestam relevantes serviços à causa pública, sempre que for caso disso. Assim acontece com este poeta que muitos preferem manter arquivado.


Consultas:

Manuel de Freitas, “O avestruz lírico”, Expresso (n.º e data não identificados).
Blog “Vício da Poesia (https://viciodapoesia.com)
A.M. Couto Viana, 60 Anos de Poesia (prefácio de Fernando Pinto do Amaral)
A.M. Couto Viana, “O artista transversal”, Visão, 17.06.2010, p. 26
Pedro Sena-Lino, “A lira do real pergunta”, Público, 01.05. 2004 (Livros-Poesia, p. 14).
A.M. Couto Viana, Coração Arquivista (prefácio de David Mourão Ferreira).

Eugénio de Andrade (1923-2005) – luz, rigor, clareza

Eugénio de Andrade (retrato de Emerenciano)

Toda a poesia é luminosa,
até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar

Eugénio de Andrade, Os Sulcos da Sede, 2001

 Nasceu com o nome de baptismo José Fontinhas (19 de Janeiro de 1923, Póvoa da Atalaia-Fundão), mas usou o pseudónimo Eugénio de Andrade pela primeira vez, de forma impressa, em Adolescente (1942). Foi por esse nome que ficou conhecido um dos poetas portugueses do século XX mais lidos, estudados e traduzidos. Apartou-se do nosso convívio em 2005, aos 82 anos, na sua casa da Foz do Douro, sede da Fundação com o seu nome. Decorria o mês de Junho e parece haver nisso uma premonição, um instinto visionário, pois havia escrito: “Pela manhã de Junho é que eu iria/ pela última vez. / Iria sem saber onde a estrada leva” (O Comum da Terra, 1980).

Os primeiros poetas com quem viria a familiarizar-se foram Guerra Junqueiro e António Botto, mas de nenhum deles sentiu que a sua poesia fosse tributária. Foi ao tropeçar em Camilo Pessanha que verdadeiramente sentiu as influência do poeta de Clepsidra, um dos poucos a quem viria a reconhecer o papel de “mestre”. Fez das palavras o ofício de uma vida e da poesia uma «arte de música». António Ramos Rosa chamou-lhe rei Midas do verbo: palavra que tocasse virava ouro de lei. Assim o dizem estas palavras enxutas e cristalinas: “Colhe/ todo o oiro do dia/ na haste mais alta/ da melancolia” (Despedida, in Ostinato Rigore, 1984).

As Mãos e s Frutos (1948) é considerado um dos livros fundadores da poesia portuguesa contemporânea. Para o autor, então com 25 anos, esta é a sua verdadeira obra de estreia, apesar de já ter publicado outras: viria a excluir Adolescentes (1942) da sua bibliografia, e a renegar também Pureza (1945), recuperando destas obras apenas dez Primeiros Poemas, que funcionou como lançamento de uma primeira pedra da sua obra. Personalidades literárias como Vitorino Nemésio, Óscar Lopes, Jorge de Sena ou Eduardo Lourenço perceberam de imediato que As Mãos e os Frutos, o grande livro da exaltação do corpo físico e do desejo – ambos vulneráveis à passagem do tempo – anunciava o nascimento de um grande e luminoso poeta português.

Para Luis Miguel Nava, “as mãos são as partes do corpo de que nos servimos para colher os frutos e os levar à boca (e também) susceptíveis de ser tocadas, acariciadas”. Eugénio de Andrade deleitava-se com a celebração pagã do esplendor do corpo e fez dele o centro da sua poesia. Ficaria reconhecido como “poeta do corpo”, do erotismo e da natureza, na exacta medida em que a beleza dos corpos se aproxima da natureza dos deuses. Também lhe chamaram “poeta dos elementos” (ar, água, terra e fogo), alguém capaz de sacrificar tudo pela construção obsessiva e enxuta de um verso, numa dedicação quase monástica ao labor poético. Luz, concisão e clareza caracterizam a poesia que nos legou, depois de a despir de tudo o que é supérfluo. Idioma rigoroso que apenas consente o que se afeiçoa à pureza da língua e da gramática: “Toda a manhã procurei uma sílaba/ É pouca coisa, é certo: uma vogal”.

Alguém que burilava de forma paciente as palavras, na rigorosa busca da linguagem exacta, até se tornarem nuas de impureza, para assim atingirem a limpidez do cristal. Desse ofício de paciência nos dá conta, na abertura de Os Amantes Sem Dinheiro:

Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.

Uma verdadeira estética da simplicidade, de fidelidade à terra, de desprezo pelo enfático e da presença melódica da palavra. Sílabas leves de um poeta fascinado pela transparência. Assim o confessou a Eduardo Lourenço: “Tu sabes, Eduardo, do meu horror às rimas previstas, à cantilena, à banalidade sentimental (detestando igualmente as cintilações ‘para raros’) e sabes também como amo excessivamente (não sei amar sem excesso!) a claridade, a sobriedade expressiva, a palavra exacta, se possível unívocas”.

Palavras do corpo e da alma, redondas como frutos maduros com sabor a sol e laranjas.  Diz-nos António Guerreiro: “quando, em poemas diferentes, se fala de uma cabra, de uma laranja ou de um limoeiro (três exemplos escolhidos quase arbitrariamente, entre tantos outros), esses elementos surgem desde logo associados a uma linguagem onde se dá o triunfo da perfeição da arte – da poesia – sobre a contingência da realidade”.

Para lá destes frutos também encontramos, no jardim perfumado do poeta nascido no ambiente campestre das Beiras, jacarandás, figueiras, girassóis, palmeiras, rosas e amoras. Ao analisar a influência intertextual de autores como Byron, Keats, Shelley e Whitman na obra de Eugénio de Andrade, o poeta e escritor João de Mancelos anota: “As experiências do escritor reflectidas pelo seu imaginário levam-no a encontrar sentidos pessoais para a figueira e para a amora (…). Em verdade, o pólen e as sementes de escritores antigos encontraram nos versos de Eugénio um solo fértil, sempre aberto ao sopro de antigas vozes, à luz de outras leituras, e às águas mais puras da inspiração”.

