A Banda que Tocou Fora da Graça de Deus (romance de António Breda Carvalho)

Ao completar trinta anos de vida literária (1989-2019) António Breda Carvalho brinda-nos com um novo romance. O livro foi apresentado por Pedro Calheiros, professor da Unversidade de Aveiro, no dia 7 de Dezembro de 2019, no salão nobre da Câmara Municipal de Oliveira do Bairro.

Apesar de ser sábado, escassa assistência para uma obra que recria e ficciona acontecimentos vividos no Troviscal, freguesia do concelho de Oliveira do Bairro, distrito de Aveiro, com abundantes referências a personalidades que se destacaram na região da Bairrada no primeiro quartel do século XX. Descontados os elementos que presidiam à mesa e respectivos familiares, estariam na sala entre dez a quinze pessoas. Dá que pensar, sobretudo quando, por essa altura, um relatório Pisa nos alertava que há hoje mais jovens a ler só por obrigação e a considerar a leitura uma perda de tempo.

Com colaboração diversa na imprensa regional, bem se tem esforçado o autor, ao longo dos anos, para nos mostrar a importância da leitura: já em 1997 Breda Carvalho denota preocupação com o índice de leitura dos portugueses. Entre citações de Petrarca, Voltaire e Aquilino Ribeiro, fala-nos do livro como fonte de cultura e da literatura enquanto forma privilegiada de conhecimento, por nos revelar “a alma que o rosto dos factos encobre”, as infinitas vidas que se condensam em cada ser humano (Latitude, suplemento cultural do semanário O Aveiro, n.º 10, Maio/97).

1. O livro

Capa do livroO romance abre com um importante prefácio de Silas Granjo, neto do fundador da Banda, onde se enumeram as peripécias de um conflito que a opôs aos representantes da Igreja Católica entre 1922 (início da excomunhão) e 1939 (fim do interdito). Está lá praticamente tudo o que de mais significativo há a registar nesses conturbados dezassete anos. O povo do Troviscal, desagradado com o que considerava ser uma perseguição das autoridades eclesiásticas à sua Banda Escolar, resolve também interditar todos os padres do exercício de qualquer cerimónia religiosa nos limites da freguesia. Anota Silas Granjo: “Imagine-se – exercício bem difícil nos tempos de hoje – cinco anos sem casamentos católicos, baptizados, enterros, confissões, festas religiosas, missas e sermões, em toda a freguesia!” (p. 14).

Prefácio importante – repita-se – porque se os romances históricos, onde podemos encontrar vários subgéneros, ajudam a compreender épocas já distanciadas, eles podem gerar, também, o efeito perverso do sincretismo que torna difícil distinguir a ficção da realidade. Dito de outro modo: os romances históricos podem induzir os leitores à confusão entre factos históricos e estórias, afectando a construção de uma memória histórica credível. Não é o caso deste livro, onde o autor parece conciliar, com evidente sucesso, a ficção com os dados da História.

Na apresentação do livro, Pedro Calheiros anotou que a leitura do romance lhe fez lembrar O Hissope, poema herói-cómico e uma sátira às autoridades eclesiásticas da época, da autoria de António Dinis da Cruz e Silva – fundador da Arcádia Lusitana, em 1756 – que remete para as cizânias que rebentaram entre o bispo de Elvas e o deão do cabido, por este último ter rompido o antigo costume de obsequiar o hissope (ou aspersório, instrumento que se utiliza para aspergir água benta)  ao bispo, sempre que este se deslocava à Sé. E também não deixou de encontrar semelhanças entre esta obra e as Guerras do Alecrim e Manjerona, de António José da Silva, “o Judeu”, que acabaria consumido pelas fogueiras da Inquisição. Na verdade, as desavenças entre o clero católico e a Banda do Troviscal fazem lembrar esses arrufos e rivalidades entre os dois ranchos carnavalescos desavindos, o do alecrim e o da manjerona.

Em nota prévia, o autor lembra aos mais incautos que esta obra de ficção incorpora personagens e episódios inventados, isto é, unicamente produtos da sua imaginação; enquanto romace histórico, narra acontecimentos verídicos relacionados com a Banda, “adaptados à organização e à economia do romance”, apesar de não respeitarem a ordem cronológica dos factos. Ao contrário dos que começam a delinear alguma coisa, mas logo percebemos que não têm qualquer história para contar, neste livro delicioso que é A Banda que Tocou Fora da Graça de Deus António Breda Carvalho ficciona os episódios rocambolescos que envolveram a Banda Escolar do Troviscal, o seu fundador – professor e maestro José de Oliveira Pinto de Sousa – e as autoridades eclesiásticas que se lhes opunham (sobretudo párocos locais, arcipreste e bispo de Coimbra).

Dois acontecimentos delimitam o início e o fim da narrativa: o primeiro remete-nos para uma taberna da Póvoa do Carreiro, lugar da freguesia onde uma altercação nocturna termina com um homicídio aparentemente acidental, e com um funeral civil, acompanhado pela Banda, que ditaria a sua excomunhão; o último tem a ver com o fim do interdito, exarado num decreto de Setembro de 1939 por D. João Evangelista de Lima Vidal, então bispo da recém restaurada diocese de Aveiro.

Pormenor curioso: ao longo da narrativa vamos encontrando frases que são outras tantas referências a títulos de obras de escritores portugueses, desconhecendo se o autor faz isso de forma deliberada ou inconsciente: “Foi no padeiro uma revelação extraordinária, tal como a queda de um anjo” (p. 133, alusão óbvia a um romance de Camilo);  o mesmo padeiro que, depois de distribuir carcaças e bicos, “já se perde de vista, ao fundo, na curva da estrada” (p. 134, a fazer lembrar o livro de Ferreira de Castro, A Curva da Estrada); finalmente, ao descrever um funeral após a excomunhão da Banda, Breda Carvalho escreve: “Tarde ensolarada, não é Março desavindo, (p. 142, a remeter para o título de uma obra de Mário Ventura).

Há trechos que parecem tributários do realismo mágico dos autores sul-americanos. Atentemos neste, que remete para a presença da banda em Coimbra no ano de 1926, já derrubada a I República, para actuar nos festejos da Rainha Santa: “este milagre faz pasmar: saem rosas brancas do pavilhão do trompete, esvoaçam no ar como pombas, e sobem ao alto de Santa Clara, ao convento, onde pousam na mão da Rainha Santa Isabel” (p. 159). Nem o milagre lhes valeu. A Banda acabaria por passar a noite nos calabouços do governo civil e ser recambiada, na madrugada seguinte, para a Estação Velha, com ordem de regresso a casa.

Neste romance, Breda Carvalho recusa-se a dar gradação moral às diferentes personagens, sejam elas monárquicas ou republicanas, religiosas ou laicas, apesar de as saber influenciadas pelos acontecimentos históricos, políticos e sociais em que se envolvem e enredam. Elas impõem-se mais pela autenticidade psicológica do que pelo maniqueísmo. O escritor bairradino prefere colocar-se na pele de cada uma delas e ser fiel ao seu horizonte mental, intuindo-lhes valores que as norteiam, condutas diárias, as lutas que travam e os inevitáveis fracassos e conquistas.

E isto sim, é literatura. E da melhor.

2. Contexto político-social

A confrontação aberta entre a  Banda do Troviscal e o clero católico, com início no ano de 1922, ganha contornos mais nítidos se tivermos em conta que a preocupação republicana em reduzir a presença de sinais exteriores de expressão religiosa no espaço público é anterior à própria Lei de Separação do Estado das Igrejas, de 20 de Abril de 1911, na altura apresentada como “intangível”, “cúpula do edifício republicano” e cuja execução gerou adesões incondicionais e críticas permanentes. Terreno fértil, sem dúvida, para a construção de memórias contraditórias e divergentes, que encontramos espelhadas na imprensa da época. Esta lei – e a política religiosa do governo provisório de Afonso Costa – suscitam polémica pelo seu radicalismo laicista. Não gerou sequer consenso entre os republicanos mais esclarecidos (Basílio Teles, ou Sampaio Bruno, entre outros). O ensaio de Basílio Teles, de 1913, “A Questão Religiosa”, é deveras ilustrativo dessas discórdias.

Lei-SeparaçãoUma análise das resistências à política religiosa da I República mostra que a legislação que mais potenciou certo tipo de conflitos não foi a Lei de Separação, mas os chamados decretos proibitivos: expulsão dos jesuítas, extinção das ordens religiosas, abolição do juramento religioso, proibição do ensino confessional, a secularização dos cemitérios, o reconhecimento do divórcio, a lei que introduziu o registo civil obrigatório e a que extinguiu a Faculdade de Teologia. A Lei de Separação viria apenas agravar esse ambiente de enorme tensão: no seu articulado, dispunha que a religião católica deixava de ser religião do Estado e garantia o exercício de culto nos locais próprios – leia-se: fora do espaço público – a todas as Igrejas e confissões religiosas, interditava a publicação de bulas e pastorais e remetia o culto para a esfera da privacidade. É a partir daqui que a Igreja Católica vai encetar uma luta sem tréguas contra o novo poder triunfante, tudo fazendo para que fossem retiradas das novas leis algumas disposições mais gravosas. Mais do que separada do Estado, a Igreja sentia-se perseguida, desconsiderada e despojada dos meios necessários ao livre exercício da sua acção.

Tal como noutras zonas geográficas do Norte e Centro de Portugal, o concelho de Oliveira do Bairro e a própria Bairrada, a que Troviscal pertence, caracterizavam-se por um forte enquadramento das comunidades rurais num clero nada predisposto a transigir com as novas leis republicanas. Assim se explica que algumas localidades deste concelho não ficassem imunes a este tipo de conflitos, com a Igreja Católica a considerar que a governação republicana deslizava cada vez ma para a intolerância. Verdadeiras guerras centradas em questões tão variadas como a nomeação de comissões cultuais (associações laicas, que entre outras funções administravam os bens nacionalizados e a gestão da vida religiosa das paróquias) que a Igreja considerava uma intromissão inaceitável no seu funcionamento interno; a associação dos padres às conspirações monárquicas, a sua expulsão das residências paroquiais – muitas vezes seguida de desterro – as revoltas contra os arrolamentos dos bens da Igreja, os obstáculos levantados às procissões religiosas, as polémicas em torno do toque dos sinos, ou até os incidentes relacionados com a visita pascal, como aconteceu em 1915, em Sangalhos, onde paroquiava Acúrcio Correia da Silva.

Vale a pena referir que em 1922 o afrontamento directo entre a Igreja e o Estado já não pendia tão favoravelmente para este último, como sucedera nos anos que antecederam a I Guerra Mundial (1914-1918). Terminada a guerra, ascende ao poder Sidónio Pais e assiste-se ao revivalismo monárquico, ao mesmo tempo que se anulam as penas de expulsão e desterro de vários bispos, se assiste ao restabelecimento das relações diplomáticas com a Santa Sé e se introduzem alterações significativas na Lei de Separação. Afonso Costa exilara-se em França. É no contexto desse apaziguamento de relações que devemos entender a imposição do barrete cardinalício ao futuro cardeal, pelo Presidente da República António José de Almeida, no ano de 1923.

Num concelho tradicionalmente rural, conservador e profundamente católico, como era o de Oliveira do Bairro, a Igreja ganhava novo fôlego, um renovado sopro anímico. Assim se explica a posição de força que a levou a decretar o interdito à Banda, proibindo-a de participar em festas e outros actos religiosos, embora esta tenha reagido com o mesmo ar desafiador que levou Martinho Lutero, em 1520, a queimar em praça pública a bula papal que o excomungou da Igreja Católica.

Do mesmo modo, quando em 1939 cessa o interdito, já a Igreja Católica tinha recuperado muito do seu poder e privilégios. Em 1940, é assinada a Concordata entre o Estado português e a Santa Sé. As paróquias passam a dispor livremente de bens essenciais aos fins que prosseguem e as instituições católicas recuperam a totalidade dos bens que lhes pertenciam em 1910 e que ainda estavam na posse do Estado, nomeadamente templos e residências paroquiais.

Rio da MemóriaPara melhor e mais completo ennquadramento histórico deste romance, os interessados podem consultar, com evidente proveito, dois livros que abordam os episódios ocorridos com a Banda do Troviscal. O primeiro é Rio da Memória. A Banda do Troviscal, de Maria Leocádia Pato, editado em 1997. O segundo é da autoria de Silas Granjo e tem por título: Troviscal Republicano. Banda Excomungada, Clero Interdito (1922-1939), editado em 2010, ano de centenário da I República. Obras que podem ser complementadas com a imprensa regional e local da época, já que estamos a falar – na opinião de Vasco Pulido Valente – no indicador mais digno de fé, mas também no mais negligenciado. Consulta necessária, mas feita com olhar distanciado, se possível cruzando informação entre jornais monárquicos e republicanos.

Troviscal RepublicanoÉ que sobre a figura do maestro da Banda e outros episódios ocorridos no Troviscal e no concelho durante a I República – nomeadamente em 1915, no consulado da ditadura de Pimenta de Castro – há trabalhos impugnáveis. Alguns deles já foram denunciados por Silas Granjo, nomeadamente os contidos em Troviscal. Visão histórico-cultural, da autoria do escritor bairradino Armor Pires Mota. A forma como apouca a figura do maestro José de Oliveira Pinto de Sousa, formando e emitindo opinião a partir da consulta de um jornal monárquico que lhe era notória e ideologicamente adverso – O Povo de Anadia – mostra bem como o juízo actual so­bre as personalidades da I República não pode deixar para segundo plano os juízos que delas fizeram os seus contemporâneos. Era seguramente diferente, bem mais lisonjeira e digna de crédito, a opinião que do professor e maestro tinham os seus alunos, discípulos e músicos.

Há personalidades da Bairrada – é o caso dos padres Joaquim Ferreira Maneta, Abel da Conceição e Silva, Abel Condesso, ou até António Duarte Sereno, o visconde de Bustos – que protagonizaram episódios menores da enorme bagunça político-ideológica em que a República rapidamente se transformou após o 5 de Outubro, ou mesmo antes. Ilustrar esses episódios sem os contextualizar, sem conseguir identificar e analisar o significado histórico dessa bagunça, pouco acrescenta de analiticamente relevante à história política do republicanismo na Bairrada. Essa não é, seguramente, a melhor ponta para pegar no intrincado novelo político-ideológico da República. Aqui ficam alguns breves traços biográficos dessas personalidades, sobretudo das que aparecem ao longo da obra:

Abel Condesso, padre não citado no livro mas que afinava pelo mesmo diapasão dos padres Abel da Conceição e Ferreira Maneta, fustigava os republicanos radicais mas não enjeitava radicalismos de sinal contrário: em 1932 encontramo-lo nas fileiras do nacional-sindicalismo, os camisas azuis de Rolão Preto, grupo de direita radical empenhado na fascização do regime, que se opunha à própria União Nacional e por isso viria a ser ilegalizado por Salazar. Em Anadia, este grupo ridicularizava constantemente a União Nacional local. Em Agosto de 1932, numa tentativa para demitir o secretário da Câmara, o grupo invadiu o edifício onde se encontrava reunida, expulsou os seus elementos e partiu o mobiliário. O assalto ficaria impune. Entre os participantes estava o padre Abel Condesso, que continuou ao lado de Rolão Preto e foi dirigente da organização na fase clandestina.

Abel da Conceição e Silva, pároco de Oiã, era um inimigo declarado do regente da Banda. Director do jornal monárquico Echos do Vouga, que se publicou entre 1908 e 1911, esteve envolvido no atentado da Ponte do Pano (Oiã), em 1 de Outubro de 1911. À revelia do quinto mandamento, a ideia do padre Abel era fazer explodir a ponte por onde iria passar um comboio apinhado de republicanos deslocados para o Norte, a fim de pôr cobro às conspirações monárquicas contra o novo regime. Era arcipreste em Oliveira do Bairro quando, em 1922, ocorrem os incidentes que levariam ao interdito da Banda, excomunhão em que se empenhou de corpo e alma.

Joaquim Ferreira Maneta paroquiou Oliveira do Bairro nesses anos conturbados, a partir de 1919. Não era menos polémico que o padre Abel. Assumido monárquico, também se envolveu no atentado da Ponte do Pano e num outro, na estação ferroviária de Oliveira do Bairro, onde chegaram a ser desaparafusados alguns carris.

Nesta contenda, o jornal Alma Popular era a verdadeira tribuna local dos republicanos. O primeiro número é de 5 de Outubro de 1918 e o quinzenário mantém a publicação até 1941. Tiago Ribeiro, juntamente com Manuel dos Santos Pato, é fundador e um dos principais colaboradores. Entre as personalidades republicanas da região citadas neste romance, a mais representativa será Tomás da Fonseca, anticlerical, racionalista e livre-pensador de Mortágua, autor de obras tão significativas e polémicas como Fátima, O Santo Condestável e Na Cova dos Leões.

Os valores alegadamente defendidos por estas ou outras personalidades, sejam elas monárquicas ou republicanas, não podem ser vistos – como às vezes são – como “essências” indiscutíveis contrapostas a outras tantas “essências” de sinal contrário. Muitos dos pormenores relatados na imprensa da época são historicamente irrelevantes. Convém não nos perdermos com eles: apenas podem ter interesse para um anedotário da troca de mimos entre republicanos e monárquicos durante alguns anos após o 5 de Outubro e por isso interessa resgatar a narrativa da sua repetitiva circularidade.

Apesar de continuar a não ser pacífica a análise do regime republicano português, alguns autores parecem incapazes de fazer história sem tropeçar nos preconceitos. É o caso dos que se preocupam, apenas, em o denegrir e contribuir para o seu descrédito, sem dar nota dos traços de modernidade que também o caracterizam. A abordagem predominantemente normativa e axiológica que alguns trabalhos fazem do alegado “radicalismo jacobino” da República, no seu período inicial, é às vezes tão ideológica quanto o próprio jacobinismo. As categorias utilizadas por esses autores são eminentemente “essencialistas”, isto é, tomadas como naturais e destituídas de problematização histórica e sem grandes voos interpretativos. Não raras vezes omitem ou deturpam factos para afirmar ideologias. Esquecem, também, que a História não é um ajuste de contas com o passado. Nem um tribunal que decreta sentenças definitivas. A História não se faz para agradar a correntes ideológicas: faz-se para reconstruir, na medida do possível, a verdade dos factos.

