Manuel Resende (1948-2020)

Manuel Resende (1948-2020)

“Mas esta dor no peito, a falta de ar, / Esta barba há três dias por fazer /
Já ´stão à minha espreita ao despertar.”

Manuel Resende

 

Emudeceu a lira insubmissa e desalinhada, no derradeiro solo. Era amigo do meu amigo Arsénio Mota, fraternidade forjada há muitos anos na redacção do Jornal de Notícias. Homem discreto e reservado, apenas se expandia nos versos. O poeta raro e bissexto (publicou apenas três livros) finou-se hoje, pela manhã.

Poesia ReunidaCom formação em Engenharia, nunca quis ser doutor em demolições ou construções. Preferiu fazer versos e traduzir Kaváfis, Seféris e outros. Foi a partir da apresentação do primeiro destes poetas gregos que conheci – tão tardiamente! – Manuel Resende. Depois saltei para a Poesia Reunida, que fui lendo e continuo a ler com redobrado prazer.

Manuel Resende, autógrafoEm Maio de 2019 pedi-lhe amizade no Facebook. E disse-lhe que foi ao manifestar ao nosso comum amigo o apreço pela sua obra poética que fiquei a saber da amizade real que os unia. Resposta dele: “muito prazer e muito obrigado… e um grande abraço ao Arsénio!”

Agora que as Parcas o levaram, resta a poesia que nos legou e um autógrafo aposto num dos livros que atestam a sua presença aqui por casa. Não posso estar mais de acordo quando diz que a poesia é muito rara para ser desperdiçada com porcarias. Que a sua poesia seja eterna, meu querido poeta do tempo, da liberdade e do amor.

Também o que é Eterno

Também o que é eterno morre um dia.
Eu tusso e sinto a dor que a tosse traz;
O doutor quer por força a ecografia,
Mas eu não estou pra tantas precisões.

Eu rio à morte com um riso largo:
Morrer é tão banal, tão tem que ser!
Disto ou daquilo, que me importa a mim?
Mas, ó horror, com fotos, não, nem documentos!

A tanta exactidão mata o mistério.
O pH, o índice quarenta…
Não quero as pulsações, os eritrócitos,
O temeroso alzaimer, ou o cancro,
Nem sequer o tão raro, do coração.

Ver o pulmão, o peito aberto, o coração,
A palpitar a cores no computador?
Eu morro, eu morro, não se preocupem,
Mas sem saber, de gripe, ou duma coisa,
Ou doutra coisa.

Manuel Resende, in ‘O Mundo Clamoroso, Ainda’

Frantz, de François Ozon

 

Frantz (de François Ozon)

(depois de ver, no passado dia 10 de Janeiro, na RTP2, um filme belíssimo, que considero fazer parte dos filmes da minha vida)

Se há filmes – e o mesmo acontece com os livros – que têm o dom de nos agarrar logo de início, este é um deles, porque mergulha, com mestria, nas memórias e fantasmas da guerra. Um tempo em que se ama e que é o mesmo em que se morre. A guerra que um dia Paul Valéry definiu ironicamente como “um massacre entre pessoas que não se conhecem, para proveito de pessoas que se conhecem, mas não se massacram”.

Ozon conta-nos a história da frente para trás (que é também frente, a da batalha, onde descobrimos ter sido Adrien quem abateu Frantz, quando este apenas o olhava, desarmado, paralisado pelo medo, sem constituir qualquer ameaça). A mola do remorso que o impele a encontrar Anna, a noiva alemã de Frantz, e a visitar a campa onde este foi sepultado, revela-nos também uma verdadeira arqueologia do desconforto e do sofrimento psíquico. Um dia, porque o passado continuava a doer, rebentou o dique das emoções e ele contou-lhe a verdade.

A memória desse momento fatídico morde Adrien como um cão raivoso. E que dizer quando vemos Anna, mais tarde, a queimar no fogão de sala a carta que ele lhe manda – e na qual confessa aos pais de Frantz que foi ele que o matou – e a ler depois, aos sogros, o contrário daquilo que a carta dizia? Sim, às vezes mentir por amor é que é falar verdade. Às vezes, durante e depois do luto, é possível amar sem destilar vinganças, trocar o ódio pelo perdão e a compaixão.

Há uma espécie de monismo ideológico, de um pensamento mecanicista, previsível, segundo o qual uma guerra é sempre culpa do outro, do inimigo que não conhecemos, do que está no outro lado da barricada. Ozon procura (e consegue) subverter estes clichés: em qualquer guerra – e todas as guerras são absurdas, porque nelas só aparentemente há vencidos e vencedores – luta-se pelo mesmo em ambos os lados: pela vitória e pela sobrevivência, pela vontade de fragilizar ou eliminar o outro, para quem nós também somos “o outro” (vontade de poder, lhe chamou Nietzsche).

Frantz, de François Ozon (fotograma)Este filme de Ozon parece apontar para outro tipo de pensamento: já não o mecânico, mas o fragmentário, aquele que podemos encontrar, em doses mais ou menos generosas, em autores portugueses como Rui Nunes, Herberto Helder (onde é possível identificar caos e contínuo) e, sobretudo, em Maria Gabriela Llansol. Há mudanças subtis, imperceptíveis, a germinar todos os dias, à margem da contabilidade fria e calculista da História e do poder: será aquilo a que Llansol chama “a restante vida”; ou talvez, porque as utopias estão sempre a acontecer, a “comunidade que vem” de que fala Agamben. E aqui, estamos a falar de outra coisa: de pequenas erupções, que acontecem no mais recôndito do nosso ser, filiadas no domínio da ética e já não no da política.

Um filme casto. Só quase no final, na derradeira despedida de Anna e Adrien junto ao comboio, há o esboço de um beijo sempre reprimido. De um sobressalto. Naquele momento, ambos desejam que o tempo pare, para se despojarem de todos os artifícios do fingimento, lavarem a alma e serem autênticos e talvez felizes. Desejam suspender o tempo, porque o tempo, enquanto corria, suprimia inexoravelmente o prazer de estarem juntos.

 

O Expresso e a utilidade do inútil

Mandar calar O Grito

Primeiro levaram o Nicolau Santos e a economia ficou sem poesia. Importei-me – porque percebo tanto de economia como Jesus Cristo de finanças – mas não disse nada. Assim como os poemas atraem e iluminam outros poemas, a poesia que o Nicolau divulgava era o íman que me atraía para uma ou outra leitura do suplemento do Expresso.