As amoras
O meu país sabe às amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.
(O Outro Nome da Terra, 1988)

Outras obras merecem destaque: Os Amantes Sem Dinheiro (1950), As Palavras Interditas (1951), Mar de Setembro (1961), Ostinato Rigore (1964), Os Afluentes do Silêncio (1968) Obscuro Domínio (1971), Véspera da Água (1973), Escrito da Terra (1974), Limiar dos Pássaros (1976), Memória doutro Rio (1978), Rosto Precário (1979), Matéria Solar (1980), O Peso da Sombra (1982), Branco no Branco (1984), Vertentes do Olhar (1986), Rente ao dizer (1992), À Sombra da Memória (1993), Ofício de Paciência (1994), O Sal na Língua (1995), Os lugares do lume (1998).

Em todas elas encontramos belíssimos poemas, que mais não são do que a respiração e o pulsar natural das coisas; ou prosa de fino quilate, limpa e sem atalhos, que lhe permitia uma respiração diferente dos versos e onde a fidelidade temática e essa espécie de música a que aludem Óscar Lopes e Eduardo Lourenço estão sempre presentes. Há um trabalho de filigrana por detrás de cada poema, até que as metáforas pousem na folha de papel. Poeta que fez do rigor a sua norma, ao ponto de lhe dedicar um livro, precisamente Ostinato Rigore. Poesia depurada, onde se manifesta o amor pela exactidão. Assim desejava o poeta que fossem os seus livros: “aspiram a uma simplicidade natural, cujo modelo supremo é a música de Bach”. Bernardo Pinto do Amaral, aquando da reedição de O Outro Nome da Terra, dá-nos um esboço da sua poética ao falar de uma realidade acessível, uma beleza concreta, uma tendência para o silêncio, um amor do mundo.

O ano de 1956 é uma data marcante na vida do poeta. Assinala a morte da mãe, a confidente de uma dedicação sem intervalos, a figura incontornável da sua vida e também da sua obra:

Poema à mãe
No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o menino adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;
ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal…

Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.
(Eugénio de Andrade, Os Amantes Sem Dinheiro, 1950)

É este o património que fica. Do poeta com uma tão aguda inteligência da alma (Lobo Antunes dixit) sobrevivem as palavras, afinal o que nos resta quando o corpo se degrada. Alguns dos melhores poemas escritos em português, mas também prosa, livros infantis, antologias (de Lorca, Safo e Borges, entre outras) e traduções que organizou. Tudo com posteridade garantida, capaz de devolver ao poeta a parcela de eternidade a que tem direito e a que de algum modo todos aspiram. O poeta sobrevive na obra que deixa. É dos livros: na morte, como na vida, os poetas arranjam sempre maneira de se salvar. E em Eugénio de Andrade o essencialismo verbal nunca deixou de andar atrelado à ideia de salvação.

Era avesso a poderes, luxos e honrarias. Detestava concursos, fossem eles literários ou outros. Durante 35 anos teve emprego burocrático no Estado, com a categoria de inspector administrativo. Recusou sempre submeter-se a concursos de promoção. No dizer de Agustina, “Eugénio não se rendeu nunca aos medíocres, era uma coisa que acendia a sua cólera”. Mostrou sempre “desprezo pelo luxo, que nas suas múltiplas formas é sempre uma degradação”. Numa entrevista a José Carlos de Vasconcelos (Visão, Novembro de 1998), confessa: “Não tenho, nem quero ter nenhuma relação com o poder, qualquer poder. As coisas mundanas são-me cada vez mais insuportáveis (…) continuo a fugir ao contacto com as coisas públicas, a entrevistas. Sinto-me mal diante de câmaras e microfones, tenho horror ao exibicionismo”.

Dado ao silêncio e ao recato, compreende-se que o poeta tenha confessado viver “forrado em silêncio”. Silêncio quando fala “a propósito de nascentes, de um quadro de Morandi, de duas ou três sílabas, de uma cidade do Sul, de palmeiras, cujo silêncio é hirto, de espelhos, cujo silêncio é baço, da fonte de Pascoaes, do barro ainda quente, da poesia japonesa, dos mortos que nos deixam “sentados no silêncio”, ou dessas casas (e ele sente tanta pena dessas casas) onde não é possível ouvir o silêncio correr” (José Tolentino Mendonça). Avesso ao ruído e ao tumulto do mundo, justificava as raras aparições públicas com “essa debilidade do coração que é a amizade”. Um cultor – digamos assim – do espaço purificado do silêncio.

Assim era aquele que um dia escreveu em Poesia, Terra de Minha Mãe, obra editada no âmbito dos 50 anos de vida literária: “desde pequeno, de abundante só conheci o sol e a água”. Mas como nos diz de forma particularmente lúcida e objectiva Gastão Cruz no estudo introdutório à reedição integral da sua obra pela Assírio & Alvim, nem tudo é transparência e luminosidade na sua obra: “em Eugénio há matéria solar, mas igualmente obscuro domínio; daí encontrarmos várias elegias que lamentam as palavras gastas, o amor volátil”.

Notícias do seu desaparecimento dão conta que morreu tranquilo, de madrugada, durante o sono. Com flores frescas por perto, orquídeas e frésias. E já que falamos de flores, nada melhor do que fechar este texto com uma história deliciosa que a sua grande amiga Agustina Bessa-Luis – parceira de viagens à Grécia e a Maiorca – costumava contar. Quando chegava a casa dela, Eugénio dizia-lhe: Maria Agustina, que flores maravilhosas são aquelas no lago da entrada?  E ela respondia: são nenúfares, Eugénio, e você está farto de os mencionar na sua poesia…

Ler ou reler hoje Eugénio de Andrade, uma poesia que é, ao mesmo tempo, hidrografia do corpo e carta dos afluentes do silêncio, é meio caminho andado para alcançar as verdades primordiais. (Re)visitar cada verso, cada frase, cada palavra, mais do que rasgar clareiras de deslumbramento e do mais puro deleite, é seguramente a melhor forma de o homenagearmos.