3. O autor: 30 anos de carreira literária

António Manuel de Melo Breda Carvalho nasceu em Mealhada (1960), onde é professor do Ensino Básico no respectivo Agrupamento de Escolas. É licenciado em Estudos Portugueses pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e mestre pela Universidade de Aveiro, com uma dissertação sobre Acúrcio Correia da Silva – padre-poeta de intensa paixão regionalista, um luzeiro de cultura com prosa e versos derramados em revistas e jornais da época e grande impulsionador da Plêiade Bairradina, movimento que procurou conferir à região da Bairrada a expressão literária, artística e cultural que lhe faltava.

Num texto repassado de ironia, publicado no Jornal de Letras em Abril de 2019, o nosso autor confessa que o único livro que havia em casa dos pais era uma tia idosa, de nome Gracinda, que o embalava à noite com histórias de encantar, nos tempos recuados da sua meninice. O verdadeiro contacto físico com os livros aconteceria mais tarde, aprendidas as primeiras letras, graças à Biblioteca Itinerante da Gulbenkian.

A verdade no VinhoEstreia-se a publicar aos 28 anos, com In Vino Veritas, (1989) um livro de contos com o qual obtém, ex-aequo, o Prémio Literário Região da Bairrada. São catorze histórias de ambiência bairradina, com saborosos trechos como este: “Sentia-se feliz no afago das videiras. Imaginava as dornas a verter cachos nos sulcos dos caminhos, os tanques na fermentação rebelde do mosto, as pipas a estalarem prenhes de vinho” (p. 20). Um hino de louvor às raízes regionais, roteiro sentimental escorado numa terminologia fiel aos vocábulos da região, onde o vinho está sempre presente, algumas vezes no estado alterado de quem bebeu para lá da conta.

Segue-se a maré dos contos. Em 1991 foi distinguido com o Prémio de Conto Câmara Municipal de S. Pedro do Sul (menção honrosa) e também com o Prémio de Conto Joaquim Namorado (Câmara Municipal da Figueira da Foz, 1.º prémio, ex -aequo) com o livro A Ver Navios. O escritor e poeta João de Mancelos viu nesta colectânea “uma revelação muito positiva que agita as águas paradas do conto na região centro” (Latitude, suplemento cultural de O Aveiro, n.º 5, Junho, 1995). Outros contos premiados: O Canto e o Conto do Leitor (Prémio Jornal de Notícias, 1991); No Silêncio da Casa (Prémio Literário Horácio Bento de Gouveia, 1994) e A Mala Verde (Prémio Literário Idalécio Cação, 2012).

Em 1993 publica O Buçaco na Literatura, com capa de Domingos Pires (pintor da Pampilhosa) uma antologia de vinte poetas e prosadores, situados entre o século XVI e o século XX, um “regaço bem cheio de textos literários que imortalizaram o Buçaco” (introdução). Em 1997, sai nova antologia: Montemor-o-Velho: Percursos Literários. Em 2003 é publicada a antologia Escritas e Escritores da Bairrada, com selecção de textos, anotações e estudo introdutório da responsabilidade de António Breda Carvalho.

Há também lugar para duas monografias locais: Mealhada. A Escrita do Tempo (1997) e Misericórdia da Mealhada. Um Século de História (2006), obra que nos dá a conhecer os cabouqueiros e outros impulsionadores da Misericórdia – fundadores e provedores – os irmãos beneméritos e os serviços sociais prestados, enfim, o verdadeiro pulsar de uma instituição de solidariedade social. Livro útil para quem se interessa por conhecer melhor o passado do concelho da Mealhada, nomeadamente ao nível da sua experiência associativa.

As Portas do Céu 3 2As Portas do Céu (2001) é o seu primeiro romance. Obra de carácter histórico-religioso, centrada na história do convento de Santa Cruz do Buçaco, que foi habitado entre os séculos XVII e XIX pelos monges carmelitas descalços, teve menção honrosa do Prémio António Feliciano de Castilho, com o júri a salientar um “estilo vivo e estimulante, com uma excelente argumentação teológica (…) com algumas pequenas jóias no campo da significação e da linguagem”.

O ano de 2011 é um marco importante na carreira literária do escritor. O Prémio Literário João Gaspar Simões atribuído ao seu segundo romance, O Fotógrafo da Madeira, viria a funcionar como estímulo e alavanca para outros títulos que são o fruto de uma mais empenhada e amadurecida dedicação à escrita. Como o próprio confessa: “A partir de então, cada conto e cada romance foram actos de amor que me saciaram (Jornal de Letras, 24.04.2019).

O Fotógrafo da MadeiraO Fotógrafo da Madeira, “talvez um dos melhores romances sobre aquela ilha editados este século”, na opinião de Miguel Real (Jornal de Letras, 10.04.2019), traça um retrato do ambiente anti-liberal em meados do século XIX, da crise do comércio do vinho, do desemprego em grande escala, da pobreza crónica e do flagelo do analfabetismo. É desse caldo social que emergem personalidades vigorosas como o madeirense estrangeirado Afonso Elias (amante de fotografia que regressa de Paris para gerir a Quinta da Colina e transporta consigo os ventos de mudança que tanto desagradam ao conservadorismo das forças vivas da região) ou o médico protestante Robert Reid, que mal chega ao Funchal, em 1838, procura ocupar o espaço de abandono a que Igreja Católica tinha condenado a população, erguendo escolas e até um hospital e promovendo a evangelização popular. A reacção das autoridades locais, mancomunadas com a Igreja Católica (governador, bispo, presidente da câmara) não se faria esperar, com manifestações de grande intolerância para com este acrisolado defensor do calvinismo.

Os Azares de Valdemar Sorte GrandeOs Azares de Valdemar Sorte Grande, menção de honra no Prémio Literário João Gaspar Simões (2012) recria o ambiente da Figueira da Foz nos finais da Monarquia e inícios da I República. Valdemar é a personagem central do romance, filho de pescador, aparentemente sem hipóteses de ascensão social. Uma espécie de herói pícaro que nos contagia quando recorre aos mais diversos estratagemas – alguns dignos de censura – para romper com o círculo de pobreza que o aprisiona. O caminho está juncado de escolhos, mas ele não desiste. Às vezes sente-se derrotado. Cai e levanta-se. Faz lembrar o cavaleiro de Ariosto, em Orlando Furioso, que mesmo depois de morto continua a combater. A partir de 1910 Valdemar conhece a sedução pela política e a transição do caciquismo monárquico para o republicano franqueia-lhe as portas para uma realidade em que parece movimentar-se com notório à-vontade.

 Os Filhos de Salazar (2016) é outro romance histórico que abarca, em termos cronológicos, o período compreendido entre a ditadura militar que se estabelece após a queda da I República e o fim do Estado Novo, ditado pela Revolução de Abril de 1974. As personagens centrais deste romance, onde Salazar e o cardeal Cerejeira também estão presentes, são Mariano e Mariana, construções ficcionais que pretendem ilustrar o ambiente em que se movimentam os apoiantes e os opositores do regime. Ele é filho biológico do catedrático nacionalista Leandro de Albuquerque. Ela seria adoptada por Leandro após a morte dos pais. Mariano e Mariana, não o sendo, crescem como irmãos a quem são inculcados os mesmos valores, mas que acabam por calcorrear caminhos distintos. Essa trajectória de vida transportou-me, literalmente, para Novecento (1900), o monumento cinematográfico de Bernardo Bertolucci que entre outras temáticas aborda a vida de dois amigos de infância que cresceram juntos: Olmo (filho de camponeses e rendeiros) e Alfredo (oriundo de uma família de latifundiários). Na vida adulta enveredam por caminhos políticos e ideológicos distintos, que acabam por reflectir as suas origens sociais na Itália das primeiras décadas do século XX.

Os Filhos de SalazarVoltemos a Mariano e Mariana, cujos percursos de vida também vão ser distintos: ele, filho obediente, será padre, acomodado inicialmente ao regime e convencido de que o Estado Novo, para lá do Deus, Pátria e Família, colocava o bem-estar da população acima de quaisquer outros interesses (doce ilusão que o rodar dos anos se encarregaria por desfazer). Ela, rebelde, seguiria por caminhos transviados, em rota de colisão com a moral conservadora cultivada pelo poder político e pela Igreja Católica. Só que, como na vida as mudanças estão sempre a acontecer, tantas vezes de forma imperceptível, os dois enveredam, mais tarde, por opções e filosofias de vida que chegam a contrariar os pressupostos ideológicos a que inicialmente estiveram ancorados. O fim de algumas ilusões desfeitas, que acabaram por tombar, talvez exaustas, como andorinhas na lama. Esta mudança de rumo dos protagonistas é a metáfora que desmonta o consabido monismo ideológico do Estado Novo, para o qual só havia preto e branco, nada de cores intermédias: quem não é por nós é contra nós, quem não é salazarista é comunista. E, no entanto, havia uma franja muito significativa de população acomodada, castrada culturalmente, que não fazia ondas nem tinha qualquer coinsciência política. Gente mais treinada para obedecer do que para exercitar a liberdade; gente para quem, mais do que ser a favor ou contra a ditadura, o que interessava era a sobrevivência económica, o tratar da vidinha, nada de falar em política, porque o caladinho é o melhor. O regime agradecia.

Balizado entre as revoluções de 28 de Maio de 1926 e 25 de Abril de 1974, Os Filhos de Salazar é um livro de revoluções, onde as interiores não são as menos importantes; livro que fala dos filhos que o ditador não teve – viveu e morreu solteiro – mas deixou como herança espiritual e mental; finalmente, livro que nos mostra o que Portugal teria a ganhar se, depois de seminarista, Salazar tivesse chegado a padre católico.

O Crime de SerrazesEm 2017, novo romance: O Crime de Serrazes. Um crime que a 26 de Julho de 1917 vitimou, na casa das Quintãs, mais conhecida por Solar dos Malafaias (em Serrazes, S. Pedro do Sul) o licenciado Augusto Teles de Malafaia e foi cometido por familiares: um primo e o futuro cunhado. Um drama que encheu as bocas do mundo durante alguns anos, com dois julgamentos, culminando em condenação após uma segunda sentença mais benevolente, que a transcrição e integração nesta obra de depoimentos, notícias de imprensa e actas das audiências ajuda a perceber (os interessados na reconstituição do crime podem compulsar estas e outras peças processuais no livro publicado em 1922 pelo então advogado de acusação Cunha e Costa, Uma Causa Célebre. O Crime de Serrazes). Breda Carvalho oferece-nos este livro por ser mais dado à ficção do que à reconstituição factual, por lhe dar mais prazer “a liberdade de inventar a partir de uma base real” e por ter encontrado na obra de Cunha e Costa “a mola que me catapultou para a escrita do romance” (palavras do autor, na cerimónia de apresentação do livro, a 27 de Agosto de 2017, em Serrazes).

Morrer na Outra MargemMorrer na Outra Margem (2018) foi talvez o livro de António Breda cuja leitura mais prazer me deu. Excelente romance em que a personagem central, a poetisa modernista Judith Teixeira, contemporânea de Pessoa, acaba marginalizada por causa da sua poesia homoerótica, com aprensão e destruição das obras censuradas. Como é sabido, Pessoa escreveu o Aviso Por Causa da Moral, saindo a terreiro para defender António Botto – e também o autor de Sodoma Divinizada, Raúl Leal – e, ao mesmo tempo, fustigar o provincianismo da vida mental portuguesa do seu tempo. Com esta tomada de posição, Pessoa viria a atear uma polémica literária a que chamou “o caso mental português”, o qual acabaria por arrastar, além das Canções de António Botto, também Decadência, o livro de estreia de Judith Teixeira.

Ora como Régio também defendeu e promoveu literariamente o poeta das Canções, em António Botto e o Amor, uma questão se levanta: que mistérios terão levado Álvaro de Campos – cujo manto de indignação cobria apenas Leal e Botto – e Régio – que literalmente lhe desfecha o tiro de misericórdia, em 1927, quando afirma: “Todos os livros de Judith Teixeira não valem uma canção escolhida de António Botto” –  a não defender da mesma forma a poetisa, deixando que a sua obra resvalasse para os subterrâneos da clandestinidade? Apenas por ser mulher?  É que se Botto, talvez o nosso poeta maldito, à falta de um Rimbaud, deu ao país o calor das suas Canções, a poetisa sáfica não foi menos generosa nos seus poemas e no seu entranhado amor português. Dir-se-ia que a mentalidade portuguesa da época era já o “ovo da serpente” onde estaria a incubar o pequeno fascismo santacombadense, que acabaria por derrubar a I República poucos anos depois (1926).

Romance onde se cruzam as vidas de alguns poetas, há em Morrer na Outra Margem  diálogos ficcionados deliciosos, numa escrita onde confluem a audácia narrativa e o rigor poético, como acontece entre Fernando Pessoa e sua mãe (pp. 23-24), que me dispenso de transcrever para não subtrair aos possíveis leitores o prazer da descoberta. Romance, também, da marginalidade dos artistas. Uma obra magnífica, que não tem encontrado nem a atenção nem a expectativa benévola que o autor merece, porque quem escreve aspira a ser lido e comentado e os que fingem borrifar-se para isso costumam ser, afinal, os mais sôfregos.

A Odisseia do Espírito SantoPublicado em 2019, o livro A Odisseia do Espírito Santo arrebatou o Prémio Literário Carlos de Oliveira em 2018. Ainda não li a obra, pelo que me dispenso de a comentar, fazendo-o por interposta pessoa. Escreveu Miguel Real, com a autoridade que se lhe reconhece:  a obra “recorda ficcionalmente um episódio de heresia religiosa acontecido no século XVIII na aldeia de Vilarinho, em Mondim de Basto (Vila Real). Do ponto de vista do romance histórico, retrata com perfeição o modo como a religião pode evoluir de uma prática social de devoção a uma transcendência para uma prática nitidamente supersticiosa (…). De sublinhar, como importante no campo lexical, a fusão operada entre o léxico dos nossos dias e o do século XVIII na região de Trás-os-Montes, o que obrigou o autor a juntar, no final, para ilustração do leitor, um ‘glossário’ de inúmeros vocábulos. Com os dois romances referidos (este e O Fotógrafo da Madeira), António Breda Carvalho integrou o seu nome, com justiça, no actual panorama do romance histórico português” (Jornal de Letras, 10.04.2019, p. 14).

Fechando este capítulo: ao parabenizar o escritor pelos fecundos trinta anos de vida literária, convém referir que os três livros que têm por cenário o espaço geográfico do concelho de Oliveira do Bairro (In Vino Veritas, Acúrcio Correia da Silva e a Bairrada e agora A Banda Que Tocou Fora da Graça de Deus) extravasam o património concelhio: são, pelo menos, de toda a Bairrada, que também assim se engrandece. Para os que vivem na região dos pâmpanos e a sentem como sua, devia ser proibido esquecer António Breda Carvalho. O rude ofício da escrita pressupõe esforço e superação, porque nenhuma arte é fácil e o talento, quando existe, tem de ser trabalhado. É isso que tem feito o nosso autor bairradino, oferecendo-nos, sobretudo a partir de 2011, romances de inegável fôlego, bem urdidos e onde o prazer da escrita e algumas doses de refinado humor – num registo irónico, mas não inocente – são notórios.

Não é a primeira vez, nem será porventura a última, que Breda Carvalho dá nota do seu desencanto com o ofício de escritor. São gemidos culturais de quem se sente marginalizado e ignorado pela indústria cultural. Voltou a fazê-lo na apresentação do último “filho” que gerou. As razões são conhecidas e remetem para o verdadeiro silvedo que é hoje a república das letras: a dificuldade que os chamados autores de província sentem para publicar as suas obras, assim como quem escreve para uma gaveta de ilusões; o espaço da criação cada vez mais reduzido às lógicas do mercado, com a maioria das editoras a publicar apenas o que comercialmente lhe interessa, numa verdadeira submissão do acto criativo a cálculos de rendibilidade imediata; os livros vendem pelo marketing e pela marca que os promove e já não pela qualidade que lhes transmite o escritor; o êxito do escritor é ditado cada vez mais pelas  habituais capelinhas literárias do elogio mútuo. E fiquemos por aqui.

Depois de me ter confessado coisas do tipo “começo a sentir-me cansado e amaldiçoo-me por estar viciado na droga da escrita”, apetece pedir a Breda Carvalho para levar a sério o repto lançado pelo seu antigo professor de literaturas africanas e brasileira, Pires Laranjeira, no posfácio a Letras Sob Protesto, de Arsénio Mota: “Escreve mais, pá, sempre!”. Deixe-se guiar pela compulsão da escrita quando ela de si se apodera, mas evite deixar-se manietar pela desvalorização crescente do capital simbólico que são as ideias e os livros em que elas se materializam, porque o acto da escrita está muito para lá da mera alienação do homem condenado e reduzido ao dinheiro e à mercadoria. Continue a brindar-nos com ironias finas como esta, depois do novo alento que ganhou com O Fotógrafo da Madeira: “Talvez tenha de escrever O Fotógrafo dos Açores”. Mantenha-se fiel ao que escreveu no primeiro dia de 2016: “inexoravelmente continuarei a escrever, cumprindo a minha voluntária prisão perpétua”.

Sim, retome a bola e jogue, deixe-se guiar pelo prazer da escrita, para seu e nosso deleite, porque é essa a sua condição, também presente nestes versos de José Gomes Ferreira, que agora lhe devolvo: “Mas é do destino / de quem ama / ouvir um violino / até na lama”.


Obras consultadas:

ABREU, Luis Machado de, Portugal Anticlerical. Uma História do Anticlericalismo. Gradiva, 2019

CARVALHO, David Luna de, “O significado das acções colectivas de repertório nacional na I República”. Ler História, n.º 59, 2010, pp. 128-129; idem, Os Levantes da República (1910-1917). Resistências à laicização e movimentos populares de repertório tradicional na 1.ª República Portuguesa. Edições Afrontamento, Março de 2011.

CATROGA, Fernando, O Republicanismo em Portugal. Da formação ao 5 de Outubro de 1910. Coimbra, Faculdade de Letras, 1991

GRANJO, Silas, Troviscal Republicano. Banda Excomungada, Clero Interdito (1922-1939), (2010). Uma  primeira versão deste trabalho foi inicialmente publicada em Actas do Colóquio- O Anticlericalismo Português: História e Discurso, Edição da Universidade de Aveiro, Outubro de 2002, pp. 225-306.