M.A. Pina
Poema inserido por Nicolau Santos no suplemento de Economia

Sem poesia, continuam por lá os evangelistas do mercado, a ruminar o hermetismo dos swaps, a aridez das acções e obrigações, as imparidades. A arengar sobre o fetiche da produtividade, as empresas de rating, o leasing, as golden share, a inflação e a deflacção e sei lá o que mais. Como escreveu Ana Cristina Leonardo numa das suas deliciosas crónicas ou textos de circunstância: fosse o mundo um sítio recomendável, um poeta valeria decerto mais que um alqueire de banqueiros.

Depois, levaram o cinema, que nos era servido na bandeja competente de Manuel S. Fonseca. Crónicas saborosas e recheadas de pormenores que nos escapam, trabalhos de bastidores, curiosidades no relacionamento entre actores e actrizes dentro e fora do plateau, e, não menos importante, a contaminação entre a sétima arte e outras artes de que é subsidiária: a pintura, a música e a fotografia. Voltei a não dizer nada.

Manuel S. Fonseca

Agora levaram a música que nos dava o Jorge Calado. A serva da palavra, no dizer de Monteverdi. Calado dava-nos ópera (uma derivação do teatro, através da música), música clássica, compositores. Foi-se a “tabela periódica” e, segundo li há pouco, também a “desarmonia das esferas”, de João Lisboa. E como se tudo isto (e isto não é tudo!) não bastasse, levaram nessa enxurrada a Ana Cristina Leonardo.

Desta vez quero dizer qualquer coisinha, trocar umas palavras sobre o assunto. A sensação que fica é que isto anda tudo ligado. Para lá da frontalidade que rejeita as meias-tintas, da irreverência e do desassombro que recusa os rodriguinhos e os paninhos quentes, do humor fino que habitualmente derramava nas crónicas do jornal, Ana Cristina Leonardo deu-me algumas preciosas indicações para calcorrear os trilhos sinuosos da literatura. Apenas dois exemplos, de que sou tributário: a descoberta do fascinante Albert Cossery, que me levou à compra de toda a obra (8 livros, mais um de conversas com o autor) após ler Mendigos e Altivos e Mandriões no Vale Fértil; e também a descoberta de um livro imperdível: As Meninas da Numídia, de Mohamed Leftah, uma narrativa sublime do ambiente sórdido dos bordéis e da vida desgraçada das mulheres que os animam e dos homens que os frequentam, prova provada que “os santos nem sempre desdenham de bordéis antes de subir ao altar” (S. Sanchez, Magazine Littéraire).

ACL excerto de crónicaNão sei se a poesia que o Nicolau nos dava é celebração da vida, ou nos envolve em cumplicidade, ou ensina a cair, como dizia Eduardo Prado Coelho; não sei se a música que se desprendia das crónicas do Jorge Calado  é a arte maior, pois, no que se refere às artes em geral, gosto de tudo o que nelas me toca e faz vibrar, como numa harpa eólica; não sei se o cinema, enquanto máquina de fabricar sonhos e dar imagem à palavra e à música, dá o que a vida tira, como pensa Manuel Fonseca; não sei se a literatura que Ana Cristina Leonardo nos oferece está sempre comprometida com a beleza, se nos ajuda a viajar sem sair do lugar, ou até se é capaz de salvar vidas.

Sei que o valor da poesia, da música, do cinema e da literatura não se medem pelo potencial económico que geram, nem devem ser rasuradas com o pretexto de uma remodelação gráfica, pois funcionam como um precioso antídoto contra o utilitarismo estreito, a barbárie do útil e do lucro desmedido. E sei, de fonte segura, que depois destas mudanças no Expresso me invade um sentimento de perda. Se a vida é metanoia – mudança de opinião, de atitude mental – não é menos certo que superar é destruir e conservar. E a identidade de um jornal não se reforça quando se deita fora, com o pretexto da renovação, a herança daqueles que deram o seu melhor para ajudar a construí-la.

É certo que o Expresso continua a dar-nos análise política, música, pintura livros e filmes, à mistura com gastronomia, vinhos, restaurantes, design e moda. Mas tudo aquilo parece navegar, de forma crescente, nas águas chilras do conformismo. Tudo cada vez mais certinho e alinhado no mesmo compasso. Numa palavra: a deslizar, num feixe de opiniões semana a semana mais convergentes, para o institucional (que, aliás, nunca deixou de ser a sua marca de referência). Há agora menos gente a remar contra a maré, a lançar pedradas no charco capazes de acordar os gansos do Capitólio mediático, a criar labaredas de desassossego. Há menos indignação e mais palavrinhas mansas; mais “pássaros empalhados” e menos golpe de asa. Sempre o Quase, do Mário Sá-Carneiro, a martelar-nos os ouvidos.

A grande razia parece ter-se abatido sobre a Revista: também Diogo Ramada Curto e João Mário Silva deixam de marcar presença. É a Revista que (ainda) me leva a comprar o jornal. Ainda por lá fica o Tolentino (cardeal), mas como já se foi o Nicolau, impossível termos o Nicolau Tolentino (o da poesia e das sátiras). E continua o Pedro Mexia. Embora a nossa necessidade de consolo seja impossível de satisfazer, alegremo-nos: o Mexia, felizmente, consegue ser muito mais que o pretérito imperfeito do verbo mexer.

Se, depois desta vassourada, a administração ou a direcção do jornal, numa tarde de pouca veia, nos levar também o Pedro Mexia, aí é garantido: não mexo mais no bolso e poupo 4 Euros todos os sábados. Já faltou mais…

 

POETRIA – Um comunicado e um comentário

Poetria 2

Comunicado

Car@s amig@s,

Foi-nos dado conta do encerramento das Galerias Lumière, decorrente da venda da empresa sua proprietária.

Apesar de alguns lojistas terem já assinado acordos para saírem das suas lojas, seis lojas não foram ainda formalmente notificadas, como é o caso da Livraria Poetria.

Tivemos uma reunião, por nós solicitada, onde nos foi comunicada a intenção da não renovação do nosso contrato de arrendamento, podendo aqui a livraria permanecer até Outubro de 2020, altura em que as Galerias Lumière encerram.

