Rui Knopfli, poeta extraterritorial

Rui Knopfli (caricatura de Vasco)

(Dedico este texto à estimada amiga Maria Teresa Mota, que tem trazido aqui alguns poetas da minha predilecção – cito apenas, entre os mais recentes, Rui Knopfli e Pedro Tamen – os quais, por razões circunstanciais e outros imponderáveis, não tenho podido comentar em tempo útil, como desejava e ela bem merece).

“O poeta não se vende, não se compra, não se emenda” – Rui Knopfli

Considero Rui Knopfli um dos melhores poetas contemporâneos de língua portuguesa. Tenho-o alinhado, na estante, ao lado de outro Ruy que muito prezo – o Cinatti, poeta e antropólogo apaixonado por Timor, que cruzou vários continentes – e de braço dado, também, com a Memória Indescritível, de Pedro Tamen.

 Nascido em Inhambane (Moçambique), abandonou o país em 1975 por “mal-entendidos e amargas circunstâncias”. Viria a fixar-se em Londres durante vinte e dois anos, onde foi assessor de imprensa da embaixada portuguesa. Em 1997 passa a residir de vez em Portugal, onde acaba os seus dias, contava então 65 anos de idade: “Agora Portugal será, graças a Deus, um ponto de fixação, onde acabarei os meus dias no meio de gente que tanto estimo”.[1]

Não admira, assim, que a sua poesia depurada e concisa – mas também com sinais de presságio, angústia e ironia – atravesse os continentes africano e europeu. Sem uma terra a que verdadeiramente pudesse chamar sua, o poeta sentia-se estrangeirado n’O País dos Outros, título do primeiro livro (1959). Encharcado em saudade e melancolia, minado pela nostalgia irremediável da terra amada que, em sentido territorial, foi deixando de ter – “é só a língua em que me digo” – deixou todo esse caldeirão de emoções retratado no longo e belíssimo poema Pátria, de O Escriba Acocorado[2]de que aqui deixo apenas alguns excertos:

Um caminho de areia solta conduzindo a parte
nenhuma. As árvores chamavam-se casuarina,
eucalipto, chanfuta. Plácidos os rios também
tinham nomes por que era costume designá-los.
Tal como as aves que sobrevoavam rente o matagal

e a floresta rumo ao azul ou ao verde mais denso
e misterioso, habitado por deuses e duendes
de uma mitologia que não vem nos tomos e tratados
que a tais coisas é costume consagrar-se. Depois,
com valados, elevações e planuras, e mais rios

entrecortando a savana, e árvores e caminhos,
aldeias, vilas e cidades com homens dentro,
a paisagem estendia-se a perder de vista
até ao capricho de uma linha imaginária. A isso
chamávamos pátria. Por vezes, de algum recesso

obscuro, erguia-se um canto bárbaro e dolente,
o cristal súbito de uma gargalhada, um soluço
indizível, a lasciva surdina de corpos enlaçados.
Ou tambores de paz simulando guerra. Esta
não se terá feito anunciar por tal forma

remota e convencional. Mas o sangue adubou
a terra, estremeceu o coração das árvores
e, meus irmãos, meus inimigos morriam. Uma
só e várias línguas eram faladas e a isso,
por estranho que pareça, também chamávamos pátria.

(…)

O poeta que não escrevia por encomenda acabou maltratado na sua terra pelos militantes da poesia. Precisamente aqueles que escreviam “de um ponto de vista totalmente subordinado a preconceitos de ordem político-ideológica, suprimindo, rasurando, autênticos valores literários em favor de todas as mediocridades que erguiam hinos coxos e tortos (risíveis?) em favor da libertação, com muito molho e esparregado de culatra de AK-47. Na época levantei um tímido protesto: choveu-me bravamente em cima e fui acusado de insidioso e potencial aliado do colonialismo, apesar de ter diariamente a ‘pide à perna’ e os meus críticos beneficiarem da sombra protectora da Sorbonne”.[3]

Foi o preço que pagou pelo não alinhamento ideológico que se seguiu a um período de aproximação ao neo-realismo. Um “eu” individual estilhaçado por acontecimentos colectivos que o levaram a abandonar Moçambique com amargura e desencanto, como se depreende destes versos extraídos de O Monhé das Cobras:[4]

Aeroporto

É o fatídico mês de Março, estou
no piso superior a contemplar o vazio.
Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon
e olha-me, obliquamente, nos olhos:
Não voltas mais? Digo-lhe só que não.

Não voltarei, mas ficarei sempre,
algures em pequenos sinais ilegíveis,
a salvo de todas as futurologias indiscretas,
preservado apenas na exclusividade da memória
privada. Não quero lembrar-me de nada,

só me importa esquecer e esquecer 
o impossível de esquecer. Nunca
se esquece, tudo se lembra ocultamente.
Desmantela-se a estátua do Almirante,
peça a peça, o quilómetro cem durando

orgulhoso no cimo da palmeira esquiva.
Desmembrado, o Almirante dorme no museu,
o sono do bronze na morte obscura das estátuas
inúteis. Desmantelado, eu sobreviverei
apenas no precário registo das palavras.

Falei acima de uma poesia de presságio, porque é disso que se trata quando deparamos com o primeiro poema de O País dos Outros, o primeiro livro que publicou:[5]

Lírica para uma ave

Num céu de chumbo e baionetas
caladas,
sobre uma floresta de sono
e demência,
tonta, esvoaça perdida
uma ave sangrenta.
Na turva e opressa manhã
se anuncia a cólera
do tempo.

Na hora
da aurora,
gemem ventos,
fluem surdos rios.

Cerra os olhos,
cala na garganta
a voz,
acorda audível
o pensamento:

No escuro cerne da floresta,
com sorrisos dependurados à entrada,
degola-se uma ave.
Por enquanto mais nada, senão
o torvo tinir dos talheres
no banquete da morte impossível.

E também é de presságio que se fala no poema “Preto no Branco”, escrito em 1962 e inserido em Mangas Verdes Com Sal, onde a guerra pela independência se anunciava já envolta em pólvora, ferro e fogo:

O PRETO NO BRANCO

Da granada deflagrada no meio
de nós, do fosso aberto, da vala
intransponível, não nos cabe
a culpa, embora a tua mão,
armada pelo meu silêncio,
lhe tenha retirado a espoleta.
De um lado o teu dedo indicador,
de outro a minha assumida neutralidade.
Entre os dois, ocupando o espaço
que vai do teu dedo acusador
à minha mudez feita de medo e simpatia,
tudo quanto não quisemos, nem urdimos,
tudo quanto a medonha zombaria
de ódios estranhos escreve a sangue
e, irredutivelmente, nos separa e distancia.
Tudo quanto há-de gravar o meu nome
numa das balas da tua cartucheira.
Nessa bala hipotética, nessa bala possível
que se vier, quando vier (ela há-de vir)
melhor dirá o que aqui fica por dizer.

Nunca foi fácil, aos romancistas e poetas das antigas colónias portuguesas, chamar a atenção dos críticos continentais e muito menos ocupar um lugar de destaque nos escaparates das livrarias da metrópole. Talvez por isso Rui Knopfli seja, ainda hoje, um poeta algo distante do reconhecimento que a sua obra requer e tanto merece. Uma obra construída em torno das lembranças da infância e da juventude – das mangas verdes com sal – das paisagens com a sua largueza de horizontes, da vegetação árida ou luxuriante, das savanas e das águas tépidas do Índico e daqueles poentes com céus de fogo deslumbrantes em finais de tarde que parecem não ter fim. Coisas que deixam traços indeléveis de nostalgia na alma e na memória de quem lá tem as raízes ou por lá passou ou assentou arraiais.

Poeta da perda e do desterro, mas também cronista e ensaísta de méritos firmados – estou a lembrar-me de uma notável polémica em torno de Shakespeare, travada com Eduardo Lourenço, que não hesitou em chamar-lhe “honorable man” – Rui Knopfli sublimou na poesia o luto de “ser arrancado da terra com as raízes a sangrar, para ser transplantado noutro lugar”.

Por tudo o que nos legou (e foi tanto!) é proibido esquecer Rui Knopfli! 


[1] Entrevista à Visão, em Outubro de 1997.

[2] Rui Knopfli, O Escriba Acocorado, Lisboa, Moraes Editores, 1978, pp. 13-14. Muita da sua dor, provocada pela ruptura com um mundo encantatório, foi exorcizada em O Escriba Acocorado (ver Maria Leonor Nunes, “Rui Knopfli, a diáspora de um escriba, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 18.01.1995, p. 12).

[3] Rui Knopfli, “O grande equívoco”, Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 428, 18.09.1970, p. 32.

[4] Rui Knopfli, O Monhé das Cobras, Lisboa, Editorial caminho, 1997, p. 56.

[5] Poema inserido na colectânea Nada Tem Já Encanto – Poemas Escolhidos. Edições Tinta-da-china, Lisboa, 2017 (1.ª edição), p. 23.

“Vestido” para homem, ou como fintar a castração

Este vestido para homem, da marca italiana Gucci (custa apenas 1900 euros…), não podia vir em melhor altura. Já encomendei um exemplar. Vá lá: não esbugalhem os olhos nem abram desmesuradamente a boca de espanto. Tenham calma, já vão perceber porquê.

Parece que o vestido se destina a combater a masculinidade tóxica. Não é por isso que o compro, até porque não sou de modas: tanto se me dá que rosa seja cor de menina e azul de menino, já que os significados das cores vão variando entre culturas e antes do século XX o padrão oficial até funcionava ao contrário do que hoje se considera certo para cada género. Se recorro a esta indumentária… é pura e simplesmente para que não me cortem os tomates. Assim mesmo. Passo a explicar, para evitar mal-entendidos. 

Sorte a das mulheres, já que não vingou a proposta de remoção dos ovários às que ousem abortar. Quanto aos homens, falo apenas por mim. Embora não seja dado a comer criancinhas ao pequeno almoço, as minhas noites nunca mais foram as mesmas. Tremo como varas verdes, só de pensar que pode surgir alguém a acusar-me de pedofilia, à semelhança do que se passava com as denúncias insidiosas contra os cristãos-novos ou as acusações de feitiçaria e bruxaria contra as mulheres – supostas noivas de Satanás – que entre os séculos XV e XVII acabavam invariavelmente a arder como tochas nas labaredas da intolerância.

Em tempo de Convenção, um partido político da nossa praça procura reintroduzir a pena de Talião na sociedade portuguesa contemporânea, porventura (e por Ventura) inspirado na conduta ética do Deus do Antigo Testamento: olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe (Êxodo, 21. 23-25). Transpondo o raciocínio milenar para uma possível revisão da Constituição no século XXI, o que se propõe é nem mais nem menos do que a castração física – presumo que sem anestesia – para os condenados por abuso e violação de menores.