MADUREIRA, Arnaldo, A Questão Religiosa na I República. Contribuição para uma autópsia. Livros Horizonte, 2003.

MOURA, Maria Lúcia de Brito, A Guerra Religiosa na Primeira República. Lisboa, Editorial Notícias, 2004.

PATO, Maria Leocádia, Rio da Memória. A Banda do Troviscal (1997).

PINTO, António Costa, Os Camisas Azuis. Ideologia, Elites e Movimentos Fascistas em Portugal (1914-1945). Lisboa, Editorial Estampa, 1994.

SANCHIS, Pierre, Arraial: Festa de um Povo – as romarias portuguesas, pp.205-206.

SANTOS, Miguel Dias, A Contra-Revolução na I República (1910-1919). Imprensa da Universidade de Coimbra, Novembro 2010.

 

Arsénio Mota e o Dicionário de Autores da Bairrada

Dicionário
Da lavra de Arsénio Mota, recebi há dias o Dicionário de Autores da Bairrada. Sorte a minha, o ter sido contemplado com um dos poucos exemplares impressos para oferecer aos amigos mais chegados. Estamos a falar de uma obra que o autor considera mais útil e manuseável, elaborada a partir de uma segunda edição digital do Dicionário. Aliás, com link em “página especial” do seu blogue, é possível encontrar, para além deste Dicionário, mais uma boa dúzia de trabalhos em e-book.

A obra resulta de pesquisas que o autor empreendeu após publicar o seu primeiro trabalho, intitulado Figuras das Letras e Artes na Bairrada, que organizou e viu a luz do dia em Setembro de 2001, há precisamente dezassete anos, colocando assim ao nosso dispor mais um valioso contributo para o conhecimento e as investigações anteriormente desenvolvidas em prol da cultura da região dos pâmpanos, em tempos mais recentes conhecida por “Terra verde”.  Obra importante para a época, pois não havia nada que se lhe assemelhasse, embora produzida em contexto muito próprio e circunstâncias especiais de tempo e acontecimentos. Com este Dicionário, estamos a falar de uma ferramenta de trabalho indispensável para quem estiver disposto a abalançar-se na investigação cultural (histórica, literária, musical, patrimonial ou outra) da Bairrada. Só nos resta agradecer o fruto sumarento que de forma tão generosa o autor decidiu colocar ao nosso dispor. Ao fazê-lo, poupa-nos a morosas pesquisas bibliográficas, condensadas agora neste utilíssimo instrumento de apoio.

FigurasArsénio Mota optou por um critério de organização que abarca apenas autores já desaparecidos. É um critério pessoal, que nos cumpre respeitar. Apenas abre uma excepção, que aliás justifica: a de Manuel Calado, a roçar já o batente dos 93 anos, jornalista luso-americano natural de Soza (concelho de Vagos), com colaborações dispersas em jornais, rádios e televisões “orientadas para as comunidades portuguesas nos Estados Unidos (e também nos Açores e na Bairrada).[1]Em relação à primeira obra impressa, esta inclui 28 novos autores. Alguns de reconhecida dimensão nacional, como são os casos de Eça de Queirós ou Fernando Assis Pacheco, e outros sobejamente conhecidos no meio local ou regional.

Vêem agora a luz da publicidade, entre outros – e para citar apenas os da Bairrada ou mais próximos dela – nomes como os de Manuel Simões Alberto, natural de Nariz (concelho de Aveiro), militar, homem com paixão pelo teatro e pela música, autor de estudos antropológicos sobre Moçambique e também autor da primeira monografia histórica da freguesia da Palhaça (concelho de Oliveira do Bairro); professor Américo Urbano, colaborador da imprensa (Soberania do Povo, Jornal da Bairradae Correio do Vouga), regente da Banda Marcial de Fermentelos; José Marques de Castilho, padre, professor e patrono de uma das Escolas de Águeda; António Gomes da Rocha Madail, fundador do Museu Marítimo e Regional de Ílhavo, bem como fundador e colaborador do Arquivo do Distrito de Aveiro; Manuel da Costa e Melo, político (foi Governador Civil de Aveiro a seguir à revolução de 25 de Abril de 1974) e autor literário com várias obras publicadas, além de assíduo colaborador em vários órgãos da imprensa regional. Merecido destaque, também, para Mário da Rocha, natural de Vagos, jornalista, professor e escritor, director de O Ilhavense e de Companha, que manteve com Mário Sacramento um célebre diálogo entre crentes e não crentes nas páginas do semanário aveirense Litoral. Eis uma pequena amostra do vasto material que Arsénio Mota coloca à nossa disposição.

Manuscrito AM
Anotações manuscritas de Arsénio Mota sobre imprensa regional

Trabalhos desta natureza – podemos dar, como exemplo, os catálogos da imprensa periódica – dificilmente escapam a uma ou outra falha ou lacuna. No caso deste Dicionário, estamos a falar de um repositório exaustivo de dados biográficos e bibliográficos de autores da Bairrada, ou que, tendo nascido fora dela, aí passaram a residir e se deixaram contaminar pela sua ambiência e por tudo aquilo que a define e distingue das demais regiões ou sub-regiões circundantes. Ao empreender, nos últimos anos do século XX, uma pesquisa no terreno orientada para a restauração dos valores culturais da região – e animado com a possibilidade de assim poder surgir uma segunda plêiade bairradina – Arsénio Mota amontoou na sua mesa de trabalho um arquivo de dados e anotações precioso, que não podia desperdiçar ou sepultar no pó do esquecimento. Para lá das notas biográficas e das histórias de vida dos autores recenseados, dos dados coligidos e sempre que possível interpretados e contextualizados, o trabalho é enriquecido com alusões à imprensa local e regional onde muitas vezes tais personalidades colaboraram e exerceram o seu dever de cidadania.

Logo a abrir, antes mesmo dos 173 autores recenseados, Arsénio Mota brinda-nos com um estimulante e não menos instrutivo estudo sobre o topónimo Bairrada. Depois de sintetizar os vários contributos sobre o tema, que incluem interpretações filológicas, geográficas e etnográficas, o autor reconhece que os estudos já conhecidos podem não trazer conclusões definitivas. Isso não o impede, porém, de tomar posição sobre o assunto, enfileirando ao lado dos que sustentam que o topónimo Bairrada provém de “bairros” e não de “barro”, aqui entendido como matéria-prima. E não deixa de anotar aquilo que considera ser a inconsistência argumentativa de autores e livros que, na própria região, “influenciados por um vulgar empirismo (…) retomam com afoiteza a ideia simplista”.[2]Como que a dizer-nos que os trabalhos desta natureza requerem de quem investiga um elevado grau de humildade, evitando euforias desmedidas que levam os mais incautos e apressados a considerar como explicações definitivas e inabaláveis aquilo que, tantas vezes, não passa de meras hipóteses exploratórias.

A consulta deste Dicionário ajuda a confirmar o que já há muito se pressentia: que a Bairrada tem “presença” efectiva não apenas na literatura, mas também na cultura em sentido mais amplo. Uma cultura que parece ter entrado em hibernação, à espera que alguém a resgate e assuma de uma vez por todas e de forma permanente, em quantidade e qualidade, num tempo em que cada vez mais tendemos a olhar para os produtos que a cultura de massas introduz na região e um pouco por todo o lado. Cabe aos bairradinos preservar e valorizar o seu património cultural, que nas palavras sábias e avisadas de Arsénio Mota é uma “herança não assumida por causa de uma geral frieza, como se pudéssemos ficar mais ricos deitando fora o que mais nos distingue e enobrece”.[3]


[1]Arsénio Mota, Dicionário de Autores da Bairrada, edição de autor, Dezembro de 2017, p. 34.

[2]Idem, pp. 9-10.

[3]Idem, “Bairrada Cultural o que tem?”, Jornal da Bairrada, 28.01.2009, p. 2.

A Casa da Câmara, ou a memória agredida

 O texto que Armor Pires Mota publicou na edição de 8 de Novembro de 2006 do Jornal da Bairrada, a rebater o professor catedrático Pedro Dias, leva-me a tecer algumas considerações sobre a mais que provável demolição da Casa da Câmara. Começo por referir que sou a favor da preservação do edifício.

Quando a polémica irrompeu no Jornal da Bairrada remeti-me ao silêncio. Fi-lo, porque outros mais conhecedores do que verdadeiramente estava em causa – e com os quais aprendi alguma coisa – saíram a terreiro. Refiro-me a pessoas como o Dr. Carlos Conceição ou o arquitecto e professor universitário Walter Rossa, que a meu ver exibem argumentos mais consistentes que os seus opositores.

Ao invés, os adeptos da demolição centram-se mais no futuro que no passado. Querem a avenida rasgada, sem empecilhos para o trânsito, e a casa é para eles um estorvo. Alegam que nem tudo o que é antigo é património (e têm razão) procurando colar esse raciocínio aos que estão no outro lado da barricada. Proclamam que o edifício não tem valor arquitectónico. Continuam a ter razão. As discordâncias surgem quando consideram ser património o que tem suficiente valor representativo e não reconhecem tal valor à antiga Casa da Câmara.

É natural haver opiniões diferentes, pois não são pacíficas as definições de objecto patrimonial e de monumento histórico, nem consensuais as interferências entre valor histórico e valor artístico. Mas não é por estarem em campos opostos que uns e outros gostam menos da cidade ou do concelho. Importa, pois, que se discutam ideias e não pessoas, o que nem sempre acontece. Bom seria que a decisão final viesse a resultar de convicções profundas, mesmo que discutíveis, e não de mesquinhos ajustes de contas políticos, como às vezes parece suceder.

Tenho para mim que a Casa da Câmara é representativa de uma época e tem suficiente valor simbólico. Património não é só qualidade, é também memória. Não é só valor artístico, é também valor histórico. O mérito do edifício não reside apenas em ter albergado a câmara concelhia e a cadeia. Isso também outros edifícios do género – e bastante modestos como este – albergaram por esse país fora. O que nem todos eles foram é o que este foi: uma casa de Câmara Nobre e Cadeia forte.

Como foi já explicado em textos que este jornal publicou, isso fez Oliveira do Bairro ganhar o direito a contar com um juiz de fora. No início do século XIX pouco mais de um quinto dos municípios portugueses se poderia orgulhar de tal feito. Por isso a memória do que foi a Casa da Câmara do nosso concelho é que lhe confere um valor único e expressivo.

Vejamos: o ser provavelmente o edifício mais antigo do concelho não sensibiliza as pessoas? O ser um símbolo do municipalismo, a atestar a importância de Oliveira do Bairro em tempos recuados, também não? Que outros vestígios sinalizam essa importância, na cidade e no concelho? É de crer que se tivesse valor arquitectónico a avenida seria rasgada e haveria soluções alternativas que preservassem o imóvel. Não será então possível encontrar uma solução que não mexa tanto com os sentimentos e a sensibilidade? Ou só conta o progresso a qualquer preço? O progresso digno desse nome não destrói os valores do passado. Sempre que possível, o novo deve coabitar harmoniosamente com o antigo.

Foi com argumentos como o do desinteresse estético que se arrasaram os calabouços da Pide em Lisboa, para em seu lugar se construírem condomínios de luxo. Infelizmente, a memória não dá lucro. Assim se desrespeitou a memória das vítimas. As catacumbas romanas são inestéticas? Talvez. Mas sem elas o cristianismo não teria a memória das catacumbas e das perseguições.

Foi com o argumento de se rasgar uma nova avenida que em Aveiro, junto ao parque da cidade, se demoliu a casa de Homem Cristo, um valioso exemplar de Arte Nova desenhado pelo arquitecto Silva Rocha. As avenidas e as rotundas são a marca do progresso que temos. Pena é que esse progresso, sem atender à sensibilidade e à memória, tudo decape, à força de picareta e camartelo. Apetece perguntar se os pelourinhos, cruzeiros, coretos ou até pequenas capelas designadas por alminhas, que ainda temos, em muitos casos esteticamente irrelevantes, também devem ser destruídos.

Já nada nos espanta, quando sabemos que a casa onde Garrett passou os últimos dias de vida não foi poupada, por terem prevalecido os interesses privados do seu proprietário, o actual ministro da Economia. O património está em perigo, ameaçado cada vez mais pelo envelhecimento e a degradação, pela ignorância, pelo abandono, por restauros abusivos, ou até por uma exagerada sensibilidade de quem detém o poder político face às pressões económicas de cada momento.

A questão é simples: discordo que se continuem a quebrar os últimos elos de ligação às nossas origens, que em nome do progresso não se respeite o passado que nos identifica e ao qual devemos permanecer fiéis. Quando assim acontece, apagam-se os trilhos que dão sentido à existência. Não se trata de só ver defeitos em tudo o que é inovador, como acontece com os que passam a vida a tropeçar nas armadilhas da tradição e a tentar torcer o pescoço ao progresso. Nada disso.

Do que se trata é de não deixar banir o que a tradição tem de melhor, incorporando isso no novo espaço renovado. O que no caso particular da Casa da Câmara divide as opiniões é o facto de uns não verem forma de se criar o novo sem derrubar o antigo; e de haver outros para quem nem sempre o velho é empecilho do novo, podendo até constituir-se como um suporte de imaginação inovadora.

A Câmara Municipal apresta-se para demolir o edifício, apoiada num Parecer encomendado a um estudioso de reconhecidos méritos no domínio da História da Arte. É lá com ela. Bom seria que tivesse em conta que o argumento da autoridade nem sempre colhe. Ninguém é isento de erros ou insusceptível de crítica. Como mostrou Armor Pires Mota, o Parecer sobre a Casa da Câmara assemelha-se a um recife de corais, onde num buraco encontramos uma afirmação imprecisa; noutro, topamos com uma asserção menos verdadeira; noutro ainda, deparamos com dúvidas e conclusões erróneas que uma leitura atenta dos documentos (e a história faz-se com documentos) teria evitado.

A Câmara Municipal devia reconhecer o interesse em se protegerem áreas características da cidade, mormente as que constituem marcos visuais importantes e as que têm um significado especial e simbólico para os seus utilizadores. É uma triste ironia ver um símbolo do municipalismo morrer nas barbas dos oliveirenses e no regaço da indiferença do próprio poder municipal. Em vez de preservar os lugares de memória, a Câmara promove festejos em honra da deusa amnésia que definitivamente os rasura.


(Texto publicado no Jornal da Bairrada, 15.11.2006, p. 17)

Paulo Sarmento, pesquisador de palavras e imagens

“Ofereço-vos o texto que escrevo, ignoro se o entendem”

“Está escuro, diz Elvira, acenda o texto, respondo-lhe”

Maria Gabriela LLansol

Paulo CarvalhoDe uma assentada, Paulo Sarmento (pseudónimo de Paulo Carvalho) brinda-nos com dois livros: Limalhas e As Ruas de Saibro Estão Vazias. Não são as suas primícias literárias, pois o autor já vem derramando, há alguns anos, artigos e crónicas e poesia na imprensa regional, a que se devem acrescentar alguns prémios literários com que foi distinguido.

É preciso dizer que nenhum destes livros é de leitura fácil. Lidamos com diferentes camadas de leitura, que nos obrigam a escavar a epiderme dos textos. Além disso, entrecruzam-se, nas duas obras, uma sólida formação religiosa, uma segura reflexão filosófica e uma evidente leitura e assimilação dos clássicos – alguns textos revelam mesmo um óbvio carácter subsidiário da mitologia grega e das tragédias (Limalhas, pp. 72-77). Também algumas sonoridades, ao que parece, da poesia moderna e até certos laivos do pensamento surrealista. Está lá tudo, mesmo quando o autor recorre à ironia, ou à sátira dos discursos de aproximação ao real: o da literatura, o da filosofia, o da invenção e o da reflexão. Um verdadeiro rio da escrita, cujo caudal engrossa à custa de afluentes culturais variados.

Vamos fornecer algumas pistas de leitura, procurando não obscurecer o que carece de ser iluminado. Fazer incidir alguma luz nestes textos é de certo modo ter presente as advertências do próprio autor a propósito dos que “dissecam, esquartejam a mancha, para criar outras manchas, em geral muito mais extensas e densas do que a mancha original” (Limalhas, pp. 118-119).

Ensaiemos, pois. Para dizer que Paulo Sarmento não faz concessões à escrita suave e calmante que se vai produzindo por aí (e vendendo bem!). Com o pretexto de que a agitação da vida moderna subtrai tempo e espaço à leitura e à reflexão, e fazendo jus à ideia segundo a qual só se assimila o que é fácil e não requer esforço, abundam por aí produtos a roçar a mediocridade, quase um atentado ao comezinho acto de pensar. Não é esse o halo que se desprende da sua prosa. Não se descortina, nestes dois livros, qualquer arremedo de simplificação barata, qualquer estratégia oportunista, do tipo facilitar para vender melhor. Se há complexidade, ela é fruto de uma dimensão interior rica e multifacetada, não obedecendo à vontade deliberada do autor em complicar ou obscurecer o seu pensamento, ou as vivências que pretende retratar.

LimalhasOs textos de Paulo Sarmento são difíceis de classificar enquanto género literário. Se calhar o autor nem está preocupado com isso. Mais que deixar impresso um estilo de escrita, pressente-se que o que mais lhe importa é talvez surpreender-nos com o que é possível retirar das palavras que burila e manipula com evidente deleite, um pouco como o artesão que procura atingir a limpidez do cristal. Em rigor, estes textos não são contos, embora sejam curtos. Serão comentários, pedaços de reflexões, jogos de palavras, fragmentos de imagens, tudo colado e esculpido em letra de forma, tudo amalgamado no cadinho da imaginação e das vivências estéticas. Coisas que se desprendem de um corpo, quando raspadas sensorialmente. Limalhas.

Curioso, ao percorrer alguns textos de Limalhas, é verificarmos a relação íntima que o autor estabelece com as palavras, a forma como as molda e manipula (pelo recurso ao semantismo e ao grafismo), fazendo lembrar autores como José Palla e Carmo e Mia Couto. É esse o excitante jogo semântico a que Paulo Sarmento se entrega. À sua maneira, partilha igualmente desta sensibilidade com as palavras, do manifesto prazer que lhe provoca o convívio íntimo com a língua: “as palavras têm curvas arquejantes, redondas como o mistério, e nas suas copas há frutos verdadeiros” (As Ruas de Saibro Estão Vazias, p. 53).