A Livraria Poetria habita as Galerias Lumière desde 2003, ano em que foi criada pela Dina Ferreira e possui uma ligação vital com o sítio onde nasceu, sentimos isso.

Sabemos que constituímos, todos nós que somos Poetria, uma parte deste factor, especial, único e diferenciador que há dezasseis anos nasceu nesta bela cidade e que esta cidade ama.

Acreditamos que este é o momento para que a comunidade que temos vindo a construir se mantenha unida para que juntos consigamos ultrapassar esta situação.

Poetria 1

Até lá, estamos empenhados em dar um fim condigno a estas Galerias, com o decorrer normal da sua vida, tendo já comunicado a nossa intenção de continuar a desenvolver apresentações de livros e eventos culturais até ao fim anunciado.

Vamos ficar nas Galerias Lumière, no mesmo sítio, até Agosto de 2020.

Somos o vosso reflexo. São vocês que nos dão coragem, carácter e identidade. Acreditamos num mundo de consensos, e na certeza de que com trabalho e esforço se consegue algo melhor.
Porque o sonho vive, viverá sempre a Poetria!

 

Comentário

Resido perto de Aveiro, alguns quilómetros a sul. Vou, com alguma frequência, ao Porto. Uma das razões que me atrai à cidade é a Poetria, a primeira livraria de poesia do País. Faço o percurso a pé, a partir da estação de São Bento. É lá que encontro livros que dificilmente vejo noutros lugares. Levo sempre alguns e, à saída, desço três ou quatro degraus e viro à esquerda. Quando o tempo está de feição, sento-me na esplanada daquele café (ou bar?) que fica ali perto, a não mais de cem metros. Leio, e bebo, porque quem lê poesia nunca se abstém.

O comunicado da Poetria é uma daquelas notícias que ferem como punhais. A Poetria não é apenas uma livraria e é mais do que uma casa. Atrevo-me a dizer: é um lar. Um lugar onde nos sentimos bem, onde é possível a troca fecundante de ideias, porque a cultura será sempre confraternização e nunca um egoísmo.

Tenho à minha frente um belíssimo texto de Valter Hugo Mãe sobre a Poetria, no preciso momento em que ela completava dez anos de resistência (dado à estampa no P2, suplemento do Público, 19 de Maio, 2013). A esses dez anos de resistência temos que somar mais seis. Sim, resistência, porque como escreve o autor de “Homens imprudentemente poéticos”, a poesia “tem o seu lado de protesto contra a banalidade”. E porque a Poetria é “como uma livraria gourmet, porque a poesia traz o melhor da literatura, a aventura maior, o risco, o modo como segue à frente a desbravar caminho puramente no escuro”.

Diz ainda V.H.M., no texto a que aludo: “Os poetas são feitos de cristal. Vidrinhos a correrem o risco de partir (…). Por isso é tão admirável durar-se dez anos a equilibrar frasquinhos perigosos de maravilha”. Infelizmente, com esta notícia que ninguém gosta de receber, é bem provável que, a partir do Verão de 2020, se torne mais difícil continuar a destapar e a apreciar as delicadas essências desses precários frasquinhos de sabedoria.

O que nos resta? Resistir, não ficarmos deitados, calados, a esperar o que acontece, como aquela nêspera do “Rifão Quotidiano” do Mário Henrique-Leiria. Aquele bairro do Porto precisa da Poetria. E os que por lá costumam passar, para dar uma palavrinha, perguntar por um livro, folhear e comprar outros, também. Ou não fossem os livros (ainda) um bem cultural insubstituível. Afinal, são eles que “nos ensinam a escutar a voz humana” (Marguerite Duras) ou funcionam como pontes “para nos levar a terras distantes” (Emily Dickinson).

Poetria 3Contra os que dobram a cerviz à curvatura de interesses que nada têm a ver com a cultura e a transformam em comércio e mercadoria, é preciso encontrar formas de resistir. Contra este mundo lúgubre e sem generosidade, alguém tem de engendrar um “golpe de asa” que salve a Poetria da extinção.

Não a deixem fenecer, ouviram? Não permitam que estes lamentos ou breves gemidos culturais se convertam em elogio póstumo. O pior que pode acontecer aos que gostam da Poetria é começarem a sentir, um dia destes, uma faca de saudade atravessada na garganta.

In Memoriam de António Hespanha (1945-2019)

António Hespanha
Foto: António Pedro Ferreira

Desapareceu há dias do nosso convívio o historiador António Hespanha. Um dos docentes que mais me marcou, como marcou várias gerações de outros historiadores, com uma obra original e profunda sobre o discurso historiográfico e sobre as instituições do período moderno.

Preocupou-se em aplicar à História aquilo que, mutatis mutandis, a crítica moderna fez com o palimpsesto para analisar a interinfluência dos textos literários: um texto, por mais original que pareça, uma vez raspado com as minúcias da crítica, desvenda-nos um outro texto sob a superfície do mais recente. No mestrado em História e Sociologia do Poder, o Professor Hespanha ajudou-nos a perceber como o discurso político se constrói sobre elementos que lhe são anteriores, sobre uma linguagem pré-existente e já carregada de sentidos. E sobre imagens, metáforas e dispositivos retóricos importados de outros discursos, desde discursos do senso comum até aos discursos de saberes especializados.

Esta era uma forma de identificar modelos intelectuais que pré-condicionam a reflexão sobre a sociedade e o poder. Nas suas aulas, cada estudante era obrigado a explorar, procedendo a uma “leitura densa”, um texto significativo. Exigia-nos uma leitura em profundidade, capaz de recusar o sentido comum e de subverter uma leitura calmante do passado. Um trabalho de recuperação dos sentidos originais, onde o sentido superficial deve ser arredado para abrir caminho às camadas sucessivas de sentidos subjacentes.