Tudo isto me provoca pesadelos, suores gelados, convulsões e espasmos, urticária e unhas encravadas. Aqui fica o que retive de um sonho tenebroso: estou numa sala a frequentar formação obrigatória para castradores a soldo do Estado. Ao meu lado, alguns médicos, aprendizes de talhantes, obrigados a mandar às malvas o juramento de Hipócrates. O monitor dispara catilinárias contra as teorias médicas, gabando-se de ser alguém com saber de experiência feito. Não deixa de ter alguma razão: à falta de gente do ramo com experiência no corte de genitais, o Estado recorrera a um velho alveitar, tirocinado a capar porcos nos currais das aldeias recônditas de Portugal.

O pior viria a seguir. Não houve castrações ao vivo, com figurantes de carne e osso, como se estivéssemos numa daquelas aulas de anatomia onde, subrepticiamente, alguém coloca uma parte do corpo retalhado no bolso da bata branca de uma caloira, candidata a exercer medicina ou a embrenhar-se nos meandros da justiça. Em vez disso, o monitor-capador projecta alguns vídeos, onde o som e a imagem não deixam de suscitar reacções de horror, como se dum cenário real se tratasse. 

Num deles, um homem condenado à castração tenta auto-mutilar-se – embora sem sucesso, por lhe faltar a coragem necessária– numa tentativa desesperada de evitar a humilhação pública às mãos dos algozes, à boa maneira dos autos de fé da Santa Inquisição.

Noutra imagem, mulheres nuas aparecem num prado verdejante a pendurar, com aparente deleite, genitais cortados pela raiz, como se colocassem roupa a secar e ainda pudessem retirar deles algum proveito. 

De repente, acordo. Aturdido e com o coração alvoroçado. Levanto-me de um pulo, e porque há sonhos que podem tornar-se realidade, decido: vou mesmo usar o vestido como disfarce. Pode ser que não me topem e desse modo escape aos novos inquisidores com complexos de Torquemada. E para reforçar ainda mais a segurança, resolvi também usar, por baixo do vestido, um cinto de castidade. O mesmo cinto que no tempo das cruzadas as mulheres usavam ao pescoço, enquanto os maridos iam para longes terras ajudar à dilatação da fé e do império (outras davam-lhe o uso adequado, mas só até ao momento em que um ferreiro mais atrevido arranjava a chave da salvação, aliviando-as do tédio que representava passarem anos a fio a olhar para os campos de milho ou de trigo…).

Pelo sim pelo não, e enquanto não chega a encomenda, tenho aproveitado para ir depilando as pernas…

(Nota: algumas imagens procuram retratar, com a fidelidade possível, a espessura do sonho que partilhei convosco).

Treze anos sem Eduardo Prado Coelho (1944-2007)

A falta que nos faz o Eduardo, sempre pronto a lançar-nos o dardo da interrogação permanente, na sua recusa obstinada de tudo quanto cheire a nacionalismo ideológico, militarismo, fascismo ou totalitarismo. O crítico e ensaísta de reconhecida erudição. O professor universitário que não gostava de dar notas nem de realizar exames, preferindo valorizar uma certa concepção anarquista da pedagogia literária. O autor de livros incontornáveis como A Mecânica dos FluidosO Reino FlutuanteOs Universos da Crítica ou A poesia ensina a cair, título tributário de “O poema ensina a cair”, de Luiza Neto Jorge.

Atento aos pormenores, a escrever sobre tudo e mais alguma coisa. Um hedonista da cultura e um esteta do visível. A prática da escrita por fragmentos: a literatura, a fotografia, o cinema, o teatro, a pintura, a música, a fina análise política, a escrita sobre as trivialidades do quotidiano. A lembrar Terêncio: nada do que é humano me é indiferente. Ou, mais próximo de nós, Roland Barthes, de cuja obra era um dos mais atentos leitores, ou não partilhasse com ele o prazer e a diferença contra os puritanismos da verdade e da ciência. Um sismógrafo do quotidiano, o divulgador fascinado pela novidade do que de melhor acontecia e se publicava lá fora. Uma presença constante, e cúmplice, com o “ar do tempo”.

Também um esteta da ironia, como por aqui se vê:

“Manuel de Lucena (…) escrevia que a vitória de Soares Carneiro (presidenciais de 1980) era extremamente provável, mas que não se podia excluir a hipótese de Eanes vencer, porque às vezes Deus está distraído. Foi o que se viu – uma distracção de Deus. Só nos espanta um pouco que Deus se distraia logo à primeira volta em cinquenta e seis por cento” (Semanário O Jornal, 19.12.1980).

“O caso do Expresso torna os sábados particularmente ginasticados. Porque o jornal (…) é constituído por duas partes perfeitamente distintas: a que se lê e a que se não lê. Nesta última incluo, como é óbvio o “topo de gama” “o imobiliário”, os “transportes”, a lista regular das 100 empresas que mais contam em Portugal e a colecção de electrodomésticos de uma conhecida marca, sem falar nas viagens às Maldivas, nas medalhas nem sei de quê ou num curso rápido para aprender línguas exóticas (…). O problema está em como deixar no café aquela carga de leituras dispensáveis sem que o solícito habitante da mesa ao lado venha atrás de nós a proclamar que esquecemos uma coisa”. (Crónicas no Fio do Horizonte, Edições Asa, 2004, pp. 78-79).

E que dizer deste texto, intitulado “Pré-Queda”, delicioso no que tem de premonição e de ironia corrosiva, quando alude aos telejornais em Portugal?

“Não me espanta nada que um dia destes os telejornais portugueses abram o seu alinhamento informativo com algo do tipo “Devido ao frio, mulher ia caindo de um escadote ao procurar um cachecol na parte de cima de um velho armário. Veremos então toda uma equipa tiritante deslocar-se ao local do não-acontecimento (…) e começar a fazer um inquérito segundo as normas que laboriosamente aprendeu nos cursos de Comunicação Social. Começa-se pela protagonista do sucedido, com a inevitável pergunta: “como se sente neste momento, depois de ter estado quase a cair do escadote”? Pálida, ainda estremunhada, a mulher responde pela quarta vez que se sente confusa, mas está muito grata a uma vizinha que a veio prontamente ajudar. Trata-se então, conclui o sagaz repórter, de ouvir a vizinha: “Como se deu conta de que a Dona Alzira poderia ter caído do escadote?” A entrevistada, feliz por poder comunicar na televisão, dá uma catadupa de pormenores (…). Com isto já passaram dez minutos, seguidos apaixonadamente pelas audiências. Nesse dia Lobo Antunes pode até ter publicado o seu último romance, ou Pedro Tamen reunido uma vida de textos poéticos – podemos estar certos de uma coisa: as nossas televisões não dirão sobre eles uma só palavra” (Crónicas no Fio do Horizonte, pp. 176-177).

Termino, com mais alguns excertos de textos que ajudam a iluminar o pensamento e a dimensão cultural de Eduardo Prado Coelho:

“Eu não escolho um campo entre os campos que já existem, e resisto com todas as minhas forças a todas as intimidações com que pretendem forçar-me a estar com este ou aquele campo. És por A ou por B? — eis o torniquete totalitário, a máquina binária, com que os colectivos e as instituições pretendem extorquir uma escolha. Não, o campo que eu escolho sou eu que o construo — entendido?” (Público)

Comunicação:

“A transparência implica o desarme – mas raramente dois desarmam ao mesmo tempo. E seria um erro pensar que o facto de um se desarmar perante o outro faria que esse outro desarmasse também. Por vezes a situação de vulnerabilidade acicata no outro o desejo de vencer. E assim temos a grande linha de tragédia entre os homens: os estados de iminente transparência transformam-se num jogo de massacre, numa batalha campal.” (Público, 19.09.2005)

Política:

“Hoje em dia a cultura ou a ética tornaram-se argumentos secundários numas eleições”. (Público, 12.04.2006)

Mudança:

“Sempre que pretendemos fazer a felicidade da humanidade sem termos em conta a importância da felicidade de cada um, caminhamos em direcção ao desastre” (Público, 18.05.2004)

“O facto de não ter uma verdadeira experiência da fé não significa que não seja mil vezes mais sensível a uma fé que não perdeu o sentido da dilaceração e do trágico, e que se sustenta sobre o horizonte da própria dúvida, do que a rotina daqueles que mantêm por inércia um conjunto de referências desvitalizadas” (Público, 12.03.2004).

Felicidade

“Há coisas que têm o seu tempo e o seu modo e não vale a pena tentar voltar a lugares onde fomos felizes; é preferível encontrar novos lugares, mesmo que sejam iguais aos anteriores” (Público, 08.01.2004).

No centenário de Ruben A. – o confronto com o neo-realismo

Ruben A. (Centenário)Cumpriu-se, no passado dia 26 de Maio, o centenário de nascimento de Ruben Alfredo Andresen Leitão, conhecido literariamente por Ruben A. O ficcionista, historiador, ensaísta e crítico, primo da poetisa Sophia de Mello Breyner, morreu prematuramente em 1975, num tempo em que as paixões políticas não deixavam qualquer espaço para a reflexão literária e das artes em geral.  Contava apenas 55 anos.

Ruben A. nunca foi um autor canónico, alguém que se deixasse manietar por qualquer corrente literária ou por qualquer estrutura formal de pensamento. O gosto de inovar, de percorrer caminhos novos, tendo sempre a ironia e o humor por companheiros, colidiam frontalmente com o cinzentismo português dos anos 50 e 60 do século passado. Essa faceta independente e heterodoxa – que Eduardo Lourenço associa ao espírito de liberdade e à “recusa de vender a alma em troca de verdades menores”,[1] não agradava aos próceres do regime ditatorial, nem àqueles que então lhe resistiam e o combatiam de forma mais consistente e aguerrida no plano político, literário e artístico em geral, apesar dos seus dogmas e intolerâncias: os neo-realistas.

Salazar comenta deste modo o livro de Ruben A., Páginas II: “O livro, ou é de um louco ou de um sujeito que, tendo dinheiro para pagar um livro de dislates, se propôs rir-se de todos nós (…). As porcarias, obscenidades, palavrões juncam o livro (…). Parece-me que o livro pertence a uma onda modernista, e não é um caso para a Censura e para a polícia dos costumes. Mas se o autor é leitor em Londres, temos nós de ver o que escreve e como escreve. Em conclusão: o Autor não pode representar Portugal nem ensinar português. (…). E já não falo de certas taras morais e sexuais, do livro se vê que o Autor deve pertencer aí a um círculo de pessoas que a polícia persegue”.[2]

No início dos anos 60, os neo-realistas denunciavam com olhar severo o fechamento hermético e elitista do modernismo e de certas vanguardas (do novo romance à poesia experimental, passando pelo concretismo, que é um dos seus ramos). Desconfiavam da arte abstracta e das tendências estéticas que se alimentavam da solidão, do drama individual, do tédio, da fuga ao quotidiano, da náusea e do desespero. A tal estado de coisas contrapunham uma literatura de resistência e de combate, e uma arte interferente, embora, enquanto movimento estético – evitemos interpretações equívocas e redutoras – tenha sido bem mais do que isso. O certo é que a incompreensão e o anátema se abateram sobre os escritores, artistas e intelectuais que, recusando frontalmente o Estado Novo de Salazar, não enfileiravam no movimento neo-realista.