E parece querer trilhar este caminho a um tempo exigente e aliciante: “o corpo é um copo com um cubo de gelo lá dentro (E assim fica sabendo que o R é antárctico)”. A associação do corpo ao gelo e até a alusão ao machado que “continua a desferir golpes” (Limalhas, p. 114 remete-nos para a feliz metáfora de Kafka acerca do papel da escrita: um machado que tem por função quebrar o mar gelado que há em nós.

O mesmo se passa em Colagem (Impossível), texto construído a partir de palavras quebradas (Limalhas, p. 125). Textos de carácter lúdico e irónico, no sentido em que jogam com a linguagem – a matéria do espírito. E por isso mesmo textos que propendem para o poético, enquanto forma de organizar e tratar amorosamente as palavras.

Outras reflexões suscita a leitura destes livros, verdadeiros baús de propostas e associações. O texto que o autor intitula, ironicamente, de Justificativa do Plagiato (Limalhas, pp. 70-71) aflora o problema da originalidade da obra de arte. Para Paulo Sarmento, se há originalidade ela é tão só o resultado da reutilização de materiais pré-existentes, nos quais o “criador” interfere, ao imprimir-lhes um cunho e uma personalidade próprios. É a forma como reorganiza o que já existe que personaliza o artista e o diferencia dos demais.

Também não é por acaso que certos textos se entrelaçam: “Que raio de mania esta, a da arte. Querer dominar os materiais e a sua plasticidade – e ser material e plástico” (Limalhas, p. 126). Eis uma crítica ao fechamento hermético e elitista de certas vanguardas. Como não é por acaso que o título de um dos livros é também o título de um dos textos do outro. Ou que a epígrafe de Limalhas remeta para Rodin, por Rodin (p. 97) ou apele à associação com A Aurora de Ariadne: “O escultor queria esculpir a perfeição na pedra (…). Pôs-se, então, a pulverizar cada pedaço, no pleno desespero da procura do símbolo incorpóreo” (As Ruas de Saibro, p. 50).

Diferentes momentos (imagens?) que pretendem retratar a busca da perfeição artística. Busca por vezes obsessiva da Beleza, que leva certos criadores a adoptar gestos demenciais (ou de excessiva lucidez?) que conduzem à destruição das próprias obras.

E que dizer da intrigante coincidência, ou acaso, de temáticas que nos reconduzem a esse magnífico contador de histórias que é Luís Sepúlveda? Em As Ruas de Saibro Estão Vazias “assistimos” à execução de Frederic Berg. E enquanto a vida se esvai, assoma no rosto do condenado “um sorriso que não constará dos anais” (p. 41). Também o escritor chileno partilha a mesma preocupação com a memória. Numa visita ao campo de concentração de Bergen Belsen depara com uma frase inscrita numa pedra: “Eu estive aqui e ninguém contará a minha história”. Verdadeiro murro no estômago, que o levou a escrever As Rosas de Atacama, um mural de resistência contra o esquecimento de amigos que foi encontrando na sua vida de andarilho – amigos de uma hora ou de sempre, que tanto podem ser humanos como gatos, ou até barcos. Histórias condenadas ao olvido, se ninguém as contasse.

Ruas de SaibroAmbos parecem igualmente traçar uma idêntica cartografia dos afectos, ou enveredar por uma mesma estética de superação do sofrimento. Em As Ruas de Saibro, lê-se: “com o amor que o vaqueiro tem quando arranca a vida a seu cavalo minado pela doença, deu-lhe a morte” (p. 14). Sepúlveda conta-nos o destino do gato Zorbas, também ele minado, de forma irremediável, pela doença. Diz-nos que o amor “não consiste apenas em assegurar a felicidade do ser que amamos, mas também em evitar-lhe sofrimentos e preservar a sua dignidade”. É comovente a descrição do momento em que reúne os filhos e os convence que Zorbas teria de levar “aquela injecção que o faria dormir”. O amor que nutriam pelo felino levara-os “à mais dolorosa das determinações” (As Rosas de Atacama, pp. 92-95).

Há em Paulo Sarmento muito de dispersão, fragmentação e errância. Cabe, pois, ao leitor a tentativa (que se espera lúdica) de reunir tantas limalhas dispersas. Sem se preocupar com o sentido que o autor possa atribuir ao que escreve. Cada leitor reorganiza um texto outro em função do que lê e do como se lê. Se a literatura serve para produzir sentido, o autor deve preocupar-se mais em ser lido do que em ser compreendido, ou não fossem os leitores a razão de ser dos autores.

A Paulo Sarmento apelamos para que continue a apostar na criação do novo, pois a experimentação é consubstancial ao espaço de liberdade que a literatura deve ser. Que no seu percurso singular continue a urdir as teias que tecem a vida e a morte das palavras. Se possível, refinando (sem obscurecer) o leque de possibilidades que se abrem a quem o lê. Afinal, com algum cuidado e labor, tudo aquilo que é denso e meditado talvez possa ser vertido numa escrita mais clara e acessível, facilitando ao leitor a insubstituível tarefa de “acender” os textos, de abrir neles as desejáveis clareiras de compreensão.


(Texto publicado no Jornal da Bairrada, 28.06.2001, p. 9. A versão refundida que aqui se apresenta foi publicada na revista Escritor (Leiamos), pp. 41-44).

A importância dos estudos regionais — contributos para uma abordagem regional

1 – Da importância dos estudos regionais

O território de Portugal continental é rico em contrastes regionais, ao nível geográfico, do povoamento, da economia, da sociedade ou mesmo dos comportamentos culturais. O mundo em que vivemos nada tem a ver com o Portugal histórico e tradicional de algumas décadas atrás: houve alterações demográficas significativas, alargamento da esperança média de vida, agravamento do desemprego (de curta e longa duração), crescimento exponencial de gastos com a saúde, o alastrar de novas formas de pobreza e exclusão social, o flagelo da toxicodependência e da sida, os novos problemas associados à criminalidade e à insegurança, enfraquecimento dos laços familiares, a emergência de novos grupos de pressão (ambientalistas, consumidores) com os quais o poder político é obrigado a negociar e a estabelecer consensos.

Literatura e GeografiaFace a mutações tecnológicas constantes, a sistemas financeiros extremamente voláteis, mercados hipercompetitivos e redes empresariais globais, o Estado vê-se obrigado “a proteger empresas e sectores produtivos ameaçados, corrigir assimetrias territoriais decorrentes da lógica de mercado, conter agressões ambientais, etc.”. Vivemos em sociedades de  risco, onde “se multiplicam vulnerabilidades e emergem novas desigualdades e onde a incerteza e o medo em relação ao futuro se transformam em traço ideológico de natureza estrutural” (Pinto, 2002). Do que se trata, afinal, é de conseguir responder às angústias que resultam de uma sociedade de alto risco. Os sentimentos crescentes de insegurança concorrem para a descredibilização do sistema político e das respostas que estão ao seu alcance.

Se esta evolução da sociedade portuguesa contemporânea é assim tão perceptível e óbvia, parece assistir-nos toda a legitimidade para, no mínimo, reflectir na redefinição do seu território. Como é sabido, o Código Administrativo de 1936 dividiu o País em 13 regiões geográficas, espaços que foram demarcados em função das características físicas e humanas que os individualizavam e distinguiam. Esse mapa, apesar das grandes transformações entretanto ocorridas, tem vigorado até hoje, embora não possamos falar de divisões administrativas. Com fins administrativos foram criados e continuam a existir, ainda, os distritos.

O esbatimento acelerado das identidades num contexto mundial de globalização, o choque cada vez mais agudo entre o velho e o novo, entre o passado e o futuro, ou entre a tradição e a renovação, tornam cada vez mais premente a necessidade de incrementar os estudos regionais. Tarefa com muitos escolhos, pois não parece fácil isolar o que se encontra em crescente processo de integração, ou diferenciar o que está submetido a processos de homogeneização. Mas tarefa tanto mais necessária quanto é certo que a região “é menos nitidamente conhecida e percepcionada do que os lugares do quotidiano ou os espaços sociais da familiaridade” (Frémont 1980:167). O caso português é disso bem elucidativo: abundam os estudos locais, as revistas camarárias, as monografias – históricas, arqueológicas, etnográficas – que deixam no olvido a dimensão regional; os estudos correntes ora incidem a nível local e quando muito concelhio, ora no todo nacional, pouco se preocupando com o facto de a dimensão nacional requerer “a regional para se iluminar e articular num todo coerente, acessível ao conhecimento” (Mota 1998:100). Um estudo das relações gerais do território português não ficaria completo “sem se esboçarem as grandes linhas de descrição regional, indispensável para a compreensão da sua vigorosa originalidade e dos traços essenciais da economia nacional” (Ribeiro 1986:141). Eis a importância do regional enquanto escala de abordagem e espaço culturalmente significativo, dotado de valor próprio e não desprezável.

Não se veja nesta opção por uma visão regional  qualquer intenção de retirar importância aos movimentos socioculturais em torno da chamada província. Quando muito, para lá do alcance disciplinar, e de se poder ver nos estudos locais instrumentos de interesse para o inventário do País, pode reflectir-se sobre a sua verdadeira utilidade pública. Expliquemo-nos: muitos destes trabalhos têm servido ao longo do tempo para veicular, de forma explícita ou um tanto velada, bairrismos e reivindicações locais, como se o horizonte local representasse o máximo de consciência possível dos autores desses trabalhos. Ora o que parece estar em jogo é a necessidade de se ultrapassar a simples apologia das virtudes locais. Dito de outro modo, ultrapassar a mera reivindicação regionalista. Estimular a reivindicação regional significa “ver” e planificar para lá dos interesses e da vontade das elites locais, não reduzir a história e a geografia desses lugares ao folclorismo pitoresco, ou ao eruditismo balofo, conferindo importância acrescida a entidades com competência cultural específica, às maneiras de sentir, pensar e agir das populações em estudos integradores ou de síntese – sobre um determinado espaço enquanto condensação de múltiplas manifestações sociais – que nos devolvam, com nitidez, a coesão e a coerência interna de uma dada região. Só dessa forma nos será revelada uma região com contornos específicos e não reprodutíveis em qualquer outro espaço geográfico.

A análise regional nada tem a ver com formulações localistas redutoras nem pode confundir-se com a soma do estudo analítico e autónomo dos locais que a integram. Uma consciência regional deve traduzir-se naquilo que é específico em determinada região e não apenas em qualquer das localidades que a compõem. O regional, enquanto um todo, é mais que a soma das partes, ao contrário do que supõe a visão organicista da sociedade. No plano cultural, por exemplo, há concelhos que vivem um pouco voltados para si próprios, como se a porosidade das fronteiras não constituísse um apelo ao todo regional. O conhecimento do mosaico regional não se faz por simples adição de estudos isolados, de abordagens locais independentes das demais. Nele encaixam sempre novas peças, de índole geográfica, humana, histórica ou cultural, que projectam uma nova luz na tela dos conhecimentos que já existem. O conhecimento do regional enquanto espaço integrado pressupõe “depurar” os estudos que para ele concorrem da capa regionalista, de uma certa mentalidade propensa à valorização e até à apologia do “único”, do “só nosso”, elementos que usualmente salpicam a valoração constante do lugar matricial. Ao invés, deve tentar incorporar “as dimensões económica, política e cultural, numa dialéctica em que o espaço regional é ao mesmo tempo um espaço de reprodução económica, locus de representação política (efectiva ou almejada) e um espaço de identidade cultural” (Haesbaert 1999:29).

Para se traçar uma identidade regional há que atender a elementos culturais específicos, à convicção de pertença a um grupo social que se traduz na adesão sentimental a uma comunidade geográfica e cultural. O que confere a uma determinada realidade a sua identidade própria é a representação que dela têm os que a ela aderem espontaneamente. Mais do que a identidade em si mesma, é a consciência de si própria (a sua representação mental) e sobretudo a sua afirmação que são relevantes. Isto é: os critérios objectivos de qualquer identidade (por exemplo a língua, o dialecto ou o sotaque) “são objecto de representações mentais, quer dizer, de actos de percepção e de apreciação, de conhecimento e de reconhecimento […] e de representações objectais em coisas (emblemas, bandeiras, insígnias, etc.) ou em actos […] que têm em vista determinar a representação mental que os outros podem ter destas propriedades e dos seus portadores” (Bourdieu 1989:112).

O renovado interesse pela questão regional não é apenas académico. Tem a ver com a emergência e proliferação de regionalismos, identidades regionais, novas e velhas desigualdades a nível global ou mesmo intranacional. Em contraponto com a homogeneização globalizadora, assistimos a uma “permanente reconstrução da heterogeneidade e da fragmentação, [a um] certo retorno às singularidades e ao específico […] em correntes como o pós-modernismo e o pós-estruturalismo, denominações que evocam a crise social e de paradigmas em que estamos mergulhados” (Haesbaert 1999:16). Também os media revalorizam o “regional”, embora o envolvam ainda em grande sincretismo. Para uns, a valorização do regional está inscrita no próprio seio da globalização dos mercados e das comunicações (sustentam que a televisão caminha no sentido da regionalização, como acontece nos Estados Unidos, onde há canais que dão prioridade à cobertura dos problemas que afectam as comunidades locais); outros falam de regionalização como contraponto à globalização, entendida aqui como criação de grandes uniões comerciais, sem se darem conta que os mercados comuns já estão “inseridos numa articulação crescente aos circuitos globais da economia capitalista” (Haesbaert 1999:16).  De certo modo, ao implicarem uma centralização crescente, os processos de globalização contêm igualmente “soluções que apelam à descentralização, à diversidade local, à informalidade, à volatilidade” (Ferrão, 1997:19).

2 – Armadilhas da análise regional

Enquanto objecto de análise, a região é um espaço que apresenta múltiplas dimensões e a delimitação das suas fronteiras pode obedecer a necessidades políticas, culturais ou administrativas, sendo que o critério a adoptar depende sempre dos objectivos prosseguidos.  Se adoptarmos o critério da polaridade, analisamos a região enquanto área de influência polarizada por uma capital ou um lugar central; se optarmos pelo da homogeneidade territorial, estamos a dar ênfase à história, à cultura ou aos factores linguísticos que permitem caracterizá-la; se a abordagem incide na definição das fronteiras administrativas ou políticas, o que procuramos desenhar é a região plano (Polèse 1998:136-7). Eis apenas alguns exemplos, que não esgotam as possibilidades de definição ou identificação das regiões. De resto, a crescente incidência dos processos de globalização torna a escala geográfica de referência do nível regional – e também do central e do local – cada vez mais alargada. A União Europeia é disso exemplo paradigmático: “com a consolidação de um novo nível central – o da União – o nível nacional (Estados membros) tende a tornar-se ‘regional’, o nível efectivamente regional de cada um dos Estados membros corre o risco de se transformar em ‘local’ e, por último, o nível local perde visibilidade e, em termos relativos, protagonismo” (Ferrão 1997:18).

A operacionalização da análise regional enfrenta, pois, várias dificuldades. Escolher critérios para delimitar uma área de estudo envolve sempre alguma subjectividade. Por isso se requer uma explicação prévia dos parâmetros escolhidos, que necessariamente condicionam a investigação. Se por exemplo enveredarmos por uma análise económica, e tendo em conta que uma região não tem fronteiras nesse sentido preciso do termo, é importante distinguir entre modelos “cujo quadro de análise é predominantemente estático e modelos que procuram integrar elementos dinâmicos” (Polèse 1998:135).

Como a fronteira entre modelos estáticos e dinâmicos não é estanque, convém evitar o risco de aplicar ao real limites inexistentes e assim criar falsas unidades de análise. Vejamos um exemplo: a aplicação de “limites lineares” a uma realidade cultural de contornos pouco definidos é sempre problemática, pois pode espartilhar aquilo que já é intrinsecamente fluido. Mesmo que nos confinemos a um estudo puramente geográfico, os limites lineares só devem ser utilizados quando têm por base o solo ou na passagem de uma forma de relevo para outra (Ribeiro, 1987:67).  A delimitação começa por ser geográfica, embora existam regiões nas quais não se sabe com segurança onde começam e acabam os seus limites físicos. Quando surgem hesitações quanto à definição dos limites de uma região, dificilmente se gera o consenso quanto a outros particularismos que a sintetizem.

Também a aspiração à universalidade se tem mostrado inimiga da análise regional: ao esquecer que todo o universal tem o seu chão, remete os estudos regionais para um lugar subalterno no quadro mais geral da cultura, sem se dar conta que a genuína universalidade não dispensa as marcas de tempo e de lugar. Uma obra que é digna desse nome “não dilui na vaguidade de intenção universalista as suas marcas de origem”, na exacta medida em que no universo da cultura estão presentes, necessariamente, “todas as culturas nacionais, regionais e locais existentes, cada uma delas imbuída da sua própria especificidade, isto é, com os respectivos traços de originalidade inconfundível e vazada numa peculiar expressão linguística” (Mota 1993:16).

Outra preocupação a ter em conta diz respeito à forma como se recupera para a escrita a linguagem popular. Sendo genuinamente popular, essa linguagem pode não revelar a presença nítida de uma qualquer região. Vejamos um exemplo: a descrição, numa obra literária, de certas fainas como as vindimas ou as desfolhadas, nada tem de traço identitário, pois estamos a falar de trabalhos rurais que podem ser observados em diferentes regiões. Convém sempre confirmar se as descrições de costumes, a gastronomia, os jogos tradicionais, a literatura oral, certos vocábulos ou outros elementos etnográficos são realmente específicos de uma região ou podem repetir-se noutras.