Tratava-se, para o Professor Hespanha, de recuperar a estranheza e não a familiaridade do que é dito. Em vez de acolher leituras pacíficas, obrigava os alunos a reflectir, a levantar porquês a cada palavra e a cada conceito, a cada evidência de senso comum, porque a História já não é um campo de certezas, mas muito mais o lugar que reclama o exercício da interrogação permanente das ideias adquiridas.[1]

António Hespanha (Leviathan)Foi este exercício da interrogação permanente que António Hespanha reclamou quando presidiu à Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses. Mais do que reproduzir uma visão poética dos Descobrimentos, cantar feitos gloriosos da epopeia, interessavam-lhe os olhares plurais e sobretudo o olhar do outro – e não apenas o ponto de vista europeu – sobre os portugueses, procurando lidar de uma forma saudável com a diferença. Tratava-se, em suma, de romper com os estereótipos nacionalistas que escamoteavam alguns pontos negros do contacto dos portugueses com outros povos e dar a conhecer a complexidade dos Descobrimentos dum ponto de vista europeu, indiano e brasileiro. Uma visão, digamos, menos “lusocentrada” que as anteriores e muito menos preocupada com as façanhas e a tradicional gesta guerreira dos portugueses.[2]

Uma visão, também, que sem esquecer a representação memorial e unificadora do passado, incorporasse em simultâneo a sua visão crítica. O Vasco da Gama herói e comandante da primeira armada que realizou o trajecto marítimo entre a Europa e a Índia, corresponde à representação memorial; à representação crítica corresponde o Vasco da Gama das atrocidades que cometeu na região: um barco afundado com meia centena de peregrinos muçulmanos e o capitão que não se inibe de torturar um embaixador de Calecute: “Depois de lhe cortar os lábios e as orelhas, mandando coser as de um cão no seu lugar, devolveu-o ao seu senhor”.[3]

Era assim António Hespanha, um homem sempre pronto a questionar ideias feitas em torno dos Descobrimentos e da colonização portuguesa. O império construído pelos portugueses tem muitos rostos e não apenas o daquele império brando que ao longo dos séculos foi sendo maquilhado pela ideologia do poder oficial. Recordo agora com saudade as suas aulas, mas sobretudo o lugar onde, no final, elas costumavam desaguar: os corredores do Instituto de Ciências Sociais. Era neles que o Professor gostava de confraternizar com os seus alunos, amena cavaqueira onde a sua desarmante ironia estava sempre presente.

Numa dessas conversas, em meados dos anos 90, ao saber que o meu trabalho de investigação era uma biografia de contexto sobre uma personalidade de Aveiro, perguntou-me se eu era de lá. Respondi que sim e ele retorquiu:

– Mesmo de Aveiro?

– Não – respondi. De uma aldeia com um nome patusco: Palhaça.

– Conheço bem. O meu pai era juiz, trabalhou alguns anos como notário em Oliveira do Bairro (sede do concelho a que a minha freguesia pertence) e costumava frequentar o Café Trianon, em Aveiro, e a tertúlia reunida em torno da figura de Mário Sacramento. A seguir voltou a perguntar:

– Mas diga-me lá, o que pretende provar com a sua tese, qual é a questão central?

António Hespanha (Poder)A minha resposta baseou-se no conhecimento rudimentar que então tinha do jornalista e panfletário Homem Cristo: alguém que fundara um jornal republicano mas não aderira à malograda intentona de 31 de Janeiro de 1891, que visava derrubar a Monarquia e implantar a República; sabia que esse jornal republicano tinha sido suspenso em Outubro de 1910, já depois de proclamada a República, e que esta obrigara o jornalista a exilar-se; sabia que em 1912 o republicano Homem Cristo funda em Paris O Povo de Aveiro no Exílio, um jornal abertamente contra o poder republicano instalado em Portugal e que contava com o apoio dos monárquicos exilados. Tudo isto me levou a responder-lhe:

– A questão central do meu trabalho de investigação é tentar encontrar a racionalidade do seu comportamento político-ideológico, a matriz ética na qual entroncam os seus desencontros com a produção de valores, representações e mundividências do poder republicano.

O Professor Hespanha respondeu qualquer coisa parecida com isto:

– Aconselho-o a não ir por aí. Não tem que procurar qualquer racionalidade de comportamento no percurso político de Homem Cristo. Na base das práticas e dos comportamentos humanos encontram-se opções em face de determinadas situações concretas e conjunturais. Estas situações são avaliadas de acordo com disposições espirituais, cognitivas ou emocionais, que ditam também o tipo de reacções dos sujeitos e a origem dos sentidos autênticos das suas práticas.

Anotei estas preciosas dicas metodológicas, que generosamente costumava oferecer em conversas amenas, no fim das aulas. Até sempre, querido Mestre e Amigo.


1 – António Manuel Hespanha, “Linhas de força de uma nova história política e institucional”. Textos de apoio para o Mestrado em História e Sociologia do Poder – Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

2 – “António Hespanha, Olhares Plurais” [entrevista de Rui Rocha], Revista do Expresso, 03.08.1996, pp. 75-79.

3 – Paulo Jorge de Sousa Pinto, Os Portugueses Descobriram a Austrália? 100 Perguntas sobre Factos, Dúvidas e Curiosidades dos Descobrimentos. Edição A Esfera dos Livros, Outubro de 2013.

 

Trabalhos e Paixões de Miguel Duarte: salvar refugiados

Anti-resgate (Vasco Gargalo)
Ilustração: Vasco Gargalo

Miguel Duarte, aluno de doutoramento no Instituto Superior Técnico, anda há quatro anos a salvar refugiados no Mediterrâneo. Sabemos agora que a sua generosidade corre o risco de ser premiada com pena de detenção que pode ir até aos vinte anos. Num gemido de humanidade, que devia ser amplificado até poder ouvir-se por todos, declarou ao Observador: “Quando vejo uma pessoa a morrer afogada não lhe pergunto se tem passaporte. Tiro-a da água”. Eis aqui um valor cristão essencial: amar o próximo, com tudo o que isso significa de o ajudar quando mais precisa.