Ruben A.Sem deixar de reconhecer ao neo-realismo a importância que tem uma literatura de emergência, Artur Portela Filho – que é, com Alfredo Margarido, um dos introdutores em Portugal do Nouveau Roman, “o rasgão que permitirá à literatura portuguesa libertar-se da disciplina neo-realista” –   não deixa de o criticar de forma contundente: “O neo-realismo apoderou-se da maioria das posições-chave da vida literária portuguesa: editoras, páginas literárias, júris. Aí exerce uma vigorosa pressão e organiza uma hierarquia de valores. Aí se negam ou se diminuem cuidadosamente sólidas figuras literárias que escapam à sua disciplina. O destino do escritor português é o neo-realismo ou o anonimato”.[3]

Dessa condenação ao quase desprezo pelas suas obras não se livraram, à época, figuras de proa da vida cultural portuguesa como Jorge de Sena ou Eduardo Lourenço. Ou até Ruben Andresen Leitão, que nos dá conta disso na sua autobiografia: “O Alentejo dava porcos e neo-realismo, e passados mais de vinte anos continuava ainda a dar porcos e neo-realismo, tal o atraso de subdesenvolvimento em que nos encontramos. A cobertura quase total, os críticos mais apaixonados, tudo que não estivesse na defesa do povo, era condenado. Eu estaria para sempre condenado – um apátrida das letras”.[4]

A Torre da BarbelaAlexandre O’Neill expressou de forma eloquente esta faceta irreverente do autor de A Torre de Barbela: “Ao coro de rãs, respondeu Ruben A. com algumas arreliantes dissonâncias, enfim, com o que nele era vivo pressentimento de que uma obra se faz a contrapeso do gosto mediano”.[5]

Ruben A. não se livrou do rótulo de simpatizante monárquico, que de forma expedita lhe colaram para denegrir a sua imagem pública e apoucar o seu nome honrado. Como se não existissem monárquicos – como Carlos Malheiro Dias – bem mais livres e arejados nas ideias que certos republicanos que acabaram acomodados e até assimilados pelo Estado Novo. Assim se condenavam ao anonimato e reduziam ao nada nomes hoje consagrados da ficção portuguesa da época.


[1] Eduardo Lourenço, Heterodoxia, Lisboa, Assírio & Alvim, 1987, pp. 213-214.

[2] Carta de António de Oliveira Salazar ao ministro da Educação, in O Mundo de Ruben A., citada por José Carlos de Vasconcelos (Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 1295, 20 de Maio de 2020, p. 3).

[3] Jornal de Letras e Artes, n.º 35, 06.06.1962, p. 9.

[4] Ruben A., O Mundo à Minha Procura, II. Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1966, p. 156.

[5] Alexandre O’Neill, citado por Guilherme d’ Oliveira Martins, “À procura do mundo” (Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 1295, 20 de Maio de 2020, p. 11).

Maria Velho da Costa (1938-2020)

Ma.Velho da.CostaDizia que andava no mundo para inquietar os outros. Inquietar, perturbar: eis uma das funções da arte. E comparava os escritores aos especialistas de hemodiálise: “tratamos aquilo que absorvemos”.

Corria o ano de 1971 quando Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno publicam Novas Cartas Portuguesas, um marco incontornável do discurso feminista em Portugal. Convém lembrar aos mais novos, aos desatentos – e aos mais velhos de memória curta – que por essa altura as mulheres não podiam votar. Não podiam ocupar lugares de chefia na Administração Pública. Sofriam entraves de toda a ordem para casar, se exercessem a profissão de enfermeiras, hospedeiras da TAP ou professoras primárias. Não podiam viajar sozinhas sem passar pela humilhação prévia de obter autorização escrita do marido, do pai ou do irmão mais velho. As Novas Cartas Portuguesas fizeram ranger de indignação os pilares do Estado Novo marcelista, que viu nelas um livro pornográfico e um atentado à moral e aos bons costumes. Proibido de circular, desapareceu das livrarias e foi destruído.

As três Marias (2)No início dos anos 70 a ditadura portuguesa não suportava que se escrevessem coisas como esta: “Três é o fim da virgindade, o começo da justa história do par” (Segunda Carta V); ou como esta: “de homem gostamos (e muito) mas jamais a esconsas e somente se não marialva (o que é difícil, convenhamos…) e afinal nos rimos”. (Terceira carta última). O processo das “Três Marias” rapidamente galgou fronteiras, transformou-se num caso do feminismo internacional e só não foi a julgamento porque, dois anos depois, aconteceu o 25 de Abril de 1974. Antes do livro vir a público, as “Três Marias” que os portugueses conheciam eram as garrafas de vinho branco que um certo marialvismo lusitano costumava pedir em voz alta, à mesa do café, no tom grosseiro que ainda hoje ressoa nos meus ouvidos: “Saia uma garrafa de seis tetas!”

Leio que algumas obras de Maria Velho da Costa não são de leitura fácil, porque é saudável a distância que as separa da literatura de mero entretenimento. Por isso reclamam, pelo menos, uma segunda leitura, para que possamos atingir a subtileza das camadas mais profundas da sua escrita. Convenhamos: também não é fácil ler outros escritores ou poetas consagrados. Basta citar, no terreno pátrio, Herberto Helder; e, no plano internacional, um Joyce. Talvez por isso os livros da escritora nunca tenham rompido um círculo demasiado restrito de leitores incondicionais.

Para lá das Novas Cartas Portuguesas apenas li, de Maria Velho da Costa, Lucialima. Pecador me confesso. Abro o livro ao acaso, porque sei que em qualquer página é possível tropeçar na riqueza dos recursos linguísticos que de forma tão pródiga colocou ao nosso dispor, e anoto, na página 294 (3.ª edição):

Lucialima“Lima ri-se. Como as lendas da cobra preta que se aninha nas botas e nos esconsos das camaratas fechadas, a grande barata vermelha parece ser o ódio mor deste exército de homens criados a associar a pequena barata negra do Continente com a miséria e com o desleixo. Mesmo cansados, treinam-se a cravá-la no solo batido das tendas ou dos aquartelamentos, das tabancas de empréstimo, com um só golpe da lâmina da baioneta, enojados de as esmagar, tão enormes são. E não há um que se deite numa esteira de amores ou se alivie num feixe de folhas, sem primeiro indagar da presença desses corpos rígidos e sujeitos a correrias de pânico, para mais, horror maior, aladas”.

Romancista maior, a quem foi atribuído o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores – a mais alta distinção literária portuguesa – pela publicação de Irene ou o Contrato Social e o Prémio Camões pelo conjunto da sua obra, Maria Velho da Costa nunca teve, em vida, publicidade bastante que aparasse ou iluminasse o labor da sua escrita. O que teve, de sobejo, foi desamor e desconhecimento em relação ao tanto que nos deixou: Maina Mendes, Casas Pardas, Missa in Albis, Da Rosa Fixa, O Livro do Meio – a meias com Armando Silva Carvalho – e Myra, só para citar alguns títulos mais conhecidos.

Depois de Maria Isabel Barreno nos ter deixado em 2016, ficámos agora privados de outra voz insubmissa que marcou a luta das mulheres em Portugal contra o seu estatuto de menoridade. Acredito que na hora da partida Maria Velho da Costa terá levado, no bornal das memórias, mais afecto do que amargura pelo desamor em relação à sua obra. E terá sentido algum alívio também, pois costumava dizer: “espero que os meus amigos nunca morram todos antes de mim. A pior coisa que pode acontecer a alguém é sobreviver a todos de quem gosta”.

Das partilhas, dos “likes” e da arquitectura do diálogo

Prisão do cérebroQuando partilhamos um texto isso significa que, no essencial, concordamos com ele. É o que acontece com o texto de Carlos Esperança que vou reproduzir. Alguns amigos não se vão rever nesta partilha, tal como não me revejo em algumas partilhas deles, onde subscrevem, no essencial, o que tornam público.

É a democracia a funcionar, desde que o contraditório seja acompanhado pelo máximo de respeito pelo outro. A amizade, que devemos situar no terreno da moral e da ética, não teme confrontos políticos (o conflito é a essência da vida política), ideológicos ou religiosos. Rasgar amizades por diferenças de opinião é negar a essência da democracia e um sintoma de menoridade mental. E também de intolerância. Jamais vou bloquear o acesso a este mural a quem de mim discorda e me confronta de forma séria ou irónica, pois o humor é um tónus de saúde. Não hesitarei em o fazer por imperativos de ordem moral, ou falta de carácter, porque não estou disponível para responder a insultos. Não me custa nada reconhecer a inteligência dos argumentos de quem de mim discorda, e por isso cultivo amizades com quem está nos antípodas do que penso em termos políticos ou religiosos. Amizades que só resistem porque são adubadas e regadas com  a tolerância recíproca.

Asaf Hanuka
Ilustração: Asaf Hanuka

Para lá do texto que vou partilhar, também subscrevo este comentário de Carlos Esperança: “Colocar ‘gosto’ nos elogios parece-me narcisismo”. Nada poderia vir mais ao encontro do meu sentir nesta questão. Em vez do ‘like’ a um elogio, prefiro o silêncio. Ou até o breve comentário, relativizando o que nele me constrange. Entenda-se: não questiono a dose de generosidade de quem elogia, mas a incomodidade de quem não sabe lidar bem com isso. Não é falta de auto-estima. Será mais uma forma de recusar as capelinhas do elogio mútuo que no Facebook assentaram arraiais, o mendigar de ‘likes’ que outra coisa não expressa senão o incontornável desejo de afirmação pessoal de quem nesse espelho virtual e narcísico gosta de se contemplar.

ALIMENTO PARA EGOS: Angel BoliganSe às vezes, um tanto a contragosto e à revelia do que penso, coloco um ‘like’ num elogio, é para que quem elogiou não se sinta desconsiderado ou veja ingratidão no meu silêncio. Compreendo que outros gostem de carambolar ‘likes’ como quem avia pãezinhos quentes, talvez porque lhes afague o ego, mas essa não é a minha praia. Há que saber respeitar o direito ao recato, à não exposição e ao silêncio, da mesma forma que devemos respeitar os mais extrovertidos, afinal ramos diferentes da mesma imperfeição e fragilidade que nos caracteriza enquanto humanos. Era só.

E agora sim, o texto de Carlos Esperança, intitulado “O direito ao contraditório e ao ruído”

“Gosto de quem exerce o legítimo direito de discordar das minhas posições invocando o gosto de pensar pela própria cabeça, na insinuação subliminar de que eu penso com uma cabeça alheia.

Aprecio a alegação contra a denúncia dos crimes cometidos por Hitler, Franco, Pinochet ou Salazar com perguntas retóricas sobre os de Mao, Estaline, Enver Hoxha ou Pol Pot, como se alguma vez tivessem defesa uns ou outros.

Agrada-me o argumento irritado, quanto à denúncia de crimes cometidos por militantes de um qualquer partido, com o desfiar do rol de delinquentes de um partido concorrente, como se a bondade partidária se medisse pela conduta dos militantes.