Consultas:

  • Luis Miguel Nava, O essencial sobre Eugénio de Andrade
  • Alexandra Lucas Coelho, “Despedida à entrada do Verão”. Público, 14.06.2005, p. 22.
  • “Eugénio de Andrade. O bem-amado”, Sol, 19.01.2017.
  • António Guerreiro, “À distância, tão longe daqui”. Expresso (Cartaz), 12.12.2001, p. 28.
  • João de Mancelos, O Marulhar de Versos Antigos. A intertextualidade em Eugénio de Andrade. Lisboa, Edições Colibri, 2009.
  • Luis Miguel Queirós, “Poeta de um obstinado rigor”, Público, 14.06.2005.
  • Valdemar Cruz, “Eugénio de Andrade”, Expresso (Revista Única), 18.06.2005.
  • Relâmpago (Revista de Poesia), n.º 15, Outubro 2004.
  • Sílvia Souto Cunha, “O silêncio de Eugénio”. Visão, 18.06.2005.
  • Gastão Cruz, “Transparência e sombra em Eugénio de Andrade”. Mil Folhas (suplemento do Público), 25.06.2005.
  • Fernando Assis Pacheco, “Eugénio de Andrade: fogo, claridade, música”.  Suplemento de O Jornal, 29.05.1987.
  • Ana Marques Gastão, “Eugénio de Andrade, o culto do corpo”. Diário de Notícias, 24.12.2000, p. 34.
  • Fernando Pinto do Amaral, “Redescobrir o poeta”. Jornal de Letras, 29.11.2000, p. 14.
  • José Tolentino Mendonça, “Ouvir o silêncio correr”. Mil Folhas (suplemento do Público), 18.11. 2000, p. 4.
  • Carta de Eugénio de Andrade a Eduardo Lourenço, 08.04.1953 (in Colóquio Letras, n.º 171, Maio/Agosto 2009, p. 393).

Natal – contos, poesia e o maravilhoso infantil

Uma das mais apreciadas obras de Ruben A. (Ruben Alfredo Andresen Leitão) é O Mundo à minha procura, livro autobiográfico onde se descarna e auto-flagela, numa exigência de sinceridade que não faz qualquer tipo de concessões ao medalhão ou ao elogio fácil. É nesta obra que o originalíssimo escritor nos dá a conhecer como era o Natal no Porto nos anos 30 do século XX, na Quinta do Campo Alegre, onde hoje se encontra instalado o Jardim Botânico. Foi lá que passou boa parte da infância. Aqui ficam alguns trechos que espelham a forma como interiorizou essas noites de Natal, tempos felizes vividos no seio de uma abastada burguesia portuense.

“Se pensar bem, vejo que nada encontrei na vida que se compare ao Natal do Campo Alegre. Era um Natal nórdico, alimentado pela combustão germânica e dinamarquesa da família de meus avós, aperfeiçoado pelos requintes trazidos ao seu brilho pelas minhas tias que, através do casamento ou por feitio, capricharam mais em festejar a data do nascimento de Cristo sob a forma tradicional das antigas lendas do Reno, do que segundo os cânones da consoada portuguesa (…).

Era uma festa de mil cores, pantagruélica, ampliada de generosidade que começava no dia em que a tia Teodora ia à mata com o Sezé escolher cuidadosamente qual seria o pinheiro a deitar abaixo para se colocar no centro do átrio do Campo Alegre (…). O pinheiro, aquela devoção da árvore, fazia muita confusão ao Sezé. O Natal para ele era uma rija bacalhoada, missa do galo e filhós bem encharcadas numa calde de açúcar com canela (…).

Havia açafates de fruta cristalizada, castanhas, nozes, amêndoas, uvas passas habitando as taças do estupendo serviço azul e branco de Sèvres, fruta do Douro colocadas para natureza-morta em fruteiras de cristal (…). A mesa grande da casa de jantar sentava uns quarenta e oito (…). Estabelecia-se o silêncio e o bacalhau era servido em segunda edição. E bacalhau assado como aquele nunca mais comi. Dá-me a lembrança que começava a perder sal uns quatro a cinco dias. Revelava—se em posta do alto, julgo que uma mão travessa de espessura, bacalhau do autêntico da Noruega. Coberto a seguir com uma camada de cebola às rodelas e coroado por broa de milho, tudo isto mergulhado até meia altura em banho de azeite, com batatas novas a rodear, ia ao forno e saía tostado de encantar um morto. Ao lado uns grelos e uma penca do Douro coloriam de verdura este monstro gastronómico que se servia em silêncio de grande ocasião. Ao mesmo tempo – e isto é extraordinário – do outro lado da mesa, os criados apresentavam o célebre bacalhau esfiado com um creme no meio que fazia as delícias aos mais desdentados da família”.

O que não falta na literatura são belos contos de Natal. Na estrangeira, entre tantos outros, os de Dickens – que nos dá a conhecer Scrooge, personagem da época vitoriana que só a muito custo recupera a humanidade perdida – e os de Agatha Christie. Na portuguesa, basta pegar na antologia de Vasco Graça Moura, Gloria in Excelsis, para saborear, entre a trama religiosa e a laicidade, suculentos nacos de prosa natalícia. Contos de Jorge de Sena, José Régio, Miguel Torga, Aquilino Ribeiro, Vitorino Nemésio, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, José Saramago, Manuel da Fonseca, Urbano Tavares Rodrigues, Raul Brandão e outros. Segundo Vasco Graça Moura, “praticamente nenhum dos grandes nomes da nossa ficção deixou de abordar o tema”, reconhecendo também que “há um tom de desgraça nalguns contos de Natal portugueses”. Apetece acrescentar: Pudera! Nem todos os lares conheciam pelo Natal – e fora dele – a abastança da Quinta do Campo Alegre descrita por Ruben A. Sempre houve e haverá Natais de ricos e de pobres.

Não é só na prosa portuguesa sobre o Natal que deparamos com amargura ou desalento. Na poesia esses elementos também estão presentes, ou não fossem os poetas sensíveis à pobreza, à miséria e aos azares de tantas existências viúvas de alegrias. É desses estados de alma que resultam da oposição profana entre tempo feliz e tempo de amargura que nos fala este tocante poema “Noite de Natal”, de António Feijó:

Bairro elegante, – e que miséria!
Roto e faminto, à luz sidérea,
O pequenito adormeceu…

Morto de frio e de cansaço,
As mãos no seio, erguido o braço
Sobre os jornais, que não vendeu.

A noite é fria; a geada cresta;
Em cada lar, sinais de festa!
E o pobrezinho não tem lar…

Todas as portas já cerradas!
Ó almas puras, bem formadas,
Vede as estrelas a chorar!