Na última edição do semanário Expresso Miguel Duarte assina um texto com o título: O que será de nós quando tivermos medo de estender a mão? A dado passo escreve, como quem nos martela a consciência:

“Ao sair para o convés olho para o mar escuro e consigo discernir ondas enormes só disfarçadas pela escuridão da noite (…). À chegada, deparamo-nos com um barco de borracha furado que se vai enchendo de água e desfazendo a pouco e pouco, dezenas de pessoas agarradas às cada vez mais escassas partes do barco, que permanecem à tona e outras tantas já dentro de água tentando, sem esperança, agarrar-se a algo que ainda flutue. A cada onda que passa, mais três ou quatro desafortunados são arrastados impiedosamente para as águas negras num estado de pânico sem descrição que lhe faça justiça (…). No final, naquele momento em que estamos a dois braços de distância, é que nos chega realmente a consciência de que estamos perante pessoas”.Barco no Mediterrâneo

Li isto com o coração alvoroçado e recordei o que disse, em 1992, o filósofo italiano Giorgio Agamben: “Hoje, somos todos refugiados”. E dei comigo a pensar que é muitas vezes a nossa incapacidade para nos colocarmos no lugar do outro que nos distancia ou torna menos sensíveis a estas tragédias. E se estivesse lá eu, com um filho pequeno, com um pai ou uma mãe, a correr risco vida? Não gostaria de ser salvo? E que experiência seria deambular no mar alto dias a fio, numa frágil embarcação apinhada de gente, exposto a vagas alterosas e a um sol inclemente? Seria possível dormir na vertical, fragilizado pela sede e pela fome em noites de breu e de ventos marítimos que enregelam o corpo até à medula? E que sensação experimentaria ao satisfazer as necessidades fisiológicas sem privacidade nem recato, no meio de toda aquela gente – homens, mulheres, crianças?

Bem sei que despejar esta e outras indignações nas redes sociais nada resolve, mas importa perceber a razão pela qual nem os perigos do mar travam o desespero de tantos seres humanos. E também importa perceber como é que a Europa chegou até aqui, a esta forma vergonhosa de tratar refugiados e migrantes. Uma Europa que parece ter esquecido que a história do mundo sempre foi uma história de migrações e que ela própria nasceu em torno da ideia de dignidade da pessoa humana. Esta é a grande tragédia do nosso tempo: a indiferença cada vez maior para com o nosso semelhante.

Compreendo e respeito os argumentos dos que dizem que a Europa não pode dar guarida a toda esta gigantesca mole humana, fustigada por guerras e conflitos políticos e religiosos um pouco por todo o lado. Os que hoje tentam a sua sorte e se aventuram na travessia do mar são a versão moderna dos boat people vietnamitas que entre 1975 e 1990 embarcaram em idêntica e arriscada aventura, abandonando uma terra sem futuro, em busca de melhor sorte. Gente sem eira nem beira, a quem os portos da Europa fecham as portas, encurralando-a numa espécie de cordão sanitário que é o cemitério líquido do Mediterrâneo. Miseráveis que o cínico pragmatismo político europeu encara como uma ameaça e prefere ver nas páginas de um romance de Victor Hugo.

Também compreendo que a Itália e a Grécia não podem arcar sozinhas com a responsabilidade de acolher nos seus territórios esta enorme vaga de refugiados. E também não vale a pena sermos ingénuos ao ponto de não ver que entre essa gente há radicais islâmicos infiltrados nas embarcações, dissimulados com falsas famílias, ou mesmo traficantes de seres humanos.  Sendo tudo isso verdade, nada justifica a tolerância zero que a Itália pratica. A tolerância zero é o outro nome dado à intolerância. Em vez de lavar as mãos como Pilatos, pode a Europa acolher alguma desta gente, procedendo a uma triagem onde o pragmatismo político não se sobreponha às questões éticas e humanitárias. Na cristianíssima Itália, muitos dos que elegeram Salvini e apoiam as suas medidas isolacionistas contra os refugiados são os mesmos que declaram guerra ao aborto e à eutanásia em nome do indeclinável direito à vida. Bem prega Frei Tomás…

Cristina Sampaio
Ilustração: Cristina Sampaio

Nem acolhimento indiscriminado nem rejeição radical. Apenas se pede um módico de tolerância e humanidade, sobretudo quando a escolha é entre acolher ou deixar morrer o nosso semelhante, um ser humano com direito à dignidade. Os relatos recorrentes destes naufrágios são um insulto à dignidade humana. A criminalização de quem ajuda a salvar vidas é um escarro lançado à nossa consciência. Não é só Veneza que se afunda. É também a Europa que cai a pique, ao perder cada vez mais as referências da sua ancestral tradição humanista.

O que fazem Miguel Duarte e outros voluntários, recusando-se a interpretar o dever de auxílio como letra morta, parece ser o pouco que sobra da dignidade europeia. Nestes tempos sombrios em que um simples gesto humanitário se arrisca a ser tratado como crime, cada vez me sinto mais rodeado de gente habitada por desertos, onde morre sem eco tudo o que a vida tem de mais apaixonante.

Desculpem-me o desabafo, mas esta foi a melhor forma que encontrei para espantar os fantasmas que não deixam de nos dizer que há inferno. Às vezes chego mesmo a pensar que ele já nasceu comigo…

Com tanta Agustina, a malta já nem atina

Agustina com gatoE, de repente, todos desatam a falar de Agustina. Tanta Agustina, ontem e hoje, talvez porque o post mortem continue a ser o estado mais propício ao aguçar do reconhecimento público.

Há quem aluda a uma imagem mitificada: uns, dizendo que tem uma escrita difícil, “barroca”; outros, colando-lhe o rótulo apressado de “perversa”. Outros ainda, habituados a contrabandear arte com ideologia – sem aparentemente perceberem que o que a obra de arte tem em si de maravilhoso é o facto de existir por si mesma – a declarar que sim senhora, é uma excelente escritora, mas que não lhe perdoam o ter consentido que um livro seu acabasse por ocupar o lugar de um outro, entretanto censurado. Pouco se importaria ela com estes mimos, pois sempre confessou não se levar muito a sério: “É a melhor maneira de viver. Aquele que se leva a sério está sempre numa situação de inferioridade perante a vida”.

Em 1994, escrevia a observadora de olhos penetrantes, crítica de tudo o que a rodeava, com a ironia corrosiva que a caracterizava: “Decorre a apresentação do livro de Cavaco Silva no salão nobre (do Centro Cultural de Belém), e os carros pretos do ministério sobem a rampa com uma lentidão consular (…). Freitas do Amaral acaba também de escrever um livro e é saudado triunfalmente. Eu escrevi cinquenta e não me prestam tanta atenção. Pelo que fico, por um momento, desencorajada”.