Regozijo-me com a amnésia dos admiradores de Cavaco, Passos e Portas, que os julgam salvadores da Pátria e responsabilizam o governo anterior pelas suas malfeitorias, como se a crise financeira mundial de 2008 não tivesse existido, e ignorando que a falência de um Estado ou de uma empresa (bancarrota) não se confunde com a fissura numa banca da praça do peixe (banca rota), como há uma década vêm escrevendo.

Mas nada me extasia tanto como os ataques irritados a qualquer governo que não inclua o PSD e o seu apêndice de serviço, o CDS. Há quem, na sua crença, pense que Cavaco é um intelectual e Passos Coelho um académico. É mais um motivo para minha diversão.

Finalmente, resta-me recordar à direita truculenta a satisfação manifestada pela eleição de Bolsonaro, por Paulo Portas, Nuno Melo, Assunção Cristas, André Ventura e Luís Nobre Guedes, para não falar da carta de felicitações que Santana Lopes lhe enviou”.

 

 

Os velhos e Max Weber: o político, o cientista e o espírito do capitalismo

Abro uma excepção e reproduzo, parcialmente, um texto já aqui publicado em 29 de Outubro de 2017. O motivo por que o faço é simples: o tema dos velhos (primeiro transformados em idosos e, mais recentemente, em séniores) continua na ordem do dia e não pelas melhores razões: em tempos de pandemia, morre-se muito nos lares e há quem tudo faça para legitimar a continuidade do confinamento dos velhos, com o recurso estafado a argumentos sanitários (tomados de empréstimo aos cientistas) e à proclamada indisciplina dos maiores de 65 anos.

Querem exemplos? Bastam dois, de pessoas com responsabilidades acrescidas na política e na ciência. Ursula Von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, foi das primeiras a alertar para a necessidade dos velhos (muitos deles já privados da visita de familiares) terem de continuar confinados até se encontrar uma vacina, o que pode demorar pelo menos um ano. Em entrevista ao Expresso (edição de 18.04.2020), Maria Manuel Mota, reconhecida cientista portuguesa, fala-nos de um vírus “relativamente bonzinho”, porque praticamente não afecta crianças, adolescentes e jovens adultos, mas sobretudo grupos de risco, pessoas com mais de 70 anos ou portadoras de outras complicações de saúde. Daí – conclui – a necessidade de se adoptarem medidas colectivas para proteger estas pessoas, sem estagnar a vida daqueles de quem depende o futuro: os mais jovens, para quem é preciso arranjar maneira de continuarem a viver a sua vida.

Nestes discursos – o da política e o da cientista – parece alojar-se uma convicção que a roupagem linguística tenta escamotear: a de que o novo normal só é possível com o prolongado isolamento dos mais velhos, precisamente aqueles que, afinal, já pouco ou nada acrescentam à sacrossanta produção de bens materiais. Dá que pensar: como é que pessoas tão representativas da política e da ciência parecem não se dar conta dos arrasadores efeitos psicológicos que um confinamento prolongado é capaz de gerar? Não, não é apenas o contágio pelo vírus que pode acabar de vez com os mais velhos: há outros vírus não menos letais: o mergulho na depressão, a silicose do abandono, o roubo da alegria, a queda no poço sem fundo da solidão.

Max WeberNo livro O Político e o Cientista, Max Weber mostra-nos as semelhanças e as diferenças entre estas duas profissões e vocações distintas, aconselhando a que não se misturem nem invadam as respectivas esferas de competência. Apesar de nesta crise – que, sendo sanitária, continua a ser predominantemente política – já haver quem defenda o primado dos cientistas sobre os políticos, prefiro manter-me fiel ao pensamento de Weber nesta matéria e proclamar: a Deus o que é de Deus, a César o que é de César (a ciência, responsável pelo aumento da esperança média de vida, incute cada vez mais esperanças de eternidade e acaba  por ser vista, aos olhos de muitos, como uma religião, uma deusa a quem muitos rendem cada vez mais culto). Difícil é optar entre ciência sem consciência ou política sem dimensão ética. Como dizia o filósofo Roger Garaudy em Apelo aos Vivos, sem dimensão transcendente a ciência converte-se em cientismo (superstição que separa a ciência da sabedoria) e sem dimensão ética a política transforma-se em tecnocracia. Entre as duas, venha o diabo e escolha.

Max Weber, Ética protestanteNuma outra obra célebre, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, o sociólogo alemão sustenta que a crescente racionalização do mundo – elevada a princípio unificador e organizador da vida social – só pode conduzir a uma crescente ausência de liberdade (estamos a falar de uma antinomia: da liberdade negada pela racionalidade) e a uma “evaporação do espírito”. Esta evaporação do espírito de que falava Max Weber está a dificultar-me o simples acto de respirar (S.O.S., S.O.S., um ventilador!) sempre que alguém fala da necessidade de prolongar o confinamento dos velhos. Eis a descarada subalternização dos afectos, a fisionomia autoritária de um capitalismo tardio e sem ética. O que se pede é menos domínio da razão pela razão. Menos evaporação do espírito, essência sensível que é matéria, mas também a força espiritual que a move.

Dito isto, dou por mim a concordar com quem várias vezes tenho estado em desacordo: Miguel Sousa Tavares. São dele estas palavras, retiradas da última crónica do Expresso, a propósito da utilização recorrente da palavra idoso: “Eu sei que faz parte do novo léxico politicamente correcto, (mas) alguém diz ‘o meu idoso’ em vez de ‘o meu velho’, quando se quer referir carinhosamente ao pai? Já imaginaram o que faríamos à literatura se aplicássemos a ditadura do idoso a alguns casos célebres: O Velho Que Lia Romances de Amor (…) passaria a ‘O Idoso Que Lia Romances de Amor’, O Velho e o Mar, de Hemingway, passaria a ‘O Idoso e o Mar’; Os Velhos Marinheiros, de Jorge Amado, seriam ‘Os Idosos Marinheiros’, e até o nosso ‘velho do Restelo’ acabaria transformado no idoso do Restelo”.

Feito este intróito, aqui fica a prometida transcrição parcial do texto que editei em Outubro de 2017 com o título “Vozes (cada vez mais) anoitecidas”, por entender que, infelizmente, não perdeu actualidade.

Idosas“Tudo se faz para suavizar a nossos olhos a velhice dos outros. Os idosos encerram um paradoxo: a sociedade que exibe a longevidade como valor supremo é a mesma que os trata como um fardo e um problema. Estamos cercados de idosos, mas quase não os vemos. Encaixotados em lares de gosto duvidoso, duram tempo demais e dão cabo do erário público. Deixou de fazer sentido a ideia segundo a qual por cada velho que morre é uma biblioteca que desaparece (…). O envelhecimento é visto como uma “perturbação” e não como uma oportunidade de utilizar recursos adquiridos ao longo da vida; os idosos representam um fardo, esquecendo-se o apoio que muitas vezes alguns deles ainda podem prestar à família e mesmo à sociedade.

(…) A pressa, a ligeireza e o desinteresse (que é desconsideração) pelos outros, são a imagem de marca do nosso tempo. Na sociedade em que o ter se substituiu ao ser, em que cada um já não vale pelo que é, mas por aquilo que ostenta, ou pela imagem muitas vezes falsa que retoca e de si dá aos outros, quem assim nos fala não é o ser humano dotado de afectos. É o homem-máquina, um corpo sem alma, um rolo compressor que tudo cilindra à sua passagem.

Dizia Cícero – orador romano que nasceu e viveu antes de Cristo – que a velhice todos a buscam alcançar, mas quando a alcançam, deploram-na. Para ser possível suportar mais facilmente o envelhecimento só parece existir um caminho: devolver a vez e a voz aos idosos”.

Memória de Luis Sepúlveda e Rubem Fonseca (pessoas por detrás dos números…)

Luis Sepúlveda

Pouca ou nenhuma vontade de sair a terreiro e rabiscar qualquer coisa, enquanto dura este pesadelo. Este rolo compressor da sensibilidade que é a enumeração fastidiosa do número de mortos, infectados e recuperados nas últimas 24 horas de cada dia. Só que a morte de quem gostamos muda tudo: a contabilidade macabra, feita de algarismos para representar seres humanos coisificados, cede o lugar à emoção e ao sentimento e abre caminho às veredas da escrita.

16 de Abril de 2020. Dia aziago, capaz de provocar a ira dos deuses. Apolo anda escondido, talvez embrulhado nas suas vestes de luto. Só Zeus dá sinal de vida, entretido a rasgar o ventre das nuvens, que despejam bátegas de água nas vidraças que me protegem. Pergunto a mim mesmo se a tristeza tem um rosto, sabendo de antemão que hoje está triste o rosto da literatura e dos que a têm por amiga. De uma assentada, perdemos Rubem Fonseca e Luis Sepúlveda.

Dizia Beckett que o dia da morte é como qualquer outro, só que mais curto. Hoje foi o dia mais curto das vidas de Rubem Fonseca e Luis Sepúlveda. Sim, estamos tristes porque a morte de quem gostamos é sempre um rombo no nosso passado. Apesar do rasto luminoso que são os livros que nos legaram, as imagens, as entrevistas, os recortes de imprensa, todas essas coisas parecem destroços quando desaparece o suporte material que as gerou, e por isso também em nós algo fenece.

Romance NegroRubem Fonseca morreu nonagenário, mas ainda assim antes do tempo. Considerado por uns como um dos melhores escritores de língua portuguesa, quase todos os seus livros falam da violência, um dos lados negros do Brasil e de tantas outras sociedades. Outros, como Pedro Mexia, vêem nos seus contos ou histórias curtas um certo gosto pelo bizarro e o grotesco. Se do Prémio Camões 2003 – escritor recatado, que não dava entrevistas – não posso falar com um pingo de propriedade, por só ter lido Romance Negro e Outras Histórias (livro de contos onde não está presente o tal “brutalismo” derramado em obras anteriores) já o chileno Luis Sepúlveda me é bem mais familiar.

Mais novelista que romancista, as suas obras denunciam a violência política, os crimes ambientais e os cultores do pensamento único, sempre prontos a confundir a fé verdadeira com o fanatismo e o extermínio com o patriotismo. Destaco o livro por onde comecei: O Velho que Lia Romances de Amor, onde nos dá a ver a eterna luta que se trava entre os que respeitam a Natureza e os seus recursos e aqueles que os delapidam sem olhar a meios. A luta final entre António José Bolívar Proaño e a fera que acaba derrotada, pode ser vista como a metáfora perfeita da ruptura – alimentada pela cobiça – que dá cabo da harmonia entre o ser humano e a Natureza.

As Rosas de AtacamaAs preocupações ecológicas, o valor da amizade, da honestidade e da solidariedade aparecem também distribuídos de forma generosa em As Rosas de Atacama. O livro tem uma entrada sublime, com Sepúlveda apostado em resgatar das garras do esquecimento todos quantos merecem ser lembrados. Intuiu isso numa deslocação ao campo de concentração de Bergen Belsen, onde descobriu que alguém gravara na superfície de uma pedra, talvez com o auxílio de uma faca ou um prego, o mais lancinante dos apelos: “Eu estive aqui e ninguém contará a minha história” (p. 8).