Morto de frio e de cansaço,
As mãos no seio, erguido o braço
Sobre os jornais, que não vendeu,

Em plena rua, que miséria!
Roto e faminto, à luz sidérea,
O pequenito adormeceu…

Sonha talvez, pobre inocente!
Ao frio, à neve, ao luar mordente,
Com o presépio de Belém…

Do céu azul, às horas mortas,
Nossa Senhora abriu-lhe as portas
E aos orfãozinhos sem ninguém…

E todo o céu se lhe apresenta
Numa grande Árvore que ostenta
Coisas dum vívido esplendor,

Onde Jesus, o Deus Menino,
Ao som dum cântico divino,
Colhe as estrelas do Senhor…

E o pequenito extasiado,
Naquele sonho iluminado
De tantas coisas imortais,

– No céu azul, pobre criança!
Pensa talvez, cheio de esp’rança,
Vender melhor os seus jornais…

Regresso à literatura estrangeira e a um livro que também já serviu de inspiração a uma belíssima série televisiva. Refiro-me a Reviver o Passado em Brideshead, do escritor britânico Evelyn Waugh. Há nesta obra um momento inesquecível, quando Charles Ryder pergunta ao católico Sebastian como pode acreditar no nascimento de Cristo, nos Reis Magos e até na Estrela de Belém que terá anunciado a chegada do Messias. A resposta de Sebastian é surpreendente: “- Oh, mas acredito! É uma ideia maravilhosa”.

Por respostas destas e por outras é que não devemos retirar a crença no Pai Natal ao imaginário infantil. Dizer às crianças que o Pai Natal não existe, como o Peter Pan não existe, é cortar-lhes o fio do sonho, impedi-las de caminhar nas veredas do imaginário. Um dia vão fingir que não sabem que ele não existe, porque não é fácil mergulhar no poço de desencantamento do mundo nem renunciar ao mundo mágico da fantasia da infância. Também nesse momento nos cabe fingir que não sabemos que já eles sabem. Mentir por amor é que é falar verdade.

É preciso continuar a alimentar o imaginário dos mais pequenos, recusando a morte dos mitos da infância. Pouco importa saber se havia burro ou vaca no Presépio ou o dia certo em que Jesus nasceu, ou se a celebração antiga do Natal foi uma forma de combate às celebrações pagãs. É preciso respeitar esse mundo mágico a que têm direito e tentar mantê-lo intocado. Isso requer de nós que valorizemos mais a maravilha da ideia do que o verosímil da história. É isso que faz o poeta David-Mourão Ferreira em “Surdina de Natal para os meus netos”:

Ó David Ó Inês
vamos ver o Menino
inda mais pequenino
que vocês

Vamos vê-lo tapado
sob o céu do futuro
com a sombra de um muro
a seu lado

Vamos vê-lo nós três
novamente a nascer
Vamos ver se vai ser
Desta vez

Meu querido Pai Natal, vou confessar-te uma coisa: tenho setenta anos e gostava tanto de receber uma prenda tua. Como no tempo em que tudo fazia para manter-me acordado, para não adormecer à noite, com o calor a amornar os corpos, à sonolência da lareira. Dava tudo para te ver chegar, receber e agradecer as prendas. Sempre te esquivaste ao tão ansiado encontro. Acordar cedo, alvoroçado, levantar-me de um pulo, sentir qualquer coisa a cintilar dentro de mim e correr para a lareira, ver o que tinha no sapatinho. E como era feliz com uns simples rebuçados coloridos. Ainda mais com uma pomba de chocolate, por mais oca que fosse. Sempre ficava mais barato, como dizia o O’Neill a propósito das três sílabas de plástico…

Rui Knopfli, poeta extraterritorial

Rui Knopfli (caricatura de Vasco)

(Dedico este texto à estimada amiga Maria Teresa Mota, que tem trazido aqui alguns poetas da minha predilecção – cito apenas, entre os mais recentes, Rui Knopfli e Pedro Tamen – os quais, por razões circunstanciais e outros imponderáveis, não tenho podido comentar em tempo útil, como desejava e ela bem merece).

“O poeta não se vende, não se compra, não se emenda” – Rui Knopfli

Considero Rui Knopfli um dos melhores poetas contemporâneos de língua portuguesa. Tenho-o alinhado, na estante, ao lado de outro Ruy que muito prezo – o Cinatti, poeta e antropólogo apaixonado por Timor, que cruzou vários continentes – e de braço dado, também, com a Memória Indescritível, de Pedro Tamen.

 Nascido em Inhambane (Moçambique), abandonou o país em 1975 por “mal-entendidos e amargas circunstâncias”. Viria a fixar-se em Londres durante vinte e dois anos, onde foi assessor de imprensa da embaixada portuguesa. Em 1997 passa a residir de vez em Portugal, onde acaba os seus dias, contava então 65 anos de idade: “Agora Portugal será, graças a Deus, um ponto de fixação, onde acabarei os meus dias no meio de gente que tanto estimo”.[1]

Não admira, assim, que a sua poesia depurada e concisa – mas também com sinais de presságio, angústia e ironia – atravesse os continentes africano e europeu. Sem uma terra a que verdadeiramente pudesse chamar sua, o poeta sentia-se estrangeirado n’O País dos Outros, título do primeiro livro (1959). Encharcado em saudade e melancolia, minado pela nostalgia irremediável da terra amada que, em sentido territorial, foi deixando de ter – “é só a língua em que me digo” – deixou todo esse caldeirão de emoções retratado no longo e belíssimo poema Pátria, de O Escriba Acocorado[2]de que aqui deixo apenas alguns excertos:

Um caminho de areia solta conduzindo a parte
nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
tinham nomes por que era costume designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal

e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios

entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho de uma linha imaginária. A isso
chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso

obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,
o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço
indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.
Ou tambores de paz simulando guerra. Esta
não se terá feito anunciar por tal forma

remota e convencional. Mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.

(…)

O poeta que não escrevia por encomenda acabou maltratado na sua terra pelos militantes da poesia. Precisamente aqueles que escreviam “de um ponto de vista totalmente subordinado a preconceitos de ordem político-ideológica, suprimindo, rasurando, autênticos valores literários em favor de todas as mediocridades que erguiam hinos coxos e tortos (risíveis?) em favor da libertação, com muito molho e esparregado de culatra de AK-47. Na época levantei um tímido protesto: choveu-me bravamente em cima e fui acusado de insidioso e potencial aliado do colonialismo, apesar de ter diariamente a ‘pide à perna’ e os meus críticos beneficiarem da sombra protectora da Sorbonne”.[3]

Foi o preço que pagou pelo não alinhamento ideológico que se seguiu a um período de aproximação ao neo-realismo. Um “eu” individual estilhaçado por acontecimentos colectivos que o levaram a abandonar Moçambique com amargura e desencanto, como se depreende destes versos extraídos de O Monhé das Cobras:[4]

Aeroporto

É o fatídico mês de Março, estou
no piso superior a contemplar o vazio.
Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon
e olha-me, obliquamente, nos olhos:
Não voltas mais? Digo-lhe só que não.