3 – Sobre o conceito de região

De que falamos, quando falamos de região?  Em que medida é que um determinado tipo de análise – geográfica, económica ou cultural – nos coloca problemas particulares? Que factores pesam mais no desenvolvimento das regiões? Existem muitas interpretações, pois não é fácil definir um conceito que é polissémico e por vezes ambíguo. Bastaria referir que para muitos geógrafos nem todo o recorte coerente do espaço geográfico é sinónimo de região. É preciso encontrar alternativas mais ricas ao uso banal que identifica região com uma certa “extensão de espaço” ou com uma “área”. Autores clássicos como Vidal de La Blache, a quem devemos a paternidade da noção de região em Geografia, enfatizaram a “diferenciação de áreas” como metodologia essencial para o trabalho do geógrafo. O conceito varia de disciplina para disciplina. A ciência política, por exemplo, joga com a ambiguidade da noção de região, a qual “tanto pode ser aplicada a uma fracção dum Estado ou duma nação, como a um agrupamento de Estados ou de nações, próximos pelas suas características económicas, políticas ou culturais e, geralmente, pela sua situação geográfica” (Roncayolo 1986:161).

A geografia procura associar região a um nível intermédio cuja originalidade tende a afirmar: “De uma maneira geral, a região apresenta-se como um espaço médio, menos extenso do que a nação ou o grande espaço de civilização, mais vasto do que o espaço social de um grupo e a fortiori dum lugar” (Frémont 1980:167). Esta definição de quem concebe a região, acima de tudo, como espaço vivido, continua a não ser clarificadora, embora o apelo ao “vivido” abra já a porta à discussão de problemas tão importantes como a questão da identidade. Só que deixa de fora outras questões essenciais como a dimensão, os limites ou o nível que implica a palavra região. Na verdade, a região tem sido objecto de discussão entre geógrafos, historiadores, etnólogos, economistas e sociólogos, sendo que os primeiros, “por terem que ver com o espaço, aspiram ao monopólio da definição legítima” (Bourdieu 1989:108). Só que, embora os inquéritos regionais dos geógrafos se revelem extremamente minuciosos e aprofundados sobre um determinado espaço, não permitem muitas vezes compreender “os grandes fenómenos que levam ao progresso ou ao declínio das regiões consideradas”. Quando dá ênfase aos fenómenos físicos, o geógrafo “limita-se frequentemente à análise de conteúdo do espaço [e] olha muito pouco para além das fronteiras políticas ou administrativas da região” (Bourdieu 1989:108-9). Ora a fronteira pode assumir uma dupla dimensão: “a que se traduz na definição de um limite de vizinhança entre identidades diferenciadas e a que salvaguarda um espaço de intervenção autónoma de cada identidade em relação aos interesses próprios” (Marchueta 2002:9).

Não sendo o escopo deste trabalho aprofundar os debates que enformam a ideia de região, o que passaria por clarificar noções como região “natural”, “homogénea”, “polarizada”, “histórica”, “geográfica”, “económica”, “étnica” ou “cultural” – qualquer delas longe de representar, per se, a única forma de divisão territorial – convém esclarecer alguns sentidos que se atribuem ao vocábulo. Ao reflectir sobre os fundamentos da divisão regional, Orlando Ribeiro fala em “região geográfica”, isto é, uma divisão territorial definida por particularismos físicos naturais (clima, relevo, natureza do solo) e humanos (estilo de povoamento e de aproveitamento do terreno) que nos dão o sentimento de não sairmos da mesma terra (Ribeiro 1986:140). Também a geógrafa Suzanne Daveau se desloca para o domínio da geografia regional através da ponderação conjunta dos elementos físicos e humanos. A seu ver, um estudo de geografia regional “pressupõe o tratamento equilibrado das matérias de geografia física e de geografia humana, sem que haja o predomínio sensível desta última, que tinha sido preconizado por influentes geógrafos portugueses, designadamente por Orlando Ribeiro” (Medeiros 1997:60). O espaço geográfico pode ainda ser visto como o resultado “da projecção do sistema sociocultural sobre o sistema ecológico, de uma projecção activa que o constrói conforme as exigências do objectivo a atingir” (Isnard, 1992).

Tal significa que na explicação das divisões territoriais é importante integrar e combinar factores naturais, humanos e culturais. Não é apenas a acção da natureza que permite moldar uma determinada região; é sobretudo a intervenção do homem que configura e risca paisagens específicas que a caracterizam. Se “cada Região é um ser único, a resultante de combinações complexas que se não repetem integralmente noutro lugar” (Ribeiro, 1987:7), ela não pode ser vista como entidade fechada, avessa a qualquer tipo de hibridismo, incapaz de se deixar influenciar ou “contaminar” por fronteiras, relações de proximidade ou vizinhança, trocas cada vez mais intensas e complexas de bens ou ideias. A região não pode ser senão o resultado de um sistema de relações em que “a unidade dos traços culturais, a ligação a determinadas práticas e representações são o fundamento da homogeneidade regional” (Roncayolo 1986:169). Cada região conterá aspectos e elementos que a caracterizam, a identificam e a distinguem das demais (a língua – enquanto elemento unificador e identificador de um povo – os dialectos locais, o folclore ou a literatura popular, entre outros).

4 – Identidade versus fronteira

Quando se vive numa comunidade fechada, a questão da identidade nem sequer se coloca. Ela só é perceptível num contexto de confronto ou comparação com outras comunidades. Então sim, emerge o sentimento de diferença, que tanto pode afirmar-se de forma positiva ou meramente ressentida (quando o confronto se dá a partir do mais pequeno para o maior, embora não se possa considerar como inferior aquilo que apenas é diferente). É no confronto com outra cultura que uma comunidade se apercebe da diferença entre essa e aquela a que pertence. A cultura, sendo uma manifestação do mundo das ideias que produz factos culturais concretos, é também um instrumento de comunicação e “um sistema de organização e orientação social de um grupo determinado”, podendo igualmente converter-se em “elemento dinâmico de construção e diferenciação” (Marchueta 2002:81). Mas identidade e características culturais de uma comunidade são coisas distintas: estas são do domínio da psicologia e da antropologia, envolvem a chamada autognose, termo que Eduardo Lourenço utiliza em O Labirinto da Saudade e que remete para o «autoconhecimento que um grupo tem ou procura ter de si próprio» (Almeida 1995: 65-90). Já a identidade pertence ao domínio dos afectos.

Parece claro que conceber a região como um todo obriga a incluir nela a dimensão cultural. Aqui chegados, cabe perguntar: porquê assumir uma região como referência cultural? A resposta parece óbvia: porque uma região não se define apenas como a resultante de uma “diferenciação de áreas”, como “individualidade” ou “personalidade geográfica” (diferentes designações que apontam para a importância dada ao específico, ao singular), mas sobretudo como uma construção intelectual, podendo a sua delimitação variar de acordo com os objectivos de quem a investiga; e porque muitas vezes, como uma região não vive sem cultura, é por aí que ela se torna reconhecível entre outras regiões vizinhas, não bastando, para delas se diferenciar, a natureza física dos solos, do relevo ou do clima. Nestes casos a contiguidade geográfica é um empecilho à diferenciação. A referência cultural emerge assim como a melhor via para combater a uniformidade ou a manipulação, o nivelamento dos gostos, dos usos e costumes, a diluição dos valores em que entronca a sua matriz identitária. Funciona como uma espécie de apólice de seguro contra “o esmagamento da diversidade no molde unificador da aldeia global” (Mota, 1993:13).

Se o conceito de região suscita problemas de análise, também o de “identidade”, graças à riqueza das suas conotações, é ambíguo e requer clarificação. E quando se fala em identidade cultural a complexidade é ainda maior. A que nos referimos quando falamos, em abstracto, de cultura? À cultura erudita ou à popular? À religiosa ou à profana? E que queremos dizer quando usamos a expressão cultura regional, correndo o sério risco de o “regional” se confundir perigosamente com regionalismo ou provincianismo? A noção de identidade, sobretudo ao nível da sua formulação teórica, é difícil de circunscrever. Pode ser analisada em diferentes perspectivas e pode variar ao longo do tempo, à medida que irrompem novos traços identitários que interagem com a anterior realidade sedimentada. Isso não significa que a deixemos de utilizar. Também não há acordo quanto ao conceito de “inteligência” e não é por isso que o descartamos. Ora como os debates sobre as identidades nacionais e culturais se têm intensificado nos últimos anos, importa estabelecer um consenso mínimo sobre o conceito de identidade. Sendo diferença, a identidade não implica necessariamente oposição nem é anti-universal: os sentimentos de diferença ou de pertença não podem constituir obstáculo à percepção ou à fruição do belo que se espraia para lá das fronteiras em que habitamos. Aliás, a fronteira (no império romano tudo o que estava para lá dos seus limites geográficos era considerado “bárbaro”, ou hostil…) longe de causar estranheza, deve ser cada vez mais lugar de cooperação e enriquecimento e não de exclusão. Dos diferentes tipos de fronteira (política, ideológica, económica ou demográfica, entre outras) a cultural, cada vez mais fluida, porosa e flutuante em resultado dos progressos tecnológicos, é aquela que, ao definir melhor uma dada comunidade – por referência ou oposição a outra –  “melhor assume uma função dinâmica de contacto e de inter-relacionamento, permeável que sempre foi ao intercâmbio de pessoas, de bens culturais e de ideias” (Marchueta 2002:81-2).

5 – Construção da identidade: memória, tradição, inovação

Apesar de todas as diferenças de opinião, é possível detectar alguns elementos que devem ser integrados no processo de construção da identidade individual ou colectiva: a memória, a consciência e a continuidade [Almeida 1995:65-90]. É conhecido o relativo consenso acerca do papel desempenhado pela anamnese (procura activa de recordações) na construção de identidades pessoais e sociais, e pela metamemória, conceito que define as representações que o indivíduo faz de tudo aquilo que viveu (Catroga 2001:15). A memória histórica constitui, assim, um factor de identificação humana, revelando-nos a forma como os vários grupos constroem e transmitem o passado comum. Funciona como pano de fundo a partir do qual se podem situar e compreender as mais diversas experiências do homem. Os rituais e as cerimónias comemorativas, enquanto ritos colectivos de comemoração, reforçam a coesão social e a identidade e podem ser vistos como exemplos de “actos de transferência que tornam possível recordar em conjunto” (Connerton, 1993:47). Certas comemorações, no entanto, estão a transformar-se em cerimónias cada vez mais “frias”, vítimas de usos e abusos da memória colocada ao serviço de manipulações ideológicas ou até de uma certa mercantilização do culto do passado. Esta “construção” ou arranjo premeditado da memória para servir fins que nada têm a ver com a fidelidade ao passado, levou Walter Benjamin a escrever que existem maneiras de honrar esse passado que fazem dele uma herança mais funesta do que o seu puro e simples desaparecimento (Catroga, 2001:34).

As regiões e as comunidades precisam da memória histórica para promover a abertura e o enriquecimento com outras regiões, que conhecem mas muitas vezes não são capazes de compreender. Memória e identidade cultural reforçam-se mutuamente, permitem saber de onde vimos, identificar as raízes, e é na memória social que as comunidades se identificam e (re)encontram.  Mas a memória, sujeita à corrupção do tempo, é sempre selectiva, nunca é uma voz inteiramente verdadeira do pretérito, pois escolher implica esquecer, silenciar, excluir. A  memória não regista tudo aquilo que cada indivíduo vivenciou. Há, nela, muito de “retenção afectiva e ‘quente’ do passado […] e os seus elos com o esquecimento obrigam a que somente se possa recordar partes do que já passou” (Catroga, 2001:20-21).

Por outro lado, a memória histórica, enquanto factor de identificação humana, não é completamente estática, na medida em que procura conjugar o que a tradição instituiu com as inovações que o presente lega ao futuro. Convém, por isso, recusar as identidades fechadas, rejeitar a rasura ou o rompimento absoluto com o passado; desconfiar do passado que se mostra incapaz de evoluir e do futuro que julga poder evoluir em ruptura completa com o passado. Não se pode reduzir a tradição a um factor de estagnação e retrocesso, mas sim encará-la no seu sentido mais dinâmico e activo. O culto excessivo da tradição e do passado tende a criar nos espíritos um pesado imobilismo, contrário a factores de mudança e transformação da ordem estabelecida.

O antropólogo Marc Augé observa que “a questão da identidade e da pessoa estão verdadeiramente no centro das interrogações contemporâneas” afirmando também que “a realidade íntima da pessoa individual, a identidade global do grupo em que se inscreve e a identidade particular dos seus descendentes […] são pensados em continuidade, sendo o indivíduo e o grupo de indivíduos apenas identificáveis no plural, e a identidade apreendida apenas por relação com os outros” (Augé, 1990: 184s).

As identidades só fazem sentido quando abertas ao diálogo entre tradição (transmissão, dádiva, herança que recebemos das gerações que nos precederam) e modernidade (o que se acrescenta à herança recebida, o que criamos de novo, inovando e acrescentando).  Convém referir que não há tradição intacta e que mesmo aquilo que nela sobrevive deve ser objecto de discussão. Tudo o que a tradição nos lega (crenças, instituições) passa a estar ao serviço de condições bem diferentes daquelas em que foram criadas. Mantendo idêntica expressão, apresentam-se já com conteúdo diferente, enquadradas em novas condições históricas e sociais e sujeitas ao confronto com novas exigências. Mais importante que a verdade ou falsidade de certas tradições –  o milagre de Ourique, ou as profecias do Bandarra  – importa perceber por que é que elas persistem ao longo dos séculos.

Uma identidade não se restringe à soma de tradições recuperadas do passado e fechadas sobre si próprias; todos os contributos externos que as enriquecem, sem as descaracterizar, são importantes. Um projecto cultural inovador não estabelece apenas pontes com o passado: recupera-o para um futuro que já não será igual, mas necessariamente metamorfoseado. A História renova-se, não se repete.

6  – Literatura e identidade regional

Se a identidade é, de algum modo, um produto social em constante devir, a consciência da identidade cultural de uma região é normalmente perceptível na sua literatura, nas suas manifestações artísticas ou na sua reflexão antropológica, sociológica ou histórica. Qualquer região, consubstanciada originariamente em elementos naturais e humanos, pode reforçar a identidade se for capaz acolher no seu seio a dimensão cultural.

A literatura regionalista, ao plasmar os motivos locais – lendas, costumes, folclore, romarias – “presta um bom serviço à divulgação e afirmação da identidade regional” (Carvalho, 2000:137).  É o que acontece com a chamada “literatura popular”, ou o seu ramo usualmente conhecido por “literatura oral” – onde cabem a poesia cantada ou escrita, as quadras natalícias ou de pastoras e reis, provérbios e adivinhas, os descantes, as rezas e crendices que misturam mesinhas caseiras e superstição – a qual padece, infelizmente, do mesmo esquecimento, incúria e desconsideração que se abatem sobre outras importantes manifestações de sensibilidade local ou regional. Como se tudo isso fosse subliteratura ou antiliteratura, não merecedor de estudo e análise. Não será este desprezo ostensivo pela cultura popular uma forma de acentuar ainda mais as distâncias entre povo e elites? É sabido que as elites de países até há pouco tempo marcadamente agrícolas revelam  “uma certa indiferença, quando não desprezo, pelas formas de vida rústica” e que alguns países da Europa, só quando se aperceberam que esse mundo tradicional se estava a perder irremediavelmente, é que passaram a sentir “uma saudade imensa por esse passado e rapidamente começaram a coleccionar tudo o que restava e criaram museus, onde esse património do passado ficou defendido e ao dispor das gerações futuras” (Dias 1982:46). Será preciso lembrar que sem um estudo sobre a cultura popular no Estado Novo – na sua versão ruralista e conservadora – não teríamos hoje a prova de que ela foi um dos alicerces mais importantes de legitimação política e de consenso social em torno desse regime? (Melo 2001:44-45).

Sabe-se como é ilusória a pretensa homogeneidade linguística e social de Portugal, argumento tantas vezes esgrimido contra a existência de uma escola regionalista no nosso País. Para o provar bastam algumas obras de Aquilino Ribeiro, nas quais distingue, entre os demais tipos humanos de Portugal, o homem da Beira (Verdelho 1982: 31, nota 7). A utilização de particularismos linguísticos de uma região como matéria ficcional ajuda a traçar uma visão diferenciadora do espaço português e autoriza-nos a falar numa literatura regionalista, apesar de o regionalismo se fazer sentir em domínios vários e não apenas na literatura. Deste ponto de vista, o conceito de regionalismo – enquanto movimento definido por um conjunto de ideais de defesa e valorização das regiões – pode também ser entendido como tendência literária em que o espaço regional adquire particular importância.

Há regiões que estão na literatura, mas muitas vezes essa expressão literária não se manifesta com suficiente nitidez. Podemos encontrar dois registos distintos da região em termos literários: num deles, a região é simples presença no texto, assinalada pelo registo toponímico ou por um enquadramento geográfico indefinido, não apresentando a sua realidade literária valor identitário; no outro, os elementos identificadores de uma região estão inscritos no texto, sente-se-lhe o pulsar no corpus literário. De facto, para uma região estar dentro da literatura, “tem de constituir a sua força determinante, o seu sujeito. Quando acontece isto, é a região que fala, que se move, que respira. Mas isto é uma situação extrema a que, necessariamente, terá de corresponder uma situação oposta. Neste último caso, a região não passa de um simples effet de réel, como lhe chamaria Roland Barthes, um simples truque de ilusão realista”(Correia 1990:25).

Reconhecidamente, muitas obras se deixaram impregnar por certas regiões. É isso que nos permite falar de um Aquilino “beirão serrano”, de um Camilo “minhoto”, um Eça “lisboeta”, um Nemésio “açoriano”, um Carlos de Oliveira “gandarês”, entre outros (Mota 1993:14).  Os estudos regionais debruçam-se sobre essas obras, pois quem se preocupa com a sua identidade cultural tende a referir figuras destacadas do passado, bem como as obras que produziram e espelham essa identidade.

Curiosamente Aquilino Ribeiro, escritor em cuja ficção se reconhece um regionalismo ancorado no apego à terra campesina e às suas gentes – embora sem perder universalidade nos seus caracteres e descrições – chegou a duvidar da existência de uma literatura regionalista portuguesa (Verdelho: 1982:6). Mas isso não o impediu de reconhecer, quando por volta de 1920 a generalidade dos escritores portugueses atribuía a maior importância ao regionalismo, o seu real valor como contraponto aos “danos provocados pela sujeição de alguns, nomeadamente os realistas, a literaturas estrangeiras, sobretudo à literatura francesa” (Verdelho 1986:25). Num inquérito efectuado pelo Diário de Notícias sobre literatura regionalista, Aquilino referiu, em entrevista de 14 de Maio de 1920: “Uma literatura digna deste nome exige uma língua própria, bem ela, e não uma língua manta de trapos. A língua fê-la o povo. Quando os eruditos a levaram a facetar ao seu torno mecânico já ela estava feita. Sendo agora preciso depurá-la, lógico se torna que se vá estudar no povo, e o povo, aqui, é a população estável e resistente das províncias” (Ribeiro 1991:19).