Ainda neste belíssimo livro, como não recordar “Baleias do Mediterrâneo”? É um texto que fala de encontros com golfinhos despedaçados pelas hélices das embarcações desportivas, no qual o escritor desabafa: “Existem dois frutos do engenho humano que me aborrecem particularmente: a moto-serra e o motor fora de borda. Milhões de hélices remexem as águas do Mediterrâneo como se se tratasse de uma enorme batedora com que se prepara uma beberragem mortal” (p. 59).
E como não recordar, também, “O amor e a morte”, onde confronta (e conforta) os três filhos pequenos com o final anunciado de Zorbas, o gato protagonista de História de Uma Gaivota e do Gato que a Ensinou a Voar? Zorbas, o gato que dormia a seus pés enquanto escrevia, ia morrer. E Sepúlveda anota: “dependia de nós evitar-lhe uma morte atroz e dolorosa, porque o amor não consiste apenas em conseguir a felicidade do ser que amamos, mas também em evitar-lhe sofrimentos e preservar a sua dignidade” (p. 93).

Outros livros dignos de registo poderiam ser citados, como A Sombra do que Fomos, que alude aos sonhos derrubados e aos ideais desfeitos, a lembrar-nos que também as ilusões que construímos nos podem trair, mesmo quando lhes somos excessivamente fiéis. Mas creio que basta o que fica dito, em relação a histórias que nos deliciam e comovem. Infelizmente não haverá outras, contadas por este “mochileiro” que viajou pelos quatro cantos do planeta. Um vírus insidioso provocou o irremediável naufrágio de Sepúlveda.

Para quem tudo acaba quando o desaparecimento físico acontece, sobrevém um enorme vazio. Mais afortunados são os que receberam o dom que lhes permite associar a razão à esperança, os que acreditam, afinal, que a crisálida precisa de morrer para se transformar em borboleta.

 

 

 

 

A Banda que Tocou Fora da Graça de Deus (romance de António Breda Carvalho)

Ao completar trinta anos de vida literária (1989-2019) António Breda Carvalho brinda-nos com um novo romance. O livro foi apresentado por Pedro Calheiros, professor da Unversidade de Aveiro, no dia 7 de Dezembro de 2019, no salão nobre da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro.

Apesar de ser sábado, escassa assistência para uma obra que recria e ficciona acontecimentos vividos no Troviscal, freguesia do concelho de Oliveira do Bairro, distrito de Aveiro, com abundantes referências a personalidades que se destacaram na região da Bairrada no primeiro quartel do século XX. Descontados os elementos que presidiam à mesa e respectivos familiares, estariam na sala entre dez a quinze pessoas. Dá que pensar, sobretudo quando, por essa altura, um relatório Pisa nos alertava que há hoje mais jovens a ler só por obrigação e a considerar a leitura uma perda de tempo.

Com colaboração diversa na imprensa regional, bem se tem esforçado o autor, ao longo dos anos, para nos mostrar a importância da leitura: já em 1997 Breda Carvalho denota preocupação com o índice de leitura dos portugueses. Entre citações de Petrarca, Voltaire e Aquilino Ribeiro, fala-nos do livro como fonte de cultura e da literatura enquanto forma privilegiada de conhecimento, por nos revelar “a alma que o rosto dos factos encobre”, as infinitas vidas que se condensam em cada ser humano (Latitude, suplemento cultural do semanário O Aveiro, n.º 10, Maio/97).

1. O livro

Capa do livroO romance abre com um importante prefácio de Silas Granjo, neto do fundador da Banda, onde se enumeram as peripécias de um conflito que a opôs aos representantes da Igreja Católica entre 1922 (início da excomunhão) e 1939 (fim do interdito). Está lá praticamente tudo o que de mais significativo há a registar nesses conturbados dezassete anos. O povo do Troviscal, desagradado com o que considerava ser uma perseguição das autoridades eclesiásticas à sua Banda Escolar, resolve também interditar todos os padres do exercício de qualquer cerimónia religiosa nos limites da freguesia. Anota Silas Granjo: “Imagine-se – exercício bem difícil nos tempos de hoje – cinco anos sem casamentos católicos, baptizados, enterros, confissões, festas religiosas, missas e sermões, em toda a freguesia!” (p. 14).

Prefácio importante – repita-se – porque se os romances históricos, onde podemos encontrar vários subgéneros, ajudam a compreender épocas já distanciadas, eles podem gerar, também, o efeito perverso do sincretismo que torna difícil distinguir a ficção da realidade. Dito de outro modo: os romances históricos podem induzir os leitores à confusão entre factos históricos e estórias, afectando a construção de uma memória histórica credível. Não é o caso deste livro, onde o autor parece conciliar, com evidente sucesso, a ficção com os dados da História.

Na apresentação do livro, Pedro Calheiros anotou que a leitura do romance lhe fez lembrar O Hissope, poema herói-cómico e uma sátira às autoridades eclesiásticas da época, da autoria de António Dinis da Cruz e Silva – fundador da Arcádia Lusitana, em 1756 – que remete para as cizânias que rebentaram entre o bispo de Elvas e o deão do cabido, por este último ter rompido o antigo costume de obsequiar o hissope (ou aspersório, instrumento que se utiliza para aspergir água benta)  ao bispo, sempre que este se deslocava à Sé. E também não deixou de encontrar semelhanças entre esta obra e as Guerras do Alecrim e Manjerona, de António José da Silva, “o Judeu”, que acabaria consumido pelas fogueiras da Inquisição. Na verdade, as desavenças entre o clero católico e a Banda do Troviscal fazem lembrar esses arrufos e rivalidades entre os dois ranchos carnavalescos desavindos, o do alecrim e o da manjerona.

Em nota prévia, o autor lembra aos mais incautos que esta obra de ficção incorpora personagens e episódios inventados, isto é, unicamente produtos da sua imaginação; enquanto romace histórico, narra acontecimentos verídicos relacionados com a Banda, “adaptados à organização e à economia do romance”, apesar de não respeitarem a ordem cronológica dos factos. Ao contrário dos que começam a delinear alguma coisa, mas logo percebemos que não têm qualquer história para contar, neste livro delicioso que é A Banda que Tocou Fora da Graça de Deus António Breda Carvalho ficciona os episódios rocambolescos que envolveram a Banda Escolar do Troviscal, o seu fundador – professor e maestro José de Oliveira Pinto de Sousa – e as autoridades eclesiásticas que se lhes opunham (sobretudo párocos locais, arcipreste e bispo de Coimbra).

Dois acontecimentos delimitam o início e o fim da narrativa: o primeiro remete-nos para uma taberna da Póvoa do Carreiro, lugar da freguesia onde uma altercação nocturna termina com um homicídio aparentemente acidental, e com um funeral civil, acompanhado pela Banda, que ditaria a sua excomunhão; o último tem a ver com o fim do interdito, exarado num decreto de Setembro de 1939 por D. João Evangelista de Lima Vidal, então bispo da recém restaurada diocese de Aveiro.

Pormenor curioso: ao longo da narrativa vamos encontrando frases que são outras tantas referências a títulos de obras de escritores portugueses, desconhecendo se o autor faz isso de forma deliberada ou inconsciente: “Foi no padeiro uma revelação extraordinária, tal como a queda de um anjo” (p. 133, alusão óbvia a um romance de Camilo);  o mesmo padeiro que, depois de distribuir carcaças e bicos, “já se perde de vista, ao fundo, na curva da estrada” (p. 134, a fazer lembrar o livro de Ferreira de Castro, A Curva da Estrada); finalmente, ao descrever um funeral após a excomunhão da Banda, Breda Carvalho escreve: “Tarde ensolarada, não é Março desavindo, (p. 142, a remeter para o título de uma obra de Mário Ventura).

Há trechos que parecem tributários do realismo mágico dos autores sul-americanos. Atentemos neste, que remete para a presença da banda em Coimbra no ano de 1926, já derrubada a I República, para actuar nos festejos da Rainha Santa: “este milagre faz pasmar: saem rosas brancas do pavilhão do trompete, esvoaçam no ar como pombas, e sobem ao alto de Santa Clara, ao convento, onde pousam na mão da Rainha Santa Isabel” (p. 159). Nem o milagre lhes valeu. A Banda acabaria por passar a noite nos calabouços do governo civil e ser recambiada, na madrugada seguinte, para a Estação Velha, com ordem de regresso a casa.

Neste romance, Breda Carvalho recusa-se a dar gradação moral às diferentes personagens, sejam elas monárquicas ou republicanas, religiosas ou laicas, apesar de as saber influenciadas pelos acontecimentos históricos, políticos e sociais em que se envolvem e enredam. Elas impõem-se mais pela autenticidade psicológica do que pelo maniqueísmo. O escritor bairradino prefere colocar-se na pele de cada uma delas e ser fiel ao seu horizonte mental, intuindo-lhes valores que as norteiam, condutas diárias, as lutas que travam e os inevitáveis fracassos e conquistas.

E isto sim, é literatura. E da melhor.

2. Contexto político-social

A confrontação aberta entre a  Banda do Troviscal e o clero católico, com início no ano de 1922, ganha contornos mais nítidos se tivermos em conta que a preocupação republicana em reduzir a presença de sinais exteriores de expressão religiosa no espaço público é anterior à própria Lei de Separação do Estado das Igrejas, de 20 de Abril de 1911, na altura apresentada como “intangível”, “cúpula do edifício republicano” e cuja execução gerou adesões incondicionais e críticas permanentes. Terreno fértil, sem dúvida, para a construção de memórias contraditórias e divergentes, que encontramos espelhadas na imprensa da época. Esta lei – e a política religiosa do governo provisório de Afonso Costa – suscitam polémica pelo seu radicalismo laicista. Não gerou sequer consenso entre os republicanos mais esclarecidos (Basílio Teles, ou Sampaio Bruno, entre outros). O ensaio de Basílio Teles, de 1913, “A Questão Religiosa”, é deveras ilustrativo dessas discórdias.

Lei-SeparaçãoUma análise das resistências à política religiosa da I República mostra que a legislação que mais potenciou certo tipo de conflitos não foi a Lei de Separação, mas os chamados decretos proibitivos: expulsão dos jesuítas, extinção das ordens religiosas, abolição do juramento religioso, proibição do ensino confessional, a secularização dos cemitérios, o reconhecimento do divórcio, a lei que introduziu o registo civil obrigatório e a que extinguiu a Faculdade de Teologia. A Lei de Separação viria apenas agravar esse ambiente de enorme tensão: no seu articulado, dispunha que a religião católica deixava de ser religião do Estado e garantia o exercício de culto nos locais próprios – leia-se: fora do espaço público – a todas as Igrejas e confissões religiosas, interditava a publicação de bulas e pastorais e remetia o culto para a esfera da privacidade. É a partir daqui que a Igreja Católica vai encetar uma luta sem tréguas contra o novo poder triunfante, tudo fazendo para que fossem retiradas das novas leis algumas disposições mais gravosas. Mais do que separada do Estado, a Igreja sentia-se perseguida, desconsiderada e despojada dos meios necessários ao livre exercício da sua acção.