Acontece que, nos doze anos seguintes, Agustina continuou a escrever de forma torrencial. Sem contar, seguramente, com cerca de um milhar de textos na imprensa, terá dado à estampa, entre romances, novelas, teatro, crónicas e biografias, perto de cem livros. Agora que nos deixou de vez – na verdade, já a partir de 2006 que renunciara à escrita e à vida pública e um círculo de silêncio se abatera sobre o seu nome – há quem assevere, aqui no Facebook, ter lido toda a sua obra. Quase cem livros – pasme-se!

Agustina vista por António (1989)
Caricatura de António (1989)

Coisa de espantar, pois ao contrário da poesia, um romance leva tempo a ler, e nós somos, por regra, preguiçosos do corpo e das meninges. Há também quem afiance que a leu desde o princípio, muito antes de estar na moda. Louve-se a precocidade de tão iluminados leitores. Se os conhecesse, Agustina não deixaria de se rir e de ripostar como o fez em relação a um político da nossa praça, que lhe confessou ser grande admirador dela, assim como a própria mulher, que também já tinha lido toda a sua obra: “Ora, eu gostava era de ter a sua opinião, não digo sobre todos, mas ao menos sobre um dos meus livros”.

Receoso de poder sucumbir ao peso esmagador de tanta cultura, li apenas dois dos catorze livros que tenho da autora de Vale Abraão, não contando com mais alguns sobre a sua obra romanesca. Razão de sobra para não me atrever a dissecar – palavra tão ao gosto dos estruturalistas – nenhum dos seus romances.

Contento-me em deixar aqui, pela segunda vez, esta história deliciosa que ela costumava contar quando vinha à baila o nome do grande amigo Eugénio de Andrade, que via nela a grande romancista da aristocracia rural e da burguesia decadente. Ao chegar a sua casa, dizia Eugénio: Maria Agustina, que flores maravilhosas são aquelas no lago da entrada? E ela respondia: são nenúfares, Eugénio, e você está farto de os mencionar na sua poesia…

Agustina por André Carrilho
Caricatura de André Carrilho

Parece que Agustina tinha por hábito beber uma taça de champanhe ao almoço e outra ao jantar. Quem assim tanto gostava de celebrar a vida, merece que brindemos por ela. Não tanto para plantar saudades no passado, mas para reflorir no futuro a majestosa catedral de papel que nos legou.

Gente deliciosa esta, cada vez mais apartada do nosso convívio.

 

Achegas para uma estética do surripianço nacional

Piet MondrianNo país do faz de conta, em que ninguém escrutina nada, mas que para alguns é o país das maravilhas, tanto desaparecem armas em Tancos, como dinheiro dos bancos ou obras de arte em embaixadas, serviços públicos e gabinetes ministeriais. Pelo que se vê, estamos em presença de uma verdadeira estética do surripianço. Para certos comilões do que deveria ser de todos por a todos pertencer, não há oscilações do gosto: tanto se alambazam com armas que matam como se empanturram com o que é belo e tem valor seguro: pinturas, desenhos ou fotografias que ajudam a colorir a nossa vida.

Estamos a falar de 170 obras de arte que levaram sumiço – uma gota no alguidar de lacraus da roubalheira nacional – assinadas por nomes incontornáveis das artes plásticas portuguesas como Vieira da Silva, Júlio Pomar, Almada Negreiros, Paula Rego, Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis e Mário Cesariny, entre outros. Pinturas, desenhos e gravuras que ganharam asas de desejo e voaram para lugar incerto. Como diz o povo, foi um ar que lhes deu. Dão-se alvíssaras a quem as encontrar.

Estas obras, penduradas nos gabinetes dos ministérios, ajudavam a aliviar o cinzentismo de quem pratica funções cinzentas. Quem lhes deu sumiço, optou por aliviar as paredes e não o cinzentismo. Estamos a falar de gente que se movimenta nos caminhos tortuosos de privilégios e sinecuras e se comporta como os áulicos que na corte de D. João V eram premiados pelo destempero e a corrupção.

Em Portugal até parece que tudo o que é sólido se dissolve no ar. Em Portugal desaparecem coisas. Só que, para compensar, também aparecem coisas. Ao contrário do chamado “triângulo das Bermudas”, cenário de vários desaparecimentos, em Portugal há um triângulo de aparições, com vértices em Fátima, Tomar e Ladeira do Pinheiro. Nem tudo é mau, portanto.

Na minha boa fé, creio que as obras não foram atraídas para mãos onde as coisas se pegam e custam a descolar, como a pele do bacalhau. E até arrisco uma hipótese: os gabinetes ministeriais não serão climatizados e o calor tem apertado tanto que as obras de arte bem podem ter derretido, ao ponto de se evaporarem. A vingar esta tese peregrina, teríamos nos nossos ministérios os verdadeiros precursores do artista Alper Dostal, que nos mostra a arte a derreter como forma de aviso para as graves consequências do aquecimento global no planeta que habitamos. O exemplo que aqui vos deixo, uma obra-prima de Piet Mondrian a derreter (Composição II em Vermelho, Azul e Amarelo) pode muito bem ajudar a explicar o misterioso desaparecimento das obras de arte do Estado português.

1Acredito nisto. Acredito na ideia de belo enquanto emanação do bom. Acredito que as obras derreteram e se evaporaram e que o calor tem costas largas. Acredito que toda a obra de arte é uma possibilidade de reincarnação. No caso –  improvável, repito – de terem sido furtadas, acredito piamente que um qualquer Tintim ou professor Girassol português as vai fazer regressar ao local de onde nunca deveriam ter saído, tal como o fizeram com As Jóias de Castafiori ou em A Orelha Quebrada.

Afinal, como bons portugueses que somos, encontramos sempre uma forma de nos salvar.

 

 

Da Arte de Furtar ao Discurso Sobre o Filho-da-Puta

Berardo1Cansado, muito cansado. Das personagens grotescas. Da falta de vergonha. Do riso alarve do comendador, que ao rir-se de nós e para nós parece ultrapassar em estupidez todos os outros animais. Duas vezes condecorado por outros tantos Presidentes,  como se mandassem bilhetes de pêsames a um regime decadente e do qual a tão propalada ética republicana parece cada vez mais arredada.

Cansado, muito cansado. De quem trafulha e de quem deixa trafulhar. Da rendição do poder político ao poder económico. Da escandalosa mancebia em que se envolvem. Do leito de esterco da impunidade em que convivem.