Acontece que na estrutura ficcional de certas histórias, centradas em regra numa realidade social rural, o rigor literário é muitas vezes levado a preciosismos estilísticos e a extremos linguísticos ou expressivos que são registos de um falar regional que o escritor procura enfatizar. Embora evidenciando um “modo de dizer” que é único e singular, essa preocupação excessiva em valorizar a linguagem como matéria de ficção literária pode conduzir à submissão a um léxico, a páginas sem dúvida vivas e coloridas mas escravizadas ao pitoresco aldeão. Amarrada a tais cânones, essa literatura regional, apesar de se deleitar, como acontecia com Aquilino Ribeiro, “no estudo das almas serranas, na etnologia dos seus costumes primitivos ou tradicionais [não desenvolve] o social-vivo das suas existências” (Silva 1948:311). Este tipo de crítica anunciava já o despontar de uma nova literatura regional apostada no combate a uma certa aridez social com que o romance regionalista se debatia. Essa nova estrutura romanesca passava a espelhar-se em obras onde “a paisagem mirra, cresce o homem”, em que o escritor devia renunciar a deixar-se escravizar pelo estilo, mergulhando “no convívio com as realidades do seu tempo”, capaz de continuar a talhar a figura pitoresca de um tipo humano, mas sem esquecer ou desprezar “as condições em que se desenvolve a vida dos que trabalham” (Silva, 1948: 311s). Era o tempo do neo-realismo literário, dos Gaibéus de Redol, de Vagão J. de Vergílio Ferreira, dos romances da gândara de Carlos de Oliveira ou dos contos alentejanos de Manuel da Fonseca. Uma geração que se considerava intérprete e consciência da sociedade do seu tempo, mas cujos valores estéticos viriam também a estar envoltos em polémica e a ser fortemente contestados.

É certo que as obras ditas regionalistas apresentam um nível estético muito diferenciado e “divergem também pela importância que concedem a cada região, particularmente em relação ao entrecho e às características das personagens”. Mas mais que as manifestações diferenciadas de literatura regionalista, o que aqui verdadeiramente se pretende realçar é a importância da região enquanto “elemento componente da obra, quer pelo espaço e relevo que lhe é dado, quer pela evidente implicação que tem na acção e no carácter das personagens” (Verdelho, 1982:29). À medida que as identidades individuais e colectivas se forem esbatendo por força dos processos de globalização, o que foi possível fixar enquanto presença das realidades regionais nas obras literárias ganhará uma nova dimensão: a de uma espécie de relicário da memória, onde poderemos então matar saudades de mundividências que já não há.

Em síntese, é nosso entendimento que na abordagem dos estudos regionais, a par da análise aos elementos físicos, geográficos ou económicos de uma dada região, a dimensão cultural não deve ser negligenciada. E, dentro dela, a literatura de cariz regional pode constituir-se como importante elemento identificador e, ao mesmo tempo, diferenciador de uma região relativamente a outras. Na verdade, quando uma região firma a sua identidade na literatura, “deixa de ser conhecida unicamente como entidade político-administrativa e ganha uma expressão cultural que a promove e distingue como ser geográfico dotado de traços específicos inconfundíveis” (Carvalho, 2000:137).

Têm a palavra os escritores, que no rude ofício da prosa ou da poesia são a um tempo regionais e universais, quando nos dão a conhecer as terras e as gentes de uma determinada zona etnográfica, assumindo-se como “vedores das correntes mais profundas da autenticidade popular” (Mancelos, 1997:34).

(Texto publicado em Literatura e Geografia. IV Encontro de Estudos sobre Ciências e Culturas – da geografia das palavras à geografia das migrações. Porto, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2009, pp. 505-522).


 BIBLIOGRAFIA

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Histórias de Artesãos — de Armor Pires Mota

ArtesãosSabem os mais novos, e também muitos da geração actual, como e onde se fabricam as esteiras e qual a sua utilidade? E para que serve uma ladra? E um galricho? A resposta a esta e a muitas outras questões pode o leitor encontrá-la no excelente livro de Armor Pires Mota, a que deu o título de Histórias de Artesãos.

Ao proceder a um levantamento «daqueles que, por bem, nos entravam em casa [e] de que nenhuma família se podia alhear» (p. 9) o autor vem prestar mais um inestimável contributo à memória e à cultura da Bairrada. Por este seu trabalho perpassam objectos utilitários que foram outrora indispensáveis ao pulsar da vida em meio rural, marcas de um tempo que o rolo compressor do progresso tende a esmagar à sua passagem e a deportar da nossa memória colectiva.

Alfaiates, sapateiros, latoeiros, costureiras e tanoeiros, amoladores e ferreiros, esteireiras e moleiros, eis algumas categorias de artesãos que desfilam nas páginas deste livro enternecedor. E mal vão os que vêem nele a história de gente pouco importante. Estes homens e mulheres pautaram o ritmos de vida das nossas gentes durante muitos anos. Reuni-los em livro é uma forma superior de os homenagear, ao mesmo tempo que se divulga a história das comunidades, das artes e ofícios tradicionais e dos estilos de vida das populações e se reforça o sentido de pertença a uma terra e a um povo.

Evocar o que produzia cada um deles, «com as suas grandes ou pequenas tarefas, com as suas artes mais limpas ou mais sujas, mais pesadas ou mais leves» (p. 10) não pode ser entendido apenas como um voo nostálgico ao passado. É também uma vitória da memória sobre o esquecimento, que Armor Pires Mota nos oferece generosamente, projectando no futuro uma esperança: a de que será proibido esquecer a singularidade destes homens e mulheres, que à sua maneira ajudaram a suavizar vidas curvadas sobre a terra, existências difíceis e quase sempre viúvas de alegrias.

O acto de fixar estas memórias do passado ajuda-nos a perceber melhor as bruscas mudanças por que passaram as comunidades rurais. Conhecer como viviam e trabalhavam estes artesãos ajuda a reforçar o sentimento de pertença de cada leitor à comunidade em que se integra. É através dessa ligação profunda entre o património e a comunidade que se geram os laços de identificação de cada um de nós com o meio envolvente.

Este livro valoriza e divulga uma parte importante do património cultural da Bairrada, ao mesmo tempo que ajuda a estabelecer uma ligação íntima entre as gerações passadas e a nossa. Não será propriamente uma passagem de testemunho, disso não tenhamos ilusões. A goela hiante do progresso vai engolindo, uma atrás de outra, de forma impiedosa, as artes especiosas destes artesãos. Mas nem tudo está perdido: no futuro, outras gerações poderão dizer que nos primórdios do século XXI houve alguém, na Bairrada, que não deixou cair na vala comum do esquecimento tão importante repositório cultural.

Armor Pires Mota soube, a seu modo, acautelar o futuro. O livro é uma chamada de atenção para a memória das raízes. Num tempo cada vez mais incaracterístico e perigosamente uniformizador, não deixar secar as raízes é uma forma de dar sentido ao nosso viver do presente. Na verdade, não podemos nem devemos deixar cair no olvido, ou pura e simplesmente renegar, os registos antigos.

Numa altura em que as nossas terras de pão estão em grande parte abandonadas, em que muitos emigraram e no regresso se sentem já desintegrados da terra-mãe que de novo os acolhe no seu regaço, um livro destes é precioso, ao fornecer vínculos de ligação que só uma memória comum permite manter. É a argamassa, o traço de união dessa tal memória comum. Uma verdadeira relíquia com que Armor Pires Mota nos presenteia, se tivermos em conta a forma como aduba os valores da nossa própria identidade.

E parece fazê-lo sem saudosismos piegas, mas sim como acto de resistência à desumanização acelerada dos tempos que correm. Um dos seus grandes méritos é perceber que a memória, sendo passado, é também presente em que assenta o futuro.

Enquanto forma de expressão intemporal, o artesanato define a alma de um povo. Assim sendo, o carácter rural da Bairrada confere uma marca distintiva a algum do seu artesanato. E molda-lhe também uma alma muito própria.

Foi essa alma que Armor Pires Mota retratou, com pinceladas firmes e seguras, retiradas da paleta de um tempo em que o artesanato era uma disciplina importante da escola da vida.


(Texto publicado no Jornal da Bairrada, 30.06.2004).

Quase Tudo Nada — livro de Arsénio Mota

«Harmonia e Vitalidade, duas constantes em que assenta a Natureza e a Arte, ou, se quisermos, duas regras do amplo ritmo cósmico. Quem lhes escapa?                               Júlio Resende

 

Galardoado com o prémio literário Carlos de Oliveira, este livro de Arsénio Mota [AM] é em tudo diferente dos que anteriormente publicou. Depois de o ler, e ao senti-lo tão luminoso e carregado de sinais, apetece, para o resumir, recorrer a palavras suas: «Depois de longamente viver e aprender, ou seja, depois de muito possuir e experienciar, é possível que ao indivíduo em maré de balanço no final da existência reste apenas a sensação lúcida de que ao homem despido de ilusões somente cabe guardar palavras e pouco mais na sua passagem».[1]

Quase Tudo Nada 1Em Quase Tudo Nada, a narrativa de ficção ocupa-se a desocultar os percursos de uma existência. Assim como quem pretende revisitar o que foi perdendo e não tanto celebrar o que (ainda) tem. A narração é feita na terceira pessoa. É através de Tumim, a personagem central, embora paralela à do autor – contracção de «Tu» (leitor) e «mim» (sujeito escrevente) – que se evoca a passagem do tempo e dos lugares e marcas que ele foi imprimindo em tudo o que o rodeia. Marcas que também talhou em Tumim, uma espécie de diplomas de tudo o que viveu. Marcas e não cicatrizes, porque estas são «monumentos à dor»[2] e o que este livro nos oferece é acima de tudo um hino à vida e não ao sofrimento.

Importa dizer que o mundo em que o narrador se move não o seduz. Ele vai contemplando, do solitário posto de observação, «as lutas vulgares pela conquista de riqueza, poder ou fama como se estivesse colocado num longínquo planeta […] a ver simples micróbios a devorar-se às cegas» (p. 123). Vive cercado cada vez mais de sombras e de silêncios, pois como dizia Torga, «a vida não passa de um progressivo distanciamento de tudo e de todos, que a morte remata. Existir é ir perdendo».[3] Mas, embora cada vez mais apartado do tumulto da vida social, do fervilhar dos interesses mesquinhos e interesseiros, não corta em definitivo as amarras que o ligam ao mundo. É sobretudo através da palavra escrita que mantém o fio de ligação a ele.

Tal como a vida dá muitas voltas e é feita de partidas e regressos, diásporas e peregrinações interiores, assim este livro, para ser digerido e apreciado, nos compele a manuseá-lo em permanentes avanços e recuos. Tarefa que não requer esforço, antes o gesto lúdico de manipular um objecto estético. Afinal, uma outra fisiologia da leitura, que aguça a curiosidade na busca do que vem a seguir e em que o leitor é chamado a conviver de perto com o itinerário de vida do autor, «um fio singelo a desenrolar-se, saindo do novelo, entre todos os outros que com ele se entrelaçaram na vida» (p. 121). A desordem dos capítulos pode aqui ser vista como um equivalente literário do desconcerto do mundo. Ordená-los, dar-lhes uma sequência lógica, é de algum modo porfiar em busca da «harmonia», uma palavra-chave que percorre todo o livro.

O seu conceito de harmonia – cuja busca parece sondar incessantemente, como quem responde ao apelo de um chamamento vital – tem como condições básicas a paz (estar de bem consigo próprio, para poder estar de bem com os outros) e uma «aspiração veemente à liberdade». Devolver à humanidade a liberdade pressupõe coisas tão comezinhas como trabalhar, meditar, pacificar-se interiormente e até alimentar-se de maneira correcta. Tumim insurge-se contra os que comem e bebem o que sabem que lhes faz mal, gostando ele apenas do que lhe faz bem (p. 55). Esta sua consabida frugalidade à mesa assenta numa procura moderada dos prazeres, no sentido mais epicurista do termo. É princípio de sabedoria o homem contentar-se com prazeres simples e naturais, que ao evitarem a dor contribuem para a ausência de problemas (ataraxia).

O narrador serve-se de Tumim para, através dele, expressar a sua vida específica na Terra e as suas interrogações sobre a existência. A vida de Tumim tem muitas vidas dentro, mas nem todas elas são desvendadas. O todo, aqui, é maior que a soma das partes, os oito capítulos que compõem esta obra e que podem ser vistos como outras tantas pedradas que o narrador lança, de forma inteligente, no charco da boa consciência de cada leitor. E cada parte é tão só o que resta da decantação dessa vida na retorta da sensibilidade do autor. Fragmentos apenas, embora talvez os mais impressivos.

Todos juntos formam um arco, onde se inscrevem os verdes anos em meio rural de ambiência bairradina; a emigração, uma espécie de carta de alforria que permitiu a Tumim rasgar horizontes, ir em busca de um achamento interior e de uma afirmação que continuava tolhida no berço; as deslocações ao Porto, que de tão repetidas transformaram a cidade em porto de abrigo e criaram laços que nunca mais desataria; o aprumo cívico perante a polícia política da ditadura, que AM nunca nos contou, por saber que às vezes há mais dignidade no silêncio (soubemo-lo agora, através de Tumim, que vemos a viver de pé, se calhar por se ter cumprido a profecia que o pai lhe contara em miúdo, acerca do caça-rabos); a entrada no período da maturidade, os primeiros sonhos conspirativos e as experiências amorosas, onde discreteia sobre a sexualidade, as mulheres, o amor-paixão e o amor-sentimento; finalmente, o belíssimo capítulo VIII, chave de leitura essencial para compreender toda a espiritualidade que se desprende desta obra. Confissão de um homem profundamente religioso, que um dia descobriu em Amiel o conceito de «religião natural» (hoje tão deliberadamente obscurecido) e passou a fazer dele «ancoradoiro poderoso que não mais deixou de aprofundar» (p. 13). Recorrendo talvez a Hume, entre outros autores.

Com efeito, não parece difícil descortinar nalgumas páginas deste livro influências de David Hume e dos seus Diálogos Sobre a Religião Natural. Isso acontece quando Tumim observa a natureza e o «comportamento dos mais humildes bichos conhecidos» (p. 99) ou quando compara a lufa-lufa dos humanos a «micróbios a devorar-se às cegas» (p. 123). Comparem-se estas frases com as palavras de Hume: «Olhai o universo em vosso redor. Que enorme profusão de seres animados e organizados, sensíveis e activos! […] Mas examinai um pouco mais de perto as existências vivas, os únicos seres para os quais merece a pena olhar. […] Quão hostis e destrutivos são uns para os outros!».[4]

Num extremo do arco da sua existência temos assim o poder encantatório da infância, caldeado com os saberes que só uma vivência rural permite adquirir: tocar o boi na atafona ou em volta do poço de rega, conhecer os segredos da cozedura do pão, dominar a arte de plantar e colher no tempo certo, jogar à bilharda e ao pião, armar costelos e capoeiras, saber os nomes dos pássaros e identificá-los pelo gorjeio ou a plumagem, perceber o que fazem as andorinhas em voo rasante pelos caminhos.

Ao contrário da ciência, a arte não pode prescindir do «eu». Por isso o narrador vai desfiando a história pessoal de Tumim, evocando as origens do menino aprisionado na teia espessa dos medos infantis. Medo de ir ao alpendre mal iluminado procurar achas para a fogueira ou vides para o forno; (p. 105); medo de atravessar a horta escura que dava acesso à adega, onde o mandavam encher a caneca de vinho (p. 106); medo de passar, à noite, junto do cemitério, com a cesta de comida para a ceia do pessoal da loja (p. 113). Medo, em suma, da escuridão, onde abundam morcegos e esvoaçam mochos e corujas de piar agoirento. O escuro, sempre o escuro, matéria de que eram feitos todos os monstros que povoavam a sua imaginação.

Para lá dos medos e fantasmas, expressão de temores antigos que o homem rural aceitava sem reservas, há também lendas e mitos, como a dos sapos que se transformam em pessoas e estas em sapos, histórias de gambosinos e raviolas, coisas que espelham a fantasia e a sabedoria de um povo. AM desdobra também, perante nós, uma galeria de personagens do maravilhoso popular, como a bruxa, o lobisomem ou a moira encantada. O lugar onde Tumim nasceu, cercado pelo isolamento da época e por ambientes nocturnos de medo e soturnidade, era favorável à superstição e à construção dos equívocos que ajudam a diluir o real no fantástico.

No outro extremo do arco da sua existência temos a reflexão madura – misto de interrogação e balanço – de quem não se esquiva à responsabilidade de dignificar a vida enquanto única oportunidade cósmica. Pelo meio, a procura constante da harmonia, que também só pode ser cósmica, já que Tumim acredita numa humanidade «feita da matéria das estrelas, sendo por isso uma forma de vida derivada da vida cósmica» (p. 99). O arco completo deve aqui entender-se como o desenho de toda a evolução do autor, simples amadurecimento do qual parece arredada qualquer conversão (ruptura) de valores morais ou ideológicos. Um amadurecimento que se afigura mais a síntese da harmonização dos contrários que o resultado da sua ruptura. É isso que AM nos diz, quando compara a memória do que foi vivendo às fibras concêntricas do tronco de um pinheiro: simples acumulação de experiências que «desenvolveram a matriz sem a negar» (p. 119).

Fixemo-nos então no extremo do arco que representa a etapa actual da sua existência. Eis o homem em serena retrospecção, instalado no seu posto de vigia, envolto na «macia penumbra da casa», a contemplar o mar e o azul dum céu «varrido de nuvens» e com a «brisa em repouso» (p. 119). A solidão pode não ter cura quando é um mal que nos vem de dentro. Mas a beleza e a serenidade que irradiam desta descrição de um fim de tarde decerto que ajudam a aliviá-la. São verdadeiros soporíferos de deslumbramento, misto de paisagens e oceanos que fazem bem a quem tem alma de poeta e alguma sede de infinito.