Tal como noutras zonas geográficas do Norte e Centro de Portugal, o concelho de Oliveira do Bairro e a própria Bairrada, a que Troviscal pertence, caracterizavam-se por um forte enquadramento das comunidades rurais num clero nada predisposto a transigir com as novas leis republicanas. Assim se explica que algumas localidades deste concelho não ficassem imunes a este tipo de conflitos, com a Igreja Católica a considerar que a governação republicana deslizava cada vez ma para a intolerância. Verdadeiras guerras centradas em questões tão variadas como a nomeação de comissões cultuais (associações laicas, que entre outras funções administravam os bens nacionalizados e a gestão da vida religiosa das paróquias) que a Igreja considerava uma intromissão inaceitável no seu funcionamento interno; a associação dos padres às conspirações monárquicas, a sua expulsão das residências paroquiais – muitas vezes seguida de desterro – as revoltas contra os arrolamentos dos bens da Igreja, os obstáculos levantados às procissões religiosas, as polémicas em torno do toque dos sinos, ou até os incidentes relacionados com a visita pascal, como aconteceu em 1915, em Sangalhos, onde paroquiava Acúrcio Correia da Silva.

Vale a pena referir que em 1922 o afrontamento directo entre a Igreja e o Estado já não pendia tão favoravelmente para este último, como sucedera nos anos que antecederam a I Guerra Mundial (1914-1918). Terminada a guerra, ascende ao poder Sidónio Pais e assiste-se ao revivalismo monárquico, ao mesmo tempo que se anulam as penas de expulsão e desterro de vários bispos, se assiste ao restabelecimento das relações diplomáticas com a Santa Sé e se introduzem alterações significativas na Lei de Separação. Afonso Costa exilara-se em França. É no contexto desse apaziguamento de relações que devemos entender a imposição do barrete cardinalício ao futuro cardeal, pelo Presidente da República António José de Almeida, no ano de 1923.

Num concelho tradicionalmente rural, conservador e profundamente católico, como era o de Oliveira do Bairro, a Igreja ganhava novo fôlego, um renovado sopro anímico. Assim se explica a posição de força que a levou a decretar o interdito à Banda, proibindo-a de participar em festas e outros actos religiosos, embora esta tenha reagido com o mesmo ar desafiador que levou Martinho Lutero, em 1520, a queimar em praça pública a bula papal que o excomungou da Igreja Católica.

Do mesmo modo, quando em 1939 cessa o interdito, já a Igreja Católica tinha recuperado muito do seu poder e privilégios. Em 1940, é assinada a Concordata entre o Estado português e a Santa Sé. As paróquias passam a dispor livremente de bens essenciais aos fins que prosseguem e as instituições católicas recuperam a totalidade dos bens que lhes pertenciam em 1910 e que ainda estavam na posse do Estado, nomeadamente templos e residências paroquiais.

Rio da MemóriaPara melhor e mais completo ennquadramento histórico deste romance, os interessados podem consultar, com evidente proveito, dois livros que abordam os episódios ocorridos com a Banda do Troviscal. O primeiro é Rio da Memória. A Banda do Troviscal, de Maria Leocádia Pato, editado em 1997. O segundo é da autoria de Silas Granjo e tem por título: Troviscal Republicano. Banda Excomungada, Clero Interdito (1922-1939), editado em 2010, ano de centenário da I República. Obras que podem ser complementadas com a imprensa regional e local da época, já que estamos a falar – na opinião de Vasco Pulido Valente – no indicador mais digno de fé, mas também no mais negligenciado. Consulta necessária, mas feita com olhar distanciado, se possível cruzando informação entre jornais monárquicos e republicanos.

Troviscal RepublicanoÉ que sobre a figura do maestro da Banda e outros episódios ocorridos no Troviscal e no concelho durante a I República – nomeadamente em 1915, no consulado da ditadura de Pimenta de Castro – há trabalhos impugnáveis. Alguns deles já foram denunciados por Silas Granjo, nomeadamente os contidos em Troviscal. Visão histórico-cultural, da autoria do escritor bairradino Armor Pires Mota. A forma como apouca a figura do maestro José de Oliveira Pinto de Sousa, formando e emitindo opinião a partir da consulta de um jornal monárquico que lhe era notória e ideologicamente adverso – O Povo de Anadia – mostra bem como o juízo actual so­bre as personalidades da I República não pode deixar para segundo plano os juízos que delas fizeram os seus contemporâneos. Era seguramente diferente, bem mais lisonjeira e digna de crédito, a opinião que do professor e maestro tinham os seus alunos, discípulos e músicos.

Há personalidades da Bairrada – é o caso dos padres Joaquim Ferreira Maneta, Abel da Conceição e Silva, Abel Condesso, ou até António Duarte Sereno, o visconde de Bustos – que protagonizaram episódios menores da enorme bagunça político-ideológica em que a República rapidamente se transformou após o 5 de Outubro, ou mesmo antes. Ilustrar esses episódios sem os contextualizar, sem conseguir identificar e analisar o significado histórico dessa bagunça, pouco acrescenta de analiticamente relevante à história política do republicanismo na Bairrada. Essa não é, seguramente, a melhor ponta para pegar no intrincado novelo político-ideológico da República. Aqui ficam alguns breves traços biográficos dessas personalidades, sobretudo das que aparecem ao longo da obra:

Abel Condesso, padre não citado no livro mas que afinava pelo mesmo diapasão dos padres Abel da Conceição e Ferreira Maneta, fustigava os republicanos radicais mas não enjeitava radicalismos de sinal contrário: em 1932 encontramo-lo nas fileiras do nacional-sindicalismo, os camisas azuis de Rolão Preto, grupo de direita radical empenhado na fascização do regime, que se opunha à própria União Nacional e por isso viria a ser ilegalizado por Salazar. Em Anadia, este grupo ridicularizava constantemente a União Nacional local. Em Agosto de 1932, numa tentativa para demitir o secretário da Câmara, o grupo invadiu o edifício onde se encontrava reunida, expulsou os seus elementos e partiu o mobiliário. O assalto ficaria impune. Entre os participantes estava o padre Abel Condesso, que continuou ao lado de Rolão Preto e foi dirigente da organização na fase clandestina.

Abel da Conceição e Silva, pároco de Oiã, era um inimigo declarado do regente da Banda. Director do jornal monárquico Echos do Vouga, que se publicou entre 1908 e 1911, esteve envolvido no atentado da Ponte do Pano (Oiã), em 1 de Outubro de 1911. À revelia do quinto mandamento, a ideia do padre Abel era fazer explodir a ponte por onde iria passar um comboio apinhado de republicanos deslocados para o Norte, a fim de pôr cobro às conspirações monárquicas contra o novo regime. Era arcipreste em Oliveira do Bairro quando, em 1922, ocorrem os incidentes que levariam ao interdito da Banda, excomunhão em que se empenhou de corpo e alma.

Joaquim Ferreira Maneta paroquiou Oliveira do Bairro nesses anos conturbados, a partir de 1919. Não era menos polémico que o padre Abel. Assumido monárquico, também se envolveu no atentado da Ponte do Pano e num outro, na estação ferroviária de Oliveira do Bairro, onde chegaram a ser desaparafusados alguns carris.

Nesta contenda, o jornal Alma Popular era a verdadeira tribuna local dos republicanos. O primeiro número é de 5 de Outubro de 1918 e o quinzenário mantém a publicação até 1941. Tiago Ribeiro, juntamente com Manuel dos Santos Pato, é fundador e um dos principais colaboradores. Entre as personalidades republicanas da região citadas neste romance, a mais representativa será Tomás da Fonseca, anticlerical, racionalista e livre-pensador de Mortágua, autor de obras tão significativas e polémicas como Fátima, O Santo Condestável e Na Cova dos Leões.

Os valores alegadamente defendidos por estas ou outras personalidades, sejam elas monárquicas ou republicanas, não podem ser vistos – como às vezes são – como “essências” indiscutíveis contrapostas a outras tantas “essências” de sinal contrário. Muitos dos pormenores relatados na imprensa da época são historicamente irrelevantes. Convém não nos perdermos com eles: apenas podem ter interesse para um anedotário da troca de mimos entre republicanos e monárquicos durante alguns anos após o 5 de Outubro e por isso interessa resgatar a narrativa da sua repetitiva circularidade.

Apesar de continuar a não ser pacífica a análise do regime republicano português, alguns autores parecem incapazes de fazer história sem tropeçar nos preconceitos. É o caso dos que se preocupam, apenas, em o denegrir e contribuir para o seu descrédito, sem dar nota dos traços de modernidade que também o caracterizam. A abordagem predominantemente normativa e axiológica que alguns trabalhos fazem do alegado “radicalismo jacobino” da República, no seu período inicial, é às vezes tão ideológica quanto o próprio jacobinismo. As categorias utilizadas por esses autores são eminentemente “essencialistas”, isto é, tomadas como naturais e destituídas de problematização histórica e sem grandes voos interpretativos. Não raras vezes omitem ou deturpam factos para afirmar ideologias. Esquecem, também, que a História não é um ajuste de contas com o passado. Nem um tribunal que decreta sentenças definitivas. A História não se faz para agradar a correntes ideológicas: faz-se para reconstruir, na medida do possível, a verdade dos factos.

3. O autor: 30 anos de carreira literária

António Manuel de Melo Breda Carvalho nasceu em Mealhada (1960), onde é professor do Ensino Básico no respectivo Agrupamento de Escolas. É licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre pela Universidade de Aveiro, com uma dissertação sobre Acúrcio Correia da Silva – padre-poeta de intensa paixão regionalista, um luzeiro de cultura com prosa e versos derramados em revistas e jornais da época e grande impulsionador da Plêiade Bairradina, movimento que procurou conferir à região da Bairrada a expressão literária, artística e cultural que lhe faltava.

Num texto repassado de ironia, publicado no Jornal de Letras em Abril de 2019, o nosso autor confessa que o único livro que havia em casa dos pais era uma tia idosa, de nome Gracinda, que o embalava à noite com histórias de encantar, nos tempos recuados da sua meninice. O verdadeiro contacto físico com os livros aconteceria mais tarde, aprendidas as primeiras letras, graças à Biblioteca Itinerante da Gulbenkian.

A verdade no VinhoEstreia-se a publicar aos 28 anos, com In Vino Veritas, (1989) um livro de contos com o qual obtém, ex-aequo, o Prémio Literário Região da Bairrada. São catorze histórias de ambiência bairradina, com saborosos trechos como este: “Sentia-se feliz no afago das videiras. Imaginava as dornas a verter cachos nos sulcos dos caminhos, os tanques na fermentação rebelde do mosto, as pipas a estalarem prenhes de vinho” (p. 20). Um hino de louvor às raízes regionais, roteiro sentimental escorado numa terminologia fiel aos vocábulos da região, onde o vinho está sempre presente, algumas vezes no estado alterado de quem bebeu para lá da conta.