Não voltarei, mas ficarei sempre,
algures em pequenos sinais ilegíveis,
a salvo de todas as futurologias indiscretas,
preservado apenas na exclusividade da memória
privada. Não quero lembrar-me de nada,

só me importa esquecer e esquecer 
o impossível de esquecer. Nunca
se esquece, tudo se lembra ocultamente.
Desmantela-se a estátua do Almirante,
peça a peça, o quilómetro cem durando

orgulhoso no cimo da palmeira esquiva.
Desmembrado, o Almirante dorme no museu,
o sono do bronze na morte obscura das estátuas
inúteis. Desmantelado, eu sobreviverei
apenas no precário registo das palavras.

Falei acima de uma poesia de presságio, porque é disso que se trata quando deparamos com o primeiro poema de O País dos Outros, o primeiro livro que publicou:[5]

Lírica para uma ave

Num céu de chumbo e baionetas
caladas,
sobre uma floresta de sono
e demência,
tonta, esvoaça perdida
uma ave sangrenta.
Na turva e opressa manhã
se anuncia a cólera
do tempo.

Na hora
da aurora,
gemem ventos,
fluem surdos rios.

Cerra os olhos,
cala na garganta
a voz,
acorda audível
o pensamento:

No escuro cerne da floresta,
com sorrisos dependurados à entrada,
degola-se uma ave.
Por enquanto mais nada, senão
o torvo tinir dos talheres
no banquete da morte impossível.

E também é de presságio que se fala no poema “Preto no Branco”, escrito em 1962 e inserido em Mangas Verdes Com Sal, onde a guerra pela independência se anunciava já envolta em pólvora, ferro e fogo:

O PRETO NO BRANCO

Da granada deflagrada no meio
de nós, do fosso aberto, da vala
intransponível, não nos cabe
a culpa, embora a tua mão,
armada pelo meu silêncio,
lhe tenha retirado a espoleta.
De um lado o teu dedo indicador,
de outro a minha assumida neutralidade.
Entre os dois, ocupando o espaço
que vai do teu dedo acusador
à minha mudez feita de medo e simpatia,
tudo quanto não quisemos, nem urdimos,
tudo quanto a medonha zombaria
de ódios estranhos escreve a sangue
e, irredutivelmente, nos separa e distancia.
Tudo quanto há-de gravar o meu nome
numa das balas da tua cartucheira.
Nessa bala hipotética, nessa bala possível
que se vier, quando vier (ela há-de vir)
melhor dirá o que aqui fica por dizer.

Nunca foi fácil, aos romancistas e poetas das antigas colónias portuguesas, chamar a atenção dos críticos continentais e muito menos ocupar um lugar de destaque nos escaparates das livrarias da metrópole. Talvez por isso Rui Knopfli seja, ainda hoje, um poeta algo distante do reconhecimento que a sua obra requer e tanto merece. Uma obra construída em torno das lembranças da infância e da juventude – das mangas verdes com sal – das paisagens com a sua largueza de horizontes, da vegetação árida ou luxuriante, das savanas e das águas tépidas do Índico e daqueles poentes com céus de fogo deslumbrantes em finais de tarde que parecem não ter fim. Coisas que deixam traços indeléveis de nostalgia na alma e na memória de quem lá tem as raízes ou por lá passou ou assentou arraiais.

Poeta da perda e do desterro, mas também cronista e ensaísta de méritos firmados – estou a lembrar-me de uma notável polémica em torno de Shakespeare, travada com Eduardo Lourenço, que não hesitou em chamar-lhe “honorable man” – Rui Knopfli sublimou na poesia o luto de “ser arrancado da terra com as raízes a sangrar, para ser transplantado noutro lugar”.

Por tudo o que nos legou (e foi tanto!) é proibido esquecer Rui Knopfli! 


[1] Entrevista à Visão, em Outubro de 1997.

[2] Rui Knopfli, O Escriba Acocorado, Lisboa, Moraes Editores, 1978, pp. 13-14. Muita da sua dor, provocada pela ruptura com um mundo encantatório, foi exorcizada em O Escriba Acocorado (ver Maria Leonor Nunes, “Rui Knopfli, a diáspora de um escriba, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 18.01.1995, p. 12).

[3] Rui Knopfli, “O grande equívoco”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 428, 18.09.1970, p. 32.

[4] Rui Knopfli, O Monhé das Cobras, Lisboa, Editorial caminho, 1997, p. 56.

[5] Poema inserido na colectânea Nada Tem Já Encanto – Poemas Escolhidos. Edições Tinta-da-china, Lisboa, 2017 (1.ª edição), p. 23.

Manuel Resende (1948-2020)

Manuel Resende (1948-2020)

“Mas esta dor no peito, a falta de ar, / Esta barba há três dias por fazer /
Já ´stão à minha espreita ao despertar.”

Manuel Resende

 

Emudeceu a lira insubmissa e desalinhada, no derradeiro solo. Era amigo do meu amigo Arsénio Mota, fraternidade forjada há muitos anos na redacção do Jornal de Notícias. Homem discreto e reservado, apenas se expandia nos versos. O poeta raro e bissexto (publicou apenas três livros) finou-se hoje, pela manhã.

Poesia ReunidaCom formação em Engenharia, nunca quis ser doutor em demolições ou construções. Preferiu fazer versos e traduzir Kaváfis, Seféris e outros. Foi a partir da apresentação do primeiro destes poetas gregos que conheci – tão tardiamente! – Manuel Resende. Depois saltei para a Poesia Reunida, que fui lendo e continuo a ler com redobrado prazer.

Manuel Resende, autógrafoEm Maio de 2019 pedi-lhe amizade no Facebook. E disse-lhe que foi ao manifestar ao nosso comum amigo o apreço pela sua obra poética que fiquei a saber da amizade real que os unia. Resposta dele: “muito prazer e muito obrigado… e um grande abraço ao Arsénio!”

Agora que as Parcas o levaram, resta a poesia que nos legou e um autógrafo aposto num dos livros que atestam a sua presença aqui por casa. Não posso estar mais de acordo quando diz que a poesia é muito rara para ser desperdiçada com porcarias. Que a sua poesia seja eterna, meu querido poeta do tempo, da liberdade e do amor.

Também o que é Eterno

Também o que é eterno morre um dia.
Eu tusso e sinto a dor que a tosse traz;
O doutor quer por força a ecografia,
Mas eu não estou pra tantas precisões.

Eu rio à morte com um riso largo:
Morrer é tão banal, tão tem que ser!
Disto ou daquilo, que me importa a mim?
Mas, ó horror, com fotos, não, nem documentos!