Quase Tudo Nada: três termos que podem ser entendidos como a síntese derradeira de uma vida. O Quase nada tem a ver com o célebre poema homónimo de Mário Sá-Carneiro. De facto, para AM a «disciplina do quase» permitiu-lhe «chegar à beira de cada posição para a conhecer e se cumprir» (p. 120). O seu Quase parece não tocar o Tudo por mera renúncia voluntária, condição essencial na busca da harmonia, já que a vida lhe ensinou que «o sofrimento se origina na fogueira dos desejos; portanto, desejar o menos possível é regra máxima da sabedoria» (p. 124). Ao invés, o do poeta do Orfeu não toca o Tudo porque lhe falta o golpe de asa.

Neste sentido, Tudo remete-nos para a força da vida, o período de pujança e maturidade do autor, e não para qualquer ambição desmedida. Já o termo Nada parece remeter para um final, para a natureza fugaz de todas as coisas, porque tudo é efémero. Como refere AM, «a verdadeira liberdade do ser começa precisamente aí, no essencial desapego dos objectos da comum cobiça» (pp. 97-98).

Este livro mostra-nos a aprendizagem da vida e a lenta construção de um homem em diferentes contextos geográficos, sociais, morais e psicológicos. Um homem que se deixa viver, um pouco à semelhança de Sinclair, cuja maturação emocional e espiritual Hermann Hesse descreve no seu «Demian». Fala-nos de caminhos éticos e de valores humanos, procurando partilhar com os leitores a interrogação à vida e o sentido da existência. Aborda a questão da tolerância e da compaixão pelos outros, mostra-nos o que é realmente importante e valioso, como o viver discretamente, deixando o destaque para a sabedoria e a rectidão de carácter. Um homem assim não confunde a realização pessoal com o exercício de qualquer poder. Acalenta sonhos em vez de ambições.

Em nenhum outro livro AM nos desvenda os estados de alma e nos franqueia as portas para mostrar os veludos da interioridade, como neste. Em nenhum outro o descobrimos tão fascinado com o pormenor. Observador atento e de fina sensibilidade, revela-se um amante da natureza, invariavelmente sábia e com quem todos aprendem. Por isso acredita que uma vez perdida a vestimenta física há-de dissolver-se plenamente nela.

Tempo de reencontro. E de serenidade.

(Texto publicado no Jornal da Bairrada, 11.10.2006, p. 20).


[1] Arsénio Mota, Letras sob Protesto, Porto, Campo das Letras, 2003, p. 164.

[2] Luís Sepúlveda, As Rosas de Atacama, Porto, Edições Asa, 2001, p. 104.

[3] Miguel Torga, Diário XII [2ª. Edição], Coimbra, 1977, p. 79.

[4] David Hume, Diálogos Sobre a Religião Natural, Lisboa, Edições 70, p. 122.

Arsénio Mota homenageado em Bustos (10 tópicos para uma comunicação)

1. A homenagem

Bustos do Passado

Estamos aqui para festejar o lançamento de um livro que assinala os cinquenta anos de vida literária de Arsénio Mota (AM). A palavra festejar parece apropriada, porque se trata de um amigo, um bairradino ilustre que tem dedicado a sua vida à escrita e à cultura, e também um conterrâneo vosso, nascido neste mesmo chão de Bustos, a quem ofereceu já três livros que revelam bem o seu apego às raízes: Bustos. Elementos para a sua História (1983); Bustos do Passado (2000) e Recordações do Berço (2003). Nada melhor que o termo festa para traduzir este encontro: festa da amizade, da sensibilidade, da inteligência e do espírito.

2. O livro

«Arsénio Mota – 50 Anos de Escrita» reúne o testemunho de amigos e admiradores. São contributos que ajudam a traçar-lhe o perfil, peças de um puzzle onde encaixam as variadas facetas da sua vida. Apesar disso não nos dão um retrato de corpo inteiro. Há sempre perspectivas que ficam de fora, porque nada é definitivo no estudo e na análise de uma vida. Ele próprio, com a proverbial humildade que o leva a considerar sempre exageradas as apreciações elogiosas dos amigos, confirma isso numa das suas quadras: «Os olhos dos amigos/ São grandes coloristas: /Até em figos secos/ Põem verdes de artistas!».[1]

A Bandeira EscondidaComo o título indica, o livro assinala os 50 anos da sua estreia literária. Essa actividade assumiu ao longo dos anos várias formas de expressão: a poesia, o conto, a crónica, o ensaio, estudos e antologias e sobretudo a literatura para crianças, que é onde, a par da crónica, eu penso que ele cumpre melhor a sua função e vocação de escritor.

Não vou falar propriamente do livro. O que quero transmitir-vos é a minha opinião pessoal sobre o Arsénio, aquilo que julgo serem alguns traços mais marcantes da sua vida e obra.

3. As origens

AM nasceu no dia 25 de Abril de 1930. Portanto, apenas 10 anos depois de o lugar de Bustos se ter separado da Mamarrosa (18 de Fevereiro de 1920) e passar a ser uma freguesia independente. Não custa adivinhar que o meio em que cresceu era pequeno demais para o tamanho das suas ambições culturais, para a sua sede de infinito, e que as perspectivas de realização pessoal eram escassas. Começou cedo a escrever em jornais. Com pouco mais de 20 anos já colaborava na Gazeta do Sul, na Gazeta de Cantanhede e na Independência de Águeda.

4. O Emigrante

Antes de ir para o Porto, mas já depois de conhecer a rudeza da vida agrícola da sua região, AM emigrou para a Venezuela (1956-1959). Esta faceta de emigrante é curiosa. Fê-lo para ganhar alguma autonomia económica, reunir um pé-de-meia que lhe pudesse dar algum desafogo material para se dedicar à escrita. Emigrou porque, sendo para si mais compensador o trabalho intelectual, sabia também que esse trabalho é o de remuneração mais incerta (daí os problemas que levanta acerca da propriedade intelectual). Cedo quis estar na literatura. E a verdade é que, quando regressou, não fez como os emigrantes tradicionais que são bem sucedidos: não construiu casa, nem ficou a residir na sua terra. Abalou para o Porto. O apelo da cultura e o convívio das tertúlias e cafés era mais forte.

5. A permanência no Porto

Canto DesconformeQuando fixa residência no Porto, em 1963, ingressa como redactor no Jornal de Notícias. Por essa altura já tinha publicado 2 livros de poesia, que assinava como Arsénio de Bustos: O Canto Desconforme (1955) e no ano seguinte Hoje com Harmonia Dentro. Tudo levava a crer que a poesia o tinha conquistado, mas seria a prosa a levar a melhor.

A opção pelo jornalismo teve a ver com o facto de ser a profissão mais próxima da escrita.

Interrompeu essa actividade de jornalista para uma experiência breve na tradução e edição de livros. Regressou a ela e ao Jornal de Notícias após a revolução de Abril de 1974 e aí se manteve até atingir a aposentação.

6. Arsénio Mota jornalista

Costuma dizer-se que o jornalista «mata» o escritor, o que levanta a questão de se saber até que ponto o jornalista e o ficcionista não se confundem. Jornalismo e literatura são duas actividades que apenas têm de comum o recurso à escrita, pois têm códigos expressivos distintos. Como se sabe, o tempo da escrita literária e da escrita jornalística são diferentes. O jornalista escreve textos o mais possível unívocos, tem que ser objectivo, claro e conciso, preparar mensagens que sejam facilmente compreendidas pelos leitores. Só enquanto escritor dá livre curso à sua imaginação, usando metáforas ou outros recursos estilísticos, sem estar sujeito às regras dos habituais livros de estilo.

6.1 – A arte da crónica

Na actividade de jornalista cultivou sobretudo a crónica, à qual imprimiu as marcas pessoais do seu talento. A sua arte não se degradou na crónica, antes se reafirmou nela, numa espécie de conversa íntima com o leitor, tratando dos assuntos mais variados. É bem provável que algumas das suas crónicas tenham sido o espaço de incubação de alguns textos ficcionais.

Bustos do Passado 1
Jornal de Notícias, 22.10.1988

Gostaria de realçar este aspecto curioso: a coluna do Jornal de Notícias onde AM inseria  crónicas chamava-se Linha de Água. O escritor Augusto Abelaira, natural de Ançã, concelho de Cantanhede, assinava crónicas no já desaparecido semanário O Jornal, numa secção cujo título era Escrever na Água. Um e outro título parecem ter a ver com o carácter efémero da crónica. Escrever na água não deixa rasto, nem marcas impressivas, é uma escrita que não aspira à posteridade. Mas a Linha de Água tanto pode querer significar espaço de separação como de diluição entre os géneros literário e jornalístico. É que uma crónica escrita com arte está na fronteira entre os dois géneros: é jornalismo, porque é a actualidade que a comanda; e é literatura (ou, pelo menos, paraliteratura), na medida em que essa escrita é expressão de uma personalidade literária e de um estilo muito peculiar. AM explicou-me que «Linha de Água» também induzia a memória dos rios na cartografia, que costumam ser figurados a tinta azul, ao passo que nós também escrevemos no papel com tinta dessa cor.[2]

6.2 – O Vírus Entranhado, ou a reflexão sobre os problemas do jornalismo

O Vírus Entranhado é um livro de contos em que os problemas do jornalismo, da comunicação e dos seus efeitos perversos, estão presentes. Num desses contos, «O zumbido», põe a nu as misérias do jornalismo, denuncia os que se prestam a serviços que nada têm a ver com a profissão. «O zumbido» é um grito de alerta contra as capelinhas instituídas. Para AM o jornalista deve procurar a honra e recusar as honrarias, deve ser livre. E não são livres os que, em vez de fazer jornalismo autêntico, passam a vida a fazer fretes ao poder do momento e se servem da profissão para atingir posições ilegítimas e que por isso mesmo não os dignificam e os aviltam.

«Toda a nudez» é também um conto exemplar. Alerta-nos para o potencial de vigilância das tecnologias no mundo actual. AM alude objectivamente às modernas técnicas de vigilância baseadas no panóptico de Bentham e que Michel Foucault desenvolve posteriormente em Vigiar e Punir. O que este dispositivo tecnológico permite é ver sem ser visto, acabando o vigiado por tornar-se vigilante de si mesmo. A tecnologia moderna consistiria nisso mesmo: na capacidade que tem, enquanto dispositivo de visibilidade, de auto-punir, auto-vigiar, auto-censurar. É contra esta forma de disciplinar e normalizar os cidadãos que AM se insurge, numa recusa clara da expropriação crescente da individualidade.

6.3 – A escrita de ficção

Quer falemos em jornalismo quer falemos em literatura, temos que lhe agradecer uma escrita limpa, enxuta e sóbria em adjectivos, despida de superficialismos, que faz dele uma espécie de operário das palavras, que as trabalha arduamente até se transformarem em «pequenas maravilhas de dizer expurgado [e] de concisão, que na aparente simplicidade da palavra nua captam os ritmos dominantes da vida».[3] A escrita de AM é um rio de muitos conhecimentos, cujo caudal engrossa à custa dos afluentes culturais mais variados.

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Enquanto ficcionista escreve literatura, textos «abertos». São assim os seus livros, sobretudo os de literatura infantil. Em vez de confirmarem certezas prévias, que não nos entusiasmam nem nos encantam, esses textos inquietam e estimulam, dão ao leitor a possibilidade de tentar apreender os vários sentidos de uma obra, mantendo aceso o lume da expectativa inicial. Como sabe que a faculdade de imaginação do leitor é soberana, AM tenta adubá-la, enquanto o leitor convive com o texto e faz dele seu acompanhante. Se a literatura ainda serve para alguma coisa, é para iluminar o leitor, dar-lhe saídas e despertar nele o gosto pelo novo, exercitar a capacidade de tornar diferente a vida humana. AM não alinha na ideia segundo a qual só se assimila o que é fácil e não requer esforço, pretexto que serve para se lançarem no mercado produtos indigentes e que roçam a mediocridade. Num tempo em que a fuga ao acto de pensar é um traço distintivo do pensamento contemporâneo, o seu mérito reside na capacidade de verter em escrita clara e acessível as suas ideias e pensamentos, por mais densos e meditados que sejam.

Em síntese, pode dizer-se que soube conciliar exemplarmente essas duas actividades de jornalista e de escritor, sem que nenhuma delas tenha subsumido ou prejudicado a outra.

7. Arsénio Mota no panorama literário português

De uma forma resumida, pode afirmar-se que a vida literária actual gira um pouco em torno destas 3 vertentes:

a) A chamada literatura «light», a que os seus cultores preferem chamar «escrita pop». É uma escrita que se repete e copia frases inteiras de uns livros para os outros, transcreve outros autores sem lhes atribuir a origem e passa rasteiras à gramática, para lá de outras malfeitorias. Sendo «light», supostamente não faz mal, como os iogurtes e o tabaco light. O pior é que faz, até porque já tem alguns clones, fotocópias ainda piores que o original. AM rejeita esta imitação grosseira de literatura, tipo folhetim urbano-depressivo, onde os afectos estão ausentes e que reduz o leitor a um estado mental vegetativo e à anulação do pensamento e da criatividade.

b) Uma corrente que faz gala da obscuridade e procura fazer da ilegibilidade uma marca de literatura de qualidade, um pouco na base do lema «sê profundo e serás bom». São livros geralmente demasiado profundos para os nossos pobres neurónios…

c) finalmente, a corrente que engloba meia dúzia de autores consagrados (Saramago, Lobo Antunes, entre outros) e que tem a ver com a ideologia do mercado, que ao infiltrar-se no domínio da criação literária e da crítica de arte, tende a considerar como bom o que mais se vende e consome. E o que mais se vende e consome, hoje em dia, não é o miolo dos livros mas o nome do autor que os publica. Letra sob Protesto é o livro de AM que aborda de forma exemplar estas temáticas. Aí se mostra como o espaço da criação é cada vez mais reduzido pelas lógicas de mercado. É também neste livro que presta comovente homenagem aos autores marginais, os que não estão nos tops da FNAC. É neles que deposita, aliás, a esperança de renovação da literatura, de alguma originalidade ou inovação estética. O facto de um autor não ser ungido com a água-benta que garante as vendas em massa e não ter a incidir sobre ele os holofotes da publicidade, não significa que ele não tenha para publicar trabalhos inovadores e de qualidade. O grave é a crítica não dispensar atenção a valores regionais. Prefere concentrar-se em escritores que são ou vivem na capital, fazendo o elogio a textos de autores cuja inspiração há muito mirrou (este é um dos muitos problemas da crítica, da sua franqueza ou hipocrisia, do seu didactismo ou da sua superficialidade). Mas também não é menos verdade que certas obras não se escoam porque a qualidade, no seu sentido mais amplo, está muitas vezes ausente.

No meio disto tudo AM é um escritor à margem das grandes correntes instituídas e das capelinhas literárias onde abundam os profissionais do elogio mútuo, que trocam favores e carambolam elogios em circuito fechado. Ao contrário, tem um percurso singular, procura erguer pacientemente os seus trabalhos a partir de uma grande exigência ética. Não escreve ao quilómetro, para simples entretenimento, ou para engordar a conta bancária, embora conheça de cor as receitas para o sucesso a qualquer preço.

8. A preocupação com os «autores regionais» e com a literatura marginalizada

Um texto pode ser marginalizado por razões de ideologia literária, político-religiosa, mas sobretudo de economia de mercado editorial ou distribuidor. Hoje é o gosto do público (inculcado pelos media) que comanda poderosamente a produção artística. A literatura marginal poderá deixar de o ser a partir do momento em que entra no goto ou no gosto geral (a partir do momento em que deixa de ser ponto de encontro de minorias, ou lugar de reconhecimento de minorias) e é recuperada pelos representantes oficiais ou oficiosos da cultura dominante. AM não vai por aí. Sabe que os homens de cultura autêntica não confundem cultura com mercadoria, se situam «fora do sistema de valores de troca de mercado. Quer dizer, recusam-se ao frio pragmatismo como linha de vida, entrando em ruptura total com o mundo do seu tempo».[4]

São autores marginalizados também os autores regionais, os que vivem arredados dos grandes centros e sobretudo da capital, distanciados das editoras, dos órgãos de comunicação social de maior audiência e dos círculos sociais influentes. AM fala-nos das dificuldades para se editar uma obra, alerta-nos para as faltas de atenção dos leitores perante a obra publicada, ou para a cegueira dos críticos e jornalistas que só têm olhos para os autores consagrados.

O problema da recepção das obras é importante. O autor regional não pode contentar-se apenas com o cerimonial de circunstância que é a apresentação do seu livro. Deve aspirar vê-lo nas mãos de quem o possa ler, discutir e até criticar, pois a divulgação e a leitura determinam a notoriedade ou o estatuto marginal que o autor detém no campo das letras. Nos tempos que correm a figura do escritor carece de permanente legitimação, a qual lhe é conferida pela crítica, pelas vendas, pelos leitores, pelas escolas ou até pelos prémios que obtém.

Que fazer, então, para que os autores e escritores regionais deixem de viver cercados pelo anonimato? AM convida-os a repensar a sua estratégia, provando que a província tem paisagem, que esta é vasta … e literária! Uma das saídas que aponta passa por uma estratégia de captação dos leitores mais próximos da envolvência de cada autor. Como conseguir isso? Escrevendo sobre temas ligados à sua terra e à sua região, que espelhem as suas potencialidades culturais e literárias, encontrando aí «o público que de outra forma, noutros lados, não têm ou lhes escasseia».[5]

Essas obras devem, tanto quanto possível, ser elaboradas numa óptica regional. O tempo que vivemos, de forte valorização dos particularismos locais, é propício a isso. É um tempo de reacção ao que AM chama «o esmagamento da diversidade no molde unificador da aldeia global».[6]

9. Cultura da (e na) Bairrada

Passo ao tema final desta intervenção. Refiro-me aos esforços empreendidos por AM a favor da cultura bairradina. Esforços que passaram pela reabilitação do espírito da plêiade, fundada em 1918, onde pontificaram nomes como Acúrcio Correia da Silva e António de Cértima; pelo recuperar da visibilidade de tantos outros mergulhados num esquecimento imerecido; finalmente, pelos contributos que deu, sistematizando os já existentes, para a definição e delimitação da região da Bairrada.