Segue-se a maré dos contos. Em 1991 foi distinguido com o Prémio de Conto Câmara Municipal de S. Pedro do Sul (menção honrosa) e também com o Prémio de Conto Joaquim Namorado (Câmara Municipal da Figueira da Foz, 1.º prémio, ex -aequo) com o livro A Ver Navios. O escritor e poeta João de Mancelos viu nesta colectânea “uma revelação muito positiva que agita as águas paradas do conto na região centro” (Latitude, suplemento cultural de O Aveiro, n.º 5, Junho, 1995). Outros contos premiados: O Canto e o Conto do Leitor (Prémio Jornal de Notícias, 1991); No Silêncio da Casa (Prémio Literário Horácio Bento de Gouveia, 1994) e A Mala Verde (Prémio Literário Idalécio Cação, 2012).

Em 1993 publica O Buçaco na Literatura, com capa de Domingos Pires (pintor da Pampilhosa) uma antologia de vinte poetas e prosadores, situados entre o século XVI e o século XX, um “regaço bem cheio de textos literários que imortalizaram o Buçaco” (introdução). Em 1997, sai nova antologia: Montemor-o-Velho: Percursos Literários. Em 2003 é publicada a antologia Escritas e Escritores da Bairrada, com selecção de textos, anotações e estudo introdutório da responsabilidade de António Breda Carvalho.

Há também lugar para duas monografias locais: Mealhada. A Escrita do Tempo (1997) e Misericórdia da Mealhada. Um Século de História (2006), obra que nos dá a conhecer os cabouqueiros e outros impulsionadores da Misericórdia – fundadores e provedores – os irmãos beneméritos e os serviços sociais prestados, enfim, o verdadeiro pulsar de uma instituição de solidariedade social. Livro útil para quem se interessa por conhecer melhor o passado do concelho da Mealhada, nomeadamente ao nível da sua experiência associativa.

As Portas do Céu 3 2As Portas do Céu (2001) é o seu primeiro romance. Obra de carácter histórico-religioso, centrada na história do convento de Santa Cruz do Buçaco, que foi habitado entre os séculos XVII e XIX pelos monges carmelitas descalços, teve menção honrosa do Prémio António Feliciano de Castilho, com o júri a salientar um “estilo vivo e estimulante, com uma excelente argumentação teológica (…) com algumas pequenas jóias no campo da significação e da linguagem”.

O ano de 2011 é um marco importante na carreira literária do escritor. O Prémio Literário João Gaspar Simões atribuído ao seu segundo romance, O Fotógrafo da Madeira, viria a funcionar como estímulo e alavanca para outros títulos que são o fruto de uma mais empenhada e amadurecida dedicação à escrita. Como o próprio confessa: “A partir de então, cada conto e cada romance foram actos de amor que me saciaram (Jornal de Letras, 24.04.2019).

O Fotógrafo da MadeiraO Fotógrafo da Madeira, “talvez um dos melhores romances sobre aquela ilha editados este século”, na opinião de Miguel Real (Jornal de Letras, 10.04.2019), traça um retrato do ambiente anti-liberal em meados do século XIX, da crise do comércio do vinho, do desemprego em grande escala, da pobreza crónica e do flagelo do analfabetismo. É desse caldo social que emergem personalidades vigorosas como o madeirense estrangeirado Afonso Elias (amante de fotografia que regressa de Paris para gerir a Quinta da Colina e transporta consigo os ventos de mudança que tanto desagradam ao conservadorismo das forças vivas da região) ou o médico protestante Robert Reid, que mal chega ao Funchal, em 1838, procura ocupar o espaço de abandono a que Igreja Católica tinha condenado a população, erguendo escolas e até um hospital e promovendo a evangelização popular. A reacção das autoridades locais, mancomunadas com a Igreja Católica (governador, bispo, presidente da câmara) não se faria esperar, com manifestações de grande intolerância para com este acrisolado defensor do calvinismo.

Os Azares de Valdemar Sorte GrandeOs Azares de Valdemar Sorte Grande, menção de honra no Prémio Literário João Gaspar Simões (2012) recria o ambiente da Figueira da Foz nos finais da Monarquia e inícios da I República. Valdemar é a personagem central do romance, filho de pescador, aparentemente sem hipóteses de ascensão social. Uma espécie de herói pícaro que nos contagia quando recorre aos mais diversos estratagemas – alguns dignos de censura – para romper com o círculo de pobreza que o aprisiona. O caminho está juncado de escolhos, mas ele não desiste. Às vezes sente-se derrotado. Cai e levanta-se. Faz lembrar o cavaleiro de Ariosto, em Orlando Furioso, que mesmo depois de morto continua a combater. A partir de 1910 Valdemar conhece a sedução pela política e a transição do caciquismo monárquico para o republicano franqueia-lhe as portas para uma realidade em que parece movimentar-se com notório à-vontade.

 Os Filhos de Salazar (2016) é outro romance histórico que abarca, em termos cronológicos, o período compreendido entre a ditadura militar que se estabelece após a queda da I República e o fim do Estado Novo, ditado pela Revolução de Abril de 1974. As personagens centrais deste romance, onde Salazar e o cardeal Cerejeira também estão presentes, são Mariano e Mariana, construções ficcionais que pretendem ilustrar o ambiente em que se movimentam os apoiantes e os opositores do regime. Ele é filho biológico do catedrático nacionalista Leandro de Albuquerque. Ela seria adoptada por Leandro após a morte dos pais. Mariano e Mariana, não o sendo, crescem como irmãos a quem são inculcados os mesmos valores, mas que acabam por calcorrear caminhos distintos. Essa trajectória de vida transportou-me, literalmente, para Novecento (1900), o monumento cinematográfico de Bernardo Bertolucci que entre outras temáticas aborda a vida de dois amigos de infância que cresceram juntos: Olmo (filho de camponeses e rendeiros) e Alfredo (oriundo de uma família de latifundiários). Na vida adulta enveredam por caminhos políticos e ideológicos distintos, que acabam por reflectir as suas origens sociais na Itália das primeiras décadas do século XX.

Os Filhos de SalazarVoltemos a Mariano e Mariana, cujos percursos de vida também vão ser distintos: ele, filho obediente, será padre, acomodado inicialmente ao regime e convencido de que o Estado Novo, para lá do Deus, Pátria e Família, colocava o bem-estar da população acima de quaisquer outros interesses (doce ilusão que o rodar dos anos se encarregaria por desfazer). Ela, rebelde, seguiria por caminhos transviados, em rota de colisão com a moral conservadora cultivada pelo poder político e pela Igreja Católica. Só que, como na vida as mudanças estão sempre a acontecer, tantas vezes de forma imperceptível, os dois enveredam, mais tarde, por opções e filosofias de vida que chegam a contrariar os pressupostos ideológicos a que inicialmente estiveram ancorados. O fim de algumas ilusões desfeitas, que acabaram por tombar, talvez exaustas, como andorinhas na lama. Esta mudança de rumo dos protagonistas é a metáfora que desmonta o consabido monismo ideológico do Estado Novo, para o qual só havia preto e branco, nada de cores intermédias: quem não é por nós é contra nós, quem não é salazarista é comunista. E, no entanto, havia uma franja muito significativa de população acomodada, castrada culturalmente, que não fazia ondas nem tinha qualquer coinsciência política. Gente mais treinada para obedecer do que para exercitar a liberdade; gente para quem, mais do que ser a favor ou contra a ditadura, o que interessava era a sobrevivência económica, o tratar da vidinha, nada de falar em política, porque o caladinho é o melhor. O regime agradecia.

Balizado entre as revoluções de 28 de Maio de 1926 e 25 de Abril de 1974, Os Filhos de Salazar é um livro de revoluções, onde as interiores não são as menos importantes; livro que fala dos filhos que o ditador não teve – viveu e morreu solteiro – mas deixou como herança espiritual e mental; finalmente, livro que nos mostra o que Portugal teria a ganhar se, depois de seminarista, Salazar tivesse chegado a padre católico.

O Crime de SerrazesEm 2017, novo romance: O Crime de Serrazes. Um crime que a 26 de Julho de 1917 vitimou, na casa das Quintãs, mais conhecida por Solar dos Malafaias (em Serrazes, S. Pedro do Sul) o licenciado Augusto Teles de Malafaia e foi cometido por familiares: um primo e o futuro cunhado. Um drama que encheu as bocas do mundo durante alguns anos, com dois julgamentos, culminando em condenação após uma segunda sentença mais benevolente, que a transcrição e integração nesta obra de depoimentos, notícias de imprensa e actas das audiências ajuda a perceber (os interessados na reconstituição do crime podem compulsar estas e outras peças processuais no livro publicado em 1922 pelo então advogado de acusação Cunha e Costa, Uma Causa Célebre. O Crime de Serrazes). Breda Carvalho oferece-nos este livro por ser mais dado à ficção do que à reconstituição factual, por lhe dar mais prazer “a liberdade de inventar a partir de uma base real” e por ter encontrado na obra de Cunha e Costa “a mola que me catapultou para a escrita do romance” (palavras do autor, na cerimónia de apresentação do livro, a 27 de Agosto de 2017, em Serrazes).

Morrer na Outra MargemMorrer na Outra Margem (2018) foi talvez o livro de António Breda cuja leitura mais prazer me deu. Excelente romance em que a personagem central, a poetisa modernista Judith Teixeira, contemporânea de Pessoa, acaba marginalizada por causa da sua poesia homoerótica, com aprensão e destruição das obras censuradas. Como é sabido, Pessoa escreveu o Aviso Por Causa da Moral, saindo a terreiro para defender António Botto – e também o autor de Sodoma Divinizada, Raúl Leal – e, ao mesmo tempo, fustigar o provincianismo da vida mental portuguesa do seu tempo. Com esta tomada de posição, Pessoa viria a atear uma polémica literária a que chamou “o caso mental português”, o qual acabaria por arrastar, além das Canções de António Botto, também Decadência, o livro de estreia de Judith Teixeira.

Ora como Régio também defendeu e promoveu literariamente o poeta das Canções, em António Botto e o Amor, uma questão se levanta: que mistérios terão levado Álvaro de Campos – cujo manto de indignação cobria apenas Leal e Botto – e Régio – que literalmente lhe desfecha o tiro de misericórdia, em 1927, quando afirma: “Todos os livros de Judith Teixeira não valem uma canção escolhida de António Botto” –  a não defender da mesma forma a poetisa, deixando que a sua obra resvalasse para os subterrâneos da clandestinidade? Apenas por ser mulher?  É que se Botto, talvez o nosso poeta maldito, à falta de um Rimbaud, deu ao país o calor das suas Canções, a poetisa sáfica não foi menos generosa nos seus poemas e no seu entranhado amor português. Dir-se-ia que a mentalidade portuguesa da época era já o “ovo da serpente” onde estaria a incubar o pequeno fascismo santacombadense, que acabaria por derrubar a I República poucos anos depois (1926).