A tanta exactidão mata o mistério.
O pH, o índice quarenta…
Não quero as pulsações, os eritrócitos,
O temeroso alzaimer, ou o cancro,
Nem sequer o tão raro, do coração.

Ver o pulmão, o peito aberto, o coração,
A palpitar a cores no computador?
Eu morro, eu morro, não se preocupem,
Mas sem saber, de gripe, ou duma coisa,
Ou doutra coisa.

Manuel Resende, in ‘O Mundo Clamoroso, Ainda’

POETRIA – Um comunicado e um comentário

Poetria 2

Comunicado

Car@s amig@s,

Foi-nos dado conta do encerramento das Galerias Lumière, decorrente da venda da empresa sua proprietária.

Apesar de alguns lojistas terem já assinado acordos para saírem das suas lojas, seis lojas não foram ainda formalmente notificadas, como é o caso da Livraria Poetria.

Tivemos uma reunião, por nós solicitada, onde nos foi comunicada a intenção da não renovação do nosso contrato de arrendamento, podendo aqui a livraria permanecer até Outubro de 2020, altura em que as Galerias Lumière encerram.

A Livraria Poetria habita as Galerias Lumière desde 2003, ano em que foi criada pela Dina Ferreira e possui uma ligação vital com o sítio onde nasceu, sentimos isso.

Sabemos que constituímos, todos nós que somos Poetria, uma parte deste factor, especial, único e diferenciador que há dezasseis anos nasceu nesta bela cidade e que esta cidade ama.

Acreditamos que este é o momento para que a comunidade que temos vindo a construir se mantenha unida para que juntos consigamos ultrapassar esta situação.

Poetria 1

Até lá, estamos empenhados em dar um fim condigno a estas Galerias, com o decorrer normal da sua vida, tendo já comunicado a nossa intenção de continuar a desenvolver apresentações de livros e eventos culturais até ao fim anunciado.

Vamos ficar nas Galerias Lumière, no mesmo sítio, até Agosto de 2020.

Somos o vosso reflexo. São vocês que nos dão coragem, carácter e identidade. Acreditamos num mundo de consensos, e na certeza de que com trabalho e esforço se consegue algo melhor.
Porque o sonho vive, viverá sempre a Poetria!

 

Comentário

Resido perto de Aveiro, alguns quilómetros a sul. Vou, com alguma frequência, ao Porto. Uma das razões que me atrai à cidade é a Poetria, a primeira livraria de poesia do País. Faço o percurso a pé, a partir da estação de São Bento. É lá que encontro livros que dificilmente vejo noutros lugares. Levo sempre alguns e, à saída, desço três ou quatro degraus e viro à esquerda. Quando o tempo está de feição, sento-me na esplanada daquele café (ou bar?) que fica ali perto, a não mais de cem metros. Leio, e bebo, porque quem lê poesia nunca se abstém.

O comunicado da Poetria é uma daquelas notícias que ferem como punhais. A Poetria não é apenas uma livraria e é mais do que uma casa. Atrevo-me a dizer: é um lar. Um lugar onde nos sentimos bem, onde é possível a troca fecundante de ideias, porque a cultura será sempre confraternização e nunca um egoísmo.

Tenho à minha frente um belíssimo texto de Valter Hugo Mãe sobre a Poetria, no preciso momento em que ela completava dez anos de resistência (dado à estampa no P2, suplemento do Público, 19 de Maio, 2013). A esses dez anos de resistência temos que somar mais seis. Sim, resistência, porque como escreve o autor de “Homens imprudentemente poéticos”, a poesia “tem o seu lado de protesto contra a banalidade”. E porque a Poetria é “como uma livraria gourmet, porque a poesia traz o melhor da literatura, a aventura maior, o risco, o modo como segue à frente a desbravar caminho puramente no escuro”.

Diz ainda V.H.M., no texto a que aludo: “Os poetas são feitos de cristal. Vidrinhos a correrem o risco de partir (…). Por isso é tão admirável durar-se dez anos a equilibrar frasquinhos perigosos de maravilha”. Infelizmente, com esta notícia que ninguém gosta de receber, é bem provável que, a partir do Verão de 2020, se torne mais difícil continuar a destapar e a apreciar as delicadas essências desses precários frasquinhos de sabedoria.

O que nos resta? Resistir, não ficarmos deitados, calados, a esperar o que acontece, como aquela nêspera do “Rifão Quotidiano” do Mário Henrique-Leiria. Aquele bairro do Porto precisa da Poetria. E os que por lá costumam passar, para dar uma palavrinha, perguntar por um livro, folhear e comprar outros, também. Ou não fossem os livros (ainda) um bem cultural insubstituível. Afinal, são eles que “nos ensinam a escutar a voz humana” (Marguerite Duras) ou funcionam como pontes “para nos levar a terras distantes” (Emily Dickinson).

Poetria 3Contra os que dobram a cerviz à curvatura de interesses que nada têm a ver com a cultura e a transformam em comércio e mercadoria, é preciso encontrar formas de resistir. Contra este mundo lúgubre e sem generosidade, alguém tem de engendrar um “golpe de asa” que salve a Poetria da extinção.

Não a deixem fenecer, ouviram? Não permitam que estes lamentos ou breves gemidos culturais se convertam em elogio póstumo. O pior que pode acontecer aos que gostam da Poetria é começarem a sentir, um dia destes, uma faca de saudade atravessada na garganta.

Luiz Regala/Pedro Zargo: excurso biográfico de um poeta com qualidades*

Luiz Regala (foto Henrique Ramos)Luiz Carlos Regala de Figueiredo nasceu em Espinho, a 11 de Agosto de 1905, no primeiro andar de uma casa da então Rua do Passeio Alegre, hoje Rua 62, com o n.º 30 de polícia. Era, diz-nos o poeta, “uma rua longa, estreita, coleante como uma cobra – propícia ao jeito e pessoais conveniências das construções urbanas, que cortava a Vila longitudinalmente: a única rua torta desta agreste Praia”.[1]

Foi precisamente nessa praia, quando um dia sentado na areia contemplava o mar – que bem cedo as musas o visitaram. Tinha nove anos quando escreveu o primeiro poema, deixando-nos mais tarde em verso essas impressões iniciais do seu lirismo magoado: Menino ainda, estranha voz inquieta /Rasgou em mim abismos e universos, /E, sem saber o que era ser poeta, /Encontrei-me a chorar… e a fazer versos!