Estudos RegionaisA cultura regional pode entender-se como um conjunto de valores – aspectos literários, linguísticos e antropológicos – capazes de definir e valorizar uma região. AM procurou respostas para interrogações do tipo: como se define a nossa região em termos geográficos e culturais? Que trabalhos revelam e exaltam o espaço bairradino? Existirá, na Bairrada, um conjunto assinalável de obras que configure uma corrente literária regionalista? Tem a Bairrada aspectos paisagísticos, tipos humanos e linguísticos distintos dos de outras regiões portuguesas? Se tem, em que obras estão presentes? Até que ponto a psicologia do bairradino é moldada pela ambiência dos nossos campos de milho e vinhedos, e pela corografia de horizontes, aqui e ali tapada pela mancha dos pinhais? A fala do camponês bairradino é circunscrita a este espaço geográfico ou é comum à fala dos camponeses de todo o país? Eis algumas questões a que continua a ser urgente dar resposta, não tanto por se encontrarem na ordem do dia, mas precisamente porque às vezes o não estão.

Apesar do carácter fortemente controverso das perguntas atrás enunciadas, AM não foge a discuti-las e a dar-nos frontalmente o seu ponto de vista. Fá-lo em nome da defesa, valorização e divulgação de uma memória local e regional. É no final da década de 80 do século passado que se lança com grande entusiasmo nesta tarefa. Em 1989, na Câmara de Anadia, participa no relançamento do livro «Versos do Campo», do poeta popular José Francisco Moreira. Ao apresentar o poeta, já então falava «do desamor que vem condenando sistematicamente a cultura bairradina às urtigas».[7] É também em 1989 que explica com entusiasmo como encontrou o Hino da Bairrada, logo vendo nele «outro elemento para desencantar a região adormecida». E acrescentava: «Eu gostava de ver esta música, com o poema, a correr na Bairrada de boca em boca».[8] Recordo, também, a alegria que deixou transparecer nas páginas do suplemento cultural Terra Verde, quando finalmente conseguiu ter em mãos um livro de poesia que não aparecia em lado nenhum, as Seroadas Fulvas, do padre Acúrcio Correia da Silva.

Ao fundar, em 1990, a AJEB – Associação de Jornalistas e Escritores da Bairrada, a cuja direcção presidiu durante quatro mandatos, a região adquire um dinamismo cultural e fervilha de entusiasmo como há muito não se via. Convocam-se reuniões, sucedem-se os encontros, editam-se livros e antologias, cria-se o suplemento literário Terra Verde, distribuído com o Jornal da Bairrada, instituem-se prémios literários e homenageiam-se escritores. Todas as iniciativas têm a participação activa e a marca pessoal e inconfundível de AM. Para lá disso organiza Letras Bairrradinas (1990), uma antologia de poetas e prosadores que cantaram ou deram testemunho da região; Estudos Regionais sobre a Bairrada (1993); Pela Bairrada (1998); um estudo biográfico sobre António de Cértima (1994) e Figuras das Letras e Artes na Bairrada (2001).

10. Agradecimentos

A finalizar, quero expressar um desejo e dois agradecimentos. É preciso divulgar as obras de Arsénio Mota. Ler e dar a ler os seus livros é talvez a melhor homenagem que podemos prestar-lhe. Deixar que se afundem na penumbra das bibliotecas, ou que sobre eles pouse o habitual pó do esquecimento, é fazer deste encontro de amigos uma convenção e não uma convicção.

Homenagem Arsénio

O primeiro agradecimento vai para Bustos e para os bustuenses. As gentes de Bustos, as suas instâncias políticas, agremiações desportivas e associações culturais – e aqui é proibido esquecer o blogue de Bustos – estão de parabéns. Souberam unir esforços e congregar vontades. Esta reunião de amigos mostra que sabem manifestar sentimentos de gratidão aos seus melhores, neste caso a um dos seus filhos mais dilectos e representativos.

Finalmente, o agradecimento devido ao homenageado, por tudo o que tem feito pela cultura em geral, e pela cultura da Bairrada e de Bustos em particular.

Aqui fica o reconhecimento a um homem que tem feito da escrita uma espécie de última trincheira da liberdade. O que emerge destes 50 anos de vida literária é a interpelação permanente do leitor, a humanidade e a esperança como contraponto à erosão dos valores do presente, o exercício cívico da liberdade, da fidelidade às ideias e da lealdade nos afectos.

Não queremos, caro Amigo, que este encontro seja uma espécie de epitáfio da sua actividade literária. Sabemos que vai continuar a brindar-nos com a prosa sumarenta a que sempre nos habituou. E que não deixará de ser, como sempre foi, o homem das «húmidas ternuras» de que falava Raul Brandão.

(Este texto serviu de base à comunicação do autor, apresentada em 19.11.2005, no almoço de homenagem e confraternização que teve lugar no restaurante da APALB (Associação dos Produtores e Assadores do Leitão da Bairrada), sito na Quinta da Queimada – Bustos, no âmbito da apresentação do livro Arsénio Mota – 50 anos de escrita).


[1] Arsénio de Bustos, Colheita de Outono [publicação artesanal], Porto, 1992, p. 12.

[2] Agradeço a Arsénio Mota esta informação e a de que manteve diversas rubricas de crónicas no Jornal de Notícias, tais como «Restos de Civilização» e «Cidade aberta», entre outras.

[3] Ramiro Teixeira, «Entre o Passado e o Presente», Jornal de Notícias, 28.05.1986, p.11

[4] Arsénio Mota, «Cultura a Limpo», Jornal de Notícias, 22.10.88

[5] Idem, «Estudos regionais – Uma abordagem», Boletim Municipal de Aveiro, Ano XV, nº. 29-30, p. 15.

[6] Idem, p. 16.

[7] Jornal da Bairrada, nº. 985, 21.07.1989, p. 24.

[8] Arsénio Mota, «Do Buçaco ao Vouga», Jornal da Bairrada, nº. 986, de 28.07.1989.

Arsénio Mota e a Bairrada

50 Anos EscritaConheci pessoalmente Arsénio Mota por volta de 1990. É verdade que já então o lia: sabendo-o da Bairrada (nasceu na freguesia de Bustos, concelho de Oliveira do Bairro, em 1930), recortava as crónicas mais saborosas que redigia para o Jornal de Notícias a par de textos sobre comunicação social que publicava nos Cadernos de Jornalismo, na cidade do Porto.

Do primeiro encontro guardo sobretudo a imagem do homem afável mas um tanto austero, o olhar atento e perscrutador, a segurança de quem fala sem alardes de superioridade, apenas ao alcance dos que trazem no bojo da existência uma cultura despida de superficialidade e dos artificialismos da retórica. Um homem ouro de lei, que passou a cumular-me de gentilezas. Carteou-se algumas vezes comigo – que tão pouco tenho para dar-lhe! – e ofereceu-me praticamente tudo o que ia publicando. Procurou, até, envolver-me num ou noutro projecto com a sua parceria. Coisas que não tiveram seguimento. Honrado com tais convites, faltou-me «pedalada» para o acompanhar: ou porque o tempo escasseava, ou porque minguavam os conhecimentos que ele generosamente sobrevalorizava. Hoje perdura uma amizade feita de sinceridades que não temem o confronto nem a divergência ocasional de alguns pontos de vista.

Um dia, a caminho de Febres (Cantanhede) onde ia ser evocada a obra poética de Carlos de Oliveira, lembro-me de o ouvir estabelecer, recorrendo aos frutos, uma curiosa tipologia sobre a personalidade das pessoas. Umas seriam como o pêssego: moles por fora e duras por dentro; outras, como a noz: duras por fora e moles (coração de manteiga) por dentro. E mais não disse. Mas é à noz que se assemelha: por detrás da rigidez dos princípios, duma postura cronometrada da gestão do tempo e do rigor que coloca em tudo em que se envolve, está o homem que cultiva a amizade como valor superlativo. Escrever para crianças, como Arsénio Mota o faz, transformando cada livro num objecto estético, é aliás uma forma superior de amizade e generosidade

Mas não é da obra literária que vou ocupar-me. É do incansável labor em prol da cultura da Bairrada que quero dar testemunho. À minha frente, um texto da sua lavra espelha bem a exigência que sempre coloca no rude ofício da escrita: «Caiu na verdade em desuso a regra de ouro, aplicável às línguas de prata, que mandava abrir o bico só quando se tinha algo de novo a dizer». E agora? Não sendo novidade o que vou dizer, talvez o seja para uns tantos que desconhecem o seu contributo para retirar a Bairrada da letargia cultural que a apoquentava há mais de meio século.

Conhecendo bem o animoso grupo da Plêiade Bairradina, que no período de entre as duas guerras do século XX derramou a cultura regionalista com um brilho nunca antes conseguido, Arsénio Mota terá sonhado reeditar, por volta de 1988, uma nova plêiade, congregando pessoas que para lá da proximidade geográfica manifestassem preocupações culturais ou até algumas afinidades literárias e estéticas.

A primeira pedrada no charco lançara-a em 1987, com a crónica «Bairrada sem literatura», publicada no Jornal de Notícias. O escritor recusava associar a Bairrada apenas à terra do leitão assado e do vinho maduro. Costumava então dizer: a Bairrada tem escritores, mas os seus escritores têm muito pouco a Bairrada. Por isso se dispôs a provar – e conseguiu-o – que a região tinha uma literatura que a exprimia e, mais do que isso, que a Bairrada estava dentro da literatura. Fervilham as iniciativas, sucedem-se os encontros de escritores e jornalistas, organizam-se palestras, criam-se prémios literários, publicam-se livros, folheia-se avidamente a imprensa regional de outras épocas, evocam-se figuras marcantes como António de Cértima, Acúrcio Correia da Silva, Manuel Alves, José Francisco Moreira e António Barata, entre outros. O grande motor e dinamizador dessas iniciativas foi sempre Arsénio Mota.

Faltava criar uma tribuna na imprensa para divulgar os valores culturais regionais. Também aí foi decisivo, aparecendo a coordenar o suplemento Terra Verde, distribuído com o Jornal da Bairrada. Colabora em todos os números, em alguns deles com vários textos. Pela sua variedade e qualidade, os 24 exemplares publicados são já hoje um repositório seguro de temas culturais bairradinos

A AJEB – Associação de Jornalistas e Escritores da Bairrada, fundada em 1990 e a cuja direcção presidiu durante quatro mandatos, terá sido a sua menina dos olhos, uma espécie de hífen cultural, traço de união entre os diferentes projectos idealizados. Por razões sobejamente conhecidas – Arsénio Mota fez chegar aos associados um pungente «Testemunho para Memória» –  a associação está hoje moribunda, se é que não pode dizer-se, parafraseando o poeta, jaz morta e arrefece. Um dia a memória histórica se encarregará de mostrar aos vindouros quem a serviu de forma competente, com zelo e dedicação sem limites, e quem foram também os seus principais coveiros.

Num momento em que a Bairrada parece deixar-se embrulhar, novamente, em espesso manto de silêncio cultural, é proibido esquecer o que Arsénio Mota fez por ela, e também pela terra onde nasceu, à qual dedicou três monografias. Ambas lhe devem muito. Resta saber se uma e outra têm feito o que devem para merecer Arsénio Mota.


(Texto publicado em Arsénio Mota – 50 anos de escrita, Serafim Ferreira (coord), Porto, Campo das Letras, 2005 (1.ª edição), pp. 59-61).

O Vírus Entranhado — de Arsénio Mota

Vírus EntranhadoArsénio Mota acaba de juntar, à sua já extensa bibliografia (contos para crianças, crónicas e ensaios, poesia, novela, monografia) mais um livro, a que deu o título de Vírus Entranhado. E nunca, ao lê-lo, nos pareceu tão ajustada a epígrafe: primeiro estranha-se, depois entranha-se.

Tratando-se de um livro de contos, não é obra de leitura fácil, daquelas que habitualmente nos conduzem à evasão. O que sobra, no final, é a mais espessa inquietação, uma espécie de abalo sísmico interior que nos sacode da anestesia dos sentidos a que nos condenaram as modernas sociedades do consumo e da comunicação.

Atenção, pois. É preciso atender a uma linguagem toda ela carregada de sentidos, imagens e metáforas. Sem escapar – como adverte o autor – à complexa teia comunicacional onde os indivíduos, aprisionados, «se ensurdecem uns aos outros», não é possível atingir o nível mais profundo destes contos. Há que recusar uma leitura calmante dos textos, para assim atingirmos uma verdadeira gramática dos sentidos – e dos sentimentos – que esta obra nos oferece.

Então escavemos. Para lá da superfície lisa de cada texto, há que encontrar as camadas sucessivas de sentidos subjacentes, para assim se recuperar a estranheza e não a familiaridade do que é dito; para que o implícito dos textos se torne explícito e ao mesmo tempo objecto de descrição. Parece ser isso que o autor verdadeiramente nos propõe em “A explicação do buraco” (pp. 97-102), ao denunciar o mundo das aparências e da ostentação material, despido de qualquer beleza interior.

Nestes contos, o tema da comunicação (e dos seus efeitos perversos) está quase sempre (ou sempre?) presente. Comunicação com o outro, que tanto pode ser o interlocutor físico e humano como a realidade circundante, a paisagem, que também se quer ecologicamente humanizada. É isso que acontece com “Ponte franca”, porventura o texto literária e esteticamente mais conseguido. De forma às vezes imperceptível, os contos parecem estabelecer relação uns com os outros, liames de entendimento que desembocam num conjunto estruturado e coerente de significações. As divagações do autor só aparentemente não têm direcção ou objectivo. As palavras de cada texto transportam, no bojo, um evidente arsenal de intenções.

Arsénio Mota ficciona a realidade. Envolve-a em mistério, com incursões no mundo do fantástico, como acontece em “Morse de morte” (pp. 91-95). Através de múltiplos contrastes, desvenda, às vezes de forma um tanto pessimista e desencantada, as lixeiras e a podridão do nosso viver quotidiano, o estilhaçar dos afectos e identidades, dos ruídos ensurdecedores e dos silêncios que comprometem.

No primeiro conto, “O zumbido”, saltam as crostas da miséria do jornalismo, na figura dos que dobram a cerviz à curvatura de interesses arredios à profissão. Um grito de alerta contra as capelinhas instituídas, as prebendas do dia a dia e as várias sinecuras. Como que a lembrar-nos que o jornalista deve procurar a honra e recusar as honrarias, ser capaz de contornar as armadilhas da lisonja e da abdicação. Numa palavra: deve ser livre. E não são livres os que, em vez de fazer jornalismo autêntico, o usam como trampolim para atingir posições ilegítimas e por isso mesmo aviltantes.

Ao recusar a subversão dos valores sagrados do jornalismo, que as novas tecnologias vieram acentuar, há no jornalista-escritor Arsénio Mota uma espécie de desencanto idêntico ao que um dia acometeu Antero. Autor de inúmeras páginas de qualidade na imprensa do seu tempo, acabou por ser também o mais feroz crítico do jornalismo da época. Os jornalistas eram «bonzos, e não apóstolos», os editores «bárbaros» e a opinião pública um «monstro moderno» que se exprime através da imprensa, «sua boca». Também nesse tempo de mudança para o jornalismo – a fase industrial da imprensa, em que Eduardo Coelho faz do Diário de Notícias um jornal para todos – Antero denunciava que o jornal, para durar, seria necessariamente «o espelho lisonjeiro do público e não o seu severo mestre».

Em “Shopping Center” são ainda as palavras gastas, vazias de conteúdo, despidas de significado, que chamam a atenção do leitor. É notório, neste texto, o empobrecimento das relações interpessoais (sem dúvida as mais gratificantes) que acabam por sucumbir às mãos dos novos instrumentos de mediação. Urge, pois, reabilitar a palavra para tornar o futuro mais humano e solidário.

Em “O tesouro da arca” o que ressalta é a denúncia do brilho enganador dos falsos ouropéis. Um brilho que cega e pode ser fatal para quem navega nas águas do materialismo mais interesseiro. Um antiquário, outrora próspero mas por fim arruinado, transforma-se num desconhecido de si mesmo, embora ganhe consciência que a pobreza pode ser mais rica que a abundância, assim nos mostrando que muitas vezes é através do ouro que o homem começa a empobrecer.

“Toda a nudez” é também um conto lapidar, por nos remeter para a questão decisiva das tecnologias da informação no mundo actual: o seu potencial para a vigilância. Ao descrever as células individuais de paredes transparentes que aprisionam os indivíduos, dispostas em torno de um eixo central, Arsénio Mota alude objectivamente às modernas técnicas de vigilância baseadas no panóptico de Bentham e que Foucault desenvolve posteriormente em Vigiar e Punir. Este panóptico assenta numa estrutura de prisão ideal, dotada de uma torre central, onde é possível ver sem ser visto. Assim, o vigiado torna-se vigilante de si mesmo. A tecnologia moderna consistiria nisso mesmo: na capacidade que tem, enquanto dispositivo de visibilidade, de auto-punir, auto-vigiar, auto-censurar.

Por outro lado, a impossibilidade dos presos verem o vigilante representa o aspecto mais importante desta arquitectura: ela exerce um poder sobre os detidos, ao induzir neles um estado permanente de visibilidade. Em síntese, esta tecnologia reúne o poder, o saber e o controle dos corpos e dos espaços. É contra esta forma de disciplinar e normalizar os cidadãos que Arsénio Mota parece insurgir-se, numa recusa clara do “arquipélago carcereiro” de que fala Foucault. Um verdadeiro grito de alerta contra a possibilidade (cada vez mais real) de um controle totalitário dos cidadãos exercido pelas novas tecnologias da informação.

O big brother orwelliano é hoje uma realidade ameaçadora. Por isso, contra a expropriação crescente da individualidade é preciso atender aos avisos do próprio Orwell: «Não deixem que isso aconteça. Isso depende de vós». Arsénio Mota disse um dia: «Sejamos corajosamente do nosso tempo (…) não nos deixando imergir nele em completa abulia, antes discutindo alguns dos seus traços».

Em O Vírus Entranhado é possível detectar alguns dos traços marcantes do nosso tempo. O livro é fértil em descobertas, algumas naturalmente subjectivas e ao gosto da imaginação de cada leitor. Não deixe pois o leitor de as encontrar.

Verá que vale a pena.


(Texto publicado em Bairrada Cultural – Suplemento de Artes e Letras do Jornal da Bairrada/Soberania do Povo, 30.03.2000, p. 12).