Romance onde se cruzam as vidas de alguns poetas, há em Morrer na Outra Margem  diálogos ficcionados deliciosos, numa escrita onde confluem a audácia narrativa e o rigor poético, como acontece entre Fernando Pessoa e sua mãe (pp. 23-24), que me dispenso de transcrever para não subtrair aos possíveis leitores o prazer da descoberta. Romance, também, da marginalidade dos artistas. Uma obra magnífica, que não tem encontrado nem a atenção nem a expectativa benévola que o autor merece, porque quem escreve aspira a ser lido e comentado e os que fingem borrifar-se para isso costumam ser, afinal, os mais sôfregos.

A Odisseia do Espírito SantoPublicado em 2019, o livro A Odisseia do Espírito Santo arrebatou o Prémio Literário Carlos de Oliveira em 2018. Ainda não li a obra, pelo que me dispenso de a comentar, fazendo-o por interposta pessoa. Escreveu Miguel Real, com a autoridade que se lhe reconhece:  a obra “recorda ficcionalmente um episódio de heresia religiosa acontecido no século XVIII na aldeia de Vilarinho, em Mondim de Basto (Vila Real). Do ponto de vista do romance histórico, retrata com perfeição o modo como a religião pode evoluir de uma prática social de devoção a uma transcendência para uma prática nitidamente supersticiosa (…). De sublinhar, como importante no campo lexical, a fusão operada entre o léxico dos nossos dias e o do século XVIII na região de Trás-os-Montes, o que obrigou o autor a juntar, no final, para ilustração do leitor, um ‘glossário’ de inúmeros vocábulos. Com os dois romances referidos (este e O Fotógrafo da Madeira), António Breda Carvalho integrou o seu nome, com justiça, no actual panorama do romance histórico português” (Jornal de Letras, 10.04.2019, p. 14).

Fechando este capítulo: ao parabenizar o escritor pelos fecundos trinta anos de vida literária, convém referir que os três livros que têm por cenário o espaço geográfico do concelho de Oliveira do Bairro (In Vino Veritas, Acúrcio Correia da Silva e a Bairrada e agora A Banda Que Tocou Fora da Graça de Deus) extravasam o património concelhio: são, pelo menos, de toda a Bairrada, que também assim se engrandece. Para os que vivem na região dos pâmpanos e a sentem como sua, devia ser proibido esquecer António Breda Carvalho. O rude ofício da escrita pressupõe esforço e superação, porque nenhuma arte é fácil e o talento, quando existe, tem de ser trabalhado. É isso que tem feito o nosso autor bairradino, oferecendo-nos, sobretudo a partir de 2011, romances de inegável fôlego, bem urdidos e onde o prazer da escrita e algumas doses de refinado humor – num registo irónico, mas não inocente – são notórios.

Não é a primeira vez, nem será porventura a última, que Breda Carvalho dá nota do seu desencanto com o ofício de escritor. São gemidos culturais de quem se sente marginalizado e ignorado pela indústria cultural. Voltou a fazê-lo na apresentação do último “filho” que gerou. As razões são conhecidas e remetem para o verdadeiro silvedo que é hoje a república das letras: a dificuldade que os chamados autores de província sentem para publicar as suas obras, assim como quem escreve para uma gaveta de ilusões; o espaço da criação cada vez mais reduzido às lógicas do mercado, com a maioria das editoras a publicar apenas o que comercialmente lhe interessa, numa verdadeira submissão do acto criativo a cálculos de rendibilidade imediata; os livros vendem pelo marketing e pela marca que os promove e já não pela qualidade que lhes transmite o escritor; o êxito do escritor é ditado cada vez mais pelas  habituais capelinhas literárias do elogio mútuo. E fiquemos por aqui.

Depois de me ter confessado coisas do tipo “começo a sentir-me cansado e amaldiçoo-me por estar viciado na droga da escrita”, apetece pedir a Breda Carvalho para levar a sério o repto lançado pelo seu antigo professor de literaturas africanas e brasileira, Pires Laranjeira, no posfácio a Letras Sob Protesto, de Arsénio Mota: “Escreve mais, pá, sempre!”. Deixe-se guiar pela compulsão da escrita quando ela de si se apodera, mas evite deixar-se manietar pela desvalorização crescente do capital simbólico que são as ideias e os livros em que elas se materializam, porque o acto da escrita está muito para lá da mera alienação do homem condenado e reduzido ao dinheiro e à mercadoria. Continue a brindar-nos com ironias finas como esta, depois do novo alento que ganhou com O Fotógrafo da Madeira: “Talvez tenha de escrever O Fotógrafo dos Açores”. Mantenha-se fiel ao que escreveu no primeiro dia de 2016: “inexoravelmente continuarei a escrever, cumprindo a minha voluntária prisão perpétua”.

Sim, retome a bola e jogue, deixe-se guiar pelo prazer da escrita, para seu e nosso deleite, porque é essa a sua condição, também presente nestes versos de José Gomes Ferreira, que agora lhe devolvo: “Mas é do destino / de quem ama / ouvir um violino / até na lama”.


Obras consultadas:

ABREU, Luis Machado de, Portugal Anticlerical. Uma História do Anticlericalismo. Gradiva, 2019

CARVALHO, David Luna de, “O significado das acções colectivas de repertório nacional na I República”. Ler História, n.º 59, 2010, pp. 128-129; idem, Os Levantes da República (1910-1917). Resistências à laicização e movimentos populares de repertório tradicional na 1.ª República Portuguesa. Edições Afrontamento, Março de 2011.

CATROGA, Fernando, O Republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de Outubro de 1910. Coimbra, Faculdade de Letras, 1991

GRANJO, Silas, Troviscal Republicano. Banda Excomungada, Clero Interdito (1922-1939), (2010). Uma  primeira versão deste trabalho foi inicialmente publicada em Actas do Colóquio- O Anticlericalismo Português: História e Discurso, Edição da Universidade de Aveiro, Outubro de 2002, pp. 225-306.

MADUREIRA, Arnaldo, A Questão Religiosa na I República. Contribuição para uma autópsia. Livros Horizonte, 2003.

MOURA, Maria Lúcia de Brito, A Guerra Religiosa na Primeira República. Lisboa, Editorial Notícias, 2004.

PATO, Maria Leocádia, Rio da Memória. A Banda do Troviscal (1997).

PINTO, António Costa, Os Camisas Azuis. Ideologia, Elites e Movimentos Fascistas em Portugal (1914-1945). Lisboa, Editorial Estampa, 1994.

SANCHIS, Pierre, Arraial: Festa de um Povo – as romarias portuguesas, pp.205-206.

SANTOS, Miguel Dias, A Contra-Revolução na I República (1910-1919). Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro 2010.

 

Dois Papas: o filme e a polémica

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Vi, há dias, Dois Papas, do cineasta brasileiro Fernando Meirelles. Um filme que nos mostra a perda de espiritualidade, o peso e a influência da Igreja Católica na sociedade e o eterno debate entre conservação (a de Ratzinger, conhecido como “rottweiler de Deus”) e renovação (a de Jorge Bergoglio). O arco temporal tem início com a morte de João Paulo II, avança para a renúncia de Bento XVI e culmina com o pontificado do Papa Francisco.

Bento XVI, o consistente teólogo alemão que prefere o uso do latim, com vincadas preocupações escatológicas, sisudo e inflexível, é interpretado de forma primorosa por Anthony Hopkins. Francisco, o jesuíta argentino, bem menos formal, que assume gostar de futebol e de dançar o tango, capaz de trautear, no interior do Vaticano, Dancing Queen dos Abba, beneficia também da excelente interpretação de Jonathan Pryce.

Podemos falar de diferentes cosmovisões, do inevitável confronto de personalidades entre o temperamento germânico e o latino. Só que o filme talvez seja um tanto injusto para Bento XVI, por tender para a hagiografia de Francisco. Ratzinger encarna o papel de vilão, do homem que prefere almoçar ou jantar sozinho mesmo quando tem visitas. Bergoglio é-nos apresentado como um homem mais popular. Apenas alguns exemplos: não se inibe de saborear uma fatia de pizza ao ar livre, numa barraca de Roma; uma vez eleito, abdica dos sapatos vermelhos que muitos identificam como símbolo de vaidade, quando na verdade representam um símbolo de tradição. E também abdicou de outras vestes, ao ponto de o ouvirmos dizer no filme, no preciso momento em que assume essa rejeição: “não estamos no Carnaval”.

Ora é preciso dizer que algumas vestes podem ter tanto de simbólico como de ridículo. Se é isso que muitos pensam do solidéu, do barrete cardinalício e até de certas rendas, não é menos verdade que esse vestuário também funciona como veículo de comunicação e por isso mesmo de poder. E já agora: usar trajes em momentos especiais não é apenas apanágio da Igreja Católica. Outras instituições o fazem, como as universidades e os tribunais. O problema, quanto a mim, é de outra natureza: acredito que é possível prescindir da ostentação sem perder a dignidade. Esta pode estar mais próxima da simplicidade do que aquela.

Apesar de não ter sido escamoteada a ambiguidade que o cardeal de Buenos Aires assumiu perante a ditadura militar argentina (1976-1983) é nele que o filme concentra alguns gestos – digamos assim – revolucionários. No entanto, há um gesto de Bento XVI talvez ainda mais revolucionário e que o filme não explora: a sua renúncia – que é também dessacralização – ao papado. Esse gesto garantiu aos católicos a possibilidade de terem no seu seio dois Papas vivos: um emérito e o outro em pleno exercício de funções. Apesar do título do filme ser Dois Papas, ele centra-se, sobretudo, no percurso de vida do actual pontífice, dando pouca atenção ao percurso de Ratzinger. Digamos que o filme lança mão do conhecido recurso psicológico da empatia, com inclinação evidente para o Papa Francisco. Pena não ter sido capaz de nos fazer simpatizar com um Papa sem apoucar a imagem daquele que o precedeu.

Intimidade

Dito isto, vamos ao que mais apreciei neste filme. O encontro ficcionado entre os dois Papas serve de pretexto para discutir os problemas que abalam a Igreja Católica: a pedofilia, o celibato dos padres (S. Pedro era casado e a exigência do celibato só acontece no século XII) e a ordenação das mulheres, entre outros. Discordâncias, sim, mas respeitosas. Para lá da excelência dos actores e da beleza da fotografia e dos cenários, retive a riqueza de algumas expressões, como esta: “A confissão lava a alma ao pecador, não ajuda a vítima”. E retive sobretudo os diálogos bem humorados, com algumas ampolas de riso à mistura, como este em que Bergoglio pergunta a Ratzinger:

– Sabe a história dos dois seminaristas que gostavam de fumar? O primeiro dirige-se ao seu guia espiritual e pergunta:

– Padre, é permitido fumar durante a oração?

– Não, claro que não.

O segundo, que era jesuíta, disse ao amigo:

– Irmão, estás a fazer a pergunta errada. Então, dirige-se ao guia espiritual e pergunta:

– Padre, é permitido orar enquanto se fuma?

– Sim, orar e fumar ao mesmo tempo.

(comentário de Ratzinger: é uma anedota tonta. Orar e fumar ao mesmo tempo é impossível).