Completou os “estudos gerais” no Liceu de Aveiro e entre 1926-1931, período que coincide com o desmoronamento da I República e com o início da Ditadura Militar que antecede o Estado Novo, Luiz Regala frequenta o Curso Jurídico na Universidade de Coimbra. Nos anos vinte do século passado, a influência que a Universidade teve na geração a que pertenceu Luiz Regala não seria muito diferente da que exerceu na geração de Eça de Queiroz. Seria idêntica a forma de “comprimir, escurecer as almas (…) uma madrasta amarga, carrancuda, rabugenta, de quem todo o espírito digno se desejava libertar, rapidamente, desde que lhe tivesse arrancado pela astúcia, pela empenhoca, pela sujeição à “sebenta”, esse grau que o Estado, seu cúmplice, tornava a chave das carreiras”.[2]A douta Academia, sempre pronta a catar o piolho metafísico nas dobras da ciência, era cada vez mais contestada pelas novas gerações.

O canudo não o entusiasmaria muito: apesar de, na altura, ser passaporte seguro para um emprego, chama-lhe “malograda e malfadada formatura”. Apesar dos dotes de oratória que os seus pares lhe reconhecem, não é o trabalho silencioso no escritório de advogado ou a barra dos tribunais que motivam o poeta. Chega a confessar a um amigo: “esta vida de processos enferruja-me a língua e embota-me, desgraçadamente, a sensibilidade (…). Não imaginas a repugnância que tenho pela engrenagem dos tribunais!… Se pudesse ver-me livre disto tudo (…). Asfixio, amigo, nesta irrespirável atmosfera de conveniências e de jogos malabares do espírito, os mais atrozes, os mais torturantes, os mais repelentes para quem teve, como eu (por que não dizê-lo) uma formação moral e cultural feita de honestidade, feita de honradez e, sobretudo, de autêntica e saudável clerezia.”[3]  A burocracia e o cinzentismo da profissão chocavam abertamente com os códigos morais de quem colocava o ideal da beleza e do amor, e a sede de infinito, acima de todas as outras coisas terrenas.

Luiz Regala tem colaboração dispersa por várias publicações: O Vigilante; Voz Académica; O Primeiro de Janeiro; Seara Nova; O Diabo; Litoral e suplemento cultural CompanhaCorreio do Vouga e suplemento cultural Serão de Letras e Artes; revista Panorama; Diário de Notícias; Beira-MarAlmanaque Desportivo do Distrito de Aveiro; Revista Trimestral da Secção de Filatelia e Numismática do Clube dos Galitos; O Jornal de Estarreja.

Zargo

Apesar da consabida timidez, nunca deixou de emprestar o melhor do seu talento e da sua disponibilidade cívica às instituições e agremiações da cidade: aos Bombeiros, à Banda Amizade – da qual era sócio honorário – à Santa Casa da Misericórdia – onde foi Mesário – e ao Clube dos Galitos. A ele pertence a autoria do libreto da revista Molho de Escabeche, peça teatral que o grupo cénico deste prestigiado Clube apresentou com assinalável êxito em Lisboa (Coliseu dos Recreios, em Janeiro de 1941) e no Porto. O Clube dos Galitos concedeu-lhe, em 4 de Dezembro de 1961, o diploma de Sócio de Mérito do Grupo Cénico “pela exemplar dedicação clubista, alto espírito de benemerência e reais merecimentos artísticos, notavelmente afirmados há já 25 anos e agora de novo evidenciados através da excepcional colaboração prestada à revista “Ainda Canta o Galo”.

Cântico de AmorEm 1945 O Primeiro de Janeiro anuncia estar para breve a publicação do seu primeiro livro de poemas, cujo título era O Teu Livro. Há outros títulos, nunca publicados, que Luiz Regala ia anunciando: Pequenos Poemas Infinitos, Poemas Frustrados, Noite Imensa, Poemas LusíadasRio Negro, Corpo Inteiro, Canto Renovado e Chão em Fogo. Em vida publicou apenas Cântico de Amor, corria o ano de 1960.

Em 1948 continuava a dedicar-se aos poemas, embora sem publicar. Tinha receio que a maior parte deles pudesse fazer mal aos homens. Coisas “amargas demais, embora revelem um sentido profundo de humanidade”. E anunciava ter em mãos 27 estrofes – tipo camoniano – de Chão em Fogo, poema que haveria de permanecer para sempre inacabado e onde pretende valorizar o Homem nas suas “Chagas, gangrenas, lepras, podridões…/ Cantadas só por mim, que sou cantor/ De tais terrenas, míseras canções…”[4]

Assinou os primeiros poemas na imprensa como Luís-Carlos. Mas um dia, ao familiarizar-se com a poesia brasileira, descobriu um poeta com o mesmo nome.  O desconforto leva-o a procurar um pseudónimo para as suas criações poéticas, que fosse ao mesmo tempo libertador e encobridor. E assim nasceu, embora tardiamente, Pedro Zargo:

Pedro Zargo é o meu nome verdadeiro,
O do baptismo lírico das fontes
Na sagração das águas que se perdem
Na vertigem das pedras e dos montes.

A explicação para o pseudónimo é-nos dada numa entrevista a José de Melo, em 1959: “Pedro Zargo diz bem com a amargura brutal e dilacerante, a amargura ácida de parte da minha obra, sobretudo na última fase, nestes últimos dez anos. Gostei sempre do nome de Pedro; bem quereria que tivesse sido o do meu baptismo. Pedro é a pedra rude, mas viva, das construções milenárias que desafiam a eternidade do tempo. Sobre Pedro – a pedra – construiu Cristo a sua igreja”. Já quanto a Zargo, trata-se de uma evidente homenagem ao grande vate dos Lusíadas: “Camões é poeta, e foi zarolho (…). Zargo significa zarolho. Ficarei assim com alguma coisa do imortal poeta”[5]:

Ah, destino maldito!
Ah, fado amargo!
Ah, desdita! Ah, terrível vida minha!
Ah, Camões incarnado em Pedro Zargo.

Além do vocábulo “pedra”, há outros que no poeta são essenciais. É a eles que recorre, e é também com eles que procura restituir uma certa condição original para desbravar os caminhos do desnudamento e da raiz das coisas e que por isso integram o seu thesaurus poético: “lama”, “lodo”, “charco”, “estrume”, “esterco”, “grito” e “dor”, para citar apenas os mais expressivos. Elementos que participam da pira dos sentimentos em que o poeta se consome, mas que conduzem ao enriquecimento verbal do seu canto, porque lhe dominam os códigos e as subversões:

“Cantava porque o Canto era consigo
Desde a primeira lágrima no olhar!
Cantar era o seu Fado e o seu Castigo,
– Cantava por destino de cantar!”