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Cansado, muito cansado. Da crescente bifurcação dos jogos de influência. Da mancha viscosa da corrupção que não pára de alastrar. De uma sociedade cada vez mais armadilhada de aldrabices, a precisar de uma boa barrela, capaz de lhe devolver a  ecologia dos valores humanos, onde cada um vale pelo que é e não pelo que tem ou ostenta. Cansado de gente “importante”, que não se dá conta que só os medíocres se babam da própria mediocridade. Cansado de gente “séria”, mas capaz de alojar as maiores vigarices numa alma só aparentemente imaculada.

Gente deste calibre tem um nome: filhos da puta! Assim mesmo, tal como um dia os retratou Alberto Pimenta no seu pequeno-grande livro “Discurso Sobre o Filho-da- Puta”:

O filho-da-puta, por si, nunca se define à primeira vista, e esse é o primeiro e o principal dos seus traços distintivos. À primeira vista, o filho-da-puta mostra-se sempre bem disposto, acima de tudo disposto a viver e a deixar viver. À primeira vista, o filho-da-puta diz quase sempre sim senhor (…). É só depois, às vezes muito depois, que o filho-da-puta diz que não, não senhor e mostra que não está disposto: nem a viver nem a deixar viver (…). O filho da-puta acha que o mais importante é conseguir toda a espécie de vantagens com os outros e assim ocupa a vida com essa preocupação, isto é, ocupa a vida preocupando-se com o modo de conseguir sempre o melhor”.

PimentaOs filhos da puta (e esse é ainda outro traço seu, o terceiro traço distintivo) conhecem-se bem uns aos outros pelos lugares que ocupam e só podem ser ocupados por eles; deste modo é fácil associarem-se para fazer as coisas mencionadas e outras, muitas outras, públicas e particulares. Por vezes, negoceiam particularmente o bem público; se isto porém é dito publicamente, ofendem-se porque consideram que se trata de uma ingerência na sua vida particular. Todo o filho-da-puta é altamente cioso da sua vida particular, porque a vida particular dos filhos-da-puta é quase sempre, de uma ou outra maneira, pública (…). Por isso, sempre que o filho-da-puta especializado em fazer faz um acordo, é difícil saber se é um acordo público que traz vantagens particulares ou se é um acordo particular que traz desvantagens públicas”.

Berardo2Que sociedade é esta, em que os mais desprotegidos são atirados sem remorso para a cadeia (às vezes por roubarem o que lhes falta em casa para matar a fome aos filhos), enquanto as práticas ilícitas dos todo-poderosos gozam da maior impunidade? Que Estado é este, que dispõe de meios técnicos e tecnológicos para nos controlar até ao mais ínfimo pormenor, e não se mostra capaz de desatar os nós e os laços apertados entre políticos e especuladores financeiros que o lesam e desfalcam? Então quem rouba milhões fica apenas sem condecorações? Então quem premeditadamente blinda a colecção de arte, para mais tarde a oferecer aos Bancos como garantia dos milhões que recebe, fica apenas sem a medalha e a comenda? Esta criminosa condescendência do poder político e judicial para com os abusos e as ilegalidades espelha bem o triste fado lusitano, a miséria portuguesa, mais mental do que outra coisa qualquer.

(Aqui fica o desabafo magoado de quem, não sendo um “água-bórica”, sente uma força a crescer-lhe nos dedos e uma raiva a nascer-lhe nos dentes. Afinal, Joe Berardo tem menos património para penhorar que o autor destas linhas – uma simples garagem no Funchal – e por isso pagará, seguramente, menos impostos ao Estado. Para os que, mesmo assim, não compreendem um desabafo que é filho da indignação, só mais este verso de Álvaro de Campos: “Merda! Sou lúcido”).

 

 

 

Padre Melícias: português, franciscano, oitenta anos de idade

Melícias 1Ando, há quase duas semanas, a evitar escrever sobre o padre Melícias. Há razões para isso. Tenho por aqui publicado, nos últimos tempos, alguns textos de cariz religioso. Admito o exagero e até ter carregado em demasia na água benta, ao ponto de uma amiga do Facebook me ter questionado, com inteira pertinência:

– “Desculpe, é padre?”

Ora, eu que nunca frequentei o seminário – embora seja possível ter sido seminarista, como Salazar, e nunca ter chegado a padre católico – decido agora avançar. Só que, ao afinar este novo texto pelo diapasão dos anteriores, corro o sério risco de aparecer outra vez por aí alguém a perguntar se não serei bispo, ou até cardeal. Que os deuses me protejam (desculpem-me a diatribe politeísta, os que acreditam sinceramente no Deus único).

Vítor Melícias foi, em tempos, confessor de António Guterres e de Marcelo Rebelo de Sousa. Vale a pena lembrar, já agora, que foi Guterres quem o nomeou Alto-Representante do Estado Português para Timor-Leste. Mais propenso a misturar do que a separar o que é de César e o que é de Deus – cargos na Igreja e fora dela – conhece, como poucos, os meandros do poder político, económico e social. Os picos de notoriedade aparecem nas décadas de 80 e 90, quando é convidado para cargos de grande relevo em organizações tão distintas como a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a União das Misericórdias Portuguesas, o Banco Português de Gestão, a Liga dos Bombeiros Portugueses, o Montepio Geral ou a União das Mutualidades, para só citar algumas. Eis um padre franciscano com apetite voraz para gerir bancos e queda irrefreável para os negócios.

Foi em finais da década de 80, ou início dos anos 90, que conheci ao vivo o padre Melícias, num encontro qualquer, talvez a celebração do Dia da Segurança Social, que acontece a 8 de Maio. Deu para ver como domina o conceito aristotélico de pathos: a capacidade para quebrar o gelo inicial, o recurso a uma retórica centrada no estado emocional do auditório. Ainda hoje recordo os frémitos de emoção que se apoderavam de quase todos os presentes, mal começava a arengar. Aquela mole humana erguia-se de um pulo e rebentava em estridentes aplausos. Eu permanecia sentado, pouco atreito  a idolatrias fáceis ou a enfileirar nos rebanhos mansos de ilusórias unanimidades. Via naquela encenação uma verdadeira floresta de enganos.

Comigo me desavim. Por isso me interrogava se toda aquela gente, ao levantar-se de forma tão sincronizada, não estaria a ser espetada por uma qualquer sovela da solidariedade que o padre Melícias tão generosamente distribuía. E porque não me levantava eu? Na altura, torturado pelo remorso de me sentir ovelha tresmalhada, para a qual todos olhavam de soslaio, só conseguia aventar duas hipóteses: ou era uma cachola oca, desprovida das sinapses que permitem alcançar o entendimento do risonho franciscano; ou então tinha, na altura, as nádegas suficientemente duras para resistir às metafóricas picadas da sovela no cú. Aquela alegria breve, toda aquela preocupação com os mais carenciados, representavam para mim um verdadeiro murro no estômago, quando lhes contrapunha o mundo cinzento e as existências viúvas de alegrias que tão bem conhecia.

Onde está Wally? Vitor Malícias entre os bonecos do Contra-Informação
Onde está Wally? (Vitor “Malícias” entre os bonecos do Contra-Informação)

Hoje, reconheço: ainda bem que não me deixei inebriar com as cintilantes gotas argumentativas distribuídas pelo padre Melícias, talvez por saber que a arte da persuasão não é só pathos, mas também logos e, sobretudo, ethos: conceito através do qual o discurso se torna digno de crédito e de confiança (Aristóteles estava convencido que um argumento eficaz é o que mistura os três conceitos). Alegra-me saber que nunca cirandei em seu redor e que recusei respirar o incenso da discutível solidariedade que impregna a atmosfera que o rodeia. Deixo assim para ele, e para os fiéis seguidores, os louros de conduzir os pobres e os excluídos à terra prometida da fraternidade e da solidariedade universal.

Passemos então em análise alguns depoimentos impressivos deste padre franciscano, que muito ajudam a traçar-lhe o perfil, por não passarem de farrapos esburacados que ainda mais lhe deixam as vergonhas ao sol:

Melícias e as couvesEm 2005 era presidente da União das Misericórdias Portuguesas. Seguramente não desconhecia, a par dos relevantes serviços prestados pelas instituições de solidariedade social, que também nelas ocorriam – e, infelizmente, continuam a ocorrer – situações de maus tratos a crianças e idosos e vários tipos de desrespeito pelas regras instituídas com o Estado, que as apoia financeiramente. Ora quando a fiscalização a essas instituições ganhou um novo alento, que fez o padre Melícias? Disse, pura e simplesmente, de forma depreciativa e com a maior das leviandades, que os inspectores incompetentes (leia-se: os que ousavam denunciar essas irregularidades) deviam ir “plantar couves”. Fê-lo, não restam dúvidas, depois alguém ter recorrido aos seus préstimos e à sua consabida influência junto do poder político. Ele próprio o confessa, quando afirma: “Obviamente que, às vezes, há determinadas situações em que, para resolver um problema, é mais fácil falar com o ministro do que com o porteiro.” Apetece perguntar: faz sentido o Estado apoiar financeiramente as instituições de solidariedade social e não controlar, mais tarde, a qualidade dos resultados e a forma mais ou menos criteriosa como o dinheiro é gasto?

Em 2008, ficámos a saber que o padre franciscano passou a receber uma pensão mensal de 7450 euros. Conforme então explicou, tal pensão resulta da remuneração acima da médiaauferida em vários cargos e de “vinte e poucos anos de descontos”. E como se os números não fossem ocasião de escândalo, quando comparados com pensões mínimas de portugueses com quarenta e mais anos de descontos, acrescentou: “não sou rico, tenho uma pensão aceitável”. Aceitável, quando comparada com as de 250 e 300 Euros? Esperemos que não passe fome, que a bagatela que recebe dê ao menos para o Calcitrin e para a Depuralina. Ou, vá lá, para pagar ao sapateiro o arranjo das sandálias…

Última atoarda, já em 2019. Na arrastada novela do Montepio, onde permanece há mais de três dezenas de anos e continua a movimentar os cordelinhos, o padre Melícias defende com intransigência Tomás Correia, o actual presidente, mesmo depois de publicamente se saber que foi condenado pelo Banco de Portugal ao pagamento de uma multa de 1,25 milhões de euros. Esta protecção sem reservas a Tomás Correia, depois de tudo aquilo que já se conhece, lembra as palavras avisadas e certeiras de Natália Correia em O Armistício: só se defende fanaticamente aquilo de que se duvida.

Às pressões para que Tomás Correia abandone a liderança do Montepio, respondeu desta maneira o seu ilustre paraninfo: “Não é um secretariozeco ou qualquer ministro que vai afastar os órgãos sociais democraticamente eleitos”. Assim trata o padre Melícias os que desafiam o seu poder. Assim estala o verniz da sua tão propalada bonomia. Considera-se intocável e por isso subalterniza os que lhe fazem frente, que essa coisa de sermos todos irmãos não passa de uma grande treta. Ora manda os inspectores plantar couves, ora aponta o dedo acusador a ministros e secretariozecos, como quem se movimenta nos quadros mentais de uma república de súbditos e não de cidadãos. Talvez sinta saudades do sacerdotalismo, daquele tempo medievo em que os reis dependiam do poder que os sacerdotes tinham de lhes perdoar os pecados. Esquece-se que foi com muitos desses ministros e secretariozecos que montou, ao longo dos anos, uma perigosa estratégia da aranha, tecendo com eles controversos fios de cumplicidade e de poder.

Não nos espantemos se um dia aparecer por aí, em livro, a Pastoral dos Banqueiros. Assim como Philip Roth escreveu Pastoral Americana, para nos dar a conhecer a ambivalência entre uma América de vida tranquila e outra América onde o instinto guerreiro se aloja no coração de cada cidadão, bem pode o padre Melícias desvendar-nos, na sua Pastoral dos Banqueiros, o paradoxo que consiste em servir  ao mesmo tempo a Deus e à fragilidade mundana da banca, que cada vez mais transforma os nossos sonhos em pesadelos.

A terminar, só mais este desabafo. Num certo dia de inverno, alguém que até então só me conhecia pelo nome, mirou à distância a minha silhueta de sobretudo azul e cabelo branco e disparou:

–  Olha, parece o padre Melícias!

Senti-me tão lisonjeado, que mal saí dali apeteceu-me ir logo pintar o cabelo…