Em Junho de 1965 abandona Aveiro e refugia-se na sua Toca. É um refúgio de meditação em que se alheia praticamente de tudo o que diz respeito à vida social e profissional. O poeta sensível que é Pedro Zargo vive agora enrodilhado em silêncio e couraçado dum mundo que o agride e o consome. Enquanto absorvia voluntariamente essas golfadas de solidão, confessava: “Este período de exílio tem sido demasiado fecundo para mim. Tem-me feito bem, apesar de todas as contrariedades inerentes. Passei a meditar com mais serenidade e profundeza sobre os vários problemas da vida e do homem, quiçá da vida do homem. Desci também ao fundo de meu poço, ao fundo de mim, com amor e com ódio – ódio fecundante e amor compreensivo e humano. Analisei-me talvez melhor, analisando os outros talvez também melhormente”.[6]

O soneto “Diz-me, Cidade Linda” é uma das várias homenagens que presta a Aveiro, misto de Mar e Frágua que transfigura num corpo gentil de mulher, cuja beleza não é mais do que a própria beleza feminina da Cidade, sua Amada, sua Menina e Moça. E “o líquido alvoroço, que agita a rede dos seus nervos”, é “a agitada água dos canais que percorrem e cortam em vários sentidos o próprio corpo da Cidade.”[7]

Pedro Zargo legou-nos um trabalho de relojoaria poética assinalável. Poeta de paixões e arrebatamentos, do desassossego interior, do sofrimento, da noite escura e da noite imensa, do conflito e das dimensões mais profundas da vida, da melancolia que sobrava das armadilhas do amor. Da exaltação e da angústia destilada em vários amores idealizados e sofridos. Também da hospitalidade e do acolhimento dos outros. Homem de fé e profundamente religioso, mas tocado e dilacerado pela incerteza que é própria dos homens de carne e osso, pois só os deuses se ofendem com a dúvida.

Caricatura Luiz Regala (A. Torres)
Luiz Regala caricaturado por Amilcar Torres (1957)

O momento de júbilo é aquele em que o poema acontece, porque de algum modo pacifica o que antes era caos interior e inquietação. Um ser profundamente lírico, que se comove com a paleta de cores variegadas da mãe-natureza, com um voo de ave, uma flor a desabrochar, um repuxo de água, com o marulhar das águas revoltas do mar ou quase paradas dum regato manso. Observador atento e sensível de tudo o que o rodeia, assentam-lhe bem estas palavras de Eugénio de Andrade: “Colhe todo o oiro do dia/ na haste mais alta da melancolia”.

Os anos foram passando e o grosso da obra continuava praticamente inédita. Até que um dia o poeta adoeceu e se fechou em casa: nunca mais procurou ninguém, poucos o terão visitado. Contava 80 anos de idade quando, a 4 de Abril de 1986, a morte o apartou do nosso convívio, perante a indiferença quase geral dos aveirenses seus contemporâneos. Cercada de silêncio, a memória de Pedro Zargo passou a estar ausente dos azimutes culturais da cidade salgada. É certo que Aveiro tem uma rua com o seu nome. E que algumas iniciativas procuraram honrar-lhe a memória, nomeadamente as que então foram promovidas pelo Teatro Independente de Aveiro. Mas nada disso impediu que com o arrastar dos anos uma hera de silêncio se enroscasse dolorosamente em torno do seu nome.

O apagamento da memória de um vulto desta grandeza na vida cultural aveirense não representa apenas um esquecimento aviltante. É também, para aqueles que o conheceram ou de perto privaram com o “amigo noctívago” – como de forma comovedora lhe chamou Vasco Branco no Roteiro Impopular de uma Cidade – uma faca de saudade atravessada na garganta.

Pedro Zargo nunca calou o seu Canto e sempre alimentou a esperança de que os amigos, um dia, fizessem incidir nele os holofotes da publicidade: “Nas tuas frágeis mãos deixo o meu Canto;/ É o meu grito de Amor!… que alguém o acoite!” Só uma pequena parte da sua obra poética é do conhecimento público. É imperioso trazer à luz do dia o muito que ainda permanece na sombra. Apreciar o essencial da sua obra poética será a melhor forma de o homenagear. Começa aí o verdadeiro reconhecimento que a cidade lhe deve.

Como pedia Amadeu de Sousa: /Que a foice atroz/ Não cale a voz/ Na sepultura. Ou, como dizia o próprio Pedro Zargo:

/Todo o mal seja esse!
E que a voz se não cale…
O que importa é que a carne, mesmo depois de morta,
proteste, acuse e fale.

Na verdade, se a finitude do corpo é uma certeza, o que se escreve permanece e ajuda a perpetuar um pensamento. É urgente recuperar o seu canto familiar, a magia que se desprende da osmose entre o poeta e a cidade que deveras amou.

Estamos em crer que a obra poética de Pedro Zargo, que laboriosamente construiu e lapidou e por isso ecoa inteira na força do seu grito – mas que por razões imponderáveis não foi possível dar a conhecer aos seus contemporâneos – se há-de converter, uma vez conhecida de todos, em obra intemporal, apreciada pelos leitores de hoje e de amanhã. Será ao nível dos novos leitores que a sua poesia, escrita ao longo de dezenas de anos, se pode reerguer, reanimar e reviver. Fazer isso é devolver ao poeta a parcela de eternidade a que tem direito e a que de algum modo todos os artistas aspiram.

É dos livros: na morte, como na vida, os poetas arranjam sempre maneira de se salvar.

* (Texto publicado em  Folhas – Letras & Outros Ofícios. Revista do Grupo Poético de Aveiro, n.º 16, 2018, pp. 195-201).


[1]Documento existente no espólio de Luís Regala.

[2]Eça de Queiroz, Notas Contemporâneas, Edição Livros do Brasil, s.d., pp. 257-58.

[3]Carta de Luiz Regala, 23.10.1935 [destinatário desconhecido].

[4]Carta a José Marmelo e Silva, 16.06.1948.

[5]José de Melo, “Encontro com Pedro Zargo”, Diário Ilustrado, 05.09.1959, pp. 1 e 4.

[6]Carta de Luiz Regala a Manuel Granjeia, 19.11.1965.

[7]Carta de Luiz Regala a João Lé, 14.07.